CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 7 de março de 2017 ( 1 )

Processo C‑621/15

W

X

Y

contra

Sanofi Pasteur MSD SNC

Caisse primaire d'assurance maladie des Hauts‑de‑Seine

Caisse Carpimko

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França)]

«Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos — Laboratórios farmacêuticos — Vacinação contra a hepatite B — Doente com esclerose múltipla — Ónus da prova — Prova do dano causado pelo defeito da vacina e do nexo causal entre esse defeito e o dano — Meio de prova — Sistema de presunções — Falta de consenso científico — Nexo causal»

I – Introdução

1.

Em 1998 e 1999, W. foi vacinado contra a hepatite B. Pouco tempo depois, começou a apresentar sintomas de esclerose múltipla. O seu estado de saúde deteriorou‑se nos anos que se seguiram, tendo vindo a falecer em 2011.

2.

Os membros da família (a seguir «W e o.» ou «recorrentes») intentaram uma ação de responsabilidade civil contra a sociedade Sanofi Pasteur MSD SNC, fabricante da vacina e que é uma das três recorridas no presente processo (a seguir «Sanofi» ou «primeira recorrida»). Os recorrentes alegaram que a esclerose múltipla do falecido tinha sido causada pela vacina. Todavia, a ação não obteve provimento, por não ter sido feita prova da existência de um nexo causal entre o defeito da vacina e o dano sofrido por W. Para demonstrar a existência de tal nexo, os recorrentes invocaram uma norma do direito francês segundo a qual pode ser presumida a existência do nexo causal se a doença se manifestar logo após a administração do medicamento alegadamente defeituoso e se não existirem antecedentes familiares ou pessoais relacionados com a doença.

3.

Os recorrentes interpuseram recurso para a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), que interroga agora o Tribunal de Justiça sobre a interpretação da Diretiva da União Europeia relativa à responsabilidade decorrente dos produtos (a seguir «Diretiva 85/374») ( 2 ). Em concreto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber: i) se as presunções acima referidas são compatíveis com a Diretiva 85/374; ii) se a aplicação sistemática dessas presunções é compatível com a Diretiva 85/374; e iii) se, no caso de essas presunções serem incompatíveis com a Diretiva 85/374, incumbe ao demandante apresentar provas científicas do nexo causal.

II – Quadro jurídico

A – Direito da União

1. Diretiva 85/374

4.

A Diretiva 85/374 harmoniza determinadas regras em matéria de responsabilidade objetiva do produtor através, designadamente, das seguintes disposições:

«Artigo 4.o

Cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e o dano.

[…]

Artigo 6.o

1.   Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar, tendo em conta todas as circunstâncias, tais como:

a)

A apresentação do produto;

b)

A utilização do produto que se pode razoavelmente esperar;

c)

O momento de entrada em circulação do produto.

[…]

Artigo 7.o

O produtor não é responsável nos termos da presente diretiva se provar:

[…]

e)

Que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação em circulação do produto não lhe permitiu detetar a existência do defeito […]»

B – Direito francês

5.

À data dos factos, o artigo 1386‑1 (atual artigo 1245‑8) do Código Civil francês previa que o produtor é responsável pelos danos causados pelos seus produtos defeituosos, independentemente da existência de uma relação contratual com a vítima. O artigo 1386‑9 dispõe que o demandante deve fazer prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e os danos.

6.

Além disso, decorre da jurisprudência da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) que, no que respeita à responsabilidade extracontratual dos laboratórios farmacêuticos resultante das vacinas por estes produzidas, a prova da existência de um nexo causal entre o defeito do produto e o dano sofrido pelo lesado pode resultar de «presunções fortes, precisas e concordantes» ( 3 ).

7.

Segundo a jurisprudência da Cour de cassation (Tribunal de Cassação), um juiz pode considerar que o curto espaço de tempo decorrido entre a injeção da vacina contra a hepatite B e o aparecimento dos primeiros sintomas de uma esclerose múltipla, combinado com a inexistência de quaisquer antecedentes, pessoais ou familiares, pode consubstanciar tais presunções fortes, precisas e concordantes. Isto pode suceder mesmo quando a investigação médica não confirme, em geral, a existência de tal nexo ( 4 ).

III – Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

8.

Entre dezembro de 1998 e julho de 1999, W. levou três injeções de uma vacina contra a hepatite B, fabricada pela Sanofi. Em agosto de 1999, W. começou a manifestar vários sintomas. Em novembro de 2000, foi‑lhe diagnosticada esclerose múltipla. O estado de saúde de W. piorou gradualmente e à data da sua morte, em 30 de outubro de 2011, tinha uma incapacidade funcional de 90%, com necessidade de assistência permanente.

9.

Em 2006, W., a sua mulher e as suas duas filhas intentaram uma ação por responsabilidade extracontratual contra a Sanofi pelos danos causados a W. pelas vacinas. Alegaram que o curto espaço de tempo decorrido entre a inoculação da vacina e o aparecimento dos primeiros sintomas da esclerose múltipla, conjugado com a inexistência de quaisquer antecedentes pessoais ou familiares da referida doença, constituíam presunções fortes, precisas e concordantes da existência de um defeito na vacina e de um nexo causal entre esse defeito e a doença de W.

10.

A ação foi julgada procedente em primeira instância pelo Tribunal de Grande Instance de Nanterre (Tribunal de Primeira Instância de Nanterre, França). Contudo essa sentença foi anulada em sede de recurso pela Cour d’appel de Versailles (Tribunal de Recurso de Versailles, França). Este órgão jurisdicional considerou que os elementos invocados por W e o. conduziam a uma presunção de nexo causal, mas eram insuficientes para demonstrar a existência de um defeito da vacina. A Cour de cassation (Tribunal de Cassação) revogou o acórdão da Cour d’appel de Versailles (Tribunal de Recurso de Versailles), por considerar que este órgão jurisdicional não tinha indicado uma base jurídica para a sua decisão relativamente à inexistência de defeito nas vacinas.

11.

O processo foi remetido para a Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França), que mais uma vez anulou a sentença proferida em primeira instância pelo Tribunal de Grande Instance de Nanterre (Tribunal de Primeira Instância de Nanterre). A Cour d’appel de Paris considerou que o curto espaço de tempo decorrido entre a inoculação da vacina e o aparecimento dos primeiros sintomas da esclerose múltipla, conjugado com a inexistência de quaisquer antecedentes pessoais ou familiares da referida doença, não era suscetível de dar origem a presunções fortes, precisas e concordantes da existência de um nexo causal entre a vacina e a doença de W.

12.

A esse respeito, a Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) observou que não existia consenso científico a favor de um nexo causal entre a vacinação contra a hepatite B e a esclerose múltipla. As autoridades nacionais e internacionais descartaram a associação entre um risco de dano na mielina do sistema nervoso central ou periférico (característico da esclerose múltipla) e a vacinação contra a hepatite B. A Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) salientou ainda que a causa da esclerose múltipla não é conhecida. Por último, fez referência a estudos epidemiológicos que revelam que 92% a 95% dos doentes atingidos pela esclerose múltipla não têm quaisquer antecedentes familiares.

13.

O acórdão da Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) foi novamente objeto de recurso para a Cour de cassation (Tribunal de Cassação), que decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça, as seguintes questões prejudiciais:

«Primeira questão:

O artigo 4.o da Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, no domínio da responsabilidade dos laboratórios farmacêuticos [devido às] vacinas que produzem, opõe‑se a um meio de prova segundo o qual o juiz que conhece do mérito, no exercício do seu poder soberano de apreciação, pode considerar que os elementos de facto invocados pelo demandante constituem presunções fortes, precisas e concordantes, suscetíveis de provar o defeito da vacina e a existência de um nexo causal entre este e a doença, não obstante a constatação de que a investigação médica não estabelece nenhuma relação entre a vacinação e o aparecimento da doença?

Segunda questão:

Em caso de resposta negativa à primeira questão, o artigo 4.o da Diretiva 85/374 opõe‑se a um regime de presunções segundo o qual se considera sempre provada a existência de um nexo causal entre o defeito atribuído a uma vacina e o dano sofrido pelo lesado quando estão reunidos determinados indícios de causalidade?

Terceira questão:

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve o artigo 4.o da Diretiva 85/374 ser interpretado no sentido de que a prova, cujo ónus cabe ao lesado, da existência de um nexo causal entre o defeito atribuído a uma vacina e o dano sofrido só pode ser considerada feita se esse nexo for estabelecido cientificamente?»

14.

Os recorrentes e a primeira recorrida, bem como os Governos checo, alemão e francês e a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas. As partes interessadas que participaram na fase escrita, à exceção do Governo alemão, apresentaram observações orais na audiência de 23 de novembro de 2016.

IV – Apreciação

A – Introdução

15.

O artigo 4.o da Diretiva 85/374 estabelece que, nos processos relativos à responsabilidade objetiva do produtor, incumbe ao lesado o ónus da prova do dano, do defeito e da relação de causalidade entre o defeito e o dano. O presente processo versa sobre as exigências e requisitos que o direito da União impõe relativamente ao modo como essa prova pode ser feita.

16.

Saliento, antes de mais, que a Diretiva 85/374 não harmoniza o nível de prova exigido nem os indícios suficientes para o atingir. Em princípio, essas questões devem ser decididas pelo direito nacional, designadamente em conformidade com os princípios da equivalência e da efetividade. Não compete ao Tribunal de Justiça deduzir regras pormenorizadas em matéria de produção da prova a partir desses princípios gerais, nem tão‑pouco a partir de uma diretiva que estabelece apenas regras básicas para a determinação da responsabilidade, potencialmente, em relação a milhões de produtos diferentes.

17.

No entanto, o direito da União impõe efetivamente alguns limites em matéria de produção da prova, que adiante aprofundarei, com vista a auxiliar o órgão jurisdicional nacional na resolução do litígio.

18.

Antes de analisar em maior detalhe as questões do órgão jurisdicional (D), começarei por tecer algumas considerações de caráter geral sobre os requisitos da Diretiva 85/374 em matéria de produção de prova (B) e formular umas breves observações sobre terminologia (C).

B – Requisitos da Diretiva 85/374 em matéria de produção de prova

19.

A Diretiva 85/374 impõe à parte lesada o ónus de provar o defeito, o dano e o nexo causal entre ambos ( 5 ). A consequência processual desta regra é evidente: se a parte lesada não satisfizer esse ónus, o seu pedido deve ser indeferido ( 6 ).

20.

Porém, como o Tribunal de Justiça já declarou, a Diretiva 85/374 não se destina a harmonizar de modo exaustivo o domínio da responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, para além dos aspetos que regula ( 7 ). Em especial, a Diretiva 85/374 não harmoniza as regras relativas à produção da prova no que respeita ao modo como o lesado pode cumprir o ónus da prova ( 8 ). No que respeita ao caso presente, a Diretiva 85/374 não fornece uma lista dos elementos de prova concretos que a parte lesada deve produzir perante o órgão jurisdicional nacional e não especifica a admissibilidade ou a força probatória a atribuir à prova produzida, nem as conclusões que dela podem ou devem ser retiradas ( 9 ).

21.

Por conseguinte, cabe à ordem jurídica nacional de cada Estado‑Membro, em conformidade com o princípio da autonomia processual, estabelecer regras pormenorizadas em matéria de produção da prova com vista à aplicação prática da Diretiva 85/374 ( 10 ).

22.

Além disso, atendendo à natureza muito diferente dos produtos abrangidos pela Diretiva 85/374, o tipo de danos que podem causar e a forma como esses danos podem ser causados, é de esperar que essas regras pormenorizadas possam não ser idênticas em todos os casos. Assim, na minha opinião, os Estados‑Membros devem poder, dentro dos limites do artigo 4.o da Diretiva 85/374, diferenciar e adaptar, em termos razoáveis, as regras aplicáveis em matéria de prova em função do(s) tipo(s) de produtos em causa.

23.

Acresce que o Tribunal de Justiça reconheceu que, ao estabelecerem regras probatórias, os Estados‑Membros podem tentar corrigir o desequilíbrio entre o consumidor e o produtor que possa resultar, por exemplo, da assimetria da informação ( 11 ). Essa faculdade reflete também os requisitos mais amplos do direito da União em matéria de acesso à justiça e à proteção dos consumidores ( 12 ). Em relação ao número anterior, é evidente que essa assimetria da informação pode ser particularmente acentuada em domínios como o da responsabilidade das empresas farmacêuticas.

24.

Todavia, ao estabelecer as regras em matéria de prova aplicáveis às situações abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 85/374, a autonomia processual dos Estados‑Membros não é ilimitada. O efeito combinado das regras nacionais sobre a prova tem de respeitar os princípios da equivalência e da efetividade ( 13 ). Dito de outro modo, a transposição para o direito nacional das disposições da Diretiva 85/374 em geral e do seu artigo 4.o em particular, deve ser feita dentro dos limites dessas disposições, garantindo simultaneamente a sua aplicação efetiva na ordem jurídica nacional.

25.

Em especial, as regras nacionais relativas à produção de prova que prejudiquem indevidamente a capacidade do órgão jurisdicional nacional de apreciar a prova relevante ( 14 ) ou que, por não serem suficientemente rigorosas, tenham por efeito a inversão do ónus da prova não seriam coerentes com o princípio da efetividade ( 15 ).

26.

A questão de saber se as regras nacionais relativas à produção da prova aplicadas em cumprimento da Diretiva 85/374 respeitam o referido princípio é a principal questão de fundo no presente processo.

27.

Antes de tecer quaisquer considerações gerais sobre esta matéria, começarei por fazer algumas observações prévias acerca da terminologia e, em especial, do conceito de «presunção».

C – Presunção

28.

O significado preciso do termo «présomption» (no original em francês), que é essencial no presente processo, suscitou um aceso debate na audiência. Ficou patente que conceitos que, à primeira vista, têm sonoridade (ou, pelo menos, tradução) idêntica são interpretados e funcionam de forma bastante diferente nas várias ordens jurídicas nacionais. Como acontece frequentemente num sistema jurídico multilingue e multicultural como o da União, um conceito com a mesma designação pode ter significados diferentes ( 16 ).

29.

Assim, entendo que, no direito francês, «présomption» pode ser definido como uma forma de raciocínio jurídico segundo o qual um facto não provado é deduzido de outro facto, que foi provado. Uma presunção diz‑se «factual» quando o juiz pode adotar esse raciocínio dedutivo num caso específico. A presunção designa‑se por «legal», ou seja, de aplicação geral, quando o legislador deduz um facto não provado de outro facto, que foi provado. Uma presunção legal é «simples» quando pode ser ilidida por prova em contrário. Quando a presunção não pode ser ilidida, designa‑se por presunção «inilidível» ou «absoluta» ( 17 ).

30.

O direito alemão prevê uma abordagem diferente, ainda que semelhante ( 18 ). Em contrapartida, a passagem seguinte, relativa à utilização desse conceito no direito inglês, aponta para a existência de claros limites à transliteração do termo francês «présomption» para o inglês «presumption»: «Em alguns casos, o tribunal pode extrair conclusões dos factos provados por uma das partes .[…] estes casos mais não são do que exemplos frequentes de provas circunstanciais. Por conseguinte, é errado tratá‑las como presunções em sentido estrito, na medida em que, em nenhum momento, determinam a inversão do ónus da prova para a pessoa contra a qual a prova é apresentada; […] são frequentemente designadas (erradamente, no nosso entender) por ‘presunções’» ( 19 ).

31.

O órgão jurisdicional de reenvio utiliza o termo «présomption» no seu pedido de decisão prejudicial. Esse termo foi traduzido de forma idêntica nas outras versões linguísticas das questões prejudiciais publicadas no Jornal Oficial, e foi utilizado pelas partes e pelos intervenientes que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, para evitar qualquer confusão terminológica nesta fase, aderirei a esse termo. Todavia, por razões de clareza, explicarei adiante como utilizo esse conceito. Essa metodologia corresponde ao meu entendimento da função desse conceito no direito francês, conforme utilmente descrita pelas partes na audiência.

32.

Por conseguinte, nas presentes conclusões utilizarei o termo «presunção» para designar uma situação em que um facto ou um conjunto de factos (A) é provado e a partir do qual se deduz a probabilidade da ocorrência de outro facto ou conjunto de factos (B). Em termos práticos, o termo «presunção» é aqui utilizado para designar, essencialmente, um tipo de prova circunstancial ou de prova indireta.

33.

As «presunções», no sentido acima descrito de provas circunstanciais, são um fenómeno bastante comum. Tendem a refletir a experiência passada sobre a forma como os acontecimentos se desenrolam habitualmente, transformando‑se em regras gerais destinadas a facilitar e a acelerar o processo judicial. De certa forma, podem ser entendidas apenas como um rótulo que descreve parte do processo de formação da convicção do juiz acerca de quem deve sair vencedor. O demandante submete ao juiz algumas provas de factos a partir dos quais este extrai certas conclusões sobre a probabilidade da ocorrência de outros factos conexos. Nesta fase, parece ser de acolher a tese do demandante. O demandado contrapõe outras provas sólidas, que fazem a balança pender novamente a seu favor ( 20 ). O demandante tem de apresentar argumentos mais convincentes ou arrisca‑se a perder a ação ( 21 ).

34.

Para efeitos da minha análise posterior e inspirando‑me novamente no direito francês estabeleço aqui uma distinção entre presunções «legais» e «factuais». Utilizarei o termo «presunção legal» para designar uma presunção a que o juiz está obrigado por lei a atender. Por outras palavras, para utilizar o exemplo suprarreferido o juiz tem de deduzir o facto B do facto A e, nesse sentido, a sua liberdade de apreciação da prova está, em certa medida, limitada. Em contrapartida, nas presentes conclusões utilizo o termo «presunção factual» para designar uma situação em que o juiz tem a possibilidade, no nosso exemplo, de deduzir o facto B do facto A, mas apenas no âmbito da liberdade de apreciação da prova.

35.

Uma segunda distinção importante para a presente análise é a que se faz entre presunções ilidíveis e inilidíveis. Voltando ao exemplo suprarreferido, considero que uma presunção é inilidível quando a contraparte não a puder ilidir, independentemente das provas que apresente ao tribunal. Pelo contrário, uma presunção é ilidível se a outra parte puder apresentar outras provas que permitam ao juiz concluir, na sua apreciação geral, que a presunção não pode ser sustentada.

36.

Tendo presentes estes esclarecimentos de ordem terminológica, debruçar‑me‑ei agora sobre as questões específicas do órgão jurisdicional nacional.

D – Questões do órgão jurisdicional nacional

37.

O artigo 4.o da Diretiva 85/374 opõe‑se a um meio de prova segundo o qual determinados factos podem constituir uma presunção de facto de que uma vacina é defeituosa e causou uma doença, não obstante a investigação médica não estabelecer, em termos gerais, uma relação causal entre a vacina e a doença? A resposta a essa questão é diferente se a presunção for legal e não factual? O nexo causal entre a vacina e a doença tem de ser estabelecido por provas científicas? Estas são, no essencial, as três questões do órgão jurisdicional nacional.

38.

Utilizando a terminologia acima desenvolvida (ponto C), considero que a primeira questão se refere a uma «presunção de facto ilidível». Por conseguinte, o juiz chamado a pronunciar‑se não está obrigado a aplicar essa presunção e, ainda que decida fazê‑lo, a presunção constituirá apenas uma parte da sua apreciação global dos factos. O demandado poderá assim apresentar outras provas para ilidir a presunção. Essas provas podem consistir em elementos probatórios que contradigam diretamente a base factual da presunção ou em quaisquer outros elementos que convençam o juiz de que a ação não deve obter provimento ( 22 ).

39.

No meu entender, em princípio, a Diretiva 85/374 não se opõe a tais presunções de facto. Nem exige que seja atribuída força probatória específica à investigação médica ou à investigação científica em geral.

40.

Conforme exposto no n.o 20 das presentes conclusões, o artigo 4.o da Diretiva 85/374 regula o ónus da prova mas não as regras em matéria de produção da prova, os meios de prova ou o nível de prova. Em especial, a Diretiva 85/374 não estabelece a força probatória que deve ser atribuída a elementos de prova específicos nem regula a utilização de presunções.

41.

Considero que no caso em apreço é útil, para efeitos de análise, separar três aspetos da primeira questão, nomeadamente: 1) o papel da investigação médica; 2) a utilização de presunções; e 3) a prova da existência de nexo de causalidade versus a prova da existência do defeito.

1. Investigação médica

42.

A Diretiva 85/374 exige que se estabeleça um nexo causal entre o defeito e o dano. Porém, não exige que essa relação de causalidade se estabeleça por meio de qualquer elemento de prova específico, médico ou outro. A Diretiva 85/374 também não prevê que a falta de uma investigação médica que estabeleça esse nexo causal constitui prova conclusiva da inexistência do defeito ou do nexo causal. Isso não surpreende, dado o caráter genérico da Diretiva 85/374, que se aplica à responsabilidade pelos danos causados por produtos defeituosos num amplo número de setores ( 23 ), relativamente a muitos dos quais a investigação médica será simplesmente irrelevante.

43.

Ainda assim, cumpre fazer algumas observações gerais sobre os requisitos relativos à obrigação de as demandantes apresentarem provas sob a forma específica de uma investigação médica e sobre o papel dessas provas. Na alínea a), infra, analisarei a possibilidade de a investigação médica ser exigida como um requisito da procedência da ação. Na alínea b), analisarei se uma investigação médica pode ser exigida para desencadear a aplicação de uma presunção de facto.

a) A investigação médica como requisito da procedência da ação

44.

No meu entender, o requisito de que, para efeitos do cumprimento do artigo 4.o da Diretiva 85/374, o nexo causal seja estabelecido especificamente com base na investigação médica seria incompatível com essa disposição e com o princípio da efetividade, pelos seguintes motivos.

45.

Em primeiro lugar, um tal requisito probatório específico tornaria praticamente impossível estabelecer a existência de responsabilidade nos casos em que não exista investigação médica, independentemente da natureza ou da qualidade dos outros meios de prova. Nesses casos, a Diretiva 85/374 seria privada do seu efeito útil e a liberdade de apreciação da prova pelo órgão jurisdicional nacional seria prejudicada indevidamente.

46.

Em segundo lugar, há que distinguir a apreciação jurisdicional da causalidade numa situação específica da avaliação científica da causalidade (potencial) como uma questão geral. A última pode ser relevante para a primeira, e vice‑versa, mas não devem ser confundidas ( 24 ). O artigo 4.o da Diretiva 85/374 impõe ao demandante o ónus de provar que a substância que lhe foi administrada provocou o dano sofrido no seu caso concreto. Não exige que o demandante demonstre que a investigação médica geral tenha revelado o potencial caráter nocivo da substância em termos gerais. Consequentemente, a imposição sistemática desse requisito adicional iria muito mais além do que o disposto no artigo 4.o da Diretiva 85/374 ( 25 ).

47.

Em terceiro lugar, prever que um produtor não seja considerado responsável sem a existência de investigação médica que estabeleça um nexo causal também violaria o artigo 4.o da Diretiva 85/374 ao alargar efetivamente a lista de exceções à responsabilidade previstas no artigo 7.o da Diretiva 85/374. O artigo 7.o, alínea e), estabelece expressa e especificamente que a responsabilidade pode ser excluída nos casos em que se demonstrar que, à data da introdução do produto no mercado, não era possível concluir cientificamente pela existência do defeito ( 26 ). Se o legislador tivesse desejado introduzir nesta disposição outros exemplos de situações em que a (falta de) investigação médica deve excluir a responsabilidade, tê‑lo‑ia feito.

48.

Por estes motivos, considero que fazer da falta de investigação médica geral um motivo sistemático e determinante para rejeitar os argumentos do demandante constituiria um problema à luz da Diretiva 85/374 e do princípio da efetividade.

49.

Evidentemente, isso não significa que a investigação médica seja irrelevante em contextos como o do presente caso. Muito pelo contrário. Conforme acima referido, ainda que a investigação médica determine, em termos gerais, que um produto apresenta um problema potencial, isso não é o mesmo que determinar que esse produto provocou um dano num caso concreto.

50.

No entanto, em termos probatórios, seria errado ignorar essa investigação. Assim, a rejeição sistemática das provas sob a forma de investigação médica por serem consideradas irrelevantes seria tão problemática à luz da Diretiva 85/374 e do princípio da efetividade como a rejeição sistemática de outros elementos de prova na falta de investigação médica. As provas apresentadas sob a forma de investigação médica devem ser devidamente consideradas.

51.

A título de conclusão quanto a este ponto, as considerações que precedem refletem aquilo que entendo poder ser considerado como a regra geral, aplicável por defeito, que decorre do princípio da efetividade, a saber a livre apreciação da prova pelos juízes nacionais na aplicação do direito da União ( 27 ). Conforme indicado mais adiante, essa consideração, só por si, não obsta a que o direito nacional atribua determinada força probatória a elementos de prova específicos ou que lhes associe determinadas presunções. Implica, porém, que, na aplicação do artigo 4.o da Diretiva 85/374, as regras probatórias nacionais podem criar um risco sério de conflito com o princípio da efetividade, quando: i) proíbem expressamente os juízes de ter em conta elementos de prova potencialmente relevantes ( 28 ); ou ii) identifiquem elementos específicos como constituindo sistematicamente prova conclusiva e irrefutável de um determinado facto ( 29 ).

b) A investigação médica como requisito para desencadear a aplicação de uma presunção

52.

Na sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio não afirma expressamente que, na falta de qualquer investigação médica, a ação improcederia automaticamente. Pelo contrário, a questão parece sugerir que, na falta de investigação médica, a ação poderia proceder mas não poderiam ser utilizadas presunções de facto para esse efeito ( 30 ).

53.

À semelhança de outras regras pormenorizadas em matéria de prova, a Diretiva 85/374 não regula a opção de recorrer ou não a presunções de facto e sob que condições. Portanto, trata‑se geralmente de uma questão de direito nacional, sujeita aos princípios da equivalência e da efetividade. A fortiori, a recusa em desencadear essa presunção quando não existe um elemento probatório específico, como a investigação médica, é também uma questão de direito nacional.

54.

Em geral, o direito da União preocupa‑se mais com a aplicação injustificada de presunções que possa dar lugar à inversão do ónus da prova ou comprometer de outro modo o princípio da efetividade, designadamente pelo facto dessa aplicação se basear em elementos de prova irrelevantes ou insuficientes ( 31 ). Todavia, o que se discute no presente processo é a recusa em aplicar presunções existentes no direito nacional quando não estejam preenchidos determinados requisitos (falta de investigação médica).

55.

Esses requisitos podem ser contrários ao princípio da efetividade? Sim, pelo menos teoricamente. O Tribunal de Justiça já declarou, por exemplo, no domínio do direito da concorrência, que dadas as dificuldades em demonstrar a existência de colusão através de provas diretas, deve ser possível fazê‑lo através de provas indiretas (ou seja, recorrendo a «presunções de facto», conforme definidas atrás ( 32 )). Compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, nas circunstâncias do presente processo, a exclusão das presunções tornaria impossível ou excessivamente difícil a prova pelos demandantes do nexo de causalidade ou do defeito devido à ausência de provas diretas e, por conseguinte, seria potencialmente incompatível com o princípio da efetividade.

56.

Não me adiantarei à apreciação do órgão jurisdicional de reenvio. Dito isto, indo mais além da formulação precisa da questão, o meu entendimento em termos amplos acerca do presente processo não é propriamente o de que, na falta da investigação médica, é proposta a exclusão de quaisquer presunções. Ao invés, o que o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar é se a exclusão de uma presunção de facto específica é justificada ( 33 ). Nesse sentido, a questão prática que o órgão jurisdicional de reenvio pretende resolver é a da suficiência da prova subjacente a uma presunção específica normalmente utilizada neste tipo de processos.

57.

Debruçar‑me‑ei agora sobre essa questão.

2. Presunções

58.

Em conformidade com a abordagem geral às regras em matéria de produção de prova atrás enunciadas no ponto B, compete ao órgão jurisdicional nacional que aplica o artigo 4.o da Diretiva 85/374 pronunciar‑se sobre a compatibilidade de presunções específicas previstas no direito nacional com os princípios da equivalência e da efetividade.

59.

Contudo, partindo do pressuposto de que a regra em causa é uma «presunção de facto ilidível» ( 34 ), passo a enunciar algumas orientações gerais que talvez ajudem o órgão jurisdicional nacional na sua apreciação.

60.

Conforme o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de declarar, as regras probatórias nacionais podem ser demasiado flexíveis, resultando da sua aplicação, na prática, a inversão do ónus da prova e a não conformidade com o princípio da efetividade ( 35 ). No caso em apreço, essa inversão do ónus da prova resultaria igualmente na violação do artigo 4.o da Diretiva 85/374. Considero que esta é, com efeito, a principal alegação da primeira recorrida.

61.

Em que circunstâncias uma presunção pode ser «demasiado flexível»?

62.

Concebo três cenários em que isso pode suceder: a) não é exigida qualquer prova, existindo apenas uma presunção de que o demandante demonstrou os factos alegados; b) as provas em que as presunções se baseiam são irrelevantes; ou c) as provas têm relevância, mas são «fracas».

a) Ausência de qualquer base probatória para a presunção

63.

No que respeita ao cenário a), a dispensa de produção de qualquer prova pelo demandante para que os factos por si alegados sejam considerados demonstrados equivaleria a uma inversão do ónus da prova e contrariaria o artigo 4.o da Diretiva 85/374 e o princípio da efetividade ( 36 ). Creio que, no processo principal, o demandante tem de apresentar determinadas provas antes de ser desencadeada a presunção, pelo que não aprofundarei este cenário.

b) Presunção baseada em provas irrelevantes

64.

No que respeita ao cenário b), entendo por irrelevantes as provas que não revestem qualquer nexo lógico ou racional com a conclusão que delas se extrai. Por exemplo, no meu entender seria problemático no presente processo considerar que o volume de negócios ou o número de trabalhadores da primeira recorrida fazem prova de que os produtos em causa são defeituosos. É evidente, logo à primeira vista, que simplesmente não existe qualquer ligação entre esses factos.

65.

Aceitar que se extraiam conclusões unicamente a partir de provas irrelevantes e que as presunções se baseiem nas mesmas provas equivaleria a eximir o demandante da obrigação de apresentar quaisquer provas. Conforme já referido, daí resultaria a inversão do ónus da prova.

66.

Nas suas alegações escritas, a primeira recorrida sustenta que não existe nenhuma ligação lógica entre as provas produzidas e as conclusões delas extraídas. A esse respeito, alega em especial que, tendo em conta a incerteza quanto à causa da esclerose múltipla, a proximidade temporal entre a vacinação e o aparecimento da doença não é conclusiva. Com efeito, esse nexo temporal poderia até excluir a causalidade, caso se demonstre que o período de incubação da doença era suficientemente longo.

67.

Independentemente da opinião que cada um tenha sobre o raciocínio post hoc ergo propter hoc, considero que a irrelevância absoluta do nexo temporal alegada pela primeira recorrida não é uma evidência tão gritante como os exemplos, acima propostos, do volume de negócios ou do número de trabalhadores.

68.

Contudo, entendo que não cabe ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a pertinência do nexo temporal (ou de outros elementos de prova da presunção em questão) nem apreciar exaustivamente essa questão. Existem pelo menos duas razões imperiosas que o justificam.

69.

Primeiro, conforme acima referido, o órgão jurisdicional nacional formulou a sua questão em termos gerais, sem mencionar as diversas condições de aplicação da presunção. Na verdade, não obstante ter sido abordado, em certa medida, nas observações das partes, o conteúdo exato dessas condições continua pouco claro ( 37 ).

70.

Em segundo lugar, fazer observações detalhadas a este propósito assemelha-se perigosamente a atribuir uma força probatória específica a determinados elementos de prova em casos particulares de responsabilidade pelos danos causados por produtos defeituosos. No meu entender, tais considerações seriam incompatíveis com a natureza do processo de reenvio prejudicial, com o conceito de autonomia processual nacional e com a livre apreciação da prova pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

c) Provas relevantes mas «fracas»

71.

No que respeita ao cenário c), uma vez que não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se exaustivamente sobre a pertinência de elementos de prova específicos, a fortiori não cabe ao Tribunal de Justiça determinar se, considerados no seu conjunto, os elementos de prova pertinentes justificam uma presunção específica. Com efeito, a questão da justificação de uma presunção pode ser ainda mais subjetiva do que a da sua pertinência. Dois exemplos retirados do domínio do direito da concorrência da União Europeia ajudam a ilustrar este ponto ( 38 ).

72.

Primeiro, ao defender as suas decisões em sede de recurso de anulação, a Comissão Europeia pode invocar a presunção de facto ( 39 ) ilidível ( 40 ) de que a empresa‑mãe exerceu controlo sobre a sua filial integralmente detida e, nesta base, é considerada responsável pela violação do direito da concorrência da União por essa filial ( 41 ). Não são exigidas provas de participação efetiva, sendo suficiente a detenção da totalidade do capital. Esta presunção foi posta em causa muitas vezes. Uma crítica é a de que a detenção da totalidade do capital simplesmente não constitui uma base suficiente para a presunção ( 42 ). Por outras palavras, pode dizer‑se que a presunção carece de rigor probatório. Seria um erro ignorar os argumentos sobre a falta de rigor probatório ou considerá‑los algo rebuscados ( 43 ). Porém, o Tribunal de Justiça já confirmou essa presunção clara e reiteradamente ( 44 ).

73.

Segundo, nos processos de cartel, a Comissão tem de provar a existência de um acordo ou de uma prática concertada. Muitas vezes, fá‑lo através de provas circunstanciais (a saber, presunções, na aceção das presentes conclusões). A suficiência dessa prova é geralmente apreciada caso a caso. Todavia, o Tribunal de Justiça já declarou reiteradamente que o comportamento paralelo das empresas, só por si, não constitui prova suficiente para justificar a presunção de existência da colusão. Por outras palavras, o Tribunal de Justiça introduziu uma regra jurídica que determina claramente que essa prova, só por si, é demasiado fraca ( 45 ).

74.

Há que reconhecer que os exemplos citados provêm de um domínio do direito substantivo muito diferente, mas trata‑se de um domínio em que a jurisprudência em matéria de rigor probatório e de presunções é especialmente abundante. Como tal, considero que ajudam a ilustrar, no contexto do direito da União, a natureza frágil, em última análise, bastante subjetiva e frequentemente variável consoante os casos, de qualquer afirmação definitiva acerca da adequação de elementos de prova específicos ou de regras gerais relativas à sua força probatória e às presunções conexas.

75.

Em conclusão, antes de recorrer a uma presunção de facto específica, o órgão jurisdicional nacional deve estar convicto de que essa presunção se baseia em provas pertinentes e de que é suficientemente rigorosa para se ajustar ao princípio da efetividade, e não para equivaler, na prática, a uma inversão do ónus da prova, contrária ao artigo 4.o da Diretiva 85/374.

3. Defeito e causalidade

76.

Na sua primeira questão, o órgão jurisdicional nacional precisa que a presunção se aplica tanto ao nexo causal como ao defeito. Para que fique claro, o raciocínio acima exposto em relação à possibilidade geral de o direito nacional estabelecer presunções de facto e aos limites impostos a essa faculdade pelo direito da União aplica‑se igualmente às presunções relativas ao defeito e ao nexo causal.

77.

Ainda assim, acrescento três observações adicionais.

78.

Em primeiro lugar, considero que os elementos de facto que constituem a base da presunção do defeito e da causalidade são os mesmos. No meu entender, essa abordagem não é, em si mesma, contrária ao artigo 4.o da Diretiva 85/374 ou ao princípio da efetividade. Em conformidade com o raciocínio acima exposto, o direito da União não prevê requisitos probatórios específicos relativamente ao defeito e ao nexo causal, nem precisa que a base probatória do defeito e a do nexo de causalidade devem ser diferentes.

79.

Em segundo lugar, a primeira recorrida afirma nas suas alegações que o defeito é deduzido do nexo causal.

80.

Essa não é a formulação utilizada pelo órgão jurisdicional na sua questão. A primeira questão sugere, pelo contrário, que os mesmos factos constituem a base dos dois elementos — nexo causal e defeito. Conforme acima referido, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se esses factos são pertinentes e suficientes para concluir que a existência de cada um deles foi demonstrada.

81.

E se a primeira recorrida estiver certa e, tecnicamente, nos termos do direito nacional, a existência do defeito for deduzida do nexo causal?

82.

Não creio que essa abordagem por dedução seja, em si mesma, problemática. Na prática, os elementos de prova utilizados para determinar a existência do nexo causal servem indiretamente para determinar a existência do defeito. Essa abordagem da prova é semelhante a uma presunção, conforme anteriormente definida. A dedução da existência do defeito (que, neste caso, é difícil de provar diretamente, dada a «destruição» do produto pela da utilização ( 46 )) resulta de provas mais indiretas ( 47 ). Tal como no caso das presunções, a questão substantiva nos termos do direito da União é, mais uma vez, a de saber se a dedução se baseia em provas pertinentes e suficientes.

83.

Em terceiro lugar, tal como sucede no caso das presunções relativas ao nexo causal, geralmente incumbe ao órgão jurisdicional apreciar de forma exaustiva a pertinência e a suficiência de elementos de prova específicos como base para a dedução da existência do defeito.

84.

Contudo, há um aspeto da prova do defeito que deve ser tido em conta nas presentes conclusões, por respeitar à própria definição de «defeito».

85.

Nos termos do artigo 6.o da Diretiva 85/374, um produto é defeituoso quando «não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar, tendo em conta todas as circunstâncias». Sobre esta base, a primeira recorrida alega, em especial, que os elementos que determinam a existência do nexo causal entre o produto e o dano num caso específico não bastam, por si só, para determinar a existência do caráter defeituoso. Impõe‑se uma análise mais ampla da relação custo/benefício do produto, para lá do caso concreto.

86.

Não subscrevo este entendimento.

87.

A Diretiva 85/374 não prevê expressamente que o conceito de defeito exija, além da situação específica em apreço, que o produto seja, de uma forma geral, nocivo ou potencialmente nocivo, ou que se proceda a uma análise mais ampla dos custos e benefícios do produto para a sociedade. É verdade que a definição de defeito prevista no artigo 6.o da Diretiva 85/374 e no considerando correspondente está formulada em termos não específicos (a segurança que «se pode» esperar ou que «o público em geral» pode esperar). Porém, no meu entender, essa linguagem é sobretudo ambígua. Afigura‑se‑me que se refere essencialmente às expectativas básicas relativas ao produto, em condições de utilização normais. Isto não significa que, quando o produto seja utilizado normalmente e cause danos graves num caso específico, a conclusão pela existência do defeito exija necessariamente uma ponderação dos custos e dos benefícios do produto.

88.

Paralelamente ao que já foi atrás afirmado a propósito da relação entre a investigação médica geral e o caso específico ( 48 ), considero que impor um tal requisito relativamente ao defeito equivaleria a criar (ou, pelo menos, a deduzir audaciosamente) novas condições de responsabilidade.

89.

A primeira recorrida tão‑pouco pode invocar o acórdão Boston Scientific, citado em apoio da sua tese ( 49 ). Nesse processo, foi provado que alguns dispositivos médicos específicos de um lote de produção eram defeituosos. A questão no processo Boston Scientific era a de saber se o caráter defeituoso de outros dispositivos do mesmo lote podia ser extraído dessa conclusão. Isso é muito diferente de sugerir que um produto específico só pode ser considerado defeituoso se se provar, em termos mais gerais, que não é seguro.

90.

À luz das considerações precedentes e, tendo em conta o cenário exposto na primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio, entendo que o artigo 4.o da Diretiva 85/374 não se opõe às presunções factuais relativas ao nexo causal e ao defeito. Contudo, essa presunção deve respeitar os princípios da equivalência e da efetividade e os requisitos mínimos previstos no artigo 4.o A presunção deve ser suficientemente rigorosa, para que dela não resulte a inversão do ónus da prova. Em especial, deve basear‑se em provas pertinentes e suficientes.

91.

Essa resposta será a mesma se a presunção de causalidade for uma presunção legal (e não uma presunção factual)? Nisso consiste, essencialmente, a segunda questão do órgão jurisdicional de reenvio.

92.

Remeto para o raciocínio acima exposto, segundo o qual as regras em matéria de produção da prova, incluindo a utilização de presunções e os requisitos que lhes estão subjacentes, constituem uma questão de direito nacional, sujeita aos princípios da equivalência e da efetividade. A decisão final sobre a conformidade com esses princípios no presente processo cabe ao órgão jurisdicional nacional.

93.

Ainda assim, acrescento as seguintes três observações.

94.

Em primeiro lugar, considero que, regra geral, as presunções legais inilidíveis (que impõem ao juiz a obrigação de considerar provados determinados factos, que não podem ser refutados, independentemente da prova produzida pela contraparte) são mais suscetíveis de suscitar críticas e é bem possível que contrariem o princípio da efetividade. A este respeito, remeto para as considerações feitas no n.o 51, supra, a propósito da livre apreciação da prova pelo juiz. Todavia, segundo depreendo da audiência, as presunções invocadas no presente processo são ilidíveis, pelo que não aprofundarei este aspeto.

95.

Em segundo lugar, ainda que não seja «inilidível» em sentido estrito, por vezes uma presunção só pode ser afastada através da produção de provas que ponham em causa o próprio fundamento da presunção. Nesses casos, uma vez mais, é bem possível que os limites impostos à liberdade de apreciação da prova pelo juiz sejam incompatíveis com o princípio da efetividade.

96.

Por conseguinte, quando o facto A constitui a base de uma presunção ilidível da existência do facto B, teoricamente essa presunção poderá ser pode ser refutado através: i) da prova de que a existência do facto A não foi demonstrada; ou ii) da produção de prova adicional «C», da qual resulte o afastamento da presunção pelo juiz, na sua apreciação global dos factos. O primeiro cenário impõe uma maior limitação à liberdade de apreciação da prova pelo juiz.

97.

Em terceiro lugar, conforme acima exposto, para que as presunções de facto respeitem o princípio da efetividade é necessário que se baseiem em provas pertinentes e suficientes para sustentar as conclusões extraídas. O mesmo se aplica no caso das presunções legais.

98.

A diferença reside no facto de, por definição, o juiz nacional estar obrigado a aplicar as presunções legais nos casos em que o demandante faça prova dos elementos de facto necessários. Consequentemente, existe claramente uma maior possibilidade de que a presunção seja aplicada a situações concretas quando, na verdade, a sua aplicação não é justificada.

99.

No entanto, no meu entender, essa possibilidade não é contrária, em si mesma, ao princípio da efetividade. Na verdade, considero que é quase inevitável que as presunções legais, dado o seu caráter automático, estejam «erradas» em alguns casos específicos. O seu objetivo não é a perfeição do resultado, mas a administração eficaz da justiça. O ponto fundamental reside na possibilidade prática de o demandado ilidir a presunção, quando a sua aplicação é desencadeada erradamente mediante a produção de provas pertinentes. Isso revela, mais uma vez, a importância do caráter ilidível de qualquer presunção legal.

100.

Tendo em conta as respostas às questões anteriores do órgão jurisdicional de reenvio, não é necessário abordar a sua terceira questão, que respeita à força probatória da investigação científica. No entanto, no âmbito da resposta à primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio, teci várias considerações relativas à força probatória atribuída especificamente aos elementos de prova sob a forma de investigação médica. Na medida em que possam revestir utilidade para o órgão jurisdicional de reenvio, essas considerações são, no meu entender, igualmente válidas no que respeita à importância e aos limites dos elementos de prova científicos em geral.

V – Conclusão

101.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões da Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) nos seguintes termos:

O artigo 4.o da Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, no domínio da responsabilidade dos laboratórios farmacêuticos decorrente das vacinas que produzem, não se opõe em si mesmo a um meio de prova segundo o qual, no exercício do seu poder soberano de apreciação dos factos, o juiz que conhece do mérito pode considerar que os elementos de facto invocados pelo demandante constituem presunções fortes, precisas e concordantes, suscetíveis de demonstrar o defeito da vacina e a existência de um nexo causal entre este e a doença, não obstante a constatação de que a investigação médica não estabelece nenhuma relação entre a vacinação e o aparecimento da doença, desde que esse meio de prova não dê efetivamente lugar à inversão do ónus da prova do defeito, do dano ou do nexo causal entre ambos.

Em especial, esse meio de prova só poderá incluir presunções que:

se baseiem em provas pertinentes e suficientemente rigorosas para corroborarem as conclusões extraídas;

sejam ilidíveis;

não restrinjam indevidamente a livre apreciação da prova pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente impedindo o juiz nacional (sem prejuízo das regras gerais internas quanto à admissibilidade das provas) de ter em conta provas pertinentes ou exigindo que determinados elementos de prova específicos sejam considerados como provas conclusivas do preenchimento de uma ou mais condições previstas no artigo 4.o, independentemente da produção de outras provas;

não impeçam os juízes nacionais de ter devidamente em conta qualquer investigação médica relevante que lhes seja apresentada, sem prejuízo das regras aplicáveis em matéria de admissibilidade das provas, nem imponham a apresentação da investigação médica como um requisito absoluto da prova do defeito ou do nexo causal.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (JO 1985, L 210, p. 29; EE 13 F19 p. 8).

( 3 ) «Présomptions, graves, précises et concordantes». O significado preciso do termo «presumptions», cuja tradução mais natural para inglês seria provavelmente «circumstantial evidence» [prova indiciária], é abordado mais pormenorizadamente nos n.os 28 a 35, infra.

( 4 ) Tal como confirmado no pedido de decisão prejudicial. O órgão jurisdicional de reenvio não refere qualquer jurisprudência específica. No entanto, segundo as observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça, esses princípios parecem ser confirmados e aplicados em vários processos, nomeadamente em dois acórdãos de 22 de maio de 2008 (Cass. 1.a Secção Cível, Bull. Civ. I, n.os 148 e 149).

( 5 ) V. artigo 4.o da Diretiva 85/374 e acórdão de 20 de novembro de 2014, Novo Nordisk Pharma (C‑310/13, EU:C:2014:2385, n.o 26). Isto reflete a regra processual geral que determina que, normalmente, incumbe à parte que alega um facto o ónus da prova desse facto (v., no que respeita ao direito da União, conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak no processo C.A.S./Comissão, C‑204/07 P, EU:C:2008:175, n.o 114). V., a propósito da responsabilidade objetiva do produtor, Lovells, Product liability in the European UnionA report for the European Commission – 2003 (The Lovells Report), p. 19.

( 6 ) Em termos mais gerais, quanto à génese e ao contexto do artigo 4.o, v. Taschner, H. C., Frietsch, E., Produkthaftungsgesetz und EG‑Produkt‑haftungsrichtlinie, Kommentar, 2.a edição, Beck, Munique, 1990, pp. 219 a 222.

( 7 ) Acórdão de 20 de novembro de 2014, Novo Nordisk Pharma (C‑310/13, EU:C:2014:2385, n.o 24 e jurisprudência aí referida).

( 8 ) Acórdão de 20 de novembro de 2014, Novo Nordisk Pharma (C‑310/13, EU:C:2014:2385, n.o 29); conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Novo Nordisk Pharma (C‑310/13, EU:C:2014:1825, n.os 21 a 24). V. ainda Quarto relatório, de 8 de setembro de 2011, sobre a aplicação da Diretiva 85/374, COM(2011) 547 final, p. 7.

( 9 ) O artigo 7.o da Diretiva 85/374 enumera, efetivamente, alguns casos específicos de exclusão da responsabilidade com base em determinados elementos de prova. Embora não sejam diretamente relevantes para o presente processo, estes casos são adiante referidos de forma mais aprofundada.

( 10 ) V., por exemplo, especialmente no que respeita à autonomia processual nacional e às regras em matéria de produção da prova, acórdãos de 22 de janeiro de 1975, Unkel (C‑55/74, EU:C:1975:5, n.o 12, terceiro parágrafo); de 10 de abril de 2003, Steffensen (C‑276/01, EU:C:2003:228, n.o 60); de 28 de junho de 2007, Bonn Fleisch (C‑1/06, EU:C:2007:396, n.o 51, segundo parágrafo); e de 15 de outubro de 2015, Nike European Operations Netherlands (C‑310/14, EU:C:2015:690, n.o 43).

( 11 ) Acórdão de 20 de novembro de 2014, Novo Nordisk Pharma (C‑310/13, EU:C:2014:2385, em especial n.os 27 e 32).

( 12 ) No que respeita à proteção dos consumidores, v. artigo 12.o TFUE, aplicável de forma transversal: «As exigências em matéria de defesa dos consumidores serão tomadas em conta na definição e execução das demais políticas e ações da União».

( 13 ) V., por exemplo, acórdão de 10 de abril de 2003, Steffensen (C‑276/01, EU:C:2003:228, n.o 60).

( 14 ) O que, na verdade, pode constituir uma violação do princípio do controlo jurisdicional efetivo ou do direito a um processo equitativo. V., neste sentido, acórdãos de 15 de maio de 1986, Johnston (C‑222/84, EU:C:1986:206, n.o 20), e de 10 de abril de 2003, Steffensen, (C‑276/01 EU:C:2003:228, n.os 69 a 79). Em alguns casos, da aplicação das regras processuais nacionais pode resultar que elementos de prova relevantes sejam considerados inadmissíveis e que o órgão jurisdicional nacional esteja impedido de os apreciar. Por exemplo, as provas podem ter sido obtidas ilegalmente ou apresentadas extemporaneamente. Essas restrições, só por si, não contrariam os princípios da equivalência e da efetividade. Considero que, no presente processo, não se coloca qualquer questão específica relativa à admissibilidade da prova e nas presentes conclusões não abordarei a questão de compatibilidade dos limites impostos à admissibilidade da prova com estes princípios.

( 15 ) Acórdão de 15 de outubro de 2015, Nike European Operations Netherlands (C‑310/14, EU:C:2015:690, n.o 43). Na falta de informações pormenorizadas sobre as regras probatórias aplicáveis em casos semelhantes nos termos do direito nacional, circunscreverei as minhas observações ao princípio da efetividade e não abordarei o princípio da equivalência.

( 16 ) O que confere uma importância considerável à análise comparativa de tais conceitos. A propósito da importância prática dessa análise no contexto dos processos de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos e das diferentes abordagens adotadas em aplicação da Diretiva 85/374 nos Estados‑Membros, v. Brook, Burton, Forrester e Underhill, in Canivet, Guy, Andenas, Mads, e Fairgrieve, Duncan, Comparative Law before the Courts, BIICL, 2004, pp. 57 a 83.

( 17 ) A presente definição de presunção foi retirada do Lexique des termes juridiques 2015‑2016, Guinchard, S., Debard, T. (dir.), 23.a edição, Dalloz, 2015, Paris: «Mode de raisonnement juridique en vertu duquel de l’établissement d’un fait on induit un autre fait qui n’est pas prouvé. La présomption est dite de l’homme (ou du juge) lorsque le magistrat tient lui‑même et en toute liberté ce raisonnement par induction, pour un cas particulier; elle n’est admise que lorsque la preuve par témoins est autorisée. La présomption est légale, c’est‑à‑dire instaurée de manière générale, lorsque le législateur tire lui‑même d’un fait établi un autre fait dont la preuve n’est pas apportée. La présomption légale est simple lorsqu’elle peut être combattue par la preuve du contraire. Lorsque la présomption ne peut être renversée, elle est dite irréfragable ou absolue. Les présomptions simples sont dites également juris tantum, les présomptions irréfragables sont désignées parfois par l’expression latine juris et de jure. On qualifie de présomption mixte la présomption dont la preuve contraire est réglementée par le législateur, qui restreint les moyens de preuve ou l’objet de la preuve».

( 18 ) O direito alemão faz uma distinção entre presunções que, de um facto ou de um conjunto de factos, permitem deduzir outro facto ou conjunto de factos ou extrair consequências jurídicas. Nos termos do direito alemão, parece existir uma regra bastante clara acerca da função processual das presunções (Vermutungen), na medida em que estejam previstas na lei. Nesse caso, a consequência processual é a de que o objeto da presunção deixa de carecer de prova. O juiz não dispõe de qualquer margem de apreciação. Porém, continua a ser possível que a contraparte faça prova em contrário, a não ser que a lei estabeleça o caráter inilidível da presunção. A doutrina alemã afirma, praticamente com unanimidade, que tais presunções (legais) constituem regras sobre o ónus da prova (v., por exemplo, Prütting, Dr. H., Münchener Kommentar zur Zivilprozessordnung, 5.a edição, Beck, Munique, 2016, § 292, n.o 26). Afigura‑se que, pelo contrário, a doutrina alemã interpretaria o termo «presunção», no sentido em que é utilizado nas presentes conclusões, como prova indireta ou prova prima facie, que, como tal, não inverte o ónus da prova (v. Prütting, Dr. H., Münchener Kommentar zur Zivilprozessordnung, 5.a edição, Beck, Munique, 2016, § 286, n.o 51).

( 19 ) Iller, M., Civil Evidence: The Essential Guide, Sweet & Maxwell, Londres, 2006, pp. 124 a 125. Para maiores desenvolvimentos sobre o tema das presunções e do ónus da prova no direito inglês em geral, v., por exemplo, Munday, R., Evidence, 8.a edição, Oxford University Press, Oxford, 2015, pp. 63 a 105.

( 20 ) Partindo do princípio que a presunção é ilidível. Mais adiante abordarei o caso específico das presunções inilidíveis.

( 21 ) No âmbito do direito da concorrência, em que a matéria da prova é regulada de forma muito mais rigorosa pelo direito da União, o advogado‑geral M. Szpunar descreveu, nas conclusões do processo Eturas e o. (C‑74/14, EU:C:2015:493, n.o 99), do seguinte modo o processo de persuasão da autoridade e a interação entre a presunção e o ónus da prova: «Estas presunções não transferem o ónus da prova para o destinatário da decisão da autoridade da concorrência. Permitem que a autoridade retire determinadas conclusões com base na experiência comum. A conclusão retirada prima facie pode ser refutada por prova em contrário, sob pena de se considerar que aquelas conclusões satisfazem as exigências do ónus da prova, que continua a recair sobre a autoridade administrativa»

( 22 ) V. n.o 96, infra.

( 23 ) O Tribunal de Justiça já confirmou que a Diretiva 85/374 se aplica aos casos de danos alegadamente provocados por vacinas defeituosas (v., por exemplo, acórdão de 2 de dezembro de 2009, Aventis Pasteur, C‑358/08, EU:C:2009:744).

( 24 ) No processo Boston Scientific, o Tribunal de Justiça concluiu que um lote de dispositivos médicos continha alguns dispositivos que apresentavam um determinado defeito. Desse facto deduziu‑se que outros dispositivos específicos do lote podiam ser defeituosos (acórdão de 5 de março de 2015, Boston Scientific Medizintechnik, C‑503/13 e C‑504/13, EU:C:2015:148, n.o 43). Este acórdão ajuda a ilustrar a tese de que: i) a prova do defeito em geral e a prova do defeito num caso específico são coisas distintas; e ii) potencialmente, essas provas são mutuamente relevantes em termos probatórios. Relativamente à qualidade defeituosa específica e geral do produto, v. n.os 85 a 89, infra.

( 25 ) No que respeita à imposição ao demandante do ónus de apresentar elementos probatórios adicionais, v., por analogia, a jurisprudência relativa à repercussão dos impostos que se iniciou com o acórdão San Giorgio [acórdãos de 9 de novembro de 1983, San Giorgio (C‑199/82, EU:C:1983:318); de 9 de fevereiro de 1999, Dilexport (C‑343/96, EU:C:1999:59); e de 9 de dezembro de 2003, Comissão/Itália (C‑129/00, EU:C:2003:656)].

( 26 ) V., também, a este respeito, Taschner, H. C., Frietsch, E., Produkthaftungsgesetz und EG‑Produkt‑haftungsrichtlinie, Kommentar, 2.a edição, Beck, Munique, 1990, p. 186.

( 27 ) Na prática, o Tribunal de Justiça já confirmou em várias ocasiões o requisito de livre apreciação da prova. V., por exemplo, acórdãos de 15 de maio de 1986, Johnston (222/84, EU:C:1986:206, n.os 17 a 21), e de 10 de abril de 2003, Steffensen (C‑276/01, EU:C:2003:228, n.o 80). Esse requisito já foi também enunciado em termos mais genéricos, no contexto de ações diretas fundadas no direito da concorrência da União (v., por exemplo, acórdão de 8 de julho de 2004, Dalmine/Comissão, T‑50/00, EU:T:2004:220, n.os 72 e 73; e conclusões do advogado‑geral B. Vesterdorf no processo Rhône‑Poulenc/Comissão, T‑1/89, EU:T:1991:38, p. 954). Com efeito, a apreciação da prova foi descrita pelo Tribunal de Justiça como um «aspeto essencial da atividade jurisdicional, porquanto, independentemente da interpretação seguida pelo juiz nacional a quem caiba julgar determinado caso, a aplicação das referidas normas aos casos concretos depende muitas vezes da apreciação que aquele tiver feito da matéria de facto desse caso bem como do valor e da relevância dos elementos de prova apresentados para esse efeito pelos litigantes» (acórdão de 13 de junho de 2006, Traghetti del Mediterraneo, C‑173/03, EU:C:2006:391, n.o 38).

( 28 ) Conforme acima referido, estas considerações não prejudicam as regras relativas à admissibilidade da prova, por exemplo, devido à extemporaneidade da produção da prova ou ao facto de ter sido obtida ilegalmente (v. nota 14, supra).

( 29 ) Acórdão de 15 de maio de 1986, Johnston (222/84, EU:C:1986:206, n.o 20).

( 30 ) A questão refere‑se à exclusão de quaisquer presunções. No entanto, decorre claramente do contexto que o que está em causa especificamente é a exclusão da presunção em causa no presente processo.

( 31 ) V. n.os 62 a 75, infra.

( 32 ) V., por exemplo, acórdão de 21 de janeiro de 2016, Eturas e o. (C‑74/14, EU:C:2016:42, n.os 35 a 37).

( 33 ) A descrita no ponto 1.

( 34 ) Tal como definida nos n.os 32 a 35, supra.

( 35 ) Acórdão de 15 de outubro de 2015, Nike European Operations Netherlands (C‑310/14, EU:C:2015:690, n.o 43).

( 36 ) V. a linha jurisprudencial iniciada com o acórdão San Giorgio a que faz referência a nota 25, supra.

( 37 ) Segundo me foi dado a entender, as condições gerais são: i) a inexistência de antecedentes pessoais ou familiares; e ii) o nexo temporal entre a vacinação e o aparecimento da doença. Porém, não decorre claramente dos autos o alcance preciso dessas condições nem o seu grau de flexibilidade (por exemplo, a duração do nexo temporal). Nas suas alegações, a primeira recorrida faz referência também uma terceira condição, a saber, a ausência de predisposição conhecida da vítima para a doença.

( 38 ) Para evitar dúvidas, ainda que, para efeitos ilustrativos, sejam feitas algumas referências ao direito da concorrência da União Europeia (que, na sua maior parte, pode considerar‑se ter natureza «penal»), o raciocínio exposto nas presentes conclusões refere‑se às presunções utilizadas no contexto da responsabilidade extracontratual no âmbito da Diretiva 85/374. Por conseguinte, é evidente que o direito da concorrência da União exige um nível de prova mais elevado (para além de qualquer dúvida razoável) do que aquele que é habitualmente aplicável nos processos cíveis (em função das probabilidades). No entanto, feita esta ressalva, os exemplos citados são úteis para fins ilustrativos.

( 39 ) O facto de, teoricamente, a presunção ser ilidível já foi confirmado muitas vezes pelo Tribunal de Justiça (v., por exemplo, acórdão de 19 de julho de 2012, Alliance One International e Standard Commercial Tobacco/Comissão e Comissão/Alliance One International e o., C‑628/10 P e C‑14/11 P, EU:C:2012:479, n.o 48). No entanto, a presunção é frequentemente criticada por ser inilidível na prática. V., por exemplo, Temple Lang, J., «How Can the Problem of the Liability of a Parent Company for Price Fixing by a Wholly‑owned Subsidiary Be Resolved?», Fordham International Law Journal, vol. 37, n.o 5/2014, nota 14 e respetivo texto.

( 40 ) Não obstante invocar muito frequentemente a presunção, a Comissão não é obrigada a fazê‑lo (acórdão de 24 de setembro de 2009, Erste Group Bank e o./Comissão, C‑125/07 P, C‑133/07 P, C‑135/07 P e C‑137/07 P, EU:C:2009:576, n.os 76 a 83).

( 41 ) Acórdão de 10 de setembro de 2009, Akzo Nobel e o./Comissão (C‑97/08 P, EU:C:2009:536, n.os 60 e 61).

( 42 ) Ainda que as críticas tendam a incidir especialmente sobre a natureza ilidível da presunção (v. referências citadas na nota 39, supra).

( 43 ) Por exemplo, isto foi expressamente posto em causa pelo Tribunal Geral no acórdão Bolloré: «o elemento relativo à detenção da totalidade do capital da filial, embora constitua um indício forte de que a sociedade‑mãe detém um poder de influência determinante no comportamento da filial no mercado, não basta, só por si, para permitir imputar a responsabilidade do comportamento da filial à sociedade‑mãe […]. Continua a ser necessário um elemento adicional em relação à taxa de participação, mas pode ser constituído por indícios» (acórdão de 26 de abril de 2007, Bolloré e o./Comissão, T‑109/02, T‑118/02, T‑122/02, T‑125/02, T‑126/02, T‑128/02, T‑129/02, T‑132/02 e T‑136/02, EU:T:2007:115, n.o 132).

( 44 ) Acórdão de 10 de setembro de 2009, Akzo Nobel e o./Comissão (C‑97/08 P, EU:C:2009:536, n.os 60 e 61).

( 45 ) V., por exemplo, acórdão de 31 de março de 1993, Ahlström Osakeyhtiö e o./Comissão (C‑89/85, C‑104/85, C‑114/85, C‑116/85, C‑117/85 e C‑125/85 a C‑129/85, EU:C:1993:120, n.o 71).

( 46 ) Através da inoculação no paciente.

( 47 ) De igual modo, é possível conceber um cenário em que várias pessoas (mas não necessariamente todas) adoecem na sequência de um jantar num determinado restaurante, numa determinada data. Aquando da investigação do incidente (e provavelmente também aquando da decisão sobre a responsabilidade do restaurante), dias ou semanas depois, a comida ingerida por essas pessoas já não deverá existir. Consequentemente, não poderão ser recolhidas amostras ou provas do efetivo defeito da comida servida. No entanto, isso não obsta à conclusão de que na falta de qualquer outra explicação razoável, a comida ingerida pode ser considerada defeituosa por dedução com base nos acontecimentos subsequentes.

( 48 ) N.o 46 das presentes conclusões.

( 49 ) Acórdão de 5 de março de 2015, Boston Scientific Medizintechnik (C‑503/13 e C‑504/13, EU:C:2015:148).