Processo C‑23/14

Post Danmark A/S

contra

Konkurrencerådet

(pedido de decisão prejudicial

apresentado pelo Sø‑ og Handelsretten)

«Reenvio prejudicial — Artigo 82.o CE — Abuso de posição dominante — Mercado da distribuição de envios postais em massa — Publicidade direta — Sistema de descontos retroativo — Efeito de exclusão — Critério do concorrente igualmente eficaz — Grau de probabilidade e caráter sério de um efeito anticoncorrencial»

Sumário — Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 6 de outubro de 2015

  1. Posição dominante — Abuso — Contratos de distribuição de envios postais em massa que comporta um sistema de descontos retroativos e condicionais concedidos durante um longo período — Caráter abusivo que comporta um efeito de exclusão — Critérios de apreciação

    (Artigo 82.o CE)

  2. Posição dominante — Abuso — Conceito — Conceito objetivo que visa os comportamentos suscetíveis de influenciar a estrutura do mercado e que tem por efeito criar obstáculos à manutenção ou ao desenvolvimento da concorrência

    (Artigo 82.o CE)

  3. Posição dominante — Abuso — Descontos quantitativos — Descontos de fidelidade — Qualificações respetivas — Contratos de distribuição de envios postais em massa que comporta descontos de fidelidade — Caráter abusivo — Critérios de apreciação

    (Artigo 82.o CE)

  4. Posição dominante — Abuso — Descontos não discriminatórios — Não incidência sobre um eventual efeito de exclusão

    (Artigo 82.o CE)

  5. Posição dominante — Abuso — Justificação objetiva — Requisitos — Alcance do ónus probatório

    (Artigo 82.o CE)

  6. Posição dominante — Abuso — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de exclusão — Critérios de apreciação — Obrigação de utilizar o critério do concorrente igualmente eficaz — Inexistência

    (Artigo 82.o CE)

  7. Posição dominante — Abuso — Efeito anticoncorrencial — Caráter suficiente de um efeito potencial — Exclusão efetiva ou provável dos concorrentes — Critérios de apreciação

    (Artigo 82.o CE)

  8. Posição dominante — Abuso — Efeito anticoncorrencial — Exigência de um caráter grave ou considerável — Inexistência

    (Artigo 82.o CE)

  1.  Para determinar se um sistema de descontos aplicados no âmbito de contratos de distribuição de envios postais em massa celebrados entre uma empresa em posição dominante e os seus clientes, sistema esse caracterizado por:

     

    ‑ uma escala que comporta taxas que oscilam entre os 6% e os 16%,

     

    ‑ uma condicionante no sentido de que no fim de um período de referência a empresa em posição dominante procede a um ajustamento quando as quantidades de correio remetidas não são iguais às que foram objeto da estimativa inicial e

     

    ‑ uma retroação no sentido de que, quando a quantidade de correspondência inicialmente fixada é ultrapassada, a taxa de desconto aplicada no fim do ano é aplicável ao conjunto da correspondência enviada durante o período em causa e não exclusivamente à correspondência que ultrapassava a quantidade inicialmente estimada,

    e aplicado por uma empresa em posição dominante é suscetível de ter um efeito de exclusão no mercado, em violação do artigo 82.o CE, importa apreciar todas as circunstâncias do caso em apreço, particularmente os critérios e as modalidades da concessão do desconto, o alcance da posição dominante da empresa em causa e as condições de concorrência específicas do mercado relevante. O facto de o referido sistema de descontos abranger a maior parte dos clientes no mercado pode constituir uma indicação útil da importância dessa prática e do seu impacto no mercado, uma vez que pode reforçar a verosimilhança de um efeito de exclusão anticoncorrencial.

    A este respeito, em primeiro lugar, as obrigações contratuais que incidem sobre os cocontratantes de uma empresa em posição dominante e a pressão exercida sobre estes podem ser particularmente fortes quando os descontos não se referem apenas ao aumento das compras dos produtos desta empresa realizadas por estes cocontratantes durante o período tomado em consideração mas abrangem igualmente a totalidade dessas compras. Deste modo, mesmo alterações relativamente ligeiras nas vendas de produtos da empresa em posição dominante têm um impacto desproporcionado nos cocontratantes. É inerente a qualquer sistema de descontos concedidos em função das quantidades vendidas durante um período de referência relativamente longo que, terminado o período de referência, aumenta para o comprador a pressão no sentido de realizar o volume de compras necessário a fim de obter a vantagem ou de não sofrer a perda prevista para a totalidade do período de referência. Por conseguinte, esse sistema de descontos é suscetível de permitir à empresa em posição dominante fidelizar mais facilmente os seus clientes e atrair os clientes dos seus concorrentes e, assim, canalizar a seu favor a parte da procura sujeita à concorrência no mercado relevante. Este efeito de atração é ainda maior quando os descontos se aplicam indistintamente à parte disputável e à parte indisputável da procura abrangida por um monopólio legal.

    Em segundo lugar, a posse de uma quota de mercado extremamente importante coloca a empresa que a detém numa situação de força, transformando‑a num parceiro obrigatório e assegurando‑lhe uma independência de comportamento. Nestas condições, é especialmente difícil para os concorrentes da referida empresa competir com descontos concedidos em função do volume total de vendas. Devido à sua quota de mercado sensivelmente mais elevada, a empresa em posição dominante é, em regra, um parceiro obrigatório no mercado.

    Nestas condições, um sistema de descontos praticado por uma empresa que, sem vincular através de uma obrigação formal os clientes a esta última, se destina, contudo, a tornar mais difícil o abastecimento desses clientes junto de empresas concorrentes, produz um efeito de exclusão anticoncorrencial.

    (cf. n.os 23‑25, 33‑35, 40, 42, 50, disp. 1)

  2.  V. texto da decisão.

    (cf. n.o 26)

  3.  No caso de descontos concedidos por uma empresa em posição dominante aos seus clientes, contrariamente a um desconto de quantidade, ligado exclusivamente ao volume das compras efetuadas no produtor em causa que, em princípio, não é suscetível de violar o artigo 82.o CE, um desconto de fidelidade, que se destina a impedir, através da concessão de vantagens financeiras, que os seus clientes se abasteçam junto de produtores concorrentes na totalidade ou numa parte significativa das suas necessidades, constitui um abuso na aceção desse artigo. A este respeito, um sistema que não impunha uma obrigação ou uma promessa dos compradores de se abastecerem exclusivamente ou numa certa quota das suas necessidades junto da empresa em posição dominante distingue‑se dos descontos de fidelidade.

    Um sistema de descontos não pode ser considerado um simples desconto de quantidade, na medida em que os descontos em causa não são concedidos para cada pedido individual, correspondendo assim às poupanças de despesas realizadas pelo fornecedor, mas em função de todos os pedidos apresentados durante um certo período. Nestas condições, a fim de determinar se a empresa em posição dominante explorou de forma abusiva essa posição ao aplicar esse sistema de descontos, importa apreciar todas as circunstâncias, nomeadamente os critérios e as modalidades da concessão do desconto, e apurar se esse desconto se destina, através de uma vantagem que não assenta em nenhuma prestação económica que a justifique, a suprimir ou restringir a possibilidade de o comprador escolher as suas fontes de abastecimento, a impedir o acesso ao mercado dos concorrentes, a aplicar a parceiros comerciais condições desiguais para prestações equivalentes ou a reforçar a posição dominante através de uma concorrência falseada.

    (cf. n.os 27‑29, 64)

  4.  V. texto da decisão.

    (cf. n.o 38)

  5.  V. texto da decisão.

    (cf. n.os 47‑49)

  6.  Não se pode deduzir do artigo 82.o CE qualquer dever jurídico de tomar como base sistematicamente o critério do concorrente igualmente eficaz para verificar o caráter abusivo de um sistema de descontos praticado por uma empresa em posição dominante. No entanto, esta conclusão não deve ter por efeito excluir, por princípio, o recurso ao critério do concorrente igualmente eficaz nos processos que põem em causa um sistema de descontos a fim de apreciar a sua conformidade com o artigo 82.o CE.

    Em contrapartida, numa situação caracterizada pela detenção pela empresa em posição dominante de uma quota de mercado muito grande e pelas vantagens estruturais conferidas, nomeadamente, pelo monopólio legal dessa empresa que diz respeito a uma parte muito grande do mercado em causa, a aplicação do critério do concorrente igualmente eficaz não é pertinente na medida em que a estrutura do mercado torna praticamente impossível que surja um concorrente igualmente eficaz.

    Além disso, num mercado cujo acesso está protegido através de fortes limitações, a presença de um concorrente menos eficaz poderia contribuir para intensificar a pressão concorrencial nesse mercado e, por esse motivo, condicionar o comportamento da empresa em posição dominante.

    O critério do concorrente igualmente eficaz deve, assim, ser considerado um instrumento entre outros tendo em vista apreciar a existência de uma exploração abusiva de uma posição dominante no âmbito de um sistema de descontos.

    (cf. n.os 57‑62, disp. 2)

  7.  Só são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 82.o CE as empresas em posição dominante cujo comportamento é suscetível de ter um efeito anticoncorrencial no mercado. A este respeito, a apreciação da capacidade de um sistema de descontos para restringir a concorrência deve ser efetuada tendo em conta o conjunto das circunstâncias relevantes, nomeadamente as modalidades e os critérios segundo os quais os descontos são concedidos, o número de clientes abrangidos e as características do mercado em que a empresa dominante opera. Essa apreciação visa determinar se o comportamento da empresa em posição dominante tem por resultado a exclusão efetiva ou provável dos concorrentes, em detrimento da concorrência e, nessa medida, dos interesses dos consumidores.

    (cf. n.os 67‑69, 74, disp. 3)

  8.  Quanto ao caráter grave ou considerável de um efeito anticoncorrencial, embora seja verdade que a declaração da existência de uma posição dominante não implica, só por si, qualquer censura à empresa em causa, o comportamento dessa empresa, pelo facto de a estrutura concorrencial do mercado já estar enfraquecida, pode levar a uma exploração abusiva da sua posição dominante. Deste modo, recai sobre a empresa que detém uma posição dominante a responsabilidade especial de não prejudicar, através do seu comportamento, uma concorrência efetiva e não falseada no mercado interno.

    Além disso, na medida em que a estrutura concorrencial do mercado já está enfraquecida pela presença da empresa dominante, qualquer restrição suplementar dessa estrutura concorrencial é suscetível de constituir uma exploração abusiva de posição dominante.

    Daqui decorre que a fixação de um limiar de sensibilidade (de minimis) para determinar uma exploração abusiva de uma posição dominante não se justifica. Com efeito, esta prática anticoncorrencial é, pela sua própria natureza, suscetível de provocar restrições à concorrência consideráveis, nomeadamente eliminar a concorrência no mercado em que a empresa em causa opera.

    (cf. n.os 70‑74, disp. 3)