CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 13 de julho de 2017 ( 1 )

Processo C‑574/15

Mauro Scialdone

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Varese (Itália)]

«Pedido de decisão prejudicial — Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112 — Artigo 4.o, n.o 3, TUE — Princípio da cooperação leal — Artigo 325.o TFUE — Proteção dos interesses financeiros da União — Convenção relativa à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (Convenção PIF) — Legislação nacional que prevê sanções penais para a falta de pagamento do imposto retido e do IVA dentro do prazo legal — Aplicação de um limiar financeiro mais elevado às infrações relacionadas com o IVA — Legislação nacional que prevê a extinção da responsabilidade penal em caso de pagamento do IVA — Obrigação dos Estados‑Membros de estabelecer sanções efetivas, proporcionadas e dissuasoras — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 49.o, n.o 1, da Carta — Princípio da legalidade — Aplicação retroativa da pena mais leve — Certeza jurídica»

Índice

 

I. Introdução

 

II. Quadro jurídico

 

A. Direito da União

 

1. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»)

 

2. Artigo 325.o TFUE

 

3. Convenção PIF

 

4. Diretiva IVA

 

5. Regulamento n.o 2988/95

 

B. Direito italiano

 

III. Matéria de facto, tramitação e questões prejudiciais

 

IV. Análise

 

A. Disposições do direito da União aplicáveis ao presente caso

 

1. Convenção PIF

 

a) A Convenção PIF e o IVA

 

b) O conceito de fraude à luz da Convenção PIF

 

2. Artigo 325.o TFUE

 

a) Questão de saber se os interesses financeiros da União são lesados

 

b) A aplicabilidade dos n.os 1 e 2 do artigo 325.o TFUE

 

c) O artigo 325.o, n.o 1, TFUE em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, TUE

 

3. A Diretiva IVA e o princípio da cooperação leal

 

4. Conclusão provisória

 

B. Resposta às questões prejudiciais

 

1. Primeira parte da terceira questão: a Convenção PIF

 

2. Primeira questão: limiares diferenciados e obrigação de estabelecer sanções equivalentes

 

a) Qual é o regime nacional «análogo»?

 

b) A diferenciação é justificada?

 

3. Segunda questão e segunda parte da terceira questão: extinção da responsabilidade penal e sanções efetivas e dissuasoras

 

a) A nova causa de extinção da responsabilidade penal

 

b) A relevância do limiar de 50000 euros estabelecido na Convenção PIF

 

c) Conclusão provisória

 

C. Efeitos de uma potencial incompatibilidade entre a legislação nacional e o direito da União

 

1. O «núcleo» do princípio da legalidade: a proibição de retroatividade

 

2. A interpretação mais ampla do princípio da legalidade: lex mitior e certeza jurídica em matéria penal

 

3. As implicações do princípio da lex mitior e da certeza jurídica no presente caso

 

V. Conclusão

I. Introdução

1.

Em Itália, a falta de pagamento, dentro do prazo estabelecido por lei, do IVA corretamente declarado está sujeita a sanções penais. M. Scialdone, administrador único de uma sociedade que não efetuou o pagamento dentro dos prazos estipulados, foi acusado da prática de um crime.

2.

No decurso do processo penal instaurado contra M. Scialdone, a legislação nacional aplicável foi alterada. Primeiro, foi aumentado consideravelmente o limiar a partir do qual a falta de pagamento do IVA é considerada crime. Foram igualmente estabelecidos limiares distintos para o IVA e para o imposto retido na fonte. Em segundo lugar, foi aditada uma nova causa de extinção da responsabilidade penal: o pagamento integral da dívida fiscal, incluindo sanções administrativas e juros, até à abertura da audiência de julgamento em primeira instância.

3.

Com a entrada em vigor da nova alteração, o comportamento de M. Scialdone deixaria de ser punível, em virtude do princípio da aplicação retroativa da pena mais leve. O montante de IVA que não foi pago não atinge o novo limiar. Não obstante, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a compatibilidade da alteração com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, o artigo 325.o TFUE, a Diretiva IVA ( 2 ) e a Convenção relativa à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias ( 3 ). O novo regime sancionatório aplicável à falta de pagamento do IVA respeita a obrigação de estabelecer sanções por violações do direito da União análogas às que são impostas por violações similares do direito nacional? É conforme com a obrigação dos Estados‑Membros de imporem sanções efetivas e dissuasoras? São essencialmente estas as questões que o Tribunal de Justiça é convidado a apreciar no presente caso.

4.

Porém, o órgão jurisdicional de reenvio sugeriu ainda que, caso a alteração em causa seja declarada incompatível com o direito da União, não deve ser aplicada, o que teria como consequência o prosseguimento do processo penal contra M. Scialdone. Consequentemente, o presente caso suscita questões fundamentais sobre os princípios da legalidade e da certeza jurídica e, em especial, sobre o princípio da aplicação retroativa da pena mais leve consagrado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta.

II. Quadro jurídico

A.  Direito da União

1. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»)

5.

O artigo 49.o da Carta consagra os princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas. O seu n.o 1 tem a seguinte redação: «Ninguém pode ser condenado por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, não constituía infração perante o direito nacional ou o direito internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida. Se, posteriormente à infração, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa a pena aplicada.»

2. Artigo 325.o TFUE

6.

Nos termos do artigo 325.o, n.o 1, TFUE, «[a] União e os Estados‑Membros combaterão as fraudes e quaisquer outras atividades ilegais lesivas dos interesses financeiros da União, por meio de medidas a tomar ao abrigo do presente artigo, que tenham um efeito dissuasor e proporcionem uma proteção efetiva nos Estados‑Membros, bem como nas instituições, órgãos e organismos da União».

7.

O artigo 325.o, n.o 2, TFUE dispõe que «[p]ara combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União, os Estados‑Membros tomarão medidas análogas às que tomarem para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses financeiros».

3. Convenção PIF

8.

O artigo 1.o da Convenção PIF dispõe que:

«1.   Para efeitos da presente convenção, constitui fraude lesiva dos interesses financeiros das Comunidades Europeias:

[…]

b)

Em matéria de receitas, qualquer ato ou omissão intencionais relativos:

à utilização ou apresentação de declarações ou de documentos falsos, inexatos ou incompletos, que tenha por efeito a diminuição ilegal de recursos do Orçamento Geral das Comunidades Europeias ou dos orçamentos geridos pelas Comunidades Europeias ou por sua conta,

à não comunicação de uma informação em violação de uma obrigação específica, que produza o mesmo efeito,

ao desvio de um benefício legalmente obtido, que produza o mesmo efeito.

2.   Sob reserva do n.o 2 do artigo 2.o, cada Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias e adequadas para transpor as disposições do n.o 1 para o direito penal interno, de modo a que os comportamentos que nelas se referem sejam considerados infrações penais.

[…]

4.   O caráter intencional de ato ou omissão referidos nos n.os 1 e 3 pode resultar de circunstâncias factuais objetivas.»

9.

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da Convenção PIF, «[c]ada Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias para que os comportamentos referidos no artigo 1.o, bem como a cumplicidade, a instigação ou a tentativa relativas aos comportamentos referidos no n.o 1 do artigo 1.o, sejam passíveis de sanções penais efetivas, proporcionadas e dissuasoras, incluindo, pelo menos nos casos de fraude grave, penas privativas de liberdade que possam determinar a extradição, entendendo‑se que se deve considerar fraude grave qualquer fraude relativa a um montante mínimo, a fixar em cada Estado‑Membro. Esse montante mínimo não pode ser fixado em mais de 50000 [euros].»

4. Diretiva IVA

10.

Nos termos do artigo 206.o da Diretiva IVA, «[o]s sujeitos passivos que sejam devedores do imposto devem pagar o montante líquido do IVA no momento da apresentação da declaração de IVA prevista no artigo 250.o Contudo, os Estados‑Membros podem fixar outro prazo para o pagamento desse montante ou cobrar adiantamentos provisórios.»

11.

O artigo 250.o, n.o 1, da Diretiva IVA dispõe que «[o]s sujeitos passivos devem apresentar uma declaração de IVA da qual constem todos os dados necessários para o apuramento do montante do imposto exigível e do montante das deduções a efetuar, incluindo, na medida em que tal seja necessário para o apuramento do valor tributável, o montante global das operações relativas a esse imposto e a essas deduções, bem como o montante das operações isentas […]».

12.

Nos termos do artigo 273.o da Diretiva IVA, «[o]s Estados‑Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados‑Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados‑Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira».

5. Regulamento n.o 2988/95

13.

De acordo com o artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2988/95 relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias ( 4 ), «[c]onstitui irregularidade qualquer violação de uma disposição de direito comunitário que resulte de um ato ou omissão de um agente económico que tenha ou possa ter por efeito lesar o orçamento geral das Comunidades ou orçamentos geridos pelas Comunidades, quer pela diminuição ou supressão de receitas provenientes de recursos próprios cobradas diretamente por conta das Comunidades, quer por uma despesa indevida».

B.  Direito italiano

14.

Os artigos 10.° bis e 10.° ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 ( 5 ), à data dos factos em causa no presente caso e até 21 de outubro de 2015, dispunham o seguinte:

«Artigo 10.o bis

É punido com pena de prisão de seis meses a dois anos quem não pagar, no prazo previsto para a apresentação da declaração anual, em substituição do sujeito passivo, as retenções que resultem da certificação emitida aos substituídos, num montante superior a 50000 euros por cada exercício fiscal.

Artigo 10.o ter

O disposto no artigo 10.o bis aplica‑se, nos limites previstos, também a quem não pague o imposto sobre o valor acrescentado, devido com base na declaração anual, no prazo previsto para o pagamento por conta relativo ao exercício ulterior.»

15.

O artigo 13.o, n.o 1, do Decreto Legislativo n.o 74/2000 previa uma atenuação das sanções a título de circunstância atenuante, com a diminuição da pena até um terço e exclusão de sanções acessórias, se as dívidas fiscais, incluindo as sanções administrativas, se extinguissem pelo pagamento até à abertura da audiência de julgamento em primeira instância.

16.

Na sequência das alterações introduzidas, respetivamente, pelos artigos 7.° e 8.° do Decreto Legislativo n.o 158/2015 ( 6 ), os artigos 10.° bis e 10.° ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 passaram a ter a seguinte redação (a partir de 22 de outubro de 2015):

«Artigo 10.o bis

É punido com pena de prisão de seis meses a dois anos quem não pagar, no prazo previsto para a apresentação da declaração anual, em substituição do sujeito passivo, as retenções que resultem da certificação emitida aos substituídos, num montante superior a 150000 euros por cada exercício fiscal.

Artigo 10.o ter

É punido com pena de prisão de seis meses a dois anos quem não pagar, no prazo previsto para o pagamento por conta relativo ao exercício ulterior, o imposto sobre o valor acrescentado devido com base na declaração anual, num montante superior a 250000 euros por cada exercício fiscal.»

17.

O Decreto Legislativo n.o 158/2015 também alterou o artigo 13.o, n.o 1, do Decreto Legislativo n.o 74/2000, aditando uma nova causa de extinção da responsabilidade penal. O referido artigo passou a ter a seguinte redação: «Os crimes previstos nos artigos 10.° bis, 10.° ter e 10.° quater, n.o 1, não são puníveis se, até à abertura da audiência de julgamento em primeira instância, as dívidas fiscais, incluindo as sanções administrativas e juros, se extinguirem pelo pagamento integral dos montantes devidos […]».

18.

Por último, as sanções fiscais administrativas são reguladas por uma disposição específica, a saber, o artigo 13.o, n.o 1, do Decreto Legislativo n.o 471/1997 ( 7 ): «Quem não efetuar, no todo ou em parte, no prazo legal, os pagamentos por conta, periódicos, de liquidação do saldo final ou do remanescente do imposto resultante da declaração, depois da dedução, nesse caso, dos montantes dos pagamentos periódicos e por conta, mesmo que não tenham sido efetuados, está sujeito a coima no valor de 30% de cada montante não pago, mesmo quando, após a correção de erros materiais ou de cálculo detetados no controlo da declaração anual, resultar que o imposto é superior ou que o valor a deduzir é inferior. […]»

III. Matéria de facto, tramitação e questões prejudiciais

19.

A Agenzia delle Entrate (Agência das Receitas Públicas) efetuou uma inspeção à sociedade Siderlaghi Srl. A sociedade tinha declarado corretamente o IVA relativo ao exercício de 2012. O montante de IVA a pagar totalizava 175272 euros. A legislação nacional exigia que esse montante fosse pago até ao final do prazo previsto para o pagamento relativo ao exercício fiscal seguinte, ou seja, 27 de dezembro de 2013. A inspeção revelou que a Siderlaghi Srl não tinha pago o IVA devido dentro do prazo.

20.

A Agenzia delle Entrate emitiu uma nota de dívida à Siderlaghi Srl. A sociedade optou por pagar o imposto em prestações, o que, nos termos da legislação nacional, permitia a redução das sanções administrativas aplicáveis em dois terços.

21.

Uma vez que M. Scialdone era o administrador único da Siderlaghi Srl, o Ministério Público instaurou contra ele um processo penal, na qualidade de representante legal dessa sociedade, por falta de pagamento do IVA no prazo estipulado. O Ministério Público acusou M. Scialdone da prática do crime previsto no artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 e pediu ao Tribunale di Varese (tribunal distrital de Varese) (o órgão jurisdicional de reenvio) que o condenasse numa multa no montante de 22500 euros.

22.

Depois do início do processo penal contra M. Scialdone, o Decreto Legislativo n.o 158/2015 alterou os artigos 10.° bis e 10.° ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 e introduziu igualmente uma causa de extinção da responsabilidade penal através do artigo 13.o do Decreto Legislativo n.o 74/2000.

23.

Essas alterações tiveram como efeito, em primeiro lugar, o aumento dos limiares a partir dos quais a falta de pagamento do imposto configura um crime. O limiar original fixado em 50000 euros para os crimes de falta de pagamento do imposto retido na fonte e do IVA (note‑se que era aplicável o mesmo limiar a ambos os tipos de imposto) aumentou para 150000 euros relativamente ao imposto retido na fonte e para 250000 relativamente ao IVA. Em segundo lugar, o crime deixava de ser punível se a dívida fiscal, incluindo sanções administrativas e juros, fosse paga até à abertura da audiência de julgamento em primeira instância.

24.

O órgão jurisdicional nacional explica que, no presente caso, o arguido é acusado da falta de pagamento de IVA no montante de 175272 euros. Em virtude das alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015, o seu comportamento deixa de ter caráter criminal, dado que o referido montante não atinge o novo limiar mínimo de 250000 euros. Seria assim aplicável a disposição mais recente, uma vez que era mais favorável ao infrator. Contudo, se as novas regras fossem declaradas incompatíveis com o direito da União, não poderiam ser aplicadas. Consequentemente, o comportamento do arguido ainda poderia ser punido criminalmente.

25.

No que respeita à nova causa de extinção da responsabilidade penal, o órgão jurisdicional nacional explica que, uma vez que a Siderlaghi Srl optou pelo pagamento da dívida em prestações, é provável que esse pagamento seja efetuado até à abertura da audiência do processo. Assim sendo, o pedido de condenação no pagamento de uma multa deduzido pelo Ministério Público não poderia obter provimento. Porém, se essa nova causa de extinção da responsabilidade penal fosse considerada incompatível com o direito da União, o órgão jurisdicional nacional poderia conhecer da responsabilidade penal do arguido.

26.

Acresce que, se o direito da União fosse interpretado do modo proposto pelo órgão jurisdicional de reenvio, os Estados‑Membros seriam obrigados a punir a falta de pagamento de IVA em montante igual ou superior a 50000 euros com pena de prisão. Segundo esse órgão jurisdicional, isso significaria que a infração cometida no presente caso teria de ser considerada particularmente grave. Assim, a pena pedida pelo Ministério Público poderia ser rejeitada pelo juiz nacional, na medida em que a sanção proposta, à qual esse juiz está vinculado, exclui a pena de prisão. No entender do órgão jurisdicional nacional, essa exclusão reduz consideravelmente a eficácia da sanção.

27.

Neste contexto factual e jurídico, o Tribunal di Varese suspendeu a instância e submeteu as seguintes questões para decisão a título prejudicial:

«1)

Pode o direito da União, em especial, as disposições conjugadas dos artigos 4.°, n.o 3, TUE e 325.° TFUE e [da] Diretiva 2006/112/CE, que impõem aos Estados‑Membros uma obrigação de equiparação no que respeita à política de sanções, ser interpretado no sentido de que obsta à promulgação de uma legislação nacional que prevê que a falta de pagamento do IVA tem relevância penal unicamente quando seja atingido um limiar pecuniário mais elevado do que o estabelecido para a falta de pagamento do imposto direto sobre o rendimento?

2)

Pode o direito da União, em especial, as disposições conjugadas dos artigos 4.°, n.o 3, TUE e 325.° TFUE e [da] Diretiva 2006/112/CE, que impõem aos Estados‑Membros a obrigação de preverem sanções efetivas, dissuasoras e proporcionadas com vista à tutela dos interesses financeiros da União, ser interpretado no sentido de que obsta à promulgação de uma legislação nacional que exclui a responsabilidade penal do arguido (seja ele administrador, representante legal, responsável com funções delegadas nas áreas de relevância tributária ou participante no ilícito), quando a pessoa coletiva em causa tenha efetuado o pagamento tardio do imposto ou das sanções administrativas devidos a título de IVA, não obstante já ter sido efetuada a liquidação do imposto e se ter intentado a ação penal, bem como procedido à distribuição judicial e à abertura do procedimento contraditório, embora ainda não se tenha dado início à fase oral do processo, num regime que não prevê a aplicação ao referido administrador, representante legal, responsável com funções delegadas nas áreas de relevância tributária ou participante no ilícito nenhuma outra sanção, nem sequer administrativa?

3)

Deve o conceito de ilícito fraudulento regulado no artigo 1.o da Convenção PIF ser interpretado no sentido de que inclui também a falta de pagamento ou o pagamento parcial ou tardio do imposto sobre o valor acrescentado e de que, por conseguinte, o artigo 2.o da referida Convenção impõe ao Estado‑Membro a obrigação de punir com pena de prisão a falta de pagamento ou o pagamento parcial ou tardio do IVA de montantes superiores a 50000 euros?

Em caso de resposta negativa, deve o disposto no artigo 325.o TFUE, que obriga os Estados‑Membros a imporem sanções, designadamente penais, dissuasoras, proporcionadas e eficazes, ser interpretado no sentido de que obsta a uma legislação nacional que isenta de responsabilidade penal e administrativa os administradores e os representantes legais das pessoas coletivas, ou os seus responsáveis com funções delegadas nas áreas de relevância tributária ou os participantes no ilícito, pela falta de pagamento ou pagamento parcial ou tardio do IVA em relação a montantes correspondentes a 3 a 5 vezes os limiares mínimos estabelecidos em caso de fraude, no valor de 50000 euros?»

28.

Os Governos italiano, neerlandês, austríaco e alemão, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas. Todas essas partes interessadas, à exceção do Governo austríaco, apresentaram alegações orais na audiência que teve lugar em 21 de março de 2017.

IV. Análise

29.

As três questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio visam determinar se as alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015 referentes à falta de pagamento do IVA declarado são conformes com o direito da União. O órgão jurisdicional de reenvio formulou as suas questões em relação ao artigo 4.o, n.o 3, TUE, ao artigo 325.o TFUE, à Convenção PIF e à Diretiva IVA.

30.

O panorama legislativo do presente caso é, com efeito, algo complexo. Por esse motivo, averiguarei primeiro quais as disposições específicas do direito da União invocadas pelo órgão jurisdicional nacional que são aplicáveis ao presente caso (A), propondo depois respostas às três questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio (B). Para concluir, debruçar‑me‑ei sobre as consequências que uma potencial declaração de incompatibilidade com o direito da União poderia (ou melhor, não deveria) ter para o processo principal (C).

A.  Disposições do direito da União aplicáveis ao presente caso

1. Convenção PIF

31.

Todas as partes interessadas que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça entendem que a Convenção PIF não se aplica no presente caso. Porém, os fundamentos desse entendimento diferem.

32.

O Governo neerlandês alega que a Convenção PIF não é aplicável ao IVA. As restantes partes interessadas que apresentaram observações (bem como o Governo neerlandês, num argumento aduzido subsidiariamente) consideram que a infração relativa à falta de pagamento do IVA que está em causa no presente caso não está abrangida pelo conceito de «fraude» na aceção da Convenção PIF.

33.

Assim, são aduzidos dois argumentos diferentes. O primeiro nega a aplicabilidade da Convenção PIF ao IVA per se, em geral. De acordo com o segundo argumento, embora o IVA possa estar abrangido pela Convenção PIF, o tipo específico de comportamento em causa não o está. Examinarei sucessivamente estes dois argumentos.

a) A Convenção PIF e o IVA

34.

No acórdão Taricco, o Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «fraude» definido no artigo 1.o da Convenção PIF «engloba […] as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à base tributável harmonizada do IVA, determinada segundo as regras da União» ( 8 ).

35.

No presente caso, o Governo neerlandês convidou o Tribunal de Justiça a repensar essa conclusão. No seu entender, o IVA está abrangido pelo conceito de «receitas» para efeitos da Convenção PIF. Segundo o Governo neerlandês, os Estados‑Membros, enquanto partes contratantes na Convenção PIF, adotaram uma interpretação autêntica do alcance do conceito de «receitas», de acordo com o artigo 31.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados ( 9 ), num relatório explicativo ( 10 ). Esse relatório exclui expressamente o IVA do conceito de «receitas» no artigo 1.o, n.o 1, da Convenção PIF ( 11 ). O Governo neerlandês alega ainda que o Tribunal de Justiça já teve em conta declarações e relatórios explicativos enquanto elementos de interpretação vinculativa: deveria fazer o mesmo no caso vertente.

36.

Não perfilho a tese de que o relatório explicativo do Conselho de 1997 representaria uma espécie de «interpretação autêntica» de uma convenção celebrada entre os Estados‑Membros dois anos antes. No meu entender, os argumentos do Governo neerlandês podem ser considerados improcedentes sem que o Tribunal de Justiça se tenha de pronunciar sobre a complexa questão do papel que a Convenção de Viena desempenha na interpretação das convenções celebradas entre os Estados‑Membros ( 12 ).

37.

Em tese geral, concordo certamente com o argumento do Governo neerlandês de que, na ordem jurídica da União, a vontade ou a intenção do autor do ato desempenha um certo papel interpretativo ( 13 ). Essa intenção legislativa pode ser expressa no mesmo documento, como acontece com um preâmbulo, ou num outro documento. Por exemplo, noutras ocasiões, o Tribunal de Justiça recorreu aos trabalhos preparatórios ( 14 ), a declarações anexas a tratados ( 15 ) ou a certos documentos explicativos para interpretar o direito primário ( 16 ).

38.

Porém, há dois elementos cuja presença é obrigatória para que tais documentos ou declarações sejam vistos como uma expressão da intenção dos seus autores: um de caráter institucional e outro de caráter temporal. Institucionalmente, esses documentos têm de ser discutidos ou aprovados pelas mesmas partes ou organismos que aprovaram o instrumento final ou que participaram na sua aprovação. Temporalmente, para que se possa afirmar que refletem genuinamente o estado de espírito do(s) autor(es) durante o processo de decisão, esses documentos deverão normalmente ter sido elaborados durante a redação do instrumento ou, o mais tardar, no momento da sua aprovação.

39.

O problema com o argumento do Governo neerlandês é que não preenche nenhum destes critérios. O relatório explicativo de 1997 aqui em causa não foi aprovado pelas mesmas partes, ou seja, os Estados‑Membros, mas sim aprovado pelo Conselho, que não é parte na Convenção ( 17 ). Além disso, a Convenção foi assinada em 1995. O relatório explicativo do Conselho data de 1997.

40.

O facto de não se poder afirmar que o relatório explicativo possui valor interpretativo «autêntico» no presente caso não obsta, porém, a que tenha uma certa força persuasiva. Afinal, o relatório explicativo foi aprovado pela instituição responsável pela elaboração do projeto a apresentar aos Estados‑Membros enquanto partes contratantes ( 18 ). Em situações semelhantes, o Tribunal de Justiça invocou relatórios explicativos em diferentes ocasiões no passado ( 19 ). Em especial, tomou em consideração relatórios explicativos elaborados pelo Conselho em relação a convenções que, tal como a Convenção PIF, foram adotadas ao abrigo do artigo K.3 TUE ( 20 ).

41.

O valor interpretativo de relatórios explicativos semelhantes é, no entanto, diferente. Esses relatórios explicativos não constituem a interpretação «autêntica», mas sim um dos argumentos interpretativos que poderão ser tidos em conta e depois ponderados e comparados com outros argumentos baseados no texto, na lógica, no contexto e no objetivo da disposição interpretada. Mais importante ainda, o recurso a tais argumentos está claramente limitado pelo texto da disposição legal interpretada. Assim, não é possível invocar um desses relatórios para corroborar uma interpretação contrária à interpretação literal, sistemática e teleológica de uma disposição.

42.

Como explicou claramente a advogada‑geral J. Kokott nas suas conclusões no processo Taricco ( 21 ), seria esse precisamente o resultado a que o Tribunal de Justiça chegaria se aceitasse o argumento do Governo neerlandês.

43.

Com efeito, a exclusão do IVA do conceito de «receitas» na definição de fraude estabelecida na Convenção PIF em relação ao IVA não resulta da sua letra. Muito pelo contrário, a Convenção PIF sugere, no seu artigo 1.o, n.o 1, alínea b), uma interpretação lata do conceito de «receitas», através de uma referência geral aos «recursos do Orçamento Geral das Comunidades Europeias ou dos orçamentos geridos pelas Comunidades Europeias ou por sua conta». O IVA faz parte dos recursos próprios da União, que ocupam um lugar central no conceito de «receitas» ( 22 ). Além disso, a Convenção PIF não estabelece qualquer condição relativa à cobrança direta por conta da União Europeia ( 23 ). Esta interpretação ampla é apoiada pelos objetivos estabelecidos no preâmbulo da Convenção, «assinalando que a fraude relativa às receitas e às despesas das Comunidades não se limita, em muitos casos, a um único país e é, com frequência, cometida por redes criminosas organizadas», afirmando que «a proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias exige que os comportamentos fraudulentos lesivos dos referidos interesses sejam objeto de procedimento penal» e acrescentando que é necessário que «esses comportamentos sejam considerados infrações penais passíveis de sanções penais efetivas, proporcionadas e dissuasoras». De um modo geral, poder‑se‑á entender que essas declarações também visam o sistema do IVA. Por último, o facto de a Convenção PIF mencionar as infrações «em matéria de impostos» é mais um indício de que o IVA não está excluído do conceito de interesses financeiros da União ( 24 ).

44.

Consequentemente, o relatório explicativo não pode ser utilizado para alterar significativamente o âmbito de uma disposição em sentido contrário ao da sua letra e ao do sistema e dos objetivos estabelecidos na Convenção PIF. A exclusão de um elemento do sistema de recursos próprios da União do âmbito de aplicação da Convenção PIF através de tal relatório iria muito além de uma mera «explicação». Na prática, corresponderia a uma alteração do âmbito de aplicação da Convenção PIF.

45.

Convém acrescentar que essa alteração era certamente possível. Se as partes contratantes tivessem realmente tido a intenção de excluir o IVA do âmbito de aplicação da Convenção, nada as teria impedido de modificar a definição de «receitas» num protocolo posterior. Com efeito, sempre que foi considerado necessário alterar o âmbito de aplicação da Convenção, essas alterações foram introduzidas mediante protocolos específicos em duas ocasiões distintas ( 25 ).

46.

Por conseguinte, não vislumbro qualquer razão válida para afastar a conclusão de que o IVA está abrangido pelo âmbito de aplicação da Convenção PIF.

b) O conceito de fraude à luz da Convenção PIF

47.

Todas as partes que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça entendem que a falta de pagamento do IVA devidamente declarado não constitui fraude na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da Convenção PIF. O Governo italiano esclareceu ainda nas suas observações escritas e orais que as infrações relativas à falta de declaração ou à prestação de falsas informações, bem como outras infrações respeitantes a comportamentos fraudulentos, estão previstas noutras disposições do Decreto Legislativo n.o 74/2000.

48.

Subscrevo o entendimento de que a infração a que se refere o artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 (tanto antes como depois das alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015) não pode ser subsumida no conceito de fraude da Convenção PIF.

49.

O artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da Convenção PIF define fraude para efeitos dessa Convenção. Em matéria de receitas, menciona três tipos de atos ou omissões intencionais que têm por efeito a diminuição ilegal dos recursos da União: (i) a utilização ou apresentação de declarações ou de documentos falsos, inexatos ou incompletos; (ii) a não comunicação de uma informação em violação de uma obrigação específica; e (iii) o desvio de um benefício legalmente obtido.

50.

Nenhum dos três tipos de fraude enumerados corresponde ao comportamento a que se refere o presente caso. O artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 diz respeito à falta de pagamento de IVA devidamente declarado dentro do prazo estabelecido por lei. Embora essa falta de pagamento possa ser intencional e ter por efeito a diminuição das receitas em matéria de impostos, esse comportamento não envolve declarações ou documentos falsos, inexatos ou incompletos, nem a não comunicação de informações. Tudo foi corretamente declarado. Porém, por algum motivo, a essa declaração correta não se seguiu um pagamento igualmente correto, ou seja, pontual. Além disso, não se pode considerar que a falta de pagamento de IVA devidamente declarado corresponde a um «desvio de um benefício legalmente obtido». A falta de pagamento dentro do prazo estipulado na lei é, por definição, ilegal.

51.

Por estes motivos, considero que o conceito de fraude constante do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da Convenção PIF não abrange uma infração como a que está em causa no processo principal: a falta de pagamento de IVA devidamente declarado dentro do prazo estabelecido na lei. Por conseguinte, perfilho o entendimento de que a Convenção PIF não é aplicável no presente caso.

2. Artigo 325.o TFUE

52.

O artigo 325.o TFUE consolida os deveres da União e dos Estados‑Membros em matéria de proteção dos interesses financeiros da União. Estabelece igualmente as competências da União neste domínio.

53.

O artigo 325.o, n.o 1, TFUE impõe à UE e aos Estados‑Membros a obrigação de combater as fraudes e quaisquer outras atividades ilegais lesivas dos interesses da União por meio de medidas que tenham um efeito dissuasor e sejam efetivas. O artigo 325.o, n.o 2, TFUE dispõe que, para combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União, os Estados‑Membros tomarão medidas análogas às que tomarem para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses financeiros.

54.

Não existe consenso entre as partes que apresentaram observações quanto à aplicabilidade do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE ao presente caso.

55.

O Governo alemão defende que os n.os 1 e 2 do artigo 325.o TFUE não são aplicáveis, dado que, em primeiro lugar, os interesses financeiros da União não são lesados pois o IVA foi corretamente declarado. Em segundo lugar, a infração aqui em causa não está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 325.o, n.o 2, TFUE, que visa unicamente as «fraudes». Em terceiro lugar, a infração não está abrangida pelo artigo 325.o, n.o 1, TFUE porque essa disposição deve ser interpretada sistematicamente no sentido de que as «outras atividades ilegais» nela referidas respeitam unicamente a atos fraudulentos de gravidade semelhante. O Governo neerlandês defendeu uma posição semelhante na audiência.

56.

O Governo italiano alegou na audiência que os n.os 1 e 2 do artigo 325.o TFUE não são aplicáveis à infração em causa no presente caso porque o comportamento visado pelo artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 não pode ser considerado uma atividade fraudulenta na aceção da Convenção PIF.

57.

A Comissão defende o entendimento contrário. Alega que o artigo 325.o, n.o 2, TFUE deve ser objeto de uma interpretação lata, abrangendo o conceito de «outras atividades ilegais» referido no artigo 325.o, n.o 1, TFUE, que são suscetíveis de incluir infrações ou irregularidades sem caráter fraudulento.

58.

No meu entender, a correta interpretação do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE estará algures entre estas posições. Primeiro, a infração em causa no presente caso é suscetível de lesar os interesses financeiros da União (a). Segundo, a infração está abrangida pelo âmbito de aplicação do n.o 1 do artigo 325.o TFUE, mas não do seu n.o 2. Terceiro, a obrigação de tomar medidas para proteger os interesses financeiros da União que sejam análogas às medidas tomadas para proteger os interesses financeiros nacionais emana não só do artigo 325.o, n.o 2, TFUE, mas também da leitura conjugada do artigo 325.o, n.o 1, TFUE e do artigo 4.o, n.o 3, TUE (c).

a) Questão de saber se os interesses financeiros da União são lesados

59.

O Tribunal de Justiça já clarificou que o âmbito da expressão «interesses financeiros da União» é amplo, englobando as receitas e despesas abrangidas pelo orçamento da União e de outros órgãos ou organismos instituídos pelos Tratados ( 26 ). Os recursos próprios da União compreendem as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à matéria coletável harmonizada do IVA determinada segundo as regras da União. Assim, o Tribunal de Justiça confirmou que existe uma relação direta entre a cobrança das receitas do IVA no respeito do direito da União aplicável e a colocação à disposição do orçamento da União dos recursos IVA correspondentes: «qualquer falha na cobrança das receitas está potencialmente na origem de uma redução dos recursos próprios» ( 27 ).

60.

Assim, o Tribunal de Justiça declarou que não são apenas as sobretaxas fiscais e os processos‑crime por fraude fiscal relativos a informações falsas em matéria de IVA ( 28 ), mas também, de um modo mais geral, a cobrança correta do IVA, que estão associados à proteção dos interesses financeiros da União de acordo com o artigo 325.o TFUE ( 29 ). O Tribunal de Justiça confirmou ainda que medidas nacionais que tenham por objeto infrações em matéria de IVA e que visem assegurar a cobrança exata deste imposto, como as disposições do direito italiano relativas à falta de pagamento do IVA em causa no presente caso, constituem uma aplicação do artigo 325.o TFUE para efeitos do artigo 51.o, n.o 1, da Carta ( 30 ).

61.

A infração em causa no presente caso diz respeito à falta de pagamento. Consequentemente, poder‑se‑ia argumentar que os interesses financeiros da União não são verdadeiramente lesados: existe um atraso no pagamento, mas ele será efetuado. Tendo igualmente em conta o dever de pagar juros sobre o montante devido aquando do seu pagamento, as receitas da União não deverão, em última análise, ser lesadas. Assim, essa infração não poderia estar abrangida pelo artigo 325.o n.o 1, TFUE.

62.

Importa salientar que a infração visa não apenas o pagamento tardio, mas, em termos mais gerais, a falta de pagamento, seja qual for o motivo. Assim, as importâncias devidas poderão ser efetivamente pagas mais tarde, mas também poderão nunca vir a ser pagas. Seja como for, as quantias em dívida simplesmente não foram pagas. É lógico que o facto de uma pessoa não receber dinheiro que lhe é devido é, sem dúvida, suscetível de lesar os seus interesses financeiros, especialmente quando, como observou corretamente a Comissão, só existe infração quando é atingido um certo limiar, que não é insignificante nem marginal.

63.

Consequentemente, não procede o argumento do Governo alemão de que o «pagamento tardio» do IVA não é suscetível de lesar os interesses da União, uma vez que o IVA foi corretamente declarado.

b) A aplicabilidade dos n.os 1 e 2 do artigo 325.o TFUE

64.

Em virtude do seu complexo historial legislativo ( 31 ), o artigo 325.o talvez não seja a disposição do Tratado de mais fácil compreensão.

65.

O elemento‑chave discutido exaustivamente no presente caso é a diferença textual entre o n.o 1 e o n.o 2 do artigo 325.o TFUE. O artigo 325.o, n.o 1, TFUE menciona tanto «fraudes» como «outras atividades ilegais». O artigo 325.o, n.o 2, TFUE, porém, menciona apenas «fraudes».

66.

Nenhum destes conceitos está definido nos Tratados. O conceito de fraude deveria ser interpretado como um conceito autónomo de direito da União, à luz do objetivo geral do artigo 325.o TFUE de proporcionar um quadro sólido de proteção dos interesses financeiros da União ( 32 ). O âmbito desse conceito não corresponde necessariamente à definição de fraude constante das leis penais nacionais ( 33 ). A definição de «fraude» na Convenção PIF, invocada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Taricco ( 34 ), constitui um guia útil nesta matéria, uma vez que foi a primeira definição fornecida pelo direito da União. No entanto, o conceito de fraude no artigo 325.o TFUE não está necessariamente limitado pela definição da Convenção PIF ou de legislação secundária ( 35 ). O conceito genérico de «fraude» do artigo 325.o TFUE também abrangerá, no domínio específico do IVA, atos ou omissões intencionais que tenham por objetivo a obtenção de uma vantagem económica ou fiscal indevida, em detrimento dos interesses financeiros da União ( 36 ).

67.

Seja como for, o Tribunal de Justiça confirmou que o pagamento tardio do IVA não podia, per se, ser equiparado a evasão ou fraude fiscal ( 37 ).

68.

A expressão «quaisquer outras atividades ilegais» referida no artigo 325.o, n.o 1, TFUE corresponde, sem dúvida, a um conceito mais amplo do que o de fraude. De acordo com o seu significado natural, é provável que essa expressão compreenda qualquer comportamento ilegal, ou seja, ilícito, que lese os interesses financeiros da União.

69.

Não vislumbro qualquer justificação para que a falta de pagamento dentro do prazo estabelecido na lei (que, neste sentido, é claramente ilegal) não seja considerada outra atividade ilegal. Como já expliquei nos n.os 59 a 63 supra das presentes conclusões, a falta de pagamento, uma vez atingidos limiares como os que estão previstos no direito nacional, poderá certamente lesar os interesses financeiros da União na aceção do artigo 325.o, n.o 1, TFUE.

70.

Porém, o artigo 325.o, n.o 2, TFUE não contém a expressão «quaisquer outras atividades ilegais», estabelecendo apenas o dever de os Estados‑Membros adotarem medidas para combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União que sejam análogas às tomadas para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses financeiros. Há duas interpretações possíveis para esta diferença no texto.

71.

Por um lado, poder‑se‑ia considerar que, tal como o artigo 325.o, n.o 1, TFUE, o artigo 325.o, n.o 2, TFUE abrange tanto as «fraudes» como «outras atividades ilegais». Esta linha de argumentação descreveria o artigo 325.o, n.o 1, TFUE como uma disposição genérica, que estabelece um quadro de referência aplicável a todos os seus números. Destacaria o facto de que o artigo 325.o, n.o 1, TFUE impõe sobre a União e os Estados‑Membros uma obrigação geral de combater as fraudes e quaisquer outras atividades ilegais «por meio de medidas a tomar ao abrigo do presente artigo». Chamaria também a atenção para o complexo historial legislativo dessa disposição ( 38 ), que foi objeto de rápidas modificações sucessivas, o que dificulta a inferência clara da vontade legislativa.

72.

Por outro lado, seria igualmente plausível invocar a clara diferença textual entre o n.o 1 e o n.o 2 do artigo 325.o TFUE em apoio da tese de que o artigo 325.o, n.o 2, TFUE abrange apenas as medidas destinadas a combater fraudes, mas não outras atividades ilegais. Nos termos dessas duas disposições, o dever de efetividade e o dever de equiparação nelas respetivamente estabelecidos possuem âmbitos diferentes. Se os autores dos Tratados pretendessem que os dois números tivessem o mesmo significado, porque lhe teriam dado uma redação diferente? Se desejassem que os dois conceitos do artigo 325.o, n.o 1, TFUE fossem vistos como um conceito genérico aplicável a todas as disposições do artigo, porque não teriam introduzido um terceiro conceito comum que compreendesse ambos (um termo legislativo global)? Há ainda outros argumentos sistémicos: Os n.os 3 e 4 do artigo 325.o TFUE mantêm claramente a mesma distinção e mencionam apenas as fraudes. Assim, é difícil qualificar a ausência da expressão «outras atividades ilegais» no artigo 325.o, n.o 2, TFUE como um mero «lapso» dos autores do Tratado, a menos que, naturalmente, esses autores fossem muito distraídos e tivessem cometido o mesmo lapso três vezes no mesmo artigo.

73.

Em geral, considero a segunda abordagem interpretativa mais plausível. Não obstante, para efeitos do presente caso, não estou convicto da necessidade de o Tribunal de Justiça se pronunciar sobre esta questão. Embora tenha sido exaustivamente discutido, o artigo 325.o, n.o 2, TFUE suscita, de certo modo, uma falsa questão. Para todos os efeitos práticos, a obrigação imposta pelo artigo 325.o, n.o 1, TFUE, quando lida e analisada em conjunto com o princípio da cooperação leal consagrado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, corresponde a uma obrigação basicamente idêntica de adotar medidas análogas para proteger os interesses financeiros nacionais e da União.

c) O artigo 325.o, n.o 1, TFUE em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, TUE

74.

Ainda que se considere que o artigo 325.o, n.o 2, TFUE não é aplicável no caso vertente, há ainda que ter em conta o princípio transversal da cooperação leal consagrado no artigo 4.o, n.o 3, TUE. Esse princípio, lido em conjugação com a obrigação geral estabelecida no artigo 325.o, n.o 1, TFUE, corresponde à obrigação de adotar medidas de combate a atividades ilegais lesivas dos interesses financeiros da União em condições análogas às aplicáveis às atividades ilegais lesivas dos interesses financeiros nacionais.

75.

A sobreposição substantiva das obrigações impostas pelo artigo 325.o, n.o 2, TFUE e do princípio da cooperação leal estabelecido no artigo 4.o, n.o 3, TUE tem as suas origens na genealogia da primeira dessas disposições. De certa forma, o artigo 325.o, n.o 2, TFUE representa uma codificação da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o princípio da cooperação leal num domínio específico ( 39 ).

76.

O facto de as obrigações estabelecidas pelo artigo 4.o, n.o 3, TUE terem natureza transversal, permeando toda a ordem jurídica da União, tem outra consequência. A obrigação de adotar medidas de combate a atividades ilegais lesivas dos interesses financeiros da União em condições análogas às aplicáveis em relação aos interesses financeiros nacionais não funciona apenas em conjugação com as obrigações impostas pelo artigo 325.o, n.o 1, TFUE, mas também com obrigações mais específicas resultantes da Diretiva IVA. Uma vez que a Diretiva IVA contém, sem dúvida, as disposições mais pormenorizadas em matéria de pagamento e cobrança do imposto, é possível realizar uma análise mais aprofundada à luz dessas disposições. Abordá‑las‑ei na próxima secção das presentes conclusões.

77.

Porém, antes disso, importa fazer uma observação final: as medidas a adotar para combater as fraudes e outras atividades ilegais ao abrigo dos artigos 325.°, n.o 1, TFUE e 4.°, n.o 3, TUE não têm necessariamente caráter penal. O que se exige é que essas medidas sejam efetivas e dissuasoras. Assim, é evidente que tais medidas poderão implicar, como ultima ratio, sanções penais. No entanto, antes de se chegar a esse ponto, existe um vasto leque de ações, como medidas administrativas, civis ou organizacionais, que poderão ser suficientes para combater eficazmente as fraudes e outras atividades ilegais ( 40 ). Do mesmo modo, as medidas a adotar pelos Estados‑Membros em conformidade com o artigo 325.o TFUE não se limitam às medidas relacionadas com atividades criminais ou irregularidades administrativas já abrangidas pela legislação setorial da União ( 41 ).

3. A Diretiva IVA e o princípio da cooperação leal

78.

O artigo 206.o da Diretiva IVA impõe sobre os sujeitos passivos a obrigação de pagarem o imposto no momento da apresentação da declaração fiscal prevista no artigo 250.o dessa diretiva. Contudo, concede aos Estados‑Membros a possibilidade de fixarem um prazo de pagamento diferente. O artigo 273.o da Diretiva IVA deixa aos Estados‑Membros a liberdade de adotarem medidas para garantirem o pagamento — podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude.

79.

Porém, além destas disposições, a Diretiva IVA não estabelece quaisquer outras regras específicas para garantir a cobrança correta do imposto. Não prevê quaisquer medidas concretas ou, se for o caso, sanções, que devam ser aplicadas em caso de falta de pagamento dentro do prazo fixado pelos Estados‑Membros em conformidade com o seu artigo 206.o

80.

Por conseguinte, a escolha das sanções adequadas fica ao critério dos Estados‑Membros. Contudo, essa discricionariedade não é ilimitada: na falta de uma disposição específica que preveja sanções em caso de violação, o artigo 4.o, n.o 3, TUE exige que os Estados‑Membros adotem medidas eficazes contra comportamentos lesivos dos interesses financeiros da União ( 42 ). Essas medidas deverão ser aplicáveis em condições substantivas e processuais análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes. De qualquer modo, as sanções impostas por essas medidas deverão ter um caráter efetivo, proporcionado e dissuasivo ( 43 ).

81.

No domínio específico do IVA, os Estados‑Membros têm a obrigação de lutar contra a fraude ( 44 ). Em termos mais gerais, e de acordo com jurisprudência assente, os artigos 2.°, 250.°, n.o 1, e 273.° da Diretiva IVA, lidos em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, exigem que os Estados‑Membros tomem todas as medidas legislativas e administrativas necessárias para garantir a cobrança da totalidade do IVA devido no seu território ( 45 ). Os Estados‑Membros são obrigados a verificar as declarações, a contabilidade e outros documentos pertinentes dos contribuintes, bem como a calcular e a cobrar o imposto devido ( 46 ).

82.

Em resumo, destas considerações resulta que as obrigações impostas pela Diretiva IVA, lidas em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, ultrapassam claramente a prevenção da fraude. Têm um caráter mais geral. Dizem respeito à cobrança exata do imposto em sentido mais amplo. Assim, englobam também regras estabelecidas pelos Estados‑Membros para sancionarem a violação de obrigações de natureza meramente formal, como erros nas declarações, mas também pagamentos tardios, desde que não ultrapassem o que é necessário para alcançar os objetivos prosseguidos, que consistem em garantir a cobrança exata do IVA e evitar a fraude ( 47 ).

83.

Repita‑se que o facto de tais medidas nacionais estarem abrangidas pelas disposições da Diretiva IVA supramencionadas, lidas com conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, não determina, no meu entender, a natureza das medidas nacionais. Tal como o artigo 325.o, n.o 1, TFUE, ou talvez mesmo a fortiori ( 48 ), a Diretiva IVA não obriga necessariamente os Estados‑Membros a imporem sanções de natureza penal. A escolha dos meios fica, mais uma vez, ao critério dos Estados‑Membros. Ao direito da União interessa o resultado: medidas efetivas, proporcionadas e dissuasoras que garantam a cobrança exata e previnam a fraude.

4. Conclusão provisória

84.

Pelo exposto, entendo que o artigo 4.o, n.o 3, TUE, o artigo 325.o, n.o 1, TFUE e os artigos 206.° e 273.° da Diretiva IVA são as disposições aplicáveis para efeitos do presente caso.

B.  Resposta às questões prejudiciais

85.

Irei agora examinar as questões concretas colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio à luz das disposições de direito da União aplicáveis acima identificadas.

86.

A argumentação que se segue está estruturada do seguinte modo: primeiro, abordarei a primeira parte da terceira questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional respeitante à Convenção PIF (1). Depois, debruçar‑me‑ei sobre a primeira questão, relativa à obrigação de prever sanções equivalentes (2). Por último, analisarei em conjunto a segunda questão e a segunda parte da terceira questão submetidas pelo órgão jurisdicional nacional respeitante à obrigação de aplicar sanções efetivas, dissuasoras e proporcionadas em caso de violação do direito da União (3).

1. Primeira parte da terceira questão: a Convenção PIF

87.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o conceito de fraude previsto no artigo 1.o da Convenção PIF abrange a falta de pagamento ou o pagamento parcial ou tardio do IVA. Pergunta se, consequentemente, o artigo 2.o dessa Convenção impõe ao Estado‑Membro a obrigação de punir esse comportamento com pena de prisão quando estejam em causa montantes superiores a 50000 euros.

88.

A resposta é negativa. Como expliquei nos n.os 48 a 51 das presentes conclusões, a Convenção PIF não é aplicável no presente caso. No meu entender, a infração em causa não pode ser subsumida no conceito de fraude na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), dessa Convenção.

89.

Por conseguinte, proponho que seja dada a seguinte resposta à primeira parte da terceira questão: o conceito de fraude previsto no artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da Convenção PIF não abrange uma infração, como a que está em causa no processo principal, relativa à falta de pagamento de IVA corretamente declarado dentro do prazo estabelecido por lei.

2. Primeira questão: limiares diferenciados e obrigação de estabelecer sanções equivalentes

90.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 (conforme alterado pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015), que estabelece um limiar de criminalização mais elevado para a falta de pagamento de IVA (250000 euros) do que para o imposto retido na fonte (150000 euros), é compatível com o direito da União.

91.

Esta questão prende‑se essencialmente com a obrigação de estabelecer para as violações do direito da União sanções análogas ou equivalentes às previstas para violações semelhantes do direito nacional. No contexto do presente caso, essa obrigação resulta do artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 325.o, n.o 1, TFUE e com as supramencionadas disposições da Diretiva IVA.

92.

Invocando concretamente o princípio da cooperação leal tal como expresso no artigo 4.o, n.o 3, TUE, o Tribunal de Justiça determinou que os Estados‑Membros devem garantir que as violações do direito da União sejam punidas em condições processuais e substantivas «análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes […]». Além disso, em relação às violações do direito da União, as autoridades nacionais devem proceder «com a mesma diligência que empregam para a aplicação da legislação nacional correspondente» ( 49 ).

a) Qual é o regime nacional «análogo»?

93.

No presente caso, a dificuldade consiste em determinar o quadro de referência ao abrigo do qual deverá ser apreciada a obrigação de estabelecer sanções análogas. O que poderão constituir violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes? Que outro quadro legislativo nacional poderá servir como ponto de referência no presente caso?

94.

As observações apresentadas ao Tribunal de Justiça concluem que os limiares diferenciados introduzidos pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015 não violam a obrigação de estabelecer sanções análogas ou equivalentes. No entanto, o raciocínio subjacente a essa conclusão difere.

95.

O Governo italiano alega que as duas infrações não são, de modo algum, comparáveis. A Comissão sustenta que os limiares diferentes introduzidos pelos artigos 10.° bis e 10.° ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 são comparáveis, mas que a diferença é justificável. O Governo austríaco avança um argumento mais original, sugerindo que, por definição, no domínio no IVA não podem ser suscitados problemas relacionados com a obrigação de estabelecer sanções equivalentes. O IVA constitui uma fonte de receitas para os Estados‑Membros e para a União. Consequentemente, os interesses financeiros da União sob a forma de receitas do IVA estão sempre protegidos exatamente da mesma forma que os interesses financeiros nacionais.

96.

No presente caso, a apreciação de sanções análogas consiste essencialmente em determinar se o sistema do IVA pode ser comparado à tributação direta para efeitos de apreciação da obrigação de estabelecer sanções análogas.

97.

Nesta matéria, são concebíveis duas abordagens.

98.

Primeiro, seguindo uma abordagem mais restritiva, correspondente à que é defendida pelo Governo austríaco, o regime do IVA poderia ser visto como uma ilha ( 50 ). Em virtude das suas características e funcionamento específicos e peculiares, a comparação com qualquer outro sistema de tributação ou fonte de receitas seria impossível. Uma vez que o IVA constitui simultaneamente uma fonte de receitas nacionais e da União, a obrigação de estabelecer sanções análogas seria sempre cumprida per se.

99.

Numa situação em que estejam em causa questões mais específicas e concretas, em que poderão existir mais diferenças do que semelhanças no sistema e na cobrança do IVA, compreendo por que motivo essa abordagem poderia ser sugerida. No contexto jurídico atual, porém, essa abordagem seria problemática e ilógica. Esvaziaria de conteúdo o principal requisito da adoção de medidas análogas ou semelhantes: a «obrigação de equiparação». A equiparação (equivalência) deixaria de poder ser examinada. O critério seria, na prática, circular, sendo aplicado por referência a si mesmo ( 51 ).

100.

Segundo, uma abordagem mais ampla à comparabilidade coloca o quadro de referência num nível mais elevado de abstração, procurando simultaneamente na ordem jurídica nacional a analogia mais próxima com a violação pertinente do direito da União. Uma vez obtida uma visão mais abstrata e panorâmica, torna‑se evidente que nenhum imposto é uma ilha; cada imposto é uma parcela de um continente (tributável), uma parte do todo.

101.

No meu entender, a «obrigação de equiparação» exige a adoção desse tipo de abordagem mais ampla à comparabilidade para identificar as violações pertinentes do direito nacional de natureza e importância semelhantes, especialmente no domínio da proteção dos interesses financeiros da União. Aí, a perspetiva a adotar consiste, por natureza, numa comparação estrutural, sistémica. Se fosse exigida uma identidade completa, seria muito difícil encontrar fontes equivalentes de receitas ou despesas nos Estados‑Membros. Em virtude da especificidade do sistema de cobrança do IVA, as violações relacionadas com este imposto nunca poderiam ser consideradas análogas a violações relativas a qualquer outro imposto.

102.

Em contrapartida, em casos individuais respeitantes à aplicação do princípio da não discriminação ou do princípio da equivalência a regras processuais ou vias de recurso distintas, a perspetiva adotada é, por definição, muito mais concreta e restritiva. Se for esse o caso, as diferenças concretas e específicas entre tributação direta e indireta, apreciadas àquele nível de abstração, poderão impossibilitar a comparação de situações individuais ( 52 ).

103.

De qualquer modo, essa abordagem mais ampla já foi adotada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Taricco. Ao fornecer indicações para auxiliar o órgão jurisdicional nacional na apreciação da equivalência dos regimes relativos aos prazos de prescrição em casos de fraude em matéria de IVA, o Tribunal de Justiça referiu os prazos de prescrição aplicáveis em relação a impostos especiais de consumo sobre produtos de tabaco ( 53 ).

104.

No caso em apreço, a analogia mais próxima com a infração relacionada com a falta de pagamento do IVA prevista no artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 é a infração relacionada com a falta de pagamento, em substituição do sujeito passivo, do imposto retido na fonte prevista no artigo 10.o bis do mesmo decreto. Estas infrações apresentam várias semelhanças: o seu objetivo geral é garantir a cobrança. Ambas as infrações visam comportamentos associados à falta de pagamento dentro do prazo estabelecido na lei. O paralelismo sistemático das duas disposições resulta da própria legislação italiana, que optou por regular ambas as infrações no mesmo ato legislativo, em disposições paralelas estreitamente relacionadas entre si.

105.

Por conseguinte, não creio que a sugestão de que o artigo 10.o bis é a disposição «análoga» do artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000 suscite qualquer dificuldade lógica específica. As duas infrações são comparáveis. Assim, a questão que se coloca a seguir respeita à possível justificação dos limiares diferenciados estabelecidos nas duas disposições.

b) A diferenciação é justificada?

106.

O Governo italiano procurou explicar a motivação do legislador para estabelecer limiares diferentes para as infrações relativas à falta de pagamento do IVA e do imposto retido na fonte.

107.

Em primeiro lugar, a título preliminar, o Governo italiano clarificou na audiência que o regime de infrações penais por falta de pagamento de impostos diretos não se aplica aos sujeitos passivos. A infração prevista no artigo 10.o bis não diz respeito ao sujeito passivo, mas sim à pessoa que está obrigada a pagar o imposto retido na fonte em substituição daquele.

108.

Segundo, além das diferenças estruturais gerais decorrentes do caráter direto e indireto dos impostos, o Governo italiano indicou motivos específicos para a diferenciação, que respeitam à gravidade e à dificuldade de deteção da falta de pagamento e de cobrança.

109.

Por um lado, no que respeita à falta de pagamento das retenções resultantes da certificação emitida ao substituído, o Governo italiano explica que o artigo 10.o bis visa não apenas a falta de pagamento, mas também a emissão de um documento incorreto. A deteção da falta de pagamento e a cobrança do imposto tornam‑se, assim, mais difíceis, dado que o substituído recebe um certificado que o exonera do pagamento perante a administração.

110.

Por outro lado, no que respeita à falta de pagamento das retenções resultantes da declaração anual apresentada pelo substituto fiscal, o Governo italiano afirma que o facto de se tratar de uma infração mais grave decorre das consequências que essa omissão poderá ter para os substituídos, que correm o risco de ter de pagar o imposto duas vezes.

111.

No contexto destes dois fundamentos, foi referido que a dificuldade de deteção da infração ( 54 ), bem como os diferentes interesses protegidos, foram considerados pelo legislador como motivos legítimos para a diferenciação dos limiares em causa.

112.

Naturalmente, alguns dos argumentos aduzidos pelo Governo italiano poderão ser considerados mais convincentes do que outros. Do mesmo modo, poderão subsistir dúvidas quanto às circunstâncias que se terão alterado em 2015, criando subitamente uma necessidade de diferenciar entre os limiares aplicáveis às duas infrações que não existia antes, quando eram ambas reguladas nas mesmas condições.

113.

No entanto, creio que questões como esta se enquadram precisamente no domínio em que os Estados‑Membros podem fazer as suas próprias escolhas legislativas. Considero que o Governo italiano apresentou razões plausíveis para a diferenciação. Além disso, demonstrou que esta matéria foi objeto de um processo deliberativo a nível nacional. Se a margem de discricionariedade processual e de autonomia institucional tem algum valor neste domínio, não deveria competir ao Tribunal de Justiça questionar essas escolhas legislativas nacionais, que estão incorporadas no complexo tecido legislativo mais vasto do direito fiscal dos Estados‑Membros.

114.

Consequentemente, entendo que o artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 325.o, n.o 1, TFUE e com a Diretiva IVA, não obsta a disposições nacionais que estabeleçam, para efeitos de determinação da punibilidade do comportamento que consiste na falta de pagamento de um imposto dentro do prazo legal, um limiar financeiro mais elevado para o IVA do que para o imposto retido na fonte.

3. Segunda questão e segunda parte da terceira questão: extinção da responsabilidade penal e sanções efetivas e dissuasoras

115.

O órgão jurisdicional nacional manifestou igualmente dúvidas sobre o impacto que as duas alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015 poderiam ter sobre o caráter efetivo e dissuasor das sanções penais previstas pelo Decreto Legislativo n.o 74/2000.

116.

Em primeiro lugar, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 325.o, n.o 1, TFUE e com a Diretiva IVA, obsta a uma disposição nacional que extingue a responsabilidade penal das pessoas responsáveis por assuntos fiscais, caso a entidade que representam pague o montante de IVA devido, juntamente com os juros e as sanções administrativas associados ao pagamento tardio do imposto, até à abertura da audiência de julgamento do processo em primeira instância. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o regime italiano não impõe sobre essas pessoas qualquer outra sanção, nem mesmo de natureza administrativa.

117.

Em segundo lugar, na segunda parte da terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 325.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de obstar a uma legislação nacional que isenta de responsabilidade penal e administrativa as pessoas responsáveis por assuntos fiscais pela falta de pagamento ou pagamento parcial ou tardio do IVA em relação a montantes correspondentes a 3 a 5 vezes o limiar mínimo de 50000 euros estabelecido na Convenção PIF.

118.

Ambas as questões dizem respeito à obrigação dos Estados‑Membros de adotarem sanções efetivas e dissuasoras. Examiná‑las‑ei sucessivamente nesta secção.

a) A nova causa de extinção da responsabilidade penal

119.

A Comissão considera que a segunda questão, relativa à nova causa de extinção da responsabilidade penal introduzida pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015 (novo artigo 13.o do Decreto Legislativo n.o 74/2000), deve ser declarada inadmissível. Alega que, tendo em conta que o limiar aplicável à infração relativa ao IVA (250000 euros) não foi atingido no presente caso (o montante em dívida totalizava 175272 euros), essa causa não podia ser invocada.

120.

Concordo. Com efeito, se o Tribunal de Justiça aceitar as respostas que proponho para a primeira e terceira questões, não haverá necessidade de responder à segunda questão. Contudo, a fim de lhe prestar toda a assistência possível, exporei sucintamente a resposta que proponho para esta questão, caso chegue a uma conclusão diferente.

121.

Em geral ( 55 ), a obrigação de prever sanções efetivas, dissuasoras e proporcionadas para proteger os interesses financeiros da União tem origem em duas fontes de direito da União. O dever de cooperação leal previsto no artigo 4.o, n.o 3, TUE implica a obrigação de combater de forma eficaz e dissuasora os casos de incumprimento da obrigação de pagamento do IVA em conformidade com os artigos 206.° e 273.° da Diretiva IVA: é imposta uma obrigação geral de tomar todas as medidas legislativas e administrativas necessárias para garantir a cobrança da totalidade do IVA devido no seu território ( 56 ). O mesmo resulta do artigo 325.o, n.o 1, TFUE, que obriga os Estados‑Membros a combaterem a fraude e outras atividades ilícitas lesivas dos interesses financeiros da União através de medidas dissuasoras e efetivas ( 57 ).

122.

No meu entender, a nova causa de extinção da responsabilidade penal aqui em causa não viola a obrigação de impor sanções efetivas e dissuasoras.

123.

Primeiro, de um modo geral, a obrigação de aplicar sanções proporcionadas, efetivas e dissuasoras no domínio do IVA não implica necessariamente a obrigação de impor sanções de natureza penal ( 58 ). É verdade que, em certas situações, perante a gravidade das infrações, a criminalização poderá ser a única solução para garantir o caráter efetivo e dissuasor ( 59 ). No entanto, fora destas situações graves e específicas, as sanções aplicáveis poderão revestir a forma de sanções administrativas, de sanções penais ou de uma combinação de ambas ( 60 ).

124.

No contexto do IVA, a falta de pagamento do imposto corretamente declarado dentro do prazo legal não pode ser considerada de tal modo grave que a obrigação de adotar medidas efetivas e dissuasivas exija invariavelmente o estabelecimento de sanções penais ( 61 ). Evidentemente, os Estados‑Membros podem, tendo em conta a sua situação económica e social, decidir adotar tais sanções em casos que considerem suficientemente graves, respeitando simultaneamente o princípio da proporcionalidade. Porém, não se pode afirmar que o direito da União impõe a criminalização desse comportamento.

125.

Segundo, o caráter efetivo e dissuasor das medidas estabelecidas pela legislação italiana para garantir a cobrança do IVA deve ser analisado em termos sistemáticos mais abrangentes. É necessário ter em conta a interação entre as várias sanções penais e administrativas aplicáveis em caso de falta de pagamento do IVA no prazo estabelecido na lei ( 62 ).

126.

Como explicou o Governo italiano, nos termos do artigo 13.o do Decreto Legislativo n.o 471/1997, as entidades obrigadas a pagar o imposto estão, em qualquer caso, sujeitas a um regime de sanções administrativas que podem atingir 30% do montante em dívida e juros. Resulta dos trabalhos preparatórios da alteração em causa que a modificação do limiar relativo às sanções aplicáveis à falta de pagamento do IVA, introduzida pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015, tomou devidamente em conta a existência de sanções administrativas que continuam a aplicar‑se às situações em que não é atingido o limiar previsto para as sanções penais ( 63 ). Do mesmo modo, a nova causa de extinção da responsabilidade penal associada ao pagamento constitui uma escolha legislativa que visa conceder a possibilidade de evitar um processo penal caso a entidade responsável pelo pagamento do imposto salde as suas dívidas, incluindo o imposto devido, os juros e as sanções administrativas. Acresce que, no presente caso, o legislador considerou suficiente a imposição de sanções administrativas às entidades contribuintes ( 64 ).

127.

Por outras palavras, mesmo que o administrador responsável da entidade jurídica devedora do imposto escape à responsabilidade penal se esta acabar por efetuar o pagamento, a entidade jurídica que é a principal responsável estará, ainda assim, sujeita ao pagamento de juros e sanções administrativas em virtude do pagamento tardio.

128.

Chegados a este ponto, poderá ser útil tentar visualizar a floresta, não apenas cada árvore individual. Qual é o objetivo da criminalização do pagamento tardio de montantes devidos ao erário público? Talvez contrariamente ao que acontece com outros atos criminosos, em que os danos causados são irreversíveis e em que o principal objetivo da sanção é punir e reformar o infrator, nos crimes fiscais ou tributários o objetivo é também utilizar a sanção penal como uma ameaça para coagir ao pagamento num caso concreto e, desse modo, promover o cumprimento, em termos mais gerais, no futuro. Por outras palavras, a criminalização não é a única finalidade per se. Outra finalidade da sanção será provavelmente manter a solidez fiscal e coagir ao cumprimento. Se essa lógica for aceite, o facto de ser dada ao infrator uma última oportunidade para cumprir antes do início da audiência de julgamento do processo não compromete a eficácia das sanções: muito pelo contrário ( 65 ).

129.

Neste cenário, a causa de extinção da responsabilidade penal introduzida pelo artigo 13.o do Decreto Legislativo n.o 74/2000 fomenta o cumprimento e, consequentemente, promove o caráter efetivo e dissuasor do regime sancionatório. O caráter efetivo das sanções está associado ao incentivo ao pagamento do imposto. O caráter dissuasor é assegurado pela obrigação de pagar não apenas o montante em dívida, mas também os juros vencidos e o correspondente montante das sanções administrativas.

130.

Recorde‑se que, no passado, o Tribunal de Justiça declarou que um regime sancionatório progressivo era adequado para incentivar a regularização do pagamento ( 66 ). Considerou também que os juros constituíam uma sanção adequada em situações respeitantes a infrações de natureza formal ( 67 ).

131.

Por último, importa não esquecer que, quando impõem sanções efetivas e dissuasoras no âmbito do direito da União, os Estados‑Membros estão igualmente obrigados a respeitar o princípio da proporcionalidade. Os documentos preparatórios do Decreto Legislativo n.o 158/2015 indicam que o legislador italiano optou por adotar uma escala progressiva de sanções administrativas e penais. Ciente da exigência de proporcionalidade, reservou as sanções penais para os casos mais graves. Neste contexto, também é possível considerar que a causa de extinção da responsabilidade penal aqui em causa introduz considerações de proporcionalidade no regime sancionatório geral.

b) A relevância do limiar de 50000 euros estabelecido na Convenção PIF

132.

No que respeita à segunda parte da terceira questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, não creio que o limiar da Convenção PIF seja um ponto de referência adequado para apreciar o caráter efetivo das sanções fora do quadro definido nesse instrumento específico.

133.

Primeiro e acima de tudo, conforme explicado nos n.os 48 a 51 das presentes conclusões, a infração em causa não está abrangida pelo âmbito de aplicação da Convenção PIF. O limite estabelecido pela Convenção PIF só é relevante para uma infração específica: a fraude.

134.

Segundo, refira‑se, a título subsidiário, que o limiar de 50000 euros previsto no artigo 2.o da Convenção PIF se aplica unicamente como critério para estabelecer o montante mínimo acima do qual a fraude deverá ser considerada de tal modo grave que justifique a aplicação de penas privativas da liberdade que possam determinar a extradição. Porém, o limiar de 50000 euros nem sequer é aplicável como limiar geral da criminalização per se.

135.

Por conseguinte, entendo que o limiar a que se refere a Convenção PIF nem sequer poderia ser invocado para efeitos de uma analogia mais ampla. É totalmente irrelevante em situações como a do caso em apreço.

c) Conclusão provisória

136.

Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão e à segunda parte da terceira questão nos seguintes termos: a obrigação de estabelecer sanções efetivas, dissuasoras e proporcionadas para garantir a cobrança exata do IVA, imposta pelo artigo 325.o, n.o 1, TFUE e pelo artigo 4.o, n.o 3, TUE, lidos e conjugação com a Diretiva IVA, não obsta a legislação nacional como a que está em causa no presente caso que, embora preveja um sistema de sanções administrativas, exclui as pessoas singulares responsáveis pelos assuntos fiscais:

da responsabilidade penal e administrativa emergente da falta de pagamento do IVA corretamente declarado no prazo estabelecido por lei em relação a montantes correspondentes a três a cinco vezes o limiar mínimo de 50000 euros estabelecido pela Convenção PIF;

da responsabilidade penal, caso a entidade que representam tenha efetuado o pagamento tardio do IVA em dívida, bem como dos juros e dos montantes impostos a título de sanções administrativas, até à abertura da fase oral do processo.

C.  Efeitos de uma potencial incompatibilidade entre a legislação nacional e o direito da União

137.

Nas presentes conclusões, propus que o Tribunal de Justiça respondesse às questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que as disposições pertinentes do direito da União não obstam às alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015. Se o Tribunal de Justiça chegar à mesma conclusão, não haverá necessidade de apreciar os potenciais efeitos (temporais) de uma declaração de incompatibilidade no presente caso.

138.

Se o Tribunal de Justiça decidir em sentido contrário, será necessário analisar os efeitos da incompatibilidade do direito nacional com o direito da União. Em especial, terão de ser examinadas as implicações práticas decorrentes do princípio do primado do direito da União, ou seja, a obrigação de não aplicar as disposições nacionais contrárias ao direito da União. Esse exame teria de ser efetuado à luz do cenário em apreço, em que as disposições nacionais em causa constituem disposições penais mais favoráveis ao arguido num processo penal em curso.

139.

A fim de prestar todo o auxílio possível ao Tribunal de Justiça, tecerei algumas observações finais sobre esta questão, tal como expressamente suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio e discutida pelas partes interessadas na audiência.

140.

Segundo o órgão jurisdicional nacional, se as alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015 fossem consideradas incompatíveis com o direito da União, a subsequente não aplicação das normas mais favoráveis não violaria o princípio da legalidade nem o princípio da lex mitior consagrados no artigo 49.o, n.o 1, da Carta. Em primeiro lugar, a não aplicação das disposições nacionais alteradas pelo Decreto Legislativo n.o 158/2015 implicaria a (re)aplicação da anterior versão dessas disposições, em vigor à data dos factos pertinentes. Em segundo lugar, se fossem declaradas incompatíveis com o direito da União, as novas disposições nunca teriam feito legalmente parte da ordem jurídica italiana. Uma vez que as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça em processos de reenvio prejudicial têm efeito ex tunc, a disposição por elas interpretada também teria de ser aplicada do modo indicado pelo Tribunal de Justiça às relações jurídicas constituídas antes do acórdão, mas ainda vigentes.

141.

A Comissão e o Governo italiano responderam a esses argumentos durante a audiência. Parecem entender que, no presente caso, as disposições de direito nacional mais favoráveis não poderiam não ser aplicadas, mesmo que fossem declaradas incompatíveis com o direito da União.

142.

Concordo com a Comissão e o Governo italiano. No meu entender, o princípio da legalidade exclui a possibilidade de anular disposições penais mais favoráveis durante um processo penal em curso, mesmo que essas regras mais favoráveis sejam declaradas incompatíveis com o direito da União. Por outras palavras, num caso como o presente, o primado das disposições de direito da União que impõem sobre os Estados‑Membros a obrigação de adotarem sanções efetivas, dissuasoras e análogas tem de ser aplicado de forma coerente com outras regras que ocupam uma posição hierárquica idêntica na ordem jurídica da União: o princípio da lex mitior, previsto no artigo 49.o, n.o 1, da Carta, associado aos princípios da proteção da confiança legítima e da certeza jurídica, considerados no contexto específico do direito penal.

143.

É consensual que, por força do princípio do primado do direito da União, as disposições dos Tratados e as disposições de direito secundário diretamente aplicáveis têm o efeito de, pelo próprio facto da sua entrada em vigor, tornar inaplicável qualquer disposição contrária da legislação nacional ( 68 ).

144.

O dever de não aplicação constitui, talvez, a emanação mais categórica desse princípio. Porém, as consequências práticas desse primado no caso concreto devem ser ponderadas e conciliadas com o princípio geral da certeza jurídica e, mais especificamente no domínio do direito penal, com o princípio da legalidade. A obrigação de os Estados‑Membros garantirem a cobrança eficaz dos recursos da União não pode ir contra os direitos consagrados na Carta ( 69 ), que também prevê os princípios fundamentais da legalidade, da lex mitior e da certeza jurídica.

145.

Na análise que se segue, defenderei que o princípio da legalidade, que não deve ser objeto de uma interpretação minimalista (1), mas sim entendido no sentido de abranger também o princípio da lex mitior juntamente com o imperativo de certeza jurídica acrescida em matéria penal (2), significa que, no presente caso, as disposições mais favoráveis do Decreto Legislativo n.o 158/2015 não poderiam não ser aplicadas (3). Esta última conclusão é válida independentemente de a eventual incompatibilidade com o direito da União ser declarada por referência ao direito primário (artigo 325.o, n.o 1, TFUE) ou em relação à Diretiva IVA.

1. O «núcleo» do princípio da legalidade: a proibição de retroatividade

146.

O princípio da legalidade, consagrado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta, implica, acima de tudo, a proibição de retroatividade. Está previsto nos primeiros dois períodos dessa disposição ( 70 ). Corresponde, para efeitos do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, ao artigo 7.o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).

147.

Poder‑se‑á afirmar que o «núcleo» do princípio da legalidade, que constitui a expressão mais forte e mais concreta do princípio da certeza jurídica ( 71 ), abrange apenas os elementos substantivos da definição das infrações e das penas. Exige que a legislação defina claramente as infrações e as penas aplicáveis no momento da prática do ato ou omissão punível. Essa exigência está satisfeita quando o interessado pode saber, a partir da redação da disposição pertinente e, se necessário, recorrendo à interpretação que lhe é dada pelos tribunais, quais os atos e omissões pelos quais responde penalmente ( 72 ). Porém, essa exigência não proscreve a clarificação gradual das regras da responsabilidade penal através da interpretação jurisprudencial, contanto que estas sejam razoavelmente previsíveis ( 73 ).

148.

Consequentemente, se o direito nacional, na redação aplicável aos factos do processo principal, não previa expressamente a responsabilidade penal por um determinado comportamento, «o princípio da legalidade das penas, conforme consagrado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proíbe a aplicação de sanções penais a tal comportamento, mesmo no caso de a regra nacional ser contrária ao direito da União» ( 74 ).

149.

Assim, o «núcleo» do princípio da legalidade, refletido no primeiro e segundo períodos do artigo 49.o, n.o 1, da Carta, proíbe a aplicação retroativa de novas regras penais relativas à definição de infrações e penas que não estavam em vigor à data da prática do ato punível. Importa salientar aqui dois elementos: a limitação aos elementos substantivos do ato e da pena e a concentração num único momento específico no tempo, ou seja, o momento da prática do ato ou omissão.

2. A interpretação mais ampla do princípio da legalidade: lex mitior e certeza jurídica em matéria penal

150.

Porém, o conteúdo das garantias previstas no artigo 49.o, n.o 1, não fica por aí. Do meu ponto de vista, o verdadeiro conteúdo dessas garantias é mais amplo nas duas dimensões que acabei de referir: substantiva e temporal.

151.

Sem entrar num debate mais profundo sobre o que, ao certo, está substantivamente abrangido, talvez seja suficiente recordar que, no contexto da CEDH, o âmbito exato do artigo 7.o, n.o 1, também não é, de modo algum, claro. Em especial, o conceito de «pena» e o seu alcance têm sido objeto de uma certa evolução jurisprudencial. Recentemente, no acórdão Del Río Prada, a Grande Secção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) recordou que não é clara a distinção entre uma «pena» (a «substância», que deveria estar abrangida pelo artigo 7.o, n.o 1, da CEDH) e uma medida relativa à execução ou aplicação de uma pena (mais próxima de elementos de «processo») ( 75 ). O TEDH efetuou uma análise mais abrangente com base, entre outros fatores, na natureza e finalidade da medida, na sua qualificação pelo direito nacional e nos seus efeitos.

152.

Há muitos argumentos a favor de uma tal apreciação orientada para o efeito ou o impacto, que pouca relevância atribui às subtilezas da terminologia nacional adotada, que, como é óbvio, poderá variar de um Estado‑Membro para outro, e privilegia uma análise mais concreta da aplicação genuína das regras. Acima de tudo, porém, talvez represente melhor aquele que deveria ser o foco da proteção efetiva dos direitos fundamentais: o indivíduo e o impacto que uma regra tem na sua situação, não os rótulos terminológicos que lhe são afixados pelo respetivo direito nacional.

153.

Por este motivo, embora o terceiro período do artigo 49.o, n.o 1, da Carta contenha a expressão «pena mais leve», não creio que essa disposição possa ser interpretada no sentido de visar única e exclusivamente a gravidade da pena. Deve ser interpretado no sentido de incluir também, pelo menos, todos os elementos constitutivos de um crime, por uma simples razão: se, após a prática de um crime, fosse aprovada uma nova lei que alterasse a definição da infração penal em benefício do arguido, o seu ato deixaria de ser criminalmente punível. Não sendo punível, nenhuma pena poderia ser aplicada. A inexistência de uma pena é certamente uma pena mais leve. Nessas circunstâncias, não faria qualquer sentido insistir no facto de que, em termos técnicos, a nova lei não regula diretamente as «penas».

154.

O elemento mais importante para o presente caso é, talvez, o segundo: a dimensão temporal do que é tutelado pelo princípio da legalidade. Nesta matéria, o terceiro período do artigo 49.o, n.o 1, da Carta indica já claramente que o princípio também visa o período após a prática do crime. O terceiro período prevê a aplicação retroativa da pena mais leve: lex mitior.

155.

O Tribunal de Justiça também já reconheceu que a regra da lex mitior constitui um princípio geral de direito da União, resultante das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros ( 76 ). Esta linha jurisprudencial, juntamente com o artigo 49.o, n.o 1, da Carta, influenciou inclusivamente a evolução da jurisprudência do TEDH. O TEDH parece ter‑se desviado da sua própria jurisprudência, segundo a qual o princípio da lex mitior não estaria abrangido pelo artigo 7.o da CEDH, reconhecendo agora que constitui um elemento implícito nessa disposição, também sob a influência da tutela mais ampla garantida pelo direito da União ( 77 ).

156.

O princípio da lex mitior constitui, na prática, uma derrogação da proibição de aplicação retroativa da lei penal. Autoriza a retroatividade in bonam partem. Por conseguinte, a retroatividade in malam partem está logicamente excluída.

157.

Segundo jurisprudência recente do TEDH, o princípio da retroatividade da lei penal mais favorável significa que «sempre que existam diferenças entre a lei penal em vigor no momento da prática de um crime e leis penais posteriores que tenham sido promulgadas antes de ser proferida uma decisão definitiva, o tribunal está obrigado a aplicar a lei cujas disposições são mais favoráveis ao arguido» ( 78 ). Para o TEDH, esta obrigação de aplicar «entre várias leis penais, aquela cujas disposições são mais favoráveis ao arguido é uma clarificação das regras sobre a sucessão das leis penais, que está em conformidade com outro elemento essencial do artigo 7.o: a previsibilidade das penas». Tal como a proibição da aplicação retroativa, o princípio da lex mitior aplica‑se em relação a disposições que definem infrações e penas ( 79 ).

158.

O conteúdo do princípio da lex mitior, porém, está longe de ser consensual. Esse princípio inspira‑se numa ideia específica: «implica necessariamente uma sucessão de leis no tempo e assenta na constatação de que o legislador mudou de opinião a respeito da qualificação penal dos factos ou a respeito da pena a aplicar a uma infração» ( 80 ). Esta especificidade está na base de algumas teses que destacam a diferença entre a lógica subjacente à proibição de aplicação retroativa da lei penal e ao princípio da lex mitior. Segundo essas teses, o princípio da lex mitior não decorreria exatamente das exigências de previsibilidade ou de certeza jurídica. Fundar‑se‑ia meramente em considerações de equidade, refletindo a mudança da posição do legislador quanto a um comportamento ilícito ( 81 ).

159.

Seja qual for o valor exato subjacente ao princípio da lex mitior, é fácil compreender como funciona: a menos que esteja em causa uma situação clara de legislação feita no interesse próprio ou até mesmo uma utilização abusiva do processo legislativo ( 82 ), a lex mitior é, por definição, «uma viagem sem retorno» para um destino mais favorável. Significa que, após a prática do ato, as novas normas penais só poderão ser aplicadas em benefício do arguido. Em cenários extremamente improváveis, isto até poderá ocorrer repetidamente em benefício do arguido. Este entendimento também é compatível com a letra e o espírito do terceiro período do artigo 49.o, n.o 1, da Carta. Porém, considero que o que não é compatível com essa disposição é a reaplicação de uma disposição mais gravosa uma vez desencadeado corretamente o princípio da lex mitior ou a introdução de normas penais mais gravosas e a sua aplicação retroativa. Caso contrário, esse princípio transformar‑se‑ia numa regra instável e reversível, que permitiria alterações constantes das normas penais após a prática do ato.

160.

Por conseguinte, os princípios da lex mitior e da certeza jurídica não se circunscrevem ao momento da ocorrência dos factos. Aplicam‑se ao longo de todo o processo penal ( 83 ).

161.

Com efeito, importa recordar que a aplicação do princípio da lex mitior está, ela mesma, incorporada no princípio mais amplo da certeza jurídica, que exige que as normas jurídicas sejam claras e precisas e que a sua aplicação seja previsível para os cidadãos ( 84 ). Esse princípio visa permitir aos interessados conhecer a extensão das obrigações que lhes são impostas e determinar sem ambiguidade os seus direitos e obrigações e agir em conformidade ( 85 ).

162.

Por conseguinte, o princípio da lex mitior faz parte das normas jurídicas básicas que regulam a aplicação intertemporal de disposições penais aprovadas posteriormente. As exigências de previsibilidade e de certeza jurídica também compreendem, portanto, a sua aplicação como parte da ordem jurídica nacional e da União. Essas exigências, essenciais para o princípio da certeza jurídica, seriam desrespeitadas se, depois de uma lei penal mais favorável ter sido promulgada e se ter tornado aplicável, essa lei não fosse aplicada a fim de ser reaplicada uma lei penal mais gravosa, ainda que esta estivesse em vigor à data da prática dos factos.

163.

Em resumo, entendo que o princípio da lex mitior garantido pelo terceiro período do artigo 49.o, n.o 1, da Carta obsta à reaplicação de regras anteriores mais gravosas respeitantes aos elementos constitutivos de um crime e às penas, caso a legislação nacional, tendo sido regularmente aprovada, tenha gerado uma confiança legítima na esfera pessoal do arguido. Essa garantia pode ser vista como uma dimensão mais ampla do princípio da legalidade, ou como um direito distinto decorrente das exigências de certeza jurídica e de previsibilidade das leis penais.

164.

A preocupação fundamental que lhe está subjacente é clara: as pessoas devem poder confiar nas normas de direito penal regulamente aprovadas ( 86 ) e adaptar o seu comportamento em conformidade. Com efeito, é perfeitamente possível que, baseando‑se nas normas mais favoráveis aprovadas no direito nacional, um arguido ou o seu mandatário tenham tomado certas decisões processuais ou alterado a sua estratégia de modo relevante para o andamento do processo penal.

165.

Não há dúvida de que o direito da União faz parte das ordens jurídicas nacionais. Consequentemente, deve ser tido em conta na apreciação da conformidade. Poder‑se‑ia assim dizer que ignoratia legis europae non excusat. Uma pessoa que não pague os seus impostos não pode gozar de um «direito à impunidade» garantido por legislação nacional incompatível com o direito da União.

166.

Em casos como o presente, considero essa tese discutível a vários níveis. Considerando apenas o nível das implicações práticas, será realmente razoável esperar que as pessoas analisem constantemente a compatibilidade das leis nacionais em vigor com o direito da União e, com base nessa análise, tomem uma decisão quanto à sua responsabilidade penal? Ainda que se entenda que, de facto, é isso mesmo que se deve esperar em casos em que a legislação nacional diz X e uma disposição de direito da União diz claramente o contrário, será isso também de esperar em relação à compatibilidade de disposições nacionais com disposições de direito da União com uma redação algo sucinta, como o artigo 325.o, n.o 1, TFUE, cuja interpretação requer (aliás, repetidamente) a atenção da Grande Secção do Tribunal de Justiça?

3. As implicações do princípio da lex mitior e da certeza jurídica no presente caso

167.

O Tribunal de Justiça já foi confrontado, no processo Berlusconi, com a questão de saber se o princípio da aplicação retroativa da pena mais leve se aplica em casos em que essa pena é contrária a outras normas de direito da União ( 87 ). No entanto, uma vez que esse processo dizia respeito a uma diretiva, a resposta dada baseou‑se no facto de as disposições das diretivas não poderem ser invocadas para criar ou agravar a responsabilidade penal das pessoas ( 88 ).

168.

No presente caso, as disposições pertinentes de direito da União não são apenas a Diretiva IVA lida em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, mas também disposições de direito primário, a saber, o artigo 325.o, n.o 1, TFUE, que «impõem aos Estados‑Membros uma obrigação de resultado precisa, que não está subordinada a nenhuma condição relativa à aplicação da regra que enunciam» ( 89 ). O Tribunal de Justiça sustentou, consequentemente, que o artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE pode ter o efeito de «nas suas relações com o direito interno dos Estados‑Membros, tornar inaplicável de pleno direito, pelo próprio facto da sua entrada em vigor, qualquer disposição contrária da legislação nacional existente» ( 90 ). Porém, esta declaração foi imediatamente seguida de uma ressalva: o órgão jurisdicional nacional deve também garantir que os direitos fundamentais das pessoas em causa sejam respeitados ( 91 ).

169.

O imperativo do respeito dos princípios da legalidade — incluindo a regra da lex mitior — e da certeza jurídica afasta, no meu entender, a possibilidade de anular as disposições penais mais favoráveis no processo principal. Há dois caminhos possíveis para chegar a essa conclusão no presente caso, se necessário.

170.

Primeiro, o instrumento que alterou o limiar de criminalização da falta de pagamento do IVA declarado (e que aditou também uma nova causa de extinção da responsabilidade penal) modificou, no meu entender, os elementos constitutivos de um crime. A fixação de um limiar pecuniário para que exista responsabilidade penal é um elemento objetivo da definição de um crime. Como tal, poder‑se‑ia dizer que esta alteração está abrangida pelo «núcleo» substantivo do princípio da legalidade, lido em conjunto com o princípio da lex mitior.

171.

Segundo, ainda que se considerasse que essa alteração sucessiva não estaria abrangida por uma visão mais restritiva do princípio da legalidade, uma vez que, em rigor, os seus efeitos se estendem para além do momento em que o ato original foi praticado, estaria certamente coberta por uma interpretação mais ampla desse princípio. Ao entrar em vigor, a nova alteração do direito nacional desencadeou a aplicação da regra da lex mitior, que gerou na esfera pessoal do arguido uma confiança legítima de que a nova disposição, mais favorável, lhe seria aplicável.

172.

Impõem‑se mais duas observações finais.

173.

Em primeiro lugar, num caso como este, em última análise é basicamente indiferente que a potencial incompatibilidade das disposições nacionais com o direito da União seja declarada em relação ao direito primário ou ao direito secundário da União. O raciocínio que acabei de expor e os limites do artigo 49.o, n.o 1, da Carta são transversais, sendo a sua aplicação independente da fonte da obrigação ao nível do direito da União.

174.

É certo que o Tribunal de Justiça salientou que «as normas do direito da União diretamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Estados‑Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados‑Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade» ( 92 ).

175.

Porém, ao mesmo tempo, também foi reconhecido que a impossibilidade de invocar certas disposições de direito da União para agravar a responsabilidade penal não se pode restringir, per se, às diretivas. Foram invocadas considerações semelhantes em relação a um regulamento que atribuía aos Estados‑Membros competência para aplicarem sanções em caso de violação das suas disposições, precisamente com o objetivo de respeitar os princípios da certeza jurídica e da proibição da retroatividade, consagrados no artigo 7.o da CEDH ( 93 ).

176.

No meu entender, não se pode automaticamente presumir que as disposições dos Tratados que impõem aos Estados‑Membros uma obrigação precisa e incondicional quanto ao resultado a alcançar, como é o caso do artigo 325.o, n.os 1 e 2, TFUE, satisfazem automaticamente, em todas as situações, a exigência de previsibilidade ditada pelos princípios da legalidade e da certeza jurídica no domínio específico do direito penal ( 94 ).

177.

O princípio da legalidade não pode ser interpretado no sentido de proibir a clarificação gradual das regras da responsabilidade penal. Porém, pode «opor‑se à aplicação retroativa de uma nova interpretação de uma norma que cria uma infração» ( 95 ). O elemento‑chave é, mais uma vez, a previsibilidade da regra específica em questão.

178.

A um nível mais geral, sistemático, tenho dificuldade em compreender por que motivo a jurisprudência sobre a diferença entre as disposições dos Tratados e as diretivas no que respeita à produção de efeitos diretos, que é, ela mesma, produto de uma evolução da jurisprudência do Tribunal de Justiça condicionada por fatores históricos e não uma escolha de princípio baseada em diferenças claramente discerníveis na redação dessas fontes de direito da União, deva ser o fator determinante em casos como o presente. Devem categorias doutrinais do passado que são difíceis de explicar mesmo a um estudante profundamente interessado pelo do direito da União ser realmente determinantes para o (não) estabelecimento da responsabilidade penal em casos que, em geral, não se prendem com questões específicas de efeito direto? Sobretudo num caso como este, em que, para todos os efeitos práticos, o conteúdo de ambos os níveis de obrigações (Tratado e Diretiva IVA) é bastante semelhante, e a sua apreciação é efetivamente realizada em conjunto?

179.

Em segundo lugar, a questão subjacente suscitada no presente caso prende‑se com os efeitos temporais das decisões do Tribunal de Justiça ( 96 ). Como recordou o órgão jurisdicional de reenvio na sua decisão de reenvio, a regra geral da aplicabilidade temporal das decisões do Tribunal de Justiça é essencialmente a da retroatividade incidental: a interpretação das disposições de direito da União pelo Tribunal de Justiça produz efeitos ex tunc, sendo imediatamente aplicável em todos os processos em curso (e, por vezes, até já encerrados ( 97 )) que apliquem a mesma disposição. Porém, essa abordagem tem limites, que, mais uma vez, dizem respeito à mesma questão: a previsibilidade. Quanto mais o Tribunal de Justiça se afastar da letra das disposições interpretadas, mais difícil será talvez sustentar a regra da plena aplicação ex tunc dessas decisões judiciais ( 98 ).

180.

A eventual incompatibilidade das disposições nacionais com o direito da União não acarreta a inexistência dessas disposições ( 99 ). A possibilidade de disposições nacionais que foram posteriormente declaradas incompatíveis com o direito da União produzirem efeitos jurídicos (que, em certas circunstâncias, são suscetíveis de gerar confiança) é demonstrada pelo facto de o Tribunal de Justiça ter, em certas ocasiões, limitado temporalmente os efeitos dos seus acórdãos, a fim de respeitar as exigências do princípio da certeza jurídica. Neste contexto, recorde‑se que o Tribunal de Justiça declarou que «a título excecional e com base em considerações imperiosas de segurança jurídica», o Tribunal de Justiça (e apenas ele) pode «conceder uma suspensão provisória do efeito de exclusão exercido por uma norma de direito da União relativamente ao direito nacional a ela contrário» ( 100 ).

181.

Convém sublinhar que a tese de que, à luz do direito da União, a lex mitior e a exigência de certeza jurídica em matéria penal obstam à não aplicação de disposições mais favoráveis do direito nacional não exigiria uma reapreciação profunda da abordagem, aliás bastante restritiva, à limitação dos efeitos temporais das decisões do Tribunal de Justiça. Limitar‑se‑ia a criar uma exceção de alcance limitado para os processos penais pendentes, sem afetar as consequências normativas gerais da incompatibilidade. As conclusões do Tribunal de Justiça poderiam naturalmente dar origem a ações por incumprimento das obrigações daí decorrentes ( 101 ) e, de qualquer modo, obrigariam à modificação em conformidade da ordem jurídica nacional para o futuro.

V. Conclusão

182.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões colocadas pelo Tribunale di Varese nos seguintes termos:

O conceito de fraude previsto no artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da Convenção PIF não abrange uma infração, como a que está em causa no processo principal, relativa à falta de pagamento de IVA corretamente declarado dentro do prazo estabelecido por lei.

O artigo 4.o, n.o 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 325.o, n.o 1, TFUE e com a Diretiva IVA, não obsta a disposições nacionais que estabeleçam, para efeitos de determinação da punibilidade do comportamento que consiste na falta de pagamento de um imposto dentro do prazo legal, um limiar financeiro mais elevado para o IVA do que para o imposto retido na fonte.

A obrigação de estabelecer sanções efetivas, dissuasoras e proporcionadas para garantir a cobrança exata do IVA, imposta pelo artigo 325.o, n.o 1, TFUE e pelo artigo 4.o, n.o 3, TUE, lidos em conjugação com a Diretiva IVA, não obsta a legislação nacional como a que está em causa no presente caso que, embora preveja um sistema de sanções administrativas, exclui as pessoas singulares responsáveis pelos assuntos fiscais:

da responsabilidade penal e administrativa emergente da falta de pagamento, no prazo estabelecido por lei, do IVA corretamente declarado em relação a montantes correspondentes a três a cinco vezes o limiar mínimo de 50000 euros estabelecido pela Convenção PIF;

da responsabilidade penal, caso a entidade que representam tenha efetuado o pagamento tardio do IVA em dívida, bem como dos juros e dos montantes impostos a título de sanções administrativas, até à abertura da audiência de julgamento.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO L 347, p. 1) (a seguir «Diretiva IVA»).

( 3 ) Convenção estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia (JO 1995 C 316, p. 49) (a seguir «Convenção PIF»).

( 4 ) Regulamento do Conselho de 18 de dezembro de 1995 (JO L 312, p. 1) (a seguir «Regulamento n.o 2988/95»).

( 5 ) Decreto Legislativo n.o 74, de 10 de março de 2000, que estabelece o regime das infrações em matéria de impostos sobre o rendimento e de IVA, em conformidade com o artigo 9.o da Lei n.o 205 de 25 de junho de 1999 (Decreto Legislativo 10 marzo 2000, n.o 74, Nuova disciplina dei reati in materia di imposte sui redditi e sul valore aggiunto, a norma dell’art. 9 della legge 25 giugno 1999, n.o 205 GURI No 76 31 marzo 2000) (a seguir «Decreto Legislativo n.o 74/2000»).

( 6 ) Decreto Legislativo n.o 158 de 24 de setembro de 2015, que revê o regime sancionatório, em aplicação do artigo 8.o, n.o 1, da Lei n.o 23 de 11 de março de 2004 (Decreto Legislativo 24 settembre 2015, n.o 158, Revisione del sistema sanzionatorio, in attuazione dell’articolo 8, comma 1, della legge 11 marzo 2014, n.o 23 (GURI n.o 233 de 7 de outubro de 2015 — Suplemento ordinário n.o 55) (a seguir «Decreto Legislativo n.o 158/2015»).

( 7 ) Decreto Legislativo 18 dicembre 1997, n.o 471, Riforma delle sanzioni tributarie non penali in materia di imposte dirette, di imposta sul valore aggiunto e di riscossione dei tributi, a norma dell’articolo 3, comma 133, lettera q), della legge 23 dicembre 1996, n.o 662 [Decreto Legislativo de 18 de dezembro de 1997, que aprova a reforma das sanções tributárias não penais relativas a impostos diretos, ao imposto sobre o valor acrescentado e à receita tributária, nos termos do artigo 3.o, n.o 133, alínea q), da Lei n.o 662, de 23 de dezembro de 1996] (GURI n.o 5 de 8 de janeiro de 1998 — Suplemento ordinário n.o 4).

( 8 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 41).

( 9 ) Celebrada em 23 de maio de 1969, United Nations Treaty Series, vol. 1155, p. 331. O Governo neerlandês alega que um tratado deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos seus termos no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim; o contexto também deverá ser tido em consideração, bem como, entre outros, qualquer acordo entre as partes sobre a aplicação das suas disposições [artigo 31.o, n.o 3, alínea a), da Convenção de Viena]. Refere igualmente o artigo 31.o, n.o 4, da Convenção de Viena, segundo o qual um termo será entendido num sentido particular se for estabelecido que era essa a intenção das partes.

( 10 ) Relatório explicativo da Convenção relativa à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (Texto aprovado pelo Conselho em 26 de maio de 1997) (JO 1997 C 191, p. 1).

( 11 ) De acordo com o ponto 1, n.o 1, desse relatório, «[p]or receitas entende‑se as receitas provenientes das duas primeiras categorias de recursos próprios previstos no n.o 1 do artigo 2.o da Decisão 94/728/CE do Conselho, de 31 de outubro de 1994, relativa ao sistema de recursos próprios das Comunidades Europeias […]. Não são abrangidas as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à matéria coletável do IVA dos Estados‑Membros, dado que o IVA não é um recurso próprio cobrado diretamente por conta das Comunidades. Também não são abrangidas as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à soma dos PNB dos Estados‑Membros».

( 12 ) O Tribunal de Justiça já declarou que, embora a Convenção de Viena não vincule nem a União Europeia nem todos os seus Estados‑Membros, reflete as regras de direito consuetudinário internacional que, enquanto tais, vinculam as instituições da UE e integram a ordem jurídica da União Europeia — v., por exemplo, acórdão de 25 de fevereiro de 2010, Brita (C‑386/08, EU:C:2010:91, n.os 42 e 43 e jurisprudência aí referida) ou, para uma confirmação mais recente, acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Front Polisario (C‑104/16 P, EU:C:2016:973, n.o 86). Para um estudo geral, v., por ex., P. J. Kuijper, «The European Courts and the Law of Treaties: The Continuing Story», in E. Cannizzaro (E.) The Law of Treaties Beyond the Vienna Convention, OUP, 2011, p. 256 a 278. No entanto, as referências do Tribunal de Justiça à Convenção de Viena foram feitas sobretudo no contexto dos tratados com Estados terceiros. O Tribunal de Justiça também declarou que as normas contidas na Convenção de Viena são aplicáveis a um acordo concluído entre os Estados‑Membros e uma organização internacional (acórdão de 11 de março de 2015, Oberto e O’Leary, C‑464/13 e C‑465/13, EU:C:2015:163, n.o 36). Tanto quanto sei, a Convenção de Viena só foi invocada uma vez no quadro de uma convenção entre Estados‑Membros celebrada com base no ex‑artigo 220.o CEE, no acórdão de 27 de fevereiro de 2002, Weber (C‑37/00, EU:C:2002:122, n.o 29) no contexto da aplicação territorial da Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186).

( 13 ) Na ordem jurídica da União, esse papel é, apesar de tudo, muito diferente de quaisquer formas de interpretação autêntica vinculativa na aceção dos artigos 31.°, n.o 2, e 31.°, n.o 3, alíneas a) e b), da Convenção de Viena [para uma análise dessas disposições, v., por ex., M. E. Villinger, Commentary on the 1969 Vienna Convention on the Law of Treaties (Leiden: Martinus Nijhoff, 2009) p. 429 a 432].

( 14 ) V., por exemplo acórdãos de 27 de novembro de 2012, Pringle (C‑370/12, EU:C:2012:756, n.o 135), e de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.o 59).

( 15 ) V., por exemplo, acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann (C‑135/08, EU:C:2010:104, n.o 40).

( 16 ) V., em especial, as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007 C 303, p. 17), inicialmente elaboradas sob a responsabilidade do Praesidium da Convenção que redigiu a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

( 17 ) Por uma questão de exaustividade, poder‑se‑ia acrescentar que o mesmo seria aplicável a um potencial argumento baseado nos artigos 31.°, n.o 3, alínea a), ou 31.°, n.o 4, da Convenção de Viena, avançado pelo Governo neerlandês (supra, nota 9).

( 18 ) A Convenção PIF foi adotada com base no artigo K.3, n.o 2, alínea c), TUE (na versão de Maastricht), segundo o qual o Conselho podia elaborar convenções e recomendar a sua adoção pelos Estados‑Membros nos termos das respetivas normas constitucionais.

( 19 ) V., por exemplo, acórdãos de 26 de maio de 1981, Rinkau (157/80, EU:C:1981:120, n.o 8); de 17 de junho de 1999, Unibank (C‑260/97, EU:C:1999:312, n.os 16 e 17); de 11 de julho de 2002, Gabriel (C‑96/00, EU:C:2002:436, n.o 41 e segs.); e de 15 de março de 2011, Koelzsch (C‑29/10, EU:C:2011:151, n.o 40).

( 20 ) O Tribunal de Justiça também invocou relatórios explicativos de convenções adotadas com base nessa disposição (algumas das quais nunca entraram em vigor) que serviram como fonte de inspiração para atos posteriores de direito secundário. V., por ex., acórdãos de 8 de maio de 2008, Weiss und Partner (C‑14/07, EU:C:2008:264, n.o 53); de 1 de dezembro de 2008, Leymann e Pustovarov (C‑388/08 PPU, EU:C:2008:669, n.o 74); de 15 de julho de 2010, Purrucker (C‑256/09, EU:C:2010:437, n.o 84 e segs.); de 11 de novembro de 2015, Tecom Mican e Arias Domínguez (C‑223/14, EU:C:2015:744, n.os 40 e 41); e de 25 de janeiro de 2017, Vilkas (C‑640/15, EU:C:2017:39, n.o 50).

( 21 ) Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:293, n.os 99 a 102).

( 22 ) Decisão do Conselho de 21 de abril de 1970 relativa à substituição das contribuições financeiras dos Estados‑Membros por recursos próprios das Comunidades (JO L 94, p. 19). V., quanto à disposição atualmente em vigor, artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Decisão do Conselho de 26 de maio de 2014 relativa ao sistema de recursos próprios da União Europeia (JO L 168 p. 105). Estima‑se que, em 2015, as receitas provenientes de «recursos próprios tradicionais» correspondiam a 12,8% e as provenientes do IVA a 12,4% dos recursos próprios totais. V. Comissão Europeia, Integrated Financial Reporting Package, 2015.

( 23 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 41). É o caso do artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2988/95, que se refere a «receitas provenientes de recursos próprios cobradas diretamente por conta das Comunidades».

( 24 ) Artigo 5.o, n.o 3, da Convenção PIF.

( 25 ) Protocolo da Convenção relativa à Proteção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias, elaborado com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia (JO 1996 C 313, p. 2) e Segundo Protocolo da Convenção relativa à Proteção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias, elaborado com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia (JO 1997 C 221, p. 12).

( 26 ) Acórdãos de 10 de julho de 2003, Comissão/BCE (C‑11/00, EU:C:2003:395, n.o 89), e de 10 de julho de 2003, Comissão/BEI (C‑15/00, EU:C:2003:396, n.o 120).

( 27 ) V. acórdãos de 15 de novembro de 2011, Comissão/Alemanha (C‑539/09, EU:C:2011:733, n.o 72); de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 26); de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 38); de 7 de abril de 2016, Degano Trasporti (C‑546/14, EU:C:2016:206, n.o 22); e de 16 de março de 2017, Identi (C‑493/15, EU:C:2017:219, n.o 19).

( 28 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 27).

( 29 ) V., nesse sentido, acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 39).

( 30 ) V. acórdão de 5 de abril de 2017, Orsi e Baldetti (C‑217/15 e C‑350/15, EU:C:2017:264, n.o 16).

( 31 ) O artigo 209.o‑A TCE (Maastricht) continha apenas os atuais n.os 2 e 3. O Tratado de Amesterdão aditou o atual n.o 1 ao ex‑artigo 280.o TCE, bem como o n.o 4 que contém a base jurídica da adoção de medidas comunitárias, dispondo, porém, que «[e]stas medidas não dirão respeito à aplicação do direito penal nacional, nem à administração da justiça nos Estados‑Membros». O Tratado de Lisboa suprimiu essa restrição. Para a evolução do texto dessa disposição ao longo das sucessivas versões do Tratado antes do Tratado de Lisboa, v. conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Comissão/BCE (C‑11/00, EU:C:2002:556).

( 32 ) V., sobre o conceito amplo de «fraude» na aceção do artigo 325.o TFUE, por exemplo: C. Waldhoff, «AEUV Art. 325 (ex‑Art. 280 EGV) [Bekämpfung von Betrug zum Nachteil der Union]»in C. Calliess e Ruffert, EUV/AEUV Kommentar (5.a ed., Munique, C.H. Beck, 2016) Rn.4; Magiera «Art. 325 AEUV Betrugsbekämpfung»in E. Grabitz, M. Hilf, M. Nettesheim, Das Recht der Europäischen Union (C.H. Bech, Munique, 2016) n.os 15 e segs.; Satzger «AEUV Art. 325 (ex‑Art. 280 EGV) [Betrugsbekämpfung]»in Streinz, EUV/AEUV (CH.Beck, Munique 2012) Rn 6; H. Spitzer e U. Stiegel, «AEUV Artikel 325 (ex‑Artikel 280 EGV) [Schutz der finanziellen Interessen der Union]»in von der Groeben/Schwarze/Hatje, Europäisches Unionsrecht (Nomos, Baden‑Baden, 2015) n.os 12 e segs.

( 33 ) V. por ex., relativamente às dificuldades suscitadas pela definição de «fraude», «Incompatibilités entre systèmes juridiques et mesures d’harmonisation: Rapport final du groupe d’experts chargé d’une étude comparative sur la protection des intérêts financiers de la Communauté», M. Delmas‑Marty, in Seminar on the Legal Protection of the Financial Interests of the Community, Brussels, November 1993, Oak Tree Press, Dublim, 1994. V., também, para uma visão geral, Study on the legal framework for the protection of EU financial interests by criminal law RS 2011/07, Relatório final, 4 de maio de 2012.

( 34 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 41).

( 35 ) V., por ex., a definição constante da proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros da União através do direito penal, COM (2012) 363 final. A base jurídica original da proposta era o artigo 325.o, n.o 4, TFUE. A base jurídica foi alterada para o artigo 83.o, n.o 2, TFUE na negociação da proposta (Posição do Conselho em primeira leitura, Documento 6182/17 de 5 de abril de 2017).

( 36 ) V., nesse sentido, acórdãos de 27 de setembro de 2007, Collée (C‑146/05, EU:C:2007:549, n.o 39); de 8 de maio de 2008, Ecotrade SpA (C‑95/07 e C‑96/07, EU:C:2008:267, n.o 71); e de 17 de julho de 2014, Equoland (C‑272/13, EU:C:2014:2091, n.o 39).

( 37 ) V., nesse sentido, acórdãos de 12 de julho de 2012, EMS‑Bulgaria Transport (C‑284/11, EU:C:2012:458, n.o 74), e de 20 de junho de 2013, Rodopi‑M 91 (C‑259/12, EU:C:2013:414, n.o 42).

( 38 ) Supra, nota 31.

( 39 ) Acórdão de 21 de setembro de 1989, Comissão/Grécia (68/88, EU:C:1989:339, n.os 24 e 25). V., confirmando esta sobreposição substantiva, acórdão de 8 de julho de 1999, Nunes e de Matos (C‑186/98, EU:C:1999:376, n.o 13), referindo‑se ao artigo 5.o CE e ao artigo 209.o‑A, n.o 1, CE.

( 40 ) V., por exemplo, acórdão de 29 de março de 2012, Pfeifer & Langen (C‑564/10, EU:C:2012:190, n.o 52) em relação ao artigo 325.o TFUE, no contexto de medidas de cobrança de juros quando da recuperação de benefícios indevidamente recebidos do orçamento da União Europeia.

( 41 ) V., nesse sentido, acórdão de 28 de outubro de 2010, SGS Belgium e o. (C‑367/09, EU:C:2010:648, n.os 40 e 42).

( 42 ) V., nesse sentido, acórdão de 28 de outubro de 2010, SGS Belgium e o. (C‑367/09, EU:C:2010:648, n.o 41).

( 43 ) V., por exemplo, acórdãos de 21 de setembro de 1989, Comissão/Grécia (68/88, EU:C:1989:339, n.o 24), e de 3 de maio de 2005, Berlusconi e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, EU:C:2005:270, n.o 65 e jurisprudência aí referida).

( 44 ) V. acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10EU:C:2013:105, n.o 25); de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 36); e de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C‑419/14EU:C:2015:832, n.o 41).

( 45 ) V., nesse sentido, acórdão de 7 de abril de 2016, Degano Trasporti (C‑546/14, EU:C:2016:206, n.o 19 e jurisprudência aí referida).

( 46 ) V., por exemplo, acórdão Comissão/Itália (C‑132/06EU:C:2008:412, n.o 37).

( 47 ) V., nesse sentido, acórdãos de 12 de julho de 2012, EMS‑Bulgaria Transport (C‑284/11, EU:C:2012:458, n.o 69), de 20 de junho de 2013, Rodopi‑M 91 (C‑259/12, EU:C:2013:414, n.os 38 e segs.); e de 17 de julho de 2014, Equoland (C‑272/13, EU:C:2014:2091, n.o 46).

( 48 ) Supra, n.o 77 das presentes conclusões.

( 49 ) V. acórdãos de 21 de setembro de 1989, Comissão/Grécia, 68/88, EU:C:1989:339, n.os 24 e 25, e de 8 de julho de 1999, Nunes e de Matos (C‑186/98, EU:C:1999:376, n.os 10 e 11).

( 50 ) Para uma abordagem semelhante, v., também, M. Delmas‑Marty, «Incompatibilités entre systèmes juridiques et mesures d’harmonisation», op. cit., p. 97; C. Waldhoff, «AEUV Art. 325 (ex‑Art. 280 EGV) [Bekämpfung von Betrug zum Nachteil der Union]»in C. Calliess e Ruffert, EUV/AEUV Kommentar (5.a ed., Munique, C.H. Beck, 2016) Rn. 10; H. Spitzer e U. Stiegel, «AEUV Artikel 325 (ex‑Artikel 280 EGV) [Schutz der finanziellen Interessen der Union]»in von der Groeben/Schwarze/Hatje, Europäisches Unionsrecht (Nomos, Baden‑Baden, 2015) Rn. 44.

( 51 ) A menos que, obviamente, um dia, a apreciação da equiparação (ou da equivalência) deixasse de ser efetuada internamente (no seio de um Estado‑Membro), passando a sê‑lo externamente (comparando as abordagens adotadas nos Estados‑Membros). Pragmaticamente, se assistirmos a uma harmonização crescente dos regimes jurídicos nacionais, que levaria, na prática, ao desaparecimento de elementos de comparação nacionais adequados, é possível que, um dia, seja necessário efetuar essa alteração legislativa. Sistematicamente, essa forma de apreciar o caráter adequado dos procedimentos ou das vias de recurso talvez fomente melhor a ideia de semelhança que deveria presidir à aplicação do direito da União a nível nacional, ao invés de um critério que efetivamente destaca potenciais divergências.

( 52 ) É nesse contexto específico que entendo a declaração do Tribunal Constitucional italiano de que existe uma falta de comparabilidade dos artigos 10.° bis e 10.° ter do Decreto Legislativo em causa no presente caso. V. acórdão do Tribunal Constitucional italiano de 12 de maio de 2015, 100/2015 (IT:COST:2015:100). Em termos mais gerais, os impostos diretos e indiretos também foram considerados incomparáveis pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, mas, mais uma vez, num contexto diferente (também no domínio do IVA, mas num processo relacionado com o direito do contribuinte ao reembolso, não em relação à imposição de sanções pelos Estados‑Membros). V. acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C‑35/05, EU:C:2007:167, n.os 44 e 45).

( 53 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 48). Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça declarou no seu acórdão de 29 de março de 2012, Pfeifer & Langen (C‑564/10, EU:C:2012:190, n.o 52) que os Estados‑Membros são obrigados, nos termos do artigo 325.o TFUE e na falta de regulamentação específica da União, «sempre que o seu direito nacional preveja a cobrança de juros no quadro da recuperação de benefícios do mesmo tipo indevidamente recebidos do seu orçamento nacional, [a] proceder à cobrança, de maneira análoga, dos juros quando da recuperação de benefícios indevidamente recebidos do orçamento da União».

( 54 ) V., sobre a relevância da dificuldade de detetar uma infração, acórdão de 25 de fevereiro de 1988, Drexl (299/86, EU:C:1988:103, n.os 22 e 23).

( 55 ) V., supra, n.os 52 a 84 das presentes conclusões.

( 56 ) Acórdãos de 17 de julho de 2008, Comissão/Itália (C‑132/06, n.o 37); de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 25); e de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 36).

( 57 ) Acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 26), e de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 37).

( 58 ) V., também, n.os 77 e 83 supra.

( 59 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 39). V., também, conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Comissão/Conselho (C‑176/03, EU:C:2005:311, n.o 43).

( 60 ) Acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 34), e de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 39).

( 61 ) Importa referir que, de uma perspetiva comparativa, nem todos os Estados‑Membros contemplam sanções penais para comportamentos relacionados com a falta de pagamento do IVA dentro do prazo legal. Afigura‑se existir uma disparidade considerável nesse domínio.

( 62 ) Acrescente‑se que a questão conexa do princípio ne bis in idem é o objeto do processo Menci, ainda pendente. Em virtude da importância das questões suscitadas pelo acórdão do TEDH de 15 de novembro de 2016, A e B c. Noruega (CE:ECHR:2016:1115JUD002413011, Grande Secção) relativamente à interpretação do artigo 50.o da Carta, o processo foi atribuído à Grande Secção e a fase oral do processo foi reaberta. V. despacho do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 25 de janeiro de 2017, Menci (C‑524/15, não publicado, EU:C:2017:64).

( 63 ) V. explicação do artigo 8.o (que altera o artigo 10.o ter do Decreto Legislativo n.o 74/2000) na exposição de motivos que acompanha o projeto de decreto legislativo (Schema di Decreto Legislativo concernente la revisione del sistema sanzionatorio), de 26 de junho de 2015.

( 64 ) V. ibid, explicação do artigo 11.o (que altera o artigo 13.o do Decreto Legislativo n.o 74/2000).

( 65 ) Esse é talvez também o motivo pelo qual encontramos nas ordens jurídicas de alguns Estados‑Membros regras sobre a extinção da instância em processos penais instaurados por falta de pagamento de impostos ou contribuições para a segurança social, caso a dívida seja integralmente satisfeita até ao início da audiência de julgamento.

( 66 ) Acórdão de 20 de junho de 2013, Rodopi‑M 91 (C‑259/12, EU:C:2013:414, n.o 40).

( 67 ) No que respeita a violações de obrigações formais, v. acórdão de 17 de julho de 2014Equoland (C‑272/13, EU:C:2014:2091, n.o 46 e jurisprudência aí referida).

( 68 ) V., por exemplo, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal (106/77, EU:C:1978:49, n.o 17), e de 14 de junho de 2012, ANAFE (C‑606/10, EU:C:2012:348, n.o 73 e jurisprudência aí referida).

( 69 ) V., nesse sentido, acórdão de 29 de março de 2012, Belvedere Costruzioni (C‑500/10, EU:C:2012:186, n.o 23).

( 70 ) Antes da entrada em vigor da Carta, o princípio de que as disposições penais não têm efeito retroativo também era considerado um dos princípios gerais de direito, cuja observância é garantida pelo Tribunal de Justiça. V., por exemplo, acórdãos de 10 de julho de 1984, Kirk (63/83, EU:C:1984:255, n.o 22); de 13 de novembro de 1990, Fédesa e o. (C‑331/88, EU:C:1990:391, n.o 42); de 7 de janeiro de 2004, X (C‑60/02, EU:C:2004:10, n.o 63); de 15 de julho de 2004, Gerekens e Procola (C‑459/02, EU:C:2004:454, n.o 35); e de 29 de junho de 2010, E e F (C‑550/09, EU:C:2010:382, n.o 59).

( 71 ) V., nesse sentido, acórdãos de 3 de junho de 2008, Intertanko e o. (C‑308/06, EU:C:2008:312, n.o 70), e de 28 de março de 2017, Rosneft (C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 162).

( 72 ) V., por exemplo, acórdãos de 3 de maio de 2007, Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, EU:C:2007:261, n.o 50); de 31 de março de 2011, Aurubis Balgaria (C‑546/09, EU:C:2011:199, n.o 42); e de 28 de março de 2017, Rosneft (C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 162).

( 73 ) V., acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft (C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 167 e jurisprudência aí referida).

( 74 ) V., por exemplo, acórdãos de 7 de janeiro de 2004, X (C‑60/02, EU:C:2004:10, n.o 63), e de 28 de junho de 2012, Caronna (C‑7/11, EU:C:2012:396, n.o 55).

( 75 ) V. acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 21 de outubro de 2013, Del Río Prada c. Espanha [GS] (CE:ECHR:2013:1021JUD004275009, § 85 et seq., referindo‑se, entre outros, ao acórdão de 12 de fevereiro de 2008, Kafkaris c. Chipre [GS] CE:ECHR:2008:0212JUD002190604, § 142).

( 76 ) V. acórdãos de 3 de maio de 2005, Berlusconi e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, EU:C:2005:270, n.o 68); de 8 de março de 2007, Campina (C‑45/06, EU:C:2007:154, n.o 32); de 11 de março de 2008, Jager (C‑420/06, EU:C:2008:152, n.o 59); de 4 de junho de 2009, Mickelsson e Roos (C‑142/05, EU:C:2009:336, n.o 43).

( 77 ) Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Grande Secção) de 17 de setembro de 2009, Scoppola c. Itália (n.o 2) (CE:ECHR:2009:0917JUD001024903, §§ 105 a 109).

( 78 ) V. acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Grande Secção) de 17 de setembro de 2009, Scoppola c. Itália (n.o 2) (CE:ECHR:2009:0917JUD001024903, § 109), e de 18 de março de 2014, Öcalan c. Turquia (n.o 2) (CE:ECHR:2014:0318JUD002406903, § 175). V. acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 12 de janeiro de 2016, Gouarré Patte c. Andorra (CE:ECHR:2016:0112JUD003342710, § 28); de 21 de julho de 2016, Ruban c. Ucrânia (CE:ECHR:2016:0712JUD000892711, § 37); e de 24 de janeiro de 2017, Koprivnikar c. Eslovénia (CE:ECHR:2017:0124JUD006750313, § 49).

( 79 ) Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Grande Secção) de 17 de setembro de 2009, Scoppola c. Itália (n.o 2) (CE:ECHR:2009:0917JUD001024903, § 108).

( 80 ) Acórdão de 6 de outubro de 2016, Paoletti e o. (C‑218/15, EU:C:2016:748, n.o 27).

( 81 ) V., em especial, declaração de voto parcialmente vencido do juiz Nicolaou, subscrita pelos juízes Bratza, Lorenzen, Jočienė, Villiger e Sajó, no processo Scoppola (nota 77), bem como a declaração de voto vencido do juiz Sajó no acórdão do TEDH de 24 de janeiro de 2017, Koprivnikar c. Eslovénia (CE:ECHR:2017:0124JUD006750313). Porém, foi adotada uma visão mais ampla do princípio na declaração de voto concordante do juiz Pinto de Albuquerque, subscrita pelo juiz Vučinić, no acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Grande Secção) de 18 de julho de 2013, Maktouf e Damjanović c. Bósnia e Herzegovina (CE:ECHR:2013:0718JUD000231208).

( 82 ) Assim, por exemplo, a apropriação do processo legislativo e a adoção de regras feitas no interesse próprio de certas pessoas não constituiria uma aplicação correta do princípio da lex mitior. Essas pessoas não poderiam ter agido de boa‑fé e, consequentemente, não haveria uma confiança legítima a proteger. Em contrapartida, no que respeita aos destinatários «normais» da legislação, existe uma correlação entre a aplicabilidade do princípio da lex mitior e a segurança jurídica e a previsibilidade da lei.

( 83 ) Mais uma vez, importa salientar que o TEDH considerou, no âmbito da sua análise do artigo 7.o, n.o 1, da CEDH, que não é só a formulação de uma pena à data da prática das infrações que é relevante, mas também, em certos casos, a data em que a pena foi fixada e notificada. Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 21 de outubro de 2013, Del Río Prada c. Espanha (CE:ECHR:2013:1021JUD004275009, §§ 112 e 117), referindo‑se ao facto de que a demandante não poderia ter previsto as alterações na jurisprudência (correspondentes ao aumento da duração da pena de prisão) à data da sua condenação nem à data da notificação da decisão de cumular as penas que lhe tinham sido impostas e de fixar uma duração máxima.

( 84 ) V., por exemplo, acórdão de 13 de outubro de 2016, Polkomtel (C‑231/15, EU:C:2016:769, n.o 29 e jurisprudência aí referida).

( 85 ) V., por exemplo, acórdãos de 9 de março de 2017, Doux (C‑141/15, EU:C:2017:188, n.o 22 e jurisprudência aí referida), e de 28 de março de 2017, Rosneft (C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 161).

( 86 ) Ao contrário do processo ANAFE, o presente caso não diz respeito a uma instrução administrativa, mas sim ao direito penal. V. acórdão de 14 de junho de 2012, ANAFE (C‑606/10, EU:C:2012:348, n.os 70 e segs.), em que o Tribunal de Justiça rejeitou a possibilidade de invocar a confiança legítima dos titulares de vistos de regresso emitidos pela Administração francesa em violação do Código de Schengen.

( 87 ) V. acórdão de 3 de maio de 2005, Berlusconi e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, EU:C:2005:270, n.o 70).

( 88 ) V., por exemplo, acórdãos de 11 de junho de 1987, X (14/86, EU:C:1987:275, n.o 20); de 8 de outubro de 1987, Kolpinghuis Nijmegen (80/86, EU:C:1987:431, n.o 13); de 26 de setembro de 1996, Arcaro (C‑168/95, EU:C:1996:363, n.o 37); de 12 de dezembro de 1996, X (C‑74/95 e C‑129/95, EU:C:1996:491, n.o 24); de 7 de janeiro de 2004, X (C‑60/02, EU:C:2004:10, n.o 61); e de 3 de maio de 2005, Berlusconi e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, EU:C:2005:270, n.o 74); ou de 22 de novembro de 2005, Grøngaard e Bang (C‑384/02, EU:C:2005:708, n.o 30). V., também, no que respeita a decisões‑quadro, acórdãos de 16 de junho de 2005, Pupino (C‑105/03, EU:C:2005:386, n.o 45), e de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 64).

( 89 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 51).

( 90 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 52).

( 91 ) Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 53).

( 92 ) V. acórdão de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 54, e jurisprudência aí referida).

( 93 ) V. acórdão de 7 de janeiro de 2004, X (C‑60/02, EU:C:2004:10, n.os 62 e 63).

( 94 ) No entanto, poderão existir disposições dos Tratados que definam claramente «as infrações assim como a natureza e a importância das sanções», cumprindo assim as exigências do artigo 49.o, n.o 1, da Carta. V. acórdão de 29 de março de 2011, ThyssenKrupp Nirosta/Comissão (C‑352/09 P, EU:C:2011:191, n.o 82 e segs.), em que o Tribunal de Justiça declarou que «à época dos factos, o artigo 65.o, n.os 1 e 5, [do Tratado que institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço] previa uma base legal clara para a sanção aplicada no caso em apreço, pelo que a recorrente não podia ignorar as consequências do seu comportamento».

( 95 ) V., por exemplo, acórdãos de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão (C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.o 217); ou de 10 de julho de 2014, Telefónica e Telefónica de España/Comissão (C‑295/12 P, EU:C:2014:2062, n.o 147).

( 96 ) V., em geral, sobre os limites das decisões prejudiciais, D. Düsterhaus, «Eppur Si Muove! The Past, Present and (possible) Future of Temporal Limitations in the Preliminary Ruling Procedure», Yearbook of European Law, vol. 35, 2016, p. 1 a 38).

( 97 ) V., nesse sentido, acórdãos de 13 de janeiro de 2004, Kühne & Heitz (C‑453/00, EU:C:2004:17, n.o 28), ou de 18 de julho de 2007, Lucchini (C‑119/05, EU:C:2007:434, n.o 63).

( 98 ) Acrescente‑se que este problema não é certamente novo e não se restringe certamente à ordem jurídica da União. Para uma perspetiva comparativa, v., por exemplo, E. Steiner, Comparing the Prospective Effect of Judicial Rulings Across Jurisdictions, Springer, 2015 ou P. Popelier et al. (EE.), The Effects of Judicial Decisions in Time, Intersentia 2014.

( 99 ) V., nesse sentido, acórdãos de 22 de outubro de 1998, IN. CO. GE.’90 e o. (C‑10/97 a C‑22/97, EU:C:1998:498, n.o 21), e de 19 de novembro de 2009, Filipiak (C‑314/08, EU:C:2009:719, n.o 83).

( 100 ) V. acórdão de 28 de julho de 2016, Association France Nature Environnement (C‑379/15, EU:C:2016:603, n.o 33), referindo o acórdão de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 67).

( 101 ) V., por exemplo, acórdãos de 21 de setembro de 1989, Comissão/Grécia (68/88, EU:C:1989:339, n.o 24); de 18 de outubro de 2001, Comissão/Irlanda (C‑354/99, EU:C:2001:550, n.os 46 a 48); e de 17 de julho de 2008, Comissão/Itália (C‑132/06, EU:C:2008:412, n.o 52).