CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 26 de julho de 2017 ( 1 )

Processo C‑518/15

Ville de Nivelles

contra

Rudy Matzak

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour du travail de Bruxelles (Tribunal Superior do Trabalho, Bruxelas, Bélgica)]

«Pedido de decisão prejudicial — Proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores — Organização do tempo de trabalho — Conceitos de tempo de trabalho e de períodos de descanso — Bombeiros — Tempo de prevenção — Período de disponibilidade»

1. 

Através do presente pedido de decisão prejudicial, são solicitadas ao Tribunal de Justiça orientações sobre a interpretação da Diretiva 2003/88/CE, relativa ao tempo de trabalho ( 2 ), aplicável a um bombeiro em prevenção ( 3 ), que é obrigado, num sistema rotativo, a permanecer em situação de disponibilidade ( 4 ) num raio específico (expresso em tempo) de distância do seu local de trabalho. O Tribunal de Justiça é também chamado a pronunciar‑se sobre (i) a possibilidade de excluir determinadas categorias de bombeiros da aplicação daquela diretiva; (ii) a questão de saber se os Estados‑Membros são livres de adotar uma definição de «tempo de trabalho» menos restritiva do que a estabelecida na diretiva; e (iii) a questão de saber se a interpretação do conceito de «tempo de trabalho» definido pela diretiva também se aplica à determinação da remuneração no caso de pessoas obrigadas a permanecer em situação de disponibilidade.

Quadro jurídico

Direito da União

2.

De acordo com o artigo 153.o TFUE:

«1.   A fim de realizar os objetivos enunciados no artigo 151.o, a União apoiará e completará a ação dos Estados‑Membros nos seguintes domínios:

a)

Melhoria, principalmente, do ambiente de trabalho, a fim de proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores;

b)

Condições de trabalho;

c)

Segurança social e proteção social dos trabalhadores;

[…]

2.   Para o efeito, o Parlamento Europeu e o Conselho podem:

[…]

b)

Adotar, nos domínios referidos nas alíneas a) a i) do n.o 1, por meio de diretivas, prescrições mínimas progressivamente aplicáveis, tendo em conta as condições e as regulamentações técnicas existentes em cada um dos Estados‑Membros. […]

[…]

5.   O disposto no presente artigo não é aplicável às remunerações […]»

3.

O artigo 1.o da Diretiva 2003/88 dispõe o seguinte:

«1.   A presente diretiva estabelece prescrições mínimas de segurança e de saúde em matéria de organização do tempo de trabalho.

2.   A presente diretiva aplica‑se:

a)

Aos períodos mínimos de descanso diário, semanal e anual, bem como aos períodos de pausa e à duração máxima do trabalho semanal; e

b)

A certos aspetos do trabalho noturno, do trabalho por turnos e do ritmo de trabalho.

3.   A presente diretiva é aplicável a todos os setores de atividade, privados e públicos, na aceção do artigo 2.o da [Diretiva 89/391/CEE do Conselho, de 12 de junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho (JO 1989, L 183, p. 1)], sem prejuízo do disposto nos artigos 14.o, 17.o, 18.o e 19.o da presente diretiva.

[…]»

4.

O artigo 2.o da Diretiva 2003/88 estabelece o seguinte:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva, entende‑se por:

1.

Tempo de trabalho: qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal e no exercício da sua atividade ou das suas funções, de acordo com a legislação e/ou a prática nacional.

2.

Período de descanso: qualquer período que não seja tempo de trabalho.

[…]»

5.

De acordo com o artigo 15.o da diretiva:

«A presente diretiva não impede os Estados‑Membros de aplicarem ou introduzirem disposições legislativas, regulamentares ou administrativas mais favoráveis à proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores, ou de promoverem ou permitirem a aplicação de convenções coletivas ou acordos celebrados entre parceiros sociais mais favoráveis à proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores.»

6.

Segundo os n.os 2 e 3 do artigo 17.o da Diretiva 2003/88:

«2.   As derrogações previstas nos n.os 3, 4 e 5 podem ser estabelecidas por via legislativa, regulamentar ou administrativa, ou ainda por via de convenções coletivas ou de acordos celebrados entre parceiros sociais, desde que sejam concedidos aos trabalhadores em causa períodos equivalentes de descanso compensatório ou que, nos casos excecionais em que não seja possível, por razões objetivas, a concessão de períodos equivalentes de descanso compensatório, seja concedida aos trabalhadores em causa uma proteção adequada.

3.   Nos termos do n.o 2 do presente artigo, são permitidas derrogações aos artigos 3.o, 4.o, 5.o, 8.o e 16.o:

[…]

(c)

No caso de atividades caracterizadas pela necessidade de assegurar a continuidade do serviço ou da produção, nomeadamente quando se trate:

[…]

iii)

de serviços de imprensa, rádio, televisão, produção cinematográfica, correios ou telecomunicações, ambulância, sapadores‑bombeiros ou proteção civil,

[…]»

Direito belga

7.

A Loi du 14 décembre 2000 fixant certains aspects de l’aménagement du temps de travail dans le secteur public (Lei de 14 de dezembro de 2000, que estabelece determinados aspetos da organização do tempo de trabalho no setor público; a seguir «Lei de 14 de dezembro de 2000») transpôs a Diretiva 93/104 relativa à organização do tempo de trabalho ( 5 ) para o direito nacional. O artigo 3.o dessa lei define «trabalhadores» como «pessoas que, nos termos de uma relação legal ou contratual […] prestam trabalho sob a direção de outra pessoa». O artigo 8.o estabelece, inter alia, que «tempo de trabalho» significa o período durante o qual o trabalhador se encontra à disposição da entidade patronal.

8.

O artigo 186.o da Loi du 30 décembre 2009 portant sur diverses dispositions (Lei de 30 de dezembro de 2009, que contém disposições diversas) estabelece, inter alia, que os bombeiros em prevenção não devem ser definidos como «trabalhadores» para efeitos do artigo 3.o da Lei de 14 de dezembro de 2000.

9.

O artigo 9.o‑A do règlement organique du service d’incendie de Nivelles (Regulamento aplicável ao serviço de incêndio de Nivelles) estabelece o seguinte:

«Durante o período de disponibilidade, todos os membros do pessoal voluntário que exercem funções no quartel de Nivelles devem:

permanecer sempre a uma distância do quartel que permita que o período necessário para chegar a esse local, em condições normais de trânsito, não exceda um máximo de oito minutos;

[…]»

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

10.

Rudy Matzak é um bombeiro de prevenção ( 6 ) da Ville de Nivelles (cidade de Nivelles), Bélgica ( 7 ). Nos termos das suas condições contratuais, R. Matzak deve estar de prevenção e disponível para o trabalho, durante a noite e aos fins de semana, uma em cada quatro semanas. R. Matzak é remunerado apenas pelo tempo em que está em serviço ativo. O tempo de prevenção em que o bombeiro não é chamado a desempenhar quaisquer deveres profissionais (dito «período de disponibilidade») ( 8 ) não é remunerado.

11.

Durante os períodos de serviço em situação de disponibilidade, R. Matzak deve permanecer contactável e, se necessário, apresentar‑se no quartel logo que possível e, em qualquer caso, em não mais de oito minutos em condições normais ( 9 ). O órgão jurisdicional de reenvio salienta que isto significa na prática que o bombeiro deve residir próximo do quartel e que as suas atividades durante esses períodos são consequentemente limitadas.

12.

Por considerar que uma série de aspetos do regime que lhe é aplicável, incluindo, em especial, o seu nível de remuneração no que diz respeito ao serviço de chamada, não eram satisfatórios, R. Matzak instaurou uma ação no tribunal du travail de Nivelles (Tribunal do Trabalho de Nivelles, Bélgica), que deu provimento à maior parte dos seus pedidos por sentença de 23 de março de 2012.

13.

A Cidade de Nivelles interpôs recurso dessa decisão na cour du travail de Bruxelles (Tribunal Superior do Trabalho, Bruxelas, Bélgica). Esse órgão jurisdicional considera que, nos termos do direito belga, o tempo de trabalho é geralmente definido como o tempo durante o qual o trabalhador está à disposição da entidade patronal e que o local onde se encontra o trabalhador não parece ser determinante. Da interpretação do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 efetuada pelo Tribunal de Justiça ( 10 ) parece resultar que as definições de tempo de trabalho nos termos do direito belga e do direito da União não coincidem totalmente. Aquele órgão jurisdicional também salienta que existe uma tendência na jurisprudência nacional para decidir a questão da remuneração dos bombeiros de prevenção como R. Matzak por referência, principal ou exclusivamente, à definição do conceito de «tempo de trabalho» do direito da União. Uma vez que considera necessária a interpretação do Tribunal de Justiça de determinadas disposições da Diretiva 2003/88 para poder decidir o litígio que lhe foi submetido, esse órgão jurisdicional apresentou as seguintes questões, para decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE:

«1)

Deve o artigo 17.o, n.o 3, alínea c), iii), da [Diretiva 2003/88] ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros excluir determinadas categorias de bombeiros recrutados pelos serviços públicos de incêndio do conjunto das disposições que transpõem esta diretiva, incluindo a que define o tempo de trabalho e o período de descanso?

2)

Na medida em que a [Diretiva 2003/88] apenas estabelece normas mínimas, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a que o legislador nacional mantenha ou adote uma definição menos restritiva do tempo de trabalho?

3)

Tendo em conta o artigo 153.o, n.o 5, TFUE e os objetivos da [Diretiva 2003/88] deve o artigo 2.o desta diretiva, na medida em que define os principais conceitos utilizados por esta e, designadamente, os de tempo de trabalho e de período de descanso, ser interpretado no sentido de que não é aplicável ao conceito de tempo de trabalho que deve permitir determinar as remunerações devidas no caso de prevenção?

4)

Opõe‑se a [Diretiva 2003/88] a que o tempo de prevenção seja considerado tempo de trabalho quando, apesar de a prevenção se realizar no domicílio do trabalhador, os constrangimentos impostos a este durante a prevenção (como a obrigação de responder às chamadas da entidade patronal num prazo de 8 minutos), restringem significativamente as possibilidades de outras atividades?»

14.

Foram apresentadas observações escritas pelas partes no processo principal, pelos Governos belga, francês, neerlandês e do Reino Unido e pela Comissão Europeia. Na audiência de 15 de dezembro de 2016, todas essas partes, com exceção do Governo neerlandês, apresentaram alegações orais e responderam às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça.

Apreciação

Questões preliminares

Admissibilidade

15.

Tanto a Cidade de Nivelles como a Comissão suscitaram questões que se referem (no todo ou em parte) à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial ( 11 ).

16.

Fazem‑no com base no facto de o objeto do litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio ser o pagamento a que R. Matzak tem direito por referência aos seus serviços como bombeiro de prevenção e não a questão do seu tempo de trabalho. Uma vez que o artigo 153.o, n.o 5, TFUE isenta as matérias relacionadas com a remuneração do âmbito de aplicação do artigo 153.o (que abrange a melhoria da saúde e da segurança dos trabalhadores a que se refere a Diretiva 2003/88), as questões do órgão jurisdicional de reenvio abordam questões que o Tribunal de Justiça não é competente para apreciar.

17.

A esse respeito, é jurisprudência assente que o Tribunal de Justiça só pode recusar decidir um pedido de decisão prejudicial formulado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com os factos ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético, ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto ou de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe foram submetidas. Por conseguinte, quando é suscitada uma questão de direito da União, existe uma presunção de pertinência ( 12 ).

18.

Será suscitada no presente processo uma questão desse tipo?

19.

Em meu entender, a resposta é afirmativa.

20.

Embora a leitura do despacho de reenvio e dos autos do processo nacional submetidos ao Tribunal de Justiça esclareçam que a ação de R. Matzak diz essencialmente respeito à questão da sua remuneração, isso, por si só, não é determinante para saber se o Tribunal de Justiça deve responder às questões prejudiciais. A questão que deve ser colocada neste contexto não é: «qual é o objeto da ação no processo principal?» Ao invés, é necessário determinar se a interpretação do direito da União que é solicitada está relacionada com os factos ou com o objeto do processo principal. O despacho de reenvio refere que a definição do direito da União do conceito de «tempo de trabalho» é relevante para decidir a questão da remuneração dos bombeiros de prevenção como R. Matzak ( 13 ). Assim, a interpretação do Tribunal de Justiça sobre esse conceito auxiliará o órgão jurisdicional de reenvio a decidir o processo que lhe foi submetido. Com esse fundamento, as questões prejudiciais são admissíveis ( 14 ).

Significado de «trabalhador»

21.

Apesar de o artigo 2.o da Diretiva 2003/88 definir «tempo de trabalho» por referência, inter alia, aos períodos durante os quais o «trabalhador» está a «trabalhar», a diretiva não define o próprio conceito de «trabalhador».

22.

Nas suas observações escritas e na audiência, o Governo francês referiu a situação de França, em que todos os bombeiros que não são profissionais são contratados em condições que não implicam uma relação de subordinação e em que não recebem um vencimento ou salário, enquanto tal. Ao invés, esses bombeiros recebem um subsídio («indemnité»), que não está sujeito a deduções fiscais ou de segurança social. Da mesma forma, o Governo belga refere que os bombeiros de prevenção nesse Estado‑Membro não são classificados como trabalhadores para efeitos das disposições relevantes do direito nacional ( 15 ), tendo, pelo contrário, o estatuto de «voluntários remunerados» («bénévolat indemnisé»).

23.

Significará isto que esses bombeiros não podem ser classificados como «trabalhadores» para efeitos da diretiva?

24.

O Tribunal de Justiça já decidiu que o conceito de «trabalhador» nos termos da diretiva é um conceito autónomo de direito da União ( 16 ). O conceito de trabalhador deve ser interpretado no sentido de incluir «qualquer pessoa que exerça atividades reais e efetivas, com exclusão de atividades de tal modo reduzidas que sejam puramente marginais e acessórias». A característica essencial da relação laboral é a circunstância de uma pessoa realizar durante um certo tempo, em benefício de outra e sob a direção desta, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração ( 17 ). O Tribunal de Justiça não abordou a questão do que constitui «remuneração» (ou «salário») para efeitos dessa definição. Pode, no entanto, ser retirada alguma orientação dos termos do artigo 157.o, n.o 2, TFUE (no contexto de salário igual), que define «remuneração» como as quantias «[…] pagas, direta ou indiretamente, […] pela entidade patronal ao trabalhador em razão do emprego deste último» ( 18 ).

25.

Mais especificamente, o Tribunal de Justiça considerou que a diretiva é aplicável aos bombeiros profissionais ( 19 ). No que respeita ao seu alargamento aos bombeiros de outras categorias, observo que não existe qualquer sugestão no despacho de reenvio de que os bombeiros na categoria de R. Matzak não exercem uma atividade real e efetiva e de que não estão «sob a direção de outra pessoa» (no caso, o quartel) ( 20 ). Se este funcionar de forma eficaz, todos os elementos da equipa de bombeiros (sejam bombeiros profissionais, bombeiros de prevenção ou bombeiros voluntários) devem evidentemente trabalhar de acordo com as instruções e ordens que são dadas, designadamente disponibilizando‑se para o serviço ativo num sistema de rotação. No que respeita à questão de saber se as quantias que R. Matzak recebe em contrapartida pelos seus serviços constituem «remuneração» ou «salário» para efeitos da aplicação dos critérios estabelecidos no n.o 24, supra, além das observações (relativamente dispersas) do Governo belga, o Tribunal de Justiça recebeu poucas informações sobre as disposições precisas que regem a situação nesse Estado‑Membro, pelo que não é possível aprofundar esta matéria. Essa questão deve ser determinada pelo órgão jurisdicional nacional, através da aplicação do critério que acabei de referir. Uma vez que o conceito de «trabalhador» é um conceito do direito da União, a designação precisa do estatuto de uma pessoa que presta serviços e a qualificação do dinheiro que recebe pela prestação desses serviços nos termos do direito nacional não podem, por definição, ser conclusivas.

Questão 1

26.

Com a questão 1, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os Estados‑Membros são livres de excluir determinadas categorias de bombeiros de todas as disposições de transposição da Diretiva 2003/88 para o direito nacional, incluindo as disposições que definem o tempo de trabalho e os períodos de descanso.

27.

Essas definições estão estabelecidas no artigo 2.o da diretiva. Conforme decorre da redação do artigo 17.o, n.o 3, da Diretiva 2003/88, apenas as disposições dessa diretiva aí expressamente referidas podem ser objeto de derrogação relativamente, inter alia, aos serviços de sapadores‑bombeiros ( 21 ). Assim, o artigo 17.o, n.o 3, estabelece que os Estados‑Membros que cumpram os requisitos estabelecidos no artigo 17.o, n.o 2, são livres de derrogar os artigos 3.o, 4.o, 5.o, 8.o e 16.o da diretiva. Essa faculdade não se estende às definições de «tempo de trabalho» e de «período de descanso» estabelecidas no artigo 2.o e, uma vez que o artigo 17.o, n.o 3, deve (como todas as disposições derrogatórias ( 22 )) ser interpretado restritivamente, não existe, em meu entender, margem para adotar uma abordagem extensiva que possa ir além da formulação expressa da derrogação ( 23 ).

28.

Por conseguinte, considero que a resposta à questão 1 deve ser a de que o artigo 17.o, n.o 3, alínea c), iii), da Diretiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros excluírem determinadas categorias de bombeiros recrutados pelos serviços públicos de incêndio apenas das disposições dessa diretiva estabelecidas no artigo 17.o, n.o 3. Este artigo não permite aos Estados‑Membros excluírem esses trabalhadores de todas as disposições que transpõem a diretiva e, em especial, não permite excluir a aplicação das disposições que definem «tempo de trabalho» e «período de descanso» no que respeita a esses trabalhadores.

Questão 2

29.

Com a questão 2, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, uma vez que a Diretiva 2003/88 estabelece apenas requisitos mínimos, pode ser interpretada no sentido de não proibir um Estado‑Membro de adotar uma definição de «tempo de trabalho» menos restritiva.

30.

O Governo belga alega que esta questão é inadmissível, observando que a Cour de cassation belga (Tribunal de Cassação) decidiu, por diversas vezes, que deve ser dada a mesma interpretação ao conceito de tempo de trabalho, tanto nos termos do direito belga, como nos do direito da União, e que o órgão jurisdicional de reenvio tem à sua disposição todos os elementos necessários para compreender esse conceito. O Governo belga invoca, em especial, a esse respeito, o acórdão Dzodzi ( 24 ), alegando que o n.o 42 desse acórdão confirma a tese de que deve existir um risco de divergência efetivo entre o direito da União, por um lado, e uma disposição de direito nacional relativa a uma disposição do direito da União, por outro, para que o Tribunal de Justiça seja competente para decidir nos termos do artigo 267.o TFUE em tais circunstâncias.

31.

Já referi que existe uma presunção de pertinência quando o Tribunal de Justiça é chamado a interpretar uma disposição do direito da União ( 25 ). Não vejo qualquer razão para abandonar aqui essa presunção. O órgão jurisdicional de reenvio referiu que as questões relativas à remuneração dos bombeiros de prevenção nos termos do direito nacional devem ser decididas com base na definição de «tempo de trabalho» do direito da União ( 26 ). Prevê‑se que a resposta à questão 2 auxiliará o órgão jurisdicional de reenvio a decidir o processo que lhe está submetido. Com esse fundamento, o Tribunal de Justiça deve fornecer essa resposta. No que respeita à aplicação do acórdão Dzodzi, o Tribunal de Justiça decidiu, em jurisprudência posterior, que não tem competência para decidir nos casos em que os factos dos processos considerados pelos órgãos jurisdicionais nacionais se situam fora do âmbito de aplicação do direito da União, mas em que as disposições em questão se tornaram aplicáveis pelo direito interno (em virtude de um renvoi para o direito da União) e as disposições nacionais em causa não limitam a aplicação deste último ( 27 ). No presente processo, parece‑me que a situação nacional descrita no despacho de reenvio implica um renvoi para o direito da União que não limita a sua aplicação. Por esse motivo, rejeito o argumento do Governo belga. Afigura‑se‑me que o Tribunal de Justiça tem competência para responder a essa questão e que, por conseguinte, deve fazê‑lo.

32.

Voltando à questão em si, à primeira vista esta parece reclamar uma resposta afirmativa. É verdade que o artigo 1.o da Diretiva 2003/88 dispõe que a diretiva estabelece prescrições mínimas de segurança e de saúde e que, como salientam tanto R. Matzak, como a Comissão, o artigo 15.o permite aos Estados‑Membros aplicarem ou introduzirem disposições mais favoráveis à proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores. Além disso, a definição de «tempo de trabalho» estabelecida no artigo 2.o refere expressamente que esse aspeto deve estar de acordo com «a legislação e/ou a prática nacional».

33.

A verdadeira situação é, creio, mais complicada. Ao adotar a Diretiva 2003/88, o (então) legislador comunitário procurava estabelecer padrões mínimos a aplicar no que é hoje a União Europeia ( 28 ). O legislador comunitário fê‑lo prevendo, inter alia, a definição de «tempo de trabalho», conjugada com a de «período de descanso», que pretendia que fosse uniforme em todos os Estados‑Membros. Daqui decorre que estas definições devem ser interpretadas em conformidade com características objetivas, tomando‑se por referência a sistemática e a finalidade da referida diretiva, uma vez que só essa interpretação é suscetível de assegurar a essa diretiva a sua plena eficácia, bem como uma aplicação uniforme dos referidos conceitos em todos os Estados‑Membros ( 29 ). Assim, não existe qualquer margem para os Estados‑Membros que pretendam implementar a diretiva para adotar uma versão menos restritiva de qualquer dessas definições.

34.

Tal não significa, obviamente, que o Estado‑Membro não tenha a possibilidade de reforçar a proteção conferida pela diretiva, utilizando técnicas legislativas diferentes. Os Estados‑Membros podem, por exemplo, prever períodos de descanso mínimos mais longos do que os estabelecidos nos artigos 3.o a 7.o da diretiva, no exercício dos direitos que o artigo 15.o lhes confere. O mesmo se diga das disposições que regulam o trabalho noturno e o trabalho por turnos constantes dos artigos 8.o a 13.o Porém, naquele caso, os Estados‑Membros devem manter as definições de «tempo de trabalho» e de «período de descanso» estabelecidas nos termos do artigo 2.o

35.

Por conseguinte, considero que a resposta à questão 2 deve ser a de que a Diretiva 2003/88 deve ser interpretada no sentido de que impede que o legislador nacional de um Estado‑Membro mantenha ou adote uma definição de «tempo de trabalho» menos restritiva do que a estabelecida nos termos da diretiva. No entanto, o legislador desse Estado‑Membro pode reforçar a proteção conferida aos trabalhadores, desde que, ao fazê‑lo, não se afaste dos termos dessa definição.

Questão 3

36.

Com a questão 3, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 2.o da Diretiva 2003/88, na medida em que define aquilo que o órgão jurisdicional de reenvio designa por «principais conceitos utilizados» na diretiva, incluindo, em especial, os de «tempo de trabalho» e de «período de descanso», pode ser interpretado no sentido de que não é aplicável ao conceito de tempo de trabalho utilizado para determinar a remuneração paga aos bombeiros como R. Matzak.

37.

Para responder a esta questão, é necessário delimitar os seus termos. Em primeiro lugar, no que aqui releva, o artigo 2.o da Diretiva 2003/88 não define outros conceitos de tempo para além dos de «tempo de trabalho» e do seu corolário, «período de descanso». Saber se a definição de «tempo de trabalho» abrange circunstâncias como as dos trabalhadores na situação de R. Matzak é o objeto da quarta questão do órgão jurisdicional de reenvio.

38.

Em segundo lugar, é indubitável que o papel do Tribunal de Justiça nos termos do procedimento do artigo 267.o TFUE está limitado ao fornecimento de uma interpretação do direito da União. O Tribunal de Justiça não pode interpretar o direito nacional, sendo essa uma matéria que compete inteiramente aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em causa ( 30 ). Assim, embora o órgão jurisdicional nacional refira que existe uma tendência na jurisprudência nacional para decidir a questão da remuneração dos bombeiros de prevenção invocando a definição do direito da União do conceito de «tempo de trabalho» ( 31 ), o funcionamento dessas regras nos termos do direito nacional não é uma questão que o Tribunal de Justiça possa abordar. Desde que as regras nacionais sejam conformes com o direito da União, os Estados‑Membros são livres de estruturar a legislação nacional em causa da forma que considerarem adequada e compete aos respetivos tribunais nacionais interpretá‑la. Por conseguinte, abordarei (apenas) questões de direito da União na minha análise desta questão.

39.

À luz destas observações, parece‑me que a questão 3 é melhor entendida no sentido de perguntar se a definição de «tempo de trabalho» estabelecida no artigo 2.o da Diretiva 2003/88 também se aplica, automaticamente e sem mais, à regulação dos salários dos trabalhadores com direito de beneficiar da proteção conferida pela diretiva em matéria de segurança e saúde.

40.

Em meu entender, não existe essa ligação automática.

41.

A Diretiva 2003/88 foi adotada com fundamento no que é hoje o artigo 153.o, n.o 2, TFUE. Essa disposição confere ao legislador da União poder para adotar diretivas que estabeleçam requisitos mínimos para harmonização gradual no que respeita (no que se refere às presentes conclusões) à saúde e à segurança [artigo 153.o, n.o 1, alínea a)], às condições de trabalho [artigo 153.o, n.o 1, alínea b)] e à segurança social e proteção social [artigo 153.o, n.o 1, alínea c)]. O n.o 5 prevê expressamente que «o disposto no presente artigo não é aplicável às remunerações». Estas últimas são, assim, uma matéria que compete apenas aos Estados‑Membros ( 32 ).

42.

Essa divisão de poderes também está refletida na jurisprudência do Tribunal de Justiça. No acórdão Dellas e o., o Tribunal de Justiça observou, no que respeita à Diretiva 93/104, que tanto a finalidade, como o próprio texto da diretiva, conduziam à conclusão de que esta não se aplicava à remuneração de trabalhadores. O Tribunal de Justiça acrescentou que essa interpretação decorria sem ambiguidade do que é hoje o artigo 153.o, n.o 5, TFUE ( 33 ). No acórdão Vorel, o Tribunal de Justiça confirmou a aplicação desse princípio relativamente à Diretiva 2003/88 ( 34 ).

43.

Isso seria suficiente para responder à questão 3. No entanto, tal como o Governo neerlandês observa corretamente, apesar de a Diretiva 2003/88 não exigir que os Estados‑Membros apliquem a definição de «tempo de trabalho» às questões de remuneração, também não prevê que possam não o fazer. Assim, um Estado‑Membro pode aprovar, no exercício da sua competência, legislação interna que preveja que a remuneração de uma ou mais categorias de trabalhadores se deve basear nessa definição. Os contratos de trabalho e as convenções coletivas também utilizam habitualmente o conceito de «tempo de trabalho» em conjugação com o número de horas trabalhadas e os níveis de remuneração, para estabelecer a remuneração global. Tais níveis de remuneração podem, também, diferir em função do tipo do tempo de trabalho (tempo de serviço ativo, prevenção) em causa ( 35 ). Tudo isso é uma questão de direito nacional.

44.

Por conseguinte, considero que a resposta à questão 3 deve ser no sentido de que a definição de «tempo de trabalho» estabelecida no artigo 2.o da Diretiva 2003/88 não se aplica, automaticamente e sem mais, à regulação da remuneração de trabalhadores com direito de beneficiar da proteção em termos de segurança e de saúde que a diretiva confere. No entanto, apesar de essa diretiva não exigir que os Estados‑Membros apliquem a definição de «tempo de trabalho» às questões de remuneração, também não prevê que estes não o possam fazer. Daqui decorre que um Estado‑Membro é livre de aprovar legislação interna que preveja que a remuneração de uma ou mais categorias de trabalhadores se deve basear nessa definição.

Questão 4

45.

Com a questão 4, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a definição de «tempo de trabalho» constante do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 deve ser interpretada no sentido de que se estende a trabalhadores, como R. Matzak, que exercem funções em situação de disponibilidade e que têm de poder responder às chamadas da sua entidade patronal num curto período de tempo (neste caso, oito minutos) sem estarem obrigados, ao mesmo tempo, a estar fisicamente presentes nas instalações da entidade patronal e cujas oportunidades para realizar outras atividades durante o período em questão podem, assim, estar limitadas.

46.

Como questão preliminar, devo referir que, apesar de o órgão jurisdicional de reenvio redigir a sua questão com base no facto de a prevenção ser «cumprida na residência do trabalhador», o verdadeiro requisito indicado no despacho de reenvio não é de que o tempo seja ocupado na residência do trabalhador, mas sim de que este esteja em condições de chegar ao seu local de trabalho em oito minutos ( 36 ). Dito isto, na prática pode muito bem dar‑se o caso de os trabalhadores passarem efetivamente o seu tempo em casa durante esses períodos de disponibilidade e que, como resultado direto desse requisito, tenham de residir na área que essa limitação impõe.

47.

Voltando ao essencial da questão, R. Matzak alega que os factos do processo, conjugados com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, determinam que os seus períodos de disponibilidade representam claramente tempo de trabalho. Em especial, o facto de poder não ser chamado a exercer quaisquer deveres efetivos enquanto está de prevenção é irrelevante. R. Matzak está obrigado a estar à disposição da sua entidade patronal e contactável, a todo o tempo, e a sua liberdade de movimentos e liberdade para organizar os seus assuntos pessoais estão, portanto, fortemente restringidos durante os seus períodos de serviço. O incumprimento dessas exigências pode levar a sanções disciplinares e, possivelmente, penais. A situação de R. Matzak, que implica o dever de se apresentar no seu local de trabalho num curto espaço de tempo, é, de facto, mais limitada do que a de um trabalhador que está de prevenção mas ao qual é permitido muito mais tempo para se apresentar ou que pode atuar à distância. Daqui decorre que se deve considerar que R. Matzak está à disposição da sua entidade patronal em todos os momentos relevantes.

48.

Embora veja, pelo menos até certo ponto, a lógica dessas observações, não creio que a situação seja tão simples como R. Matzak sugere.

49.

O ponto de partida para qualquer análise deve, em meu entender, ser a formulação do artigo 2.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2003/88. Este artigo define «tempo de trabalho» como «qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal e no exercício da sua atividade ou das suas funções […]» e «período de descanso» como «qualquer período que não seja tempo de trabalho». Como referiram algumas partes que apresentaram observações, e, na verdade, como referiu o Tribunal de Justiça na sua jurisprudência, a distinção é, assim, binária: o tempo ou é tempo de trabalho ou não o é ( 37 ). O legislador não considerou adequado estabelecer qualquer outra categoria ou categorias que permitissem algum grau de aperfeiçoamento ou subtileza. Esta falta de flexibilidade será de lamentar, mas assim é a letra da lei.

50.

Uma vez que a categoria de «período de descanso» é, por definição, residual, concentrar‑me‑ei na análise que se segue no conceito de «tempo de trabalho». A jurisprudência do Tribunal de Justiça fornece já algumas orientações sobre como este conceito deve ser interpretado.

51.

Assim, o Tribunal de Justiça já declarou reiteradamente que o conceito de «tempo de trabalho» nos termos da Diretiva 2003/88 é um conceito autónomo de direito da União, que importa definir segundo características objetivas, tomando‑se por referência a sistemática e a finalidade dessa diretiva, que é destinada a melhorar as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores ( 38 ). Este conceito exige a verificação de três condições. Em primeiro lugar, o trabalhador deve estar a trabalhar; em segundo lugar, o trabalhador deve estar à disposição da entidade patronal; e, em terceiro lugar, o trabalhador deve estar no exercício da sua atividade ou das suas funções ( 39 ).

52.

A primeira ocasião em que o Tribunal de Justiça foi chamado a interpretar esses requisitos foi no processo Simap ( 40 ). Esse processo dizia respeito à prevenção de médicos que trabalhavam em equipas de urgência num centro de saúde. Durante algum desse tempo, os médicos precisavam de estar presentes no seu local de trabalho, enquanto, no restante tempo, apenas precisavam de estar «contactáveis». O Tribunal de Justiça decidiu que existia uma diferença essencial entre as duas situações. No que respeita à primeira, ainda que a atividade prosseguida pudesse variar de acordo com as circunstâncias, o facto de os médicos estarem obrigados a estar presentes e disponíveis no local de trabalho com vista a prestarem os seus serviços profissionais significava que estavam no exercício das suas funções. Os requisitos do artigo 2.o, n.o 1, estavam, assim, preenchidos. Para efeitos da segunda situação, no entanto, e ainda que os médicos estivessem à disposição da sua entidade patronal, na medida em que deveria ser possível contactá‑los, os médicos podiam gerir o seu tempo com menos constrangimentos e dedicar‑se aos seus próprios interesses. Esse tempo foi, assim, considerado abrangido pela categoria de «período de descanso» ( 41 ).

53.

O processo Jaeger ( 42 ) dizia respeito a um médico de hospital que estava obrigado a passar o seu tempo de prevenção nas instalações da sua entidade patronal. O médico dispunha de uma divisão equipada com uma cama, onde estava autorizado a dormir enquanto os seus serviços não eram requisitados. O Tribunal de Justiça repetiu as observações do acórdão Simap ( 43 ), mas salientou que não tinha sido proferida qualquer decisão nesse caso no que respeita às circunstâncias em que é permitido a um trabalhador descansar ou dormir quando está de serviço nas instalações da entidade patronal. O Tribunal de Justiça considerou que essa questão era irrelevante. O que o Tribunal de Justiça considerou ser o «fator determinante» foi o facto de o trabalhador estar obrigado a estar presente no local determinado pela entidade patronal e de estar à sua disposição para poder prestar de imediato os seus serviços em caso de necessidade. Como consequência, não podia considerar‑se que o trabalhador estivesse «em descanso» durante os períodos em causa ( 44 ). Ao responder à questão do órgão jurisdicional nacional, o Tribunal de Justiça deixou claro que a sua decisão se aplicava a uma situação em que o trabalhador estava «obrigado a estar fisicamente presente no hospital» ( 45 ). Os trabalhadores em causa estavam significativamente restringidos na forma como poderiam organizar o seu tempo e estavam separados do seu meio familiar e social. O Tribunal de Justiça acrescentou que o conceito de «tempo de trabalho» não podia ser posto em causa pelas objeções relativas às consequências de ordem económica e organizacional que alguns Estados‑Membros alegaram que surgiriam se esse tempo fosse classificado como «tempo de trabalho» ( 46 ).

54.

No processo Dellas ( 47 ), que envolvia igualmente a exigência de que os trabalhadores especializados passassem períodos de prevenção nas instalações da entidade patronal, o Tribunal de Justiça chegou a uma conclusão idêntica à estabelecida no acórdão Jaeger.

55.

O processo Grigore ( 48 ) envolvia um trabalhador florestal ao qual era atribuído pela sua entidade patronal alojamento situado na área da floresta pela qual era responsável. O trabalhador estava obrigado a passar períodos de tempo nesse local ( 49 ). O Tribunal de Justiça decidiu que a atribuição desse alojamento não era, por si só, um fator determinante para considerar que o tempo ali passado constituía tempo de trabalho pelo simples facto de estar situado na área de serviço de Grigore; no entanto, caso fosse verdade que o trabalhador tinha o dever de estar imediatamente à disposição da sua entidade patronal com vista a prestar os serviços apropriados em caso de necessidade, a definição desse conceito estaria preenchida ( 50 ).

56.

Por último ( 51 ), no processo Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras («Tyco») ( 52 ), o Tribunal de Justiça foi chamado a considerar a questão de saber se o tempo gasto pelos trabalhadores que não têm qualquer local de trabalho fixo ou habitual em deslocação entre as suas residências e os clientes das suas entidades patronais, conforme designado pelas suas entidades patronais, constituía «tempo de trabalho». O Tribunal de Justiça considerou que constituía. O Tribunal de Justiça salientou, em especial, o princípio que tem a sua origem no acórdão Jaeger, segundo o qual o fator determinante para saber se a definição está preenchida é a exigência de estar presente no local determinado pela entidade patronal e de fornecer de imediato as prestações adequadas. Ao mesmo tempo, o Tribunal de Justiça sublinhou a consideração estabelecida no acórdão Simap de que a possibilidade de os trabalhadores se dedicarem aos seus próprios interesses é um elemento revelador de que o período em causa não é tempo de trabalho para efeitos da Diretiva 2003/88. No entanto, não era esse o caso dos trabalhadores no processo principal; apesar do facto de disporem de uma certa liberdade durante o tempo de deslocação, estavam, porém, sujeitos às instruções das suas entidades patronais durante os períodos em causa ( 53 ).

57.

Parece‑me que a afirmação de que «a exigência de estar presente no local determinado pela entidade patronal e de fornecer de imediato as prestações adequadas» é o «fator determinante» para saber o que é, e o que não é, tempo de trabalho deve ser interpretada com alguma precaução. Evidentemente, este fator foi aplicado em processos como Jaeger e Dellas, em que a obrigação era de cumprir os períodos de disponibilidade nas instalações da entidade patronal. O facto de o trabalhador poder não passar todo esse tempo efetivamente a trabalhar era irrelevante. Da mesma forma, esse fator não foi conclusivo no processo Grigore, em que o Tribunal de Justiça também salientou o grau de liberdade do trabalhador. Com efeito, esse aspeto está no cerne da decisão do Tribunal de Justiça no processo Simap. Afigura‑se‑me que a qualidade do tempo que o trabalhador pode gozar nos períodos de disponibilidade (como demonstrado, por exemplo, pela capacidade de se dedicar aos seus próprios interesses e família) ( 54 ) reveste igual relevância. O facto de, num determinado caso, poder ser exigido a um trabalhador que cumpra os períodos de disponibilidade num raio relativamente próximo do seu local de trabalho, não invalida, em meu entender, a necessidade de ter devidamente em conta a qualidade do tempo despendido. Salvo nos casos em que um trabalhador possa estar em condições de intervir remotamente, esse tipo de dever implica, por natureza, que ele tenha de permanecer perto do seu local de trabalho. É a qualidade do tempo despendido e não o grau preciso de proximidade necessária ao local de trabalho que tem importância primordial neste contexto. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio, na qualidade de único juiz dos factos, determinar se a qualidade do tempo de disponibilidade de R. Matzak foi de tal forma prejudicada por alguma restrição imposta pela sua entidade patronal que esse tempo deva ser qualificado como tempo de trabalho.

58.

Por conseguinte, considero que a resposta à questão 4 deve ser no sentido de que a definição de «tempo de trabalho» constante do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 não deve ser interpretada no sentido de que se estende automaticamente a trabalhadores que exercem funções em situação de disponibilidade e que têm de ser capazes de responder às chamadas da sua entidade patronal num curto período de tempo (sem terem, ao mesmo tempo, de estar fisicamente presentes nas instalações da entidade patronal) e cujas oportunidades para realizar outras atividades durante o período em questão podem, assim, estar limitadas. Pelo contrário, é necessário ter em conta a qualidade do tempo que o trabalhador pode gozar quando está sujeito a esse tipo de dever, em termos, por exemplo, da sua capacidade para se dedicar aos seus próprios interesses e família. É a qualidade do tempo despendido, mais do que o grau preciso de proximidade necessária ao local de trabalho, que tem importância primordial neste contexto. Saber se esse tempo deve, ou não, ser qualificado como «tempo de trabalho» num caso específico será uma matéria que compete ao órgão jurisdicional nacional decidir com base nos factos.

Conclusão

59.

À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões formuladas pela cour du travail de Bruxelles (Tribunal Superior do Trabalho, Bruxelas, Bélgica):

1)

O artigo 17.o, n.o 3, alínea c), iii), da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, deve ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros excluírem determinadas categorias de bombeiros recrutados pelos serviços públicos de incêndio apenas das disposições dessa diretiva estabelecidas no artigo 17.o, n.o 3. Este artigo não permite aos Estados‑Membros excluírem esses trabalhadores de todas as disposições que transpõem a diretiva e, em especial, não permite excluir a aplicação das disposições que definem «tempo de trabalho» e «período de descanso» no que respeita a esses trabalhadores.

2)

A Diretiva 2003/88 deve ser interpretada no sentido de que impede que o legislador nacional de um Estado‑Membro mantenha ou adote uma definição de «tempo de trabalho» menos restritiva do que a estabelecida nos termos da diretiva. No entanto, o legislador desse Estado‑Membro pode reforçar a proteção conferida aos trabalhadores, desde que, ao fazê‑lo, não se afaste dos termos dessa definição.

3)

A definição de «tempo de trabalho» estabelecida no artigo 2.o da Diretiva 2003/88 não se aplica, automaticamente e sem mais, à regulação da remuneração de trabalhadores com direito de beneficiar da proteção em termos de segurança e de saúde que a diretiva confere. No entanto, apesar de essa diretiva não exigir que os Estados‑Membros apliquem a definição de «tempo de trabalho» às questões de remuneração, também não prevê que estes não o possam fazer. Daqui decorre que um Estado‑Membro é livre de aprovar legislação interna que preveja que a remuneração de uma ou mais categorias de trabalhadores se deve basear nessa definição.

4)

A definição de «tempo de trabalho» constante do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88 não deve ser interpretada no sentido de que se estende automaticamente aos trabalhadores que exercem funções em situação de disponibilidade e que têm de poder responder às chamadas da sua entidade patronal num curto período de tempo (sem terem, ao mesmo tempo, de estar fisicamente presentes nas instalações da entidade patronal) e cujas oportunidades para realizar outras atividades durante o período em questão podem, assim, estar limitadas. Pelo contrário, é necessário ter em conta a qualidade do tempo que o trabalhador pode gozar quando está sujeito a esse tipo de dever, em termos, por exemplo, da sua capacidade para se dedicar aos seus próprios interesses e família. É a qualidade do tempo despendido, mais do que o grau preciso de proximidade necessária ao local de trabalho, que tem importância primordial neste contexto. Saber se esse tempo deve, ou não, ser qualificado como «tempo de trabalho» num caso específico será uma matéria que compete ao órgão jurisdicional nacional decidir com base nos factos.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9).

( 3 ) V. nota 6, infra, para mais esclarecimentos sobre este aspeto da terminologia que utilizei nas presentes conclusões.

( 4 ) V., também, nota 8, infra.

( 5 ) Diretiva 93/104/CE do Conselho, de 23 de novembro de 1993, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 1993, L 307, p. 18). Essa diretiva foi revogada e substituída pela Diretiva 2003/88.

( 6 ) R. Matzak é descrito no despacho de reenvio como um «pompier volontaire» (bombeiro voluntário). Parece ser claro, no entanto, que R. Matzak recebe remuneração da sua entidade patronal quando está em serviço ativo. O Governo do Reino Unido refere que, nesse Estado‑Membro, os bombeiros podem ser classificados em três categorias: (i) bombeiros profissionais, que são normalmente contratados a tempo inteiro e remunerados nessa conformidade; (ii) bombeiros de prevenção, que recebem um montante para estarem disponíveis para intervir durante determinados períodos; e (iii) bombeiros voluntários, que não são remunerados. Apesar de parecer que os bombeiros de prevenção no Reino Unido podem ser remunerados não só pelo tempo de serviço ativo, mas também (ao contrário de R. Matzak) pelo tempo de prevenção (pelo menos em parte), utilizei este termo nas presentes conclusões, uma vez que designa mais aproximadamente a situação em que se encontra R. Matzak. V., além disso, no entanto, n.o 22, infra.

( 7 ) R. Matzak refere nas suas observações escritas que, desde abril de 2015, a sua entidade patronal é a Zone de secours du Brabant Wallon (Serviço de Socorro de Brabante Valão). Não se afigura que esta mudança tenha tido quaisquer consequências.

( 8 ) O despacho de reenvio também utiliza a expressão «tempo de prevenção no domicílio» («heures de garde à domicile»). Uma vez que, no entanto, parece claro que não existe qualquer exigência de residir num raio de 8 minutos do quartel ou, quando seja esse o caso, de permanecer nessa residência durante os períodos em causa, utilizei as expressões «período de disponibilidade» e «serviço em situação de disponibilidade» para designar os períodos em que o trabalhador deve estar contactável pela entidade patronal e rapidamente disponível para cumprir tarefas para a mesma mas não tem de estar presente no local de trabalho (v. acórdão de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o., C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.o 18).

( 9 ) V. n.o 9, supra.

( 10 ) V. n.o 51 e segs., infra.

( 11 ) V., também, n.os 29 a 31, infra, relativamente aos argumentos do Governo belga referentes à admissibilidade da questão 2.

( 12 ) V., nesse sentido, inter alia, acórdão de 11 de maio de 2017, Archus e Gama (C‑131/16, EU:C:2017:358, n.o 42).

( 13 ) V. n.o 13, supra.

( 14 ) Para uma análise mais aprofundada da competência do Tribunal de Justiça para decidir um pedido de decisão prejudicial em circunstâncias que envolvem questões semelhantes, v. conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Hälvä e o. (C‑175/16, EU:C:2017:285, n.os 26 a 49). Esse processo também diz respeito à Diretiva 2003/88. O advogado‑geral M. Wathelet concluiu, de forma idêntica, que o Tribunal de Justiça se devia pronunciar.

( 15 ) V. n.o 8, supra.

( 16 ) V. acórdão de 14 de outubro de 2010, Union syndicale Solidaires Isère (C‑428/09, EU:C:2010:612, n.o 28).

( 17 ) V. acórdão de 26 de março de 2015, Fenoll (C‑316/13, EU:C:2015:200, n.o 27 e jurisprudência referida).

( 18 ) V., também, acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o. (C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.o 46), em que o Tribunal de Justiça decidiu que só esse critério «pode revestir caráter determinante» no contexto do que é hoje o artigo 157.o TFUE. O Tribunal de Justiça adotou a mesma definição no tocante à interpretação do conceito de «remuneração» para efeitos do Acordo‑Quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado em 6 de junho de 1997, anexo à Diretiva 97/81/CE do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES (JO 1998, L 14, p. 9) (v. acórdão de 5 de novembro de 2014, Österreichischer Gewerkschaftsbund, C‑476/12, EU:C:2014:2332, n.o 16).

( 19 ) V. despacho de 14 de julho de 2005, Personalrat der Feuerwehr Hamburg (C‑52/04, EU:C:2005:467, n.o 52), e acórdão de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.o 44).

( 20 ) Deixo de parte a questão da situação em França, que não está em causa no presente processo.

( 21 ) V., nesse sentido, acórdão de 14 de outubro de 2010, Fuß (C‑243/09, EU:C:2010:609, n.os 34 e 48 e jurisprudência referida).

( 22 ) V., no que respeita ao artigo 17.o da Diretiva 2003/88, acórdão de 14 de outubro de 2010, Union syndicale Solidaires Isère (C‑428/09, EU:C:2010:612, n.o 40).

( 23 ) V. acórdão de 1 de dezembro de 2005, Dellas e o.( C‑14/04, EU:C:2005:728, n.o 61), e despacho de 4 de março de 2011, Grigore (C‑258/10, não publicado, EU:C:2011:122, n.o 45), em que o Tribunal de Justiça confirmou esta interpretação.

( 24 ) Acórdão de 18 de outubro de 1990 (C‑297/88 e C‑197/89, EU:C:1990:360) (a seguir «acórdão Dzodzi»).

( 25 ) V. n.o 17, supra.

( 26 ) V. n.o 13, supra.

( 27 ) V. acórdão de 17 de julho de 1997, Leur‑Bloem (C‑28/95, EU:C:1997:369, n.o 27 e jurisprudência referida). V. também acórdão de 21 de dezembro de 2011, Cicala (C‑482/10, EU:C:2011:868, n.o 17).

( 28 ) V. artigo 1.o da diretiva.

( 29 ) V., nesse sentido, entre outros, acórdão de 9 de setembro de 2003, Jaeger (C‑151/02, EU:C:2003:437, n.os 58 e 59 e jurisprudência referida).

( 30 ) V., nesse sentido, entre outros, acórdão de 19 de fevereiro de 2009, Schwarz (C‑321/07, EU:C:2009:104, n.o 48).

( 31 ) V. n.o 13, supra.

( 32 ) V., a esse respeito, acórdão de 13 de setembro de 2007, Del Cerro Alonso (C‑307/05, EU:C:2007:509, n.o 40).

( 33 ) V., nesse sentido, acórdão de 1 de dezembro de 2005, Dellas e o. (C‑14/04, EU:C:2005:728, n.os 38 e 39).

( 34 ) Despacho de 11 de janeiro de 2007, Vorel (C‑437/05, EU:C:2007:23, n.os 32 e 35). V., também, despacho de 4 de março de 2011, Grigore (C‑258/10, não publicado, EU:C:2011:122, n.os 81 a 84), e acórdão de 10 de setembro de 2015, Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras (C‑266/14, EU:C:2015:578, n.o 48). A única exceção a este princípio é a que se encontra no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88, que diz respeito às férias anuais remuneradas.

( 35 ) V., por exemplo, despacho de 11 de janeiro de 2007, Vorel (C‑437/05, EU:C:2007:23, n.o 11 e segs.)

( 36 ) V. n.o 9, supra.

( 37 ) V. acórdão de 10 de setembro de 2015, Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras (C‑266/14, EU:C:2015:578, n.os 25 e 26 e jurisprudência referida).

( 38 ) V. acórdão de 10 de setembro de 2015, Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras (C‑266/14, EU:C:2015:578, n.o 27 e jurisprudência referida).

( 39 ) V. acórdão de 10 de setembro de 2015, Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras (C‑266/14, EU:C:2015:578, n.o 25 e jurisprudência referida).

( 40 ) Acórdão de 3 de outubro de 2000, Simap (C‑303/98, EU:C:2000:528) (a seguir «acórdão Simap»).

( 41 ) V. n.os 48 a 50 do acórdão.

( 42 ) Acórdão de 9 de setembro de 2003, Jaeger (C‑151/02, EU:C:2003:437) (a seguir «acórdão Jaeger»).

( 43 ) V. n.os 48 a 51 do acórdão.

( 44 ) V., nesse sentido, n.os 60 a 65 do acórdão.

( 45 ) V. n.o 71 e n.o 1 da parte decisória do acórdão.

( 46 ) V. n.o 66 do acórdão.

( 47 ) Acórdão de 1 de dezembro de 2005, Dellas e o. (C‑14/04, EU:C:2005:728) (a seguir «acórdão Dellas»).

( 48 ) Despacho de 4 de março de 2011, Grigore (C‑258/10, não publicado, EU:C:2011:122) (a seguir «despacho Grigore»).

( 49 ) O despacho refere expressamente que o âmbito de aplicação exato dessa obrigação não era claro. V., em especial, n.o 35.

( 50 ) V., em especial, n.os 64 a 70 do despacho.

( 51 ) Devo mencionar, por uma questão de exaustividade, que, no seu acórdão de 23 de dezembro de 2015, Comissão/Grécia (C‑180/14, não publicado, EU:C:2015:840), o Tribunal de Justiça repetiu as suas conclusões dos acórdãos Simap e Jaeger (v. n.os 36 e 37 do acórdão).

( 52 ) Acórdão de 10 de setembro de 2015 (C‑266/14, EU:C:2015:578).

( 53 ) V. n.os 35, 37 e 39 do acórdão.

( 54 ) V. conclusões do advogado‑geral A. Saggio no processo Simap (C‑303/98, EU:C:1999:621, n.o 37). V., também, acórdão de 10 de setembro de 2015, Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras (C‑266/14, EU:C:2015:578, n.o 37), em que o Tribunal de Justiça decidiu que «a possibilidade de os trabalhadores gerirem o seu tempo sem grandes constrangimentos e se dedicarem aos seus próprios interesses é um elemento revelador de que o período de tempo considerado não constitui tempo de trabalho na aceção da Diretiva 2003/88».