ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

9 de fevereiro de 2017 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Diretiva 2004/83/CE — Normas mínimas relativas aos requisitos que os nacionais de países terceiros ou os apátridas têm de cumprir para poderem beneficiar do estatuto de refugiado — Pedido de proteção subsidiária — Regularidade do processo nacional de análise de um pedido de proteção subsidiária apresentado na sequência do indeferimento de um pedido de concessão do estatuto de refugiado — Direito de ser ouvido — Alcance — Direito a uma audição — Direito de indicar e de contrainterrogar testemunhas»

No processo C‑560/14,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda), por decisão de 24 de novembro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de dezembro de 2014, no processo

M

contra

Minister for Justice and Equality,

Irlanda,

Attorney General,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: L. Bay Larsen (relator), presidente de secção, M. Vilaras, J. Malenovský, M. Safjan e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: L. Hewlett, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 18 de fevereiro de 2016,

considerando as observações apresentadas:

em representação de M, por B. Burns e S. Man, solicitors, I. Whelan e P. O’Shea, BL,

em representação da Irlanda, por E. Creedon, J. Davis e J. Stanley, na qualidade de agentes, assistidos por N. Butler, SC, e K. Mooney, BL,

em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por D. Colas e F.‑X. Bréchot, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e M. Condou‑Durande, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 3 de maio de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do direito de ser ouvido no âmbito do procedimento de concessão do estatuto conferido pela proteção subsidiária previsto na Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO 2004, L 304, p. 12).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M, cidadão ruandês, ao Minister for Justice and Equality (Ministro da Justiça e da Igualdade, Irlanda) (a seguir «ministro»), à Irlanda e ao Attorney General, a respeito da regularidade do processo de análise de um pedido de proteção subsidiária apresentado por M às autoridades irlandesas.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2004/83

3

O artigo 2.o da Diretiva 2004/83, sob a epígrafe «Definições», previa:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

e)

‘Pessoa elegível para proteção subsidiária’, o nacional de um país terceiro ou apátrida que não possa ser considerado refugiado, mas em relação ao qual se verificou existirem motivos significativos para acreditar que, caso volte para o seu país de origem ou, no caso de um apátrida, para o país em que tinha a sua residência habitual, correria um risco real de sofrer ofensa grave na aceção do artigo 15.o, e ao qual não se apliquem os n.os 1 e 2 do artigo 17.o, e que não possa ou, em virtude dos referidos riscos, não queira pedir a proteção desse país;

[…]»

4

O artigo 4.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Apreciação dos factos e circunstâncias», tinha a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros podem considerar que incumbe ao requerente apresentar o mais rapidamente possível todos os elementos necessários para justificar o pedido de proteção internacional. Incumbe ao Estado‑Membro apreciar, em cooperação com o requerente, os elementos pertinentes do pedido.

2.   Os elementos mencionados no n.o 1 consistem nas declarações do requerente e em toda a documentação de que o requerente disponha sobre a sua idade, história pessoal, incluindo a dos familiares pertinentes, identidade, nacionalidade(s), país(es) e local(is) de residência anteriores, pedidos de asilo anteriores, itinerários, documentos de identificação e de viagem, e os motivos pelos quais solicita a proteção internacional.

3.   A apreciação do pedido de proteção internacional deve ser efetuada a título individual e ter em conta:

a)

Todos os factos pertinentes respeitantes ao país de origem à data da decisão sobre o pedido, incluindo a respetiva legislação e regulamentação, assim como a maneira como são aplicadas;

b)

As declarações e a documentação pertinentes apresentadas pelo requerente, incluindo informações sobre se o requerente sofreu ou pode sofrer perseguição ou ofensa grave;

c)

A situação e as circunstâncias pessoais do requerente, incluindo fatores como a sua história pessoal, sexo e idade, por forma a apreciar, com base na situação pessoal do requerente, se os atos a que foi ou possa vir a ser exposto podem ser considerados perseguição ou ofensa grave;

d)

Se as atividades empreendidas pelo requerente desde que deixou o seu país de origem tinham por fito único ou principal criar as condições necessárias para requerer proteção internacional, por forma a apreciar se essas atividades exporão o interessado a perseguição ou ofensa grave se regressar a esse país;

e)

Se era razoável prever que o requerente podia valer‑se da proteção de outro país do qual pudesse reivindicar a cidadania.

4.   O facto de o requerente já ter sido perseguido ou diretamente ameaçado de perseguição, ou ter sofrido ou sido diretamente ameaçado de ofensa grave, constitui um indício sério do receio fundado do requerente de ser perseguido ou do risco real de sofrer ofensa grave, a menos que haja motivos sérios para considerar que essa perseguição ou ofensa grave não se repetirá.

5.   Sempre que os Estados‑Membros aplicarem o princípio segundo o qual incumbe ao requerente justificar o seu pedido de proteção internacional e sempre que houver elementos das declarações do requerente que não sejam sustentados por provas documentais ou de outra natureza, esses elementos não têm de ser confirmados quando estiverem reunidas as seguintes condições:

a)

For autêntico o esforço envidado pelo requerente para justificar o seu pedido;

b)

Tenham sido apresentados todos os elementos pertinentes ao dispor do requerente e tenha sido dada uma explicação satisfatória para a eventual falta de outros elementos pertinentes;

c)

As declarações do requerente tenham sido consideradas coerentes e plausíveis, não contradizendo informações gerais ou particulares disponíveis pertinentes para o seu pedido;

d)

O requerente tenha apresentado o pedido de proteção internacional com a maior brevidade possível, a menos que possa motivar seriamente por que o não fez; e

e)

Tenha sido apurada a credibilidade geral do requerente.»

5

O artigo 15.o desta mesma diretiva, sob a epígrafe «Ofensas graves», dispunha:

«São ofensas graves:

a)

A pena de morte ou a execução; ou

b)

A tortura ou a pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu país de origem; ou

c)

A ameaça grave e individual contra a vida ou a integridade física de um civil, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno.»

Diretiva 2005/85/CE

6

Sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», o artigo 3.o da Diretiva 2005/85/CE do Conselho, de 1 de dezembro de 2005, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados‑Membros (JO 2005, L 326, p. 13), enunciava:

«1.   A presente diretiva é aplicável a todos os pedidos de asilo apresentados no território dos Estados‑Membros, incluindo a fronteira e as zonas de trânsito, bem como à retirada do estatuto de refugiado.

[…]

3.   Quando os Estados‑Membros aplicarem ou introduzirem um procedimento no âmbito do qual os pedidos de asilo sejam apreciados como pedidos com base na Convenção de Genebra e como pedidos de outros tipos de proteção internacional concedida nas circunstâncias definidas no artigo 15.o da Diretiva [2004/83], devem aplicar a presente diretiva ao longo de todo esse procedimento.

[…]»

Direito irlandês

7

O direito irlandês distingue entre dois tipos de pedidos para efeitos da obtenção de proteção internacional, a saber:

o pedido de asilo, e

o pedido de proteção subsidiária.

8

Cada um destes pedidos é objeto de um processo específico, sendo que o processo relativo a um pedido de proteção subsidiária, que só é aberto se o pedido de asilo for indeferido, decorre na sequência do processo que teve por objeto a análise deste último pedido.

9

Decorre da decisão de reenvio que as disposições nacionais que regem o tratamento dos pedidos de asilo figuram, no essencial, na Refugee Act 1996 (Lei de 1996 sobre os Refugiados), na versão em vigor à data dos factos no processo principal. O processo de apreciação dos pedidos de asilo inclui, designadamente, uma entrevista pessoal com o requerente.

10

As disposições relativas ao processo de análise dos pedidos de proteção subsidiária figuram no European Communities (Eligibility for Protection) Regulations 2006 [Decreto de 2006 relativo às Comunidades Europeias (requisitos para poder beneficiar de uma proteção)], adotado pelo ministro, em 9 de outubro de 2006, e que tem por objeto, nomeadamente, a transposição da Diretiva 2004/83 para o direito nacional.

11

O pedido de proteção subsidiária é apresentado através de um formulário cujo modelo figura em anexo a este decreto.

12

O referido decreto não contém nenhuma disposição que preveja que o requerente dessa proteção subsidiária seja ouvido no âmbito da instrução do seu pedido.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

13

M entrou na Irlanda em setembro de 2006 com um visto de estudante. Terminados os seus estudos, M apresentou um pedido de asilo que foi indeferido pelo Refugee Applications Commissionner (comissário responsável pelos pedidos de asilo, Irlanda), em 30 de agosto de 2008. Por sentença de 28 de outubro de 2008, o Refugee Appeals Tribunal (tribunal de recurso em matéria de refugiados, Irlanda) negou provimento ao recurso interposto dessa decisão.

14

Subsequentemente, M apresentou um pedido de proteção subsidiária. Este pedido foi indeferido em 30 de setembro de 2010 e, em 5 de outubro de 2010, o ministro tomou uma decisão de afastamento contra M. Na decisão de 30 de setembro de 2010, o ministro baseou‑se, em grande medida, nas decisões anteriores relativas ao pedido de asilo apresentado por M para concluir que este não tinha feito prova da existência de motivos sérios para considerar que corria um risco de sofrer ofensas graves, tendo em conta, nomeadamente, as dúvidas sérias quanto à credibilidade das alegações formuladas no seu pedido.

15

Em 6 de janeiro de 2011, M interpôs recurso na High Court (Tribunal Superior, Irlanda) da decisão que indefere o seu pedido de proteção subsidiária.

16

No âmbito da apreciação do referido recurso, a High Court submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«[No] caso em que um requerente pede o estatuto de proteção subsidiária na sequência de uma recusa de concessão do estatuto de refugiado e é proposto o indeferimento desse pedido, a exigência de cooperação com o requerente, imposta ao Estado‑Membro pelo artigo 4.o, n.o 1, [segunda frase,] da Diretiva 2004/83 […], obriga as autoridades administrativas do Estado‑Membro em questão a fornecer a esse requerente os resultados da avaliação antes da decisão final, de modo a permitir‑lhe reagir aos aspetos da proposta de decisão que [apontam para uma resposta] negativ[a]?»

17

No seu acórdão de 22 de novembro de 2012, M. (C‑277/11, EU:C:2012:744), o Tribunal de Justiça considerou, designadamente, que num sistema como o instituído pela regulamentação nacional em causa no processo que deu origem a esse acórdão, caracterizado pela existência de dois processos distintos e sucessivos para efeitos da análise, respetivamente, do pedido de obtenção do estatuto de refugiado e do pedido de proteção subsidiária, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio assegurar o respeito, no âmbito de cada um desses processos, dos direitos fundamentais do requerente, mais concretamente, do direito de ser ouvido, no sentido de que deve poder dar a conhecer utilmente as suas observações, antes da adoção de qualquer decisão que não conceda o benefício da proteção requerida. Em tal sistema, a circunstância de o interessado já ter sido validamente ouvido quando da instrução do seu pedido de concessão do estatuto de refugiado não implica que essa formalidade possa ser dispensada no âmbito do procedimento relativo ao pedido de proteção subsidiária.

18

Na sequência do acórdão de 22 de novembro de 2012, M. (C‑277/11, EU:C:2012:744), a High Court declarou, em 23 de junho de 2013, que o ministro tinha, erradamente, omitido a marcação da audição efetiva de M quando da análise do seu pedido de proteção subsidiária.

19

O ministro recorreu dessa decisão para a Supreme Court (Tribunal Supremo, Irlanda). M, por sua vez, interpôs um recurso subordinado daquela decisão.

20

Nestas condições, a Supreme Court (Supremo Tribunal) decidiu, por decisão de 24 de novembro de 2014, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O ‘direito de ser ouvido’ estabelecido pelo direito da União Europeia exige que um pedido de proteção subsidiária, apresentado nos termos da [Diretiva 2004/83], seja objeto de uma audiência de alegações que inclua o direito de produzir ou de contraditar testemunhas, quando esse pedido seja feito em circunstâncias em que os Estados‑Membros em causa prevejam dois procedimentos autónomos, um para apreciar os pedidos de concessão do estatuto de refugiado e outro para os pedidos de proteção subsidiária, respetivamente?»

Quanto à questão prejudicial

21

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito de ser ouvido exige que, quando uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, prevê dois processos distintos e sucessivos para efeitos da apreciação, respetivamente, do pedido de obtenção do estatuto de refugiado e do pedido de proteção subsidiária, o requerente da proteção subsidiária beneficie do direito a uma audição sobre o seu pedido ou do direito de indicar e de contrainterrogar testemunhas por ocasião dessa audição.

22

A Diretiva 2005/85 estabelece normas mínimas relativas aos processos de exame dos pedidos de proteção internacional e especifica os direitos dos requerentes de asilo. O artigo 3.o, n.os 1 e 3, desta diretiva especifica que a mesma se aplica aos pedidos de asilo apreciados como pedidos com base na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], e como pedidos de outros tipos de proteção internacional concedida nas circunstâncias definidas no artigo 15.o da Diretiva 2004/83 (v. acórdão de 20 de outubro de 2016, Danqua, C‑429/15, EU:C:2016:789, n.o 26).

23

Consequentemente, o Tribunal de Justiça declarou que a Diretiva 2005/85 só se aplica aos pedidos de proteção subsidiária quando um Estado‑Membro institua um processo único no âmbito do qual examine um pedido à luz das duas formas de proteção internacional, a saber, a forma relativa ao estatuto de refugiado e a forma respeitante à proteção subsidiária (v. acórdão de 20 de outubro de 2016, Danqua,C‑429/15, EU:C:2016:789, n.o 27).

24

Contudo, resulta dos autos que esse não era o caso da Irlanda à data dos factos subjacentes ao processo principal, pelo que a Diretiva 2005/85 não se aplica ao tratamento dos pedidos de proteção subsidiária naquele Estado‑Membro.

25

Dito isto, na medida em que se deve considerar que o direito de ser ouvido faz parte integrante do respeito pelos direitos de defesa, que constitui um princípio geral do direito da União, a obrigação de respeitar o direito de ser ouvido dos destinatários de decisões que afetem sensivelmente os seus interesses incumbe, em princípio, às Administrações dos Estados‑Membros, sempre que estas tomem decisões abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União e mesmo quando a regulamentação aplicável não preveja expressamente essa formalidade (v., neste sentido, acórdãos de 5 de novembro de 2014, Mukarubega, C‑166/13, EU:C:2014:2336, n.os 49 e 50, e de 11 de dezembro de 2014, Boudjlida, C‑249/13, EU:C:2014:2431, n.os 39 e 40).

26

Assim, como declarou o Tribunal de Justiça no n.o 91 do acórdão de 22 de novembro de 2012, M. (C‑277/11, EU:C:2012:744), quando uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, prevê dois processos distintos e sucessivos para a análise do pedido de asilo e do pedido de proteção subsidiária, o direito do interessado de ser ouvido deve ser plenamente garantido no âmbito de cada um desses dois processos.

27

Não resulta do que precede, porém, que, numa situação como a que está em causa no processo principal, esse direito exige que se proceda necessariamente à audição pessoal no âmbito do procedimento relativo à análise do pedido de proteção subsidiária.

28

Com efeito, em primeiro lugar, não decorre das considerações que figuram no acórdão de 22 de novembro de 2012, M. (C‑277/11, EU:C:2012:744) que a audição pessoal deva necessariamente ser organizada no âmbito do processo relativo à concessão da proteção subsidiária.

29

Como salientou o advogado‑geral nos n.os 52 a 55 das suas conclusões, Tribunal de Justiça limitou‑se, no n.o 90 do acórdão de 22 de novembro de 2012, M. (C‑277/11, EU:C:2012:744), a precisar que não pode ser admitida a tese defendida pelo órgão jurisdicional de reenvio e pela Irlanda, segundo a qual o facto de o requerente já ter sido ouvido no âmbito da instrução do pedido de asilo torna supérflua a organização de uma audição no âmbito da análise do pedido de proteção subsidiária subsequente. Assim, o Tribunal de Justiça simplesmente recordou a necessidade de garantir o respeito do direito de ser ouvido do requerente de proteção subsidiária mesmo que já tenha sido ouvido no âmbito da análise do seu pedido de asilo, sem todavia constatar que existe uma obrigação de proceder, em quaisquer circunstâncias, à audição sobre o pedido de proteção subsidiária.

30

Em segundo lugar, recorde‑se que, na falta de regulamentação da União na matéria aplicável na Irlanda, cabe à ordem jurídica interna deste Estado‑Membro definir as modalidades processuais relativas à análise de um pedido de proteção subsidiária, visto que esse Estado‑Membro é responsável por assegurar, nesse quadro, uma proteção efetiva dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União e, em particular, por garantir o respeito do direito do requerente da proteção subsidiária de ser ouvido (v., neste sentido, acórdão de 8 de novembro de 2016, Lesoochranárske zoskupenie VLK, C‑243/15, EU:C:2016:838, n.o 65).

31

A este respeito, é de salientar que o direito de ser ouvido garante a este requerente a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efetiva, no decurso do procedimento administrativo, o seu ponto de vista sobre o seu pedido de proteção subsidiária e os motivos que possam justificar que a autoridade se abstenha de tomar uma decisão desfavorável (v., por analogia, acórdãos de 11 de dezembro de 2014, Boudjlida, C‑249/13, EU:C:2014:2431, n.o 54, e de 17 de março de 2016, Bensada Benallal, C‑161/15, EU:C:2016:175, n.o 33).

32

Além disso, o direito de ser ouvido deve permitir à Administração instruir o processo de maneira a tomar uma decisão com conhecimento de causa, atendendo a todos os elementos pertinentes, e fundamentá‑la adequadamente, de modo a que, sendo o caso, o requerente possa validamente exercer o seu direito de recurso (v., neste sentido, acórdãos de 18 de dezembro de 2008, Sopropé, C‑349/07, EU:C:2008:746, n.o 49, e de 11 de dezembro de 2014, Boudjlida, C‑249/13, EU:C:2014:2431, n.o 59).

33

Por outro lado, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de uma violação do direito de ser ouvido deve ser apreciada em função, designadamente, das normas jurídicas que regem a matéria em causa (v., neste sentido, acórdão de 10 de setembro de 2013, G. e R., C‑383/13 PPU, EU:C:2013:533, n.o 34 e jurisprudência referida).

34

Daqui resulta que as modalidades segundo as quais um requerente de proteção subsidiária deve poder exercer o seu direito de ser ouvido antes da adoção de uma decisão final sobre o seu pedido devem ser apreciadas à luz das disposições da Diretiva 2004/83 que visam, designadamente, estabelecer normas mínimas relativas aos requisitos que os nacionais de países terceiros devem cumprir para serem elegíveis para a proteção subsidiária (v., por analogia, acórdãos de 5 de novembro de 2014, Mukarubega, C‑166/13, EU:C:2014:2336, n.o 55, e de 11 de dezembro de 2014, Boudjlida, C‑249/13, EU:C:2014:2431, n.o 45).

35

A fim de se pronunciar sobre um pedido de proteção subsidiária, a autoridade competente deve verificar se o requerente preenche os requisitos previstos no artigo 2.o, alínea e), da referida diretiva, o que implica, nomeadamente, determinar se há motivos sérios e graves para acreditar que, caso volte para o seu país de origem, correria um risco real de sofrer ofensas graves e que não possa ou, em virtude dos referidos riscos, não queira pedir a proteção desse país.

36

Para o efeito, resulta do artigo 4.o da mesma diretiva que, entre os elementos pertinentes que a autoridade competente deve ter em conta, figuram, designadamente, as informações e os documentos relativos à idade do requerente, ao seu passado, à sua identidade, à sua ou suas nacionalidades, ao seu país e locais de residência anteriores, aos seus pedidos de asilo anteriores, ao seu itinerário, às razões que justificam o seu pedido, e, mais geralmente, às ofensas graves de que tenha sido ou possa vir a ser vítima. Se for caso disso, a autoridade competente deverá ter igualmente em conta as explicações dadas quanto à falta de elementos probatórios e à credibilidade geral do requerente.

37

Por conseguinte, o direito de ser ouvido antes da adoção de uma decisão relativa a um pedido de proteção subsidiária deve permitir ao requerente expor o seu ponto de vista sobre todos estes elementos, de modo a corroborar o seu pedido e permitir à Administração proceder com pleno conhecimento de causa à avaliação individual dos factos e das circunstâncias prevista no artigo 4.o da Diretiva 2004/83, a fim de determinar se existe um risco real de esse requerente sofrer ofensas graves, na aceção desta diretiva, caso volte para o seu país de origem.

38

Nestas circunstâncias, não se pode considerar, em geral, que o facto de um requerente de proteção subsidiária só ter podido expor esse ponto de vista por escrito não permite respeitar efetivamente o seu direito de ser ouvido antes da adoção de uma decisão sobre o seu pedido.

39

Com efeito, atendendo à natureza dos elementos referidos no n.o 36 do presente acórdão, não se pode, em princípio, excluir que os mesmos possam ser utilmente levados ao conhecimento da autoridade competente através de declarações escritas do requerente de proteção subsidiária ou de um formulário adaptado previsto para o efeito, acompanhados, se for caso disso, das provas documentais que o requerente queira juntar ao seu pedido.

40

Esse mecanismo processual, desde que deixe uma margem de manobra suficiente ao requerente para exprimir o seu ponto de vista e que este possa beneficiar, se necessário, de assistência adequada, é suscetível de permitir ao requerente que se exprima detalhadamente sobre os elementos que devam ser tomados em consideração pela autoridade competente e que exponha, se o julgar útil, informações ou apreciações diferentes das que já apresentou à autoridade competente quando da análise do seu pedido de asilo.

41

Do mesmo modo, este mecanismo pode fornecer à autoridade competente os elementos relativos ao requerente de proteção internacional, referidos no artigo 4.o, n.os 2 a 5, da Diretiva 2004/83, com base nos quais esta autoridade deve proceder à avaliação individual dos factos e das circunstâncias pertinentes, e, portanto, permitir‑lhe tomar a sua decisão com pleno conhecimento de causa e fundamentar adequadamente esta última.

42

Por outro lado, é de recordar que, numa situação como a que está em causa no processo principal, a análise do pedido de proteção subsidiária surge na sequência de um processo de asilo, no decurso do qual o requerente de proteção internacional beneficiou de uma audição relativa ao seu pedido de asilo.

43

Ora, certas informações ou determinados elementos recolhidos durante essa audição poderiam igualmente revelar‑se úteis para apreciar o mérito de um pedido de proteção subsidiária. Em especial, elementos relativos ao estatuto pessoal do requerente ou à sua situação pessoal poderiam ser pertinentes quer para a análise do seu pedido de asilo quer para a do seu pedido de proteção subsidiária.

44

Por conseguinte, embora uma audição realizada no decurso do processo de asilo não baste, enquanto tal, para assegurar o respeito do direito do requerente de ser ouvido a respeito do seu pedido de proteção subsidiária (v., neste sentido, acórdão de 22 de novembro de 2012, M., C‑277/11, EU:C:2012:744, n.o 90), não se pode excluir que a autoridade competente tenha em conta, para efeitos da apreciação do pedido de proteção subsidiária, certas informações ou determinados elementos recolhidos durante essa audição que lhe permitam pronunciar‑se sobre esse pedido com pleno conhecimento de causa.

45

Aliás, há que referir, a este respeito, que o direito de o requerente de proteção subsidiária se exprimir por escrito sobre os fundamentos suscetíveis de corroborar o seu pedido lhe oferece a oportunidade de expor o seu ponto de vista sobre a apreciação, pela autoridade competente, para decidir sobre o seu pedido de asilo, dessas informações e desses elementos.

46

Por outro lado, cumpre salientar que, embora a organização de uma nova audição quando da análise do pedido de proteção subsidiária possa oferecer ao requerente a oportunidade de acrescentar novos elementos aos que já tiver exposto por escrito, o direito de ser ouvido não implica que essa possibilidade lhe seja dada (v., neste sentido, acórdão de 5 de novembro de 2014, Mukarubega, C‑166/13, EU:C:2014:2336, n.o 71).

47

Dito isto, não é menos verdade que, em determinados casos, as circunstâncias específicas possam tornar necessária a organização de uma audição para que o direito de ser ouvido do requerente da proteção subsidiária seja efetivamente respeitado.

48

A este respeito, é de recordar que, se, por qualquer razão, os elementos fornecidos pelo requerente de uma proteção internacional não estiverem completos, não forem atuais ou pertinentes, decorre do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2004/83 que o Estado‑Membro em causa deve cooperar ativamente com o requerente para permitir a reunião de todos os elementos que permitam apreciar o seu pedido (v., neste sentido, acórdão de 22 de novembro de 2012, M., C‑277/11, EU:C:2012:744, n.o 66).

49

Por conseguinte, deve ser organizada uma audição se a autoridade competente não estiver objetivamente em condições de, com base nos elementos de que dispõe após a fase escrita do processo e a audição do requerente realizada quando da análise do seu pedido de asilo, determinar com pleno conhecimento de causa se existem sérios e fundados motivos para acreditar que, caso o requerente volte para o seu país de origem, correria um risco real de sofrer ofensas graves e que não possa ou, em virtude dos referidos riscos, não queira pedir a proteção desse país.

50

Nesse caso, a audição poderia efetivamente permitir à autoridade competente interrogar o requerente sobre os elementos em falta para decidir quanto ao seu pedido e, se for caso disso, verificar se estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2004/83.

51

Uma audição deve igualmente ser organizada se se afigurar, atendendo à situação pessoal ou geral na qual se insere o pedido de proteção subsidiária, designadamente a eventual vulnerabilidade especial do requerente, tendo, por exemplo, em conta a sua idade, o seu estado de saúde ou o facto de este ter sido vítima de formas graves de violência, que essa audição é necessária para lhe permitir exprimir‑se completa e coerentemente sobre os elementos suscetíveis de corroborar o pedido.

52

Por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se existem, no processo principal, circunstâncias específicas que tornem necessária a audição do requerente de proteção subsidiária para que o seu direito de ser ouvido seja efetivamente respeitado.

53

Caso essa audição devesse ter sido organizada num processo como o que está em causa no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o requerente de proteção subsidiária tem o direito de indicar e de contrainterrogar testemunhas por ocasião dessa audição.

54

A este respeito, importa referir, por um lado, que tal direito ultrapassa as exigências que decorrem normalmente do direito de ser ouvido nos procedimentos administrativos, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdão de 7 de janeiro de 2004, Aalborg Portland e o./Comissão, C‑204/00 P, C‑205/00 P, C‑211/00 P, C‑213/00 P, C‑217/00 P e C‑219/00 P, EU:C:2004:6, n.o 200), e, por outro, que as regras aplicáveis à análise dos pedidos de proteção subsidiária, em especial as que se encontram previstas no artigo 4.o, da Diretiva 2004/83, não conferem à prova testemunhal especial importância para apreciar os factos e as circunstâncias pertinentes.

55

Daqui resulta que o direito de ser ouvido não implica que um requerente de proteção subsidiária beneficie do direito de indicar ou de contrainterrogar testemunhas por ocasião de uma eventual audição no âmbito da análise do seu pedido.

56

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o direito de ser ouvido, tal como se aplica no âmbito da Diretiva 2004/83, não exige, em princípio, que, quando uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, prevê dois processos distintos e sucessivos para efeitos da análise, respetivamente, do pedido de obtenção do estatuto de refugiado e do pedido de proteção subsidiária, o requerente da proteção subsidiária beneficie do direito a uma audição sobre o seu pedido ou do direito de indicar e de contrainterrogar testemunhas por ocasião dessa audição.

57

No entanto, deve ser organizada uma audição se as circunstâncias específicas, relativas aos elementos de que a autoridade competente dispõe ou à situação pessoal ou geral na qual o pedido de proteção subsidiária se inscreve, a tornem necessária para analisar o pedido com pleno conhecimento de causa, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

58

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O direito de ser ouvido, tal como se aplica no âmbito da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida, não exige, em princípio, que, quando uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, prevê dois processos distintos e sucessivos para efeitos da análise, respetivamente, do pedido de obtenção do estatuto de refugiado e do pedido de proteção subsidiária, o requerente da proteção subsidiária beneficie do direito a uma audição sobre o seu pedido ou do direito de indicar e de contrainterrogar testemunhas por ocasião dessa audição.

 

No entanto, deve ser organizada uma audição se as circunstâncias específicas, relativas aos elementos de que a autoridade competente dispõe ou à situação pessoal ou geral na qual o pedido de proteção subsidiária se inscreve, a tornem necessária para analisar o pedido com pleno conhecimento de causa, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: inglês.