YVES BOT
apresentadas em 14 de abril de 2016 ( 1 )
Processo C‑492/14
Essent Belgium NV
contra
Vlaams Gewest,
Inter Energa e o.,
Vlaamse Regulator van de Elektriciteits‑ en Gasmarkt (VREG)
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo rechtbank van eerste aanleg te Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas, Bélgica)]
«Reenvio prejudicial — Regimes de distribuição gratuita da eletricidade verde injetada diretamente nas redes de distribuição — Recusa de tomada em consideração da eletricidade verde produzida fora do Estado‑Membro em causa — Livre circulação de mercadorias — Artigo 28.o CE»
I – Introdução
1. |
O pedido de decisão prejudicial diz respeito à interpretação dos artigos 12.°, 28.° e 30.° CE bem como do artigo 3.o, n.os 1 e 4, da Diretiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 96/92/CE ( 2 ). |
2. |
Este pedido foi apresentado no âmbito de litígios que opõem a Essent Belgium NV ( 3 ) à Vlaams Gewest (Região da Flandres), entre outros, e colocam em questão a responsabilidade extracontratual desta região pela adoção de regulamentações sucessivas que reservam o benefício da distribuição gratuita da eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis ( 4 ) à eletricidade verde injetada diretamente nas redes de distribuição situadas, numa primeira fase, na Região da Flandres e, numa segunda fase, na totalidade do Estado‑Membro do qual esta região faz parte. |
3. |
Nos seus acórdãos de 1 de julho de 2014, Ålands Vindkraft ( 5 ), e de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium ( 6 ), o Tribunal de Justiça admitiu que o benefício de regimes de apoio nacionais à produção de eletricidade verde através da utilização de certificados negociáveis podia ser limitado apenas à produção de eletricidade verde localizada no território do Estado‑Membro em questão. |
4. |
Tendo já tido a oportunidade de expor as razões pelas quais estas limitações territoriais dos regimes de apoio não me parecem conformes com os requisitos da livre circulação de mercadorias ( 7 ), não entrarei em combates de retaguarda, apesar de a fundamentação dos acórdãos do Tribunal de Justiça não me convencer. |
5. |
Limitar‑me‑ei, nas presentes conclusões, a apurar se o raciocínio do Tribunal de Justiça é transponível para um regime de gratuitidade de distribuição da eletricidade verde, como os que estão em causa no processo principal. |
6. |
Responderei a esta questão em sentido afirmativo, daí deduzindo que o princípio da não‑discriminação constante, nomeadamente, do artigo 12.o CE e das Diretivas 96/92/CE ( 8 ), 2003/54 e 2001/77/CE ( 9 ) bem como os artigos 28.° e 30.° CE, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional, como as que estão em causa no processo principal, a qual, ao reservar o benefício da distribuição gratuita da eletricidade verde apenas às instalações de produção diretamente ligadas às redes de distribuição situadas no Estado‑Membro em causa ou numa região do território desse Estado, exclui, desse modo, as instalações de produção situadas nos outros Estados‑Membros. |
II – Quadro jurídico
A – Direito da União
1. Regulamentação relativa ao mercado interno da eletricidade
7. |
A realização progressiva do mercado interno da eletricidade traduziu‑se na adoção de várias diretivas sucessivas, entre as quais as Diretivas 96/92 e 2003/54. |
a) Diretiva 96/92
8. |
O considerando 4 da Diretiva 96/92 insistia na importância da criação do mercado interno da eletricidade para racionalizar a produção, o transporte e a distribuição da eletricidade, reforçando simultaneamente a segurança de abastecimento e a competitividade da economia europeia e respeitando a proteção do ambiente. |
9. |
O considerando 28 desta diretiva precisava que, por razões de proteção do ambiente, devia ser privilegiada a produção de eletricidade verde. |
10. |
O artigo 11.o, n.os 2 e 3, da referida diretiva dispunha: «2. Em caso algum o operador da rede de distribuição poderá tomar medidas discriminatórias entre os utilizadores ou categorias de utilizadores da rede, nomeadamente a favor das suas filiais ou dos seus acionistas. 3. Os Estados‑Membros podem exigir que, ao mobilizarem as instalações de produção, os operadores de redes deem prioridade às instalações que utilizem fontes de energia renováveis ou resíduos ou um processo de produção que combine calor e eletricidade.» |
11. |
O artigo 16.o da Diretiva 96/92 dispunha: «Para efeitos da organização do acesso à rede, os Estados‑Membros podem optar entre os sistemas previstos no artigo 17.o e/ou no artigo 18.o Qualquer desses sistemas será aplicado segundo critérios objetivos, transparentes e não discriminatórios.» |
b) Diretiva 2003/54
12. |
Tendo entrado em vigor em 4 de agosto de 2003, a Diretiva 2003/54 foi revogada pela Diretiva 2009/72/CE ( 10 ). |
13. |
O considerando 26 da Diretiva 2003/54 indicava que «[o] cumprimento dos requisitos de serviço público constitui uma exigência fundamental da presente diretiva, e é importante que nela sejam especificadas normas mínimas comuns, a respeitar por todos os Estados‑Membros, que tenham em conta os objetivos de proteção do consumidor, de segurança do fornecimento, de proteção do ambiente e de equivalência dos níveis de concorrência em todos os Estados‑Membros. É importante que os requisitos de serviço público possam ser interpretados numa base nacional, tendo em conta as circunstâncias nacionais, e sujeitos ao respeito do direito comunitário». |
14. |
O artigo 2.o, n.os 3 e 5, desta diretiva definia, respetivamente, o «transporte» como sendo «o transporte de eletricidade, mas sem incluir o fornecimento, numa rede interligada de muito alta tensão e de alta tensão, para efeitos de fornecimento a clientes finais ou a distribuidores» e a «distribuição» como sendo «o transporte de eletricidade em redes de distribuição de alta, média e baixa tensão, para entrega ao cliente». |
15. |
O artigo 3.o da referida diretiva, inserido no capítulo II, intitulado «Regras gerais para a organização do setor», afirmava, no seu n.o 1, os princípios da livre concorrência e da não‑discriminação entre as empresas do setor da eletricidade. |
16. |
Porém, o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2003/54 autorizava os Estados‑Membros a impor às empresas do setor da eletricidade, no interesse económico geral, obrigações de serviço público em matéria de segurança, incluindo a segurança do fornecimento, de regularidade, qualidade e preço dos fornecimentos, assim como de proteção do ambiente, incluindo a eficiência energética e a proteção do clima, desde que tais obrigações «[fossem] claramente definidas, transparentes, não discriminatórias, verificáveis» e «[garantissem] a igualdade de acesso das empresas do setor da energia elétrica da União Europeia aos consumidores nacionais». O artigo 3.o, n.o 4, desta diretiva precisava que, se o Estado‑Membro concedesse uma compensação ou direitos exclusivos pelo cumprimento dessas obrigações, tal deveria ser efetuado «de forma transparente e não discriminatória». |
17. |
Além disso, o artigo 3.o, n.o 7, da referida diretiva permitia aos Estados‑Membros «aplicar medidas adequadas para a consecução dos objetivos de coesão social e económica, de proteção do ambiente, nomeadamente medidas de eficiência energética/gestão da procura e meios de combate às alterações climáticas, e de segurança do fornecimento». Essas medidas podiam incluir «a concessão de incentivos económicos adequados, mediante o recurso, quando apropriado, aos instrumentos nacionais e comunitários disponíveis, para a manutenção e construção das infra estruturas de rede necessárias, incluindo capacidade de interligação». |
18. |
O artigo 14.o da Diretiva 2003/54, inserido no capítulo V, intitulado «Exploração da rede de distribuição», previa, no seu n.o 2, que, «[o] operador da rede não dev[ia], em caso algum, discriminar entre utilizadores ou categorias de utilizadores da rede, em especial a favor das empresas suas coligadas». O artigo 14.o, n.o 4, desta diretiva permitia expressamente aos Estados‑Membros «exigir que, ao despacharem instalações de produção, os operadores das redes [dessem] prioridade às instalações que utilizem fontes de energia renováveis ou resíduos ou um processo de produção combinada de calor e eletricidade». |
19. |
O artigo 20.o, n.o 1, da referida diretiva deixava aos Estados‑Membros a tarefa de tomarem as medidas necessárias para a aplicação de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição baseado em tarifas publicadas, e «aplicadas objetivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede». |
20. |
O artigo 23.o da Diretiva 2003/54 impunha aos Estados‑Membros a designação de entidades reguladoras incumbidas, no mínimo, de garantir a não discriminação, uma concorrência efetiva e o bom funcionamento do mercado e de fixar ou aprovar, antes da sua entrada em vigor, pelo menos as metodologias a utilizar para calcular ou estabelecer, nomeadamente, as condições de ligação e acesso às redes nacionais, incluindo as tarifas de transporte e distribuição. Estas autoridades tinham competência para obrigar, se necessário, os operadores das redes de transporte e distribuição a alterarem as condições, as tarifas, as regras, os mecanismos e as metodologias a que se referem os n.os 1 a 3 deste artigo, a fim de garantir que estes sejam proporcionados e aplicados de forma não discriminatória. |
2. Regulamentação relativa à promoção da eletricidade verde
21. |
A regulamentação aplicável ratione temporis no processo principal é a Diretiva 2001/77, que foi revogada pela Diretiva 2009/28/CE ( 11 ). |
22. |
O considerando 1 da Diretiva 2001/77 reconhecia a necessidade de promover prioritariamente as fontes de energia renováveis, ao passo que o seu considerando 2 indicava que a promoção da eletricidade verde era uma alta prioridade comunitária. |
23. |
O considerando 14 desta diretiva referia a importância de garantir o correto funcionamento dos mecanismos de apoio às fontes de energia renováveis a nível nacional, até que um quadro comunitário estivesse operacional, ao passo que o seu considerando 15 insistia no caráter prematuro da adoção de tal quadro. |
24. |
O considerando 19 da referida diretiva expunha a necessidade de ter em conta, ao favorecer o desenvolvimento de um mercado para as fontes de energia renováveis, o impacto positivo nas possibilidades de desenvolvimento regional e local, nas perspetivas de exportação, na coesão social e nas oportunidades de emprego, especialmente no que se refere às pequenas e médias empresas e aos produtores de eletricidade independentes. |
25. |
Nos termos do seu artigo 1.o, a Diretiva 2001/77 «destina‑se a promover o aumento da contribuição das fontes de energia renováveis para a produção de eletricidade no mercado interno da eletricidade e criar uma base para um futuro quadro comunitário neste setor». |
26. |
O artigo 4.o desta diretiva, intitulado «Regimes de apoio», dispunha, no seu n.o 1: «Sem prejuízo dos artigos 87.° e 88.° [CE], a Comissão avalia a aplicação dos mecanismos utilizados nos Estados‑Membros que, com base em regulamentações emitidas pelas entidades públicas, permitem a prestação de um apoio direto ou indireto aos produtores de eletricidade e possam vir a restringir as trocas comerciais, na medida em que contribuem para os objetivos estabelecidos nos artigos 6.° e 174.° [CE].» |
27. |
O artigo 7.o da referida diretiva, intitulado «Questões relativas ao sistema de rede», previa: «1. Sem prejuízo da manutenção da fiabilidade e da segurança da rede, os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para que os operadores das redes de transporte e os operadores das redes de distribuição nos respetivos territórios garantam o transporte e distribuição da eletricidade [verde]. Além disso, os Estados‑Membros podem prever um acesso prioritário da eletricidade [verde] à rede. Aquando do despacho de instalações de produção, os operadores das redes de transporte devem dar prioridade às instalações que utilizem fontes de energia renováveis, na medida em que o funcionamento da rede nacional de energia o permita. 2. Os Estados‑Membros devem criar um quadro legal ou exigir aos operadores de redes de transporte e aos operadores de redes de distribuição que estabeleçam e publiquem as suas normas‑padrão relativas ao pagamento dos custos de adaptações técnicas, tais como ligações à rede e reforços de rede, necessárias à integração de novos produtores que alimentem a rede interligada com eletricidade [verde]. Estas regras devem basear‑se em critérios objetivos, transparentes e não discriminatórios, levando em consideração, especialmente, todos os custos e benefícios relacionados com a ligação desses produtores à rede. Essas regras podem proporcionar diversos tipos de ligação. 3. Se for caso disso, os Estados‑Membros podem exigir que os operadores das redes de transporte e de distribuição paguem, total ou parcialmente, os custos mencionados no n.o 2. [...] 6. Os Estados‑Membros asseguram que a cobrança de tarifas de transporte e distribuição não discrimine a eletricidade [verde], incluindo em particular a eletricidade proveniente de fontes de energia renováveis produzida em regiões periféricas, tais como as regiões insulares e as regiões de baixa densidade populacional. Se for caso disso, os Estados‑Membros devem estabelecer um quadro jurídico ou exigir aos operadores das redes de transporte e de distribuição que garantam que as tarifas cobradas pelo transporte e pela distribuição de eletricidade proveniente de centrais que utilizem fontes de energia renováveis reflitam as vantagens realizáveis, em termos de custos, resultantes da ligação da central à rede. Essas vantagens em termos de custos podem resultar da utilização direta da rede de baixa tensão. [...]» |
B – Direito belga
28. |
Para promover a produção de eletricidade verde, o Governo flamengo instaurou, em benefício dos produtores de eletricidade verde, um regime de gratuitidade de utilização da rede de distribuição. |
29. |
Nos termos do artigo 15.o do vlaams decreet houdende de organisatie van de elektriciteitmarkt (Decreto flamengo relativo à organização do mercado da eletricidade), de 17 de julho de 2000 ( 12 ): «O operador de rede executa gratuitamente todas as tarefas necessárias à distribuição de eletricidade verde, com exceção da ligação à rede de distribuição. O Governo flamengo pode restringir o regime previsto no primeiro parágrafo.» |
30. |
Este artigo 15.o foi revogado, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2005, pelo artigo 61.o do vlaams decreet houdende bepalingen tot begeleiding van de begroting 2005 (Decreto flamengo que contém diversas medidas de acompanhamento do orçamento 2005), de 24 de dezembro de 2004 ( 13 ). |
31. |
Antes desta revogação, as modalidades de aplicação do regime de gratuitidade da distribuição conheceram importantes evoluções, marcadas pela adoção sucessiva de três portarias. |
32. |
Numa primeira fase, a besluit van de vlaamse regering inzake de bevordering van elektriciteitsopwekking uit hernieuwbare energiebronnen (Portaria do Governo flamengo que favorece a produção de eletricidade a partir de fontes de energia renováveis), de 28 de setembro de 2001 ( 14 ), concedeu o benefício da gratuitidade da distribuição à eletricidade produzida numa região que não a Região da Flandres ou no estrangeiro. Nos termos do artigo 14.o desta portaria: «[...] O operador de rede executa gratuitamente as tarefas mencionadas no artigo 15.o do Decreto relativo à eletricidade [...] Para a eletricidade que não é produzida na Região da Flandres, a autoridade responsável pela emissão dos certificados de eletricidade verde para o respetivo local de produção emite à autoridade reguladora um atestado que garante que essa eletricidade foi produzida a partir de uma fonte de energia renovável [...] e se destina a um consumidor final estabelecido na Flandres. [...]» |
33. |
Numa segunda fase, na sua versão decorrente das alterações introduzidas pela Portaria de 4 de abril de 2003 ( 15 ), que entrou em vigor em 30 de abril de 2003, o artigo 14.o da Portaria de 28 de setembro de 2001 limitou o benefício da gratuitidade apenas às instalações de produção situadas na Região da Flandres. Este artigo tinha a seguinte redação: «§ 1. Nos termos do artigo 15.o, n.o 2, do Decreto relativo à eletricidade, a distribuição gratuita, prevista no artigo 15.o, n.o 1, do mesmo decreto, é limitada à injeção de eletricidade produzida pelas instalações de produção ligadas às redes de distribuição situadas na Região da Flandres. § 2. Um fornecedor de eletricidade [verde] não tomará em conta na fatura intermédia e na conta final do cliente final dessa eletricidade nenhum custo relativo à sua distribuição [...] [...]» |
34. |
Tendo a Essent interposto um recurso de anulação do artigo 2.o da Portaria de 4 de abril de 2003, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) suspendeu a execução deste artigo por acórdão de 12 de janeiro de 2004. |
35. |
Na sequência desta suspensão, numa terceira fase, foi aprovado o besluit van de vlaamse regering inzake de bevordering van elektriciteitsopwekking uit hernieuwbare energiebronnen (Portaria do Governo flamengo que favorece a produção de eletricidade a partir de fontes de energia renováveis), de 5 de março de 2004 ( 16 ), que revogou e substituiu a Portaria de 28 de setembro de 2001, com efeitos a partir de 23 de março de 2004. |
36. |
O artigo 18.o da Portaria de 5 de março de 2004 dispunha: «§ 1. Nos termos do artigo 15.o, n.o 2, do decreto relativo à eletricidade, a distribuição gratuita, prevista no artigo 15.o, n.o 1, do mesmo decreto, é limitada à eletricidade fornecida aos consumidores finais ligados a uma rede de distribuição situada na Região da Flandres e que seja produzida a partir de uma fonte de energia renovável, na aceção do artigo 15.o, numa instalação de produção que injeta a sua eletricidade diretamente a uma rede de distribuição situada na Bélgica. § 2. Um fornecedor de eletricidade [verde] não tomará em conta na conta final do cliente final dessa eletricidade nenhum custo relativo à sua distribuição [...] [...]» |
37. |
Tendo a Essent interposto um recurso de anulação do artigo 18.o da Portaria de 5 de março de 2004, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) suspendeu a execução desta disposição por acórdão de 23 de dezembro de 2004, antes de negar provimento ao recurso, por acórdão de 13 de novembro de 2012. |
38. |
Na sequência da revogação do artigo 15.o do Decreto relativo à eletricidade pelo Decreto flamengo que contém diversas medidas de acompanhamento do orçamento para 2005, de 24 de dezembro de 2004, o artigo 18.o da Portaria de 5 de março de 2004 foi revogado, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2005, pela Portaria do Governo flamengo de 25 de março de 2005 ( 17 ). |
III – Litígio no processo principal e questões prejudiciais
39. |
Desde 2003, a Essent fornece a uma clientela residente na Região da Flandres eletricidade que importa dos Países Baixos e que, segundo afirma, é eletricidade verde. |
40. |
Considerando que tinha sofrido um prejuízo, ao perder o benefício da gratuitidade da distribuição na rede de distribuição situada na Região da Flandres, na sequência das alterações regulamentares introduzidas pela Portaria de 4 de abril de 2003 e, seguidamente, pela de 5 de março de 2004, a Essent intentou uma ação de responsabilidade civil no rechtbank van eerste aanleg te Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas) contra a Região da Flandres, pedindo que a sentença a proferir fosse declarada oponível à Vlaamse Reguleringsinstantie voor de Elektriciteits‑ en Gasmarkt ( 18 ) (Autoridade reguladora do mercado do gás e da eletricidade), órgão competente para se pronunciar sobre as tarifas de distribuição da eletricidade e a sobre a eventual gratuitidade desta, bem como a vários operadores privados e públicos de redes de distribuição que tinham exigido à Essent o pagamento de custos de distribuição. |
41. |
Em apoio destes pedidos, a Essent alegou que as disposições que excluem a eletricidade verde proveniente dos outros Estados‑Membros do benefício da gratuitidade da distribuição eram contrárias aos artigos 12.° e 28.° CE bem como ao artigo 3.o, n.o 1, e ao artigo 11.o, n.o 2, da Diretiva 96/92. |
42. |
Foi neste contexto que o rechtbank van eerste aanleg te Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
|
IV – Apreciação
A – Observações preliminares
43. |
A título preliminar, há que determinar quais são as disposições do direito da União pertinentes para responder ao pedido de decisão prejudicial. |
44. |
A este respeito, importa constatar, em primeiro lugar, quanto às disposições aplicáveis ratione temporis, que, apesar de o órgão jurisdicional de reenvio não ter feito referência à Diretiva 96/92, atendendo ao facto de a Portaria de 28 de setembro de 2001 ter sido adotada em data anterior à da entrada em vigor da Diretiva 2003/54, há que examinar o pedido de decisão prejudicial à luz não só das regras previstas por esta diretiva como também das previstas pela Diretiva 96/92. |
45. |
Em segundo lugar, no que respeita às disposições aplicáveis ratione materiae, há que salientar que, embora o órgão jurisdicional de reenvio se tenha referido exclusivamente, quanto à afirmação do princípio da não‑discriminação no direito derivado, ao artigo 3.o, n.os 1 e 4, da Diretiva 2003/54, esta diretiva contém outras disposições que são pertinentes, na medida em que constituem expressões particulares desse princípio na aplicação do sistema de acesso às redes de transporte e de distribuição. |
46. |
Além disso, importa constatar que a Diretiva 2001/77 contém, em especial no seu artigo 7.o, disposições específicas relativas às condições de ligação e de distribuição da eletricidade verde. |
47. |
Em conformidade com jurisprudência constante ( 19 ), responderei ao pedido de decisão prejudicial à luz de conjunto das disposições da Diretiva 2003/54 e da Diretiva 2001/77 suscetíveis de serem pertinentes para os problemas colocados. |
48. |
Abordarei este pedido, antes de mais, sob a perspetiva da não‑discriminação, antes de o examinar sob a da livre circulação de mercadorias ( 20 ). |
B – Quanto à terceira questão
49. |
Através da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as regras relativas à não discriminação contidas no artigo 12.o CE e nas Diretivas 96/92, 2003/54 e 2001/77 se opõem a uma regulamentação nacional, como as que estão em causa no processo principal, a qual, ao reservar o benefício da distribuição gratuita da eletricidade verde apenas às instalações de produção diretamente ligadas às redes de distribuição situadas no Estado‑Membro em causa ou numa região do território desse Estado, exclui, desse modo, as instalações de produção situadas nos outros Estados‑Membros. |
50. |
Constato que as diretivas contêm várias disposições que constituem outras tantas expressões particulares do princípio da não discriminação, embora pareçam responder a preocupações diferentes. |
51. |
Entre as disposições de direito derivado pertinentes encontram‑se, com efeito, disposições que consagram de um modo geral o princípio da não discriminação no setor da eletricidade. Outras dizem respeito mais especificamente à proibição de discriminações em detrimento da eletricidade verde. Outras ainda, por fim, parecem consagrar um princípio de discriminação positiva a favor desta eletricidade. |
52. |
Uma primeira série de disposições enuncia, de maneira geral, o princípio da não discriminação no acesso às redes de transporte e de distribuição. |
53. |
Assim, o artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 14.o, n.o 2, da Diretiva 2003/54, que são, respetivamente, redigidos em termos quase idênticos aos do artigo 3.o, n.o 1, e do artigo 11.o, n.o 2, da Diretiva 96/92, exigem que a ação do Estado e a do operador da rede na aplicação do sistema de acesso à rede não sejam discriminatórias. Esta proibição deve ser cotejada com a prevista no artigo 16.o da Diretiva 96/92, que proíbe os Estados‑Membros de organizarem o acesso à rede de modo discriminatório, independentemente de optarem pelo sistema do acesso negociado ou pelo do comprador único, e no artigo 20.o, n.o 1, da Diretiva 2003/54, que prevê que os Estados‑Membros devem garantir a aplicação de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição baseado em tarifas publicadas, aplicáveis a todos os clientes elegíveis «objetivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede». |
54. |
O princípio geral da não discriminação no acesso às redes tem igualmente expressão particular nas missões confiadas às autoridades reguladoras pelo artigo 23.o, n.o 1, alínea f), e n.o 4, da Diretiva 2003/54, que prevê que estas são incumbidas de «garantir a não discriminação» e «uma concorrência efetiva», nomeadamente no que respeita às condições e tarifas da ligação de novos produtores de eletricidade «para garantir a sua objetividade, transparência e caráter não discriminatório». Estas garantias devem ser obtidas tendo em conta, em particular, «os custos e benefícios das tecnologias associadas às fontes de energia renováveis». |
55. |
Uma segunda série de disposições respeita, mais especificamente, à proibição das discriminações em detrimento da eletricidade verde. |
56. |
Assim, o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2001/77 prevê que as normas‑padrão relativas ao pagamento dos custos de adaptações técnicas necessárias à integração de novos produtores que alimentem a rede interligada com eletricidade verde devem basear‑se em «critérios objetivos, transparentes e não discriminatórios» que tomem em consideração, especialmente, todos os custos e benefícios relacionados com a ligação desses produtores à rede. |
57. |
Segundo a mesma lógica, o artigo 7.o, n.o 6, dessa diretiva impõe aos Estados‑Membros que asseguram que a cobrança de tarifas de transporte e distribuição não implique qualquer discriminação da eletricidade verde, «incluindo em particular a eletricidade proveniente de fontes de energia renováveis produzida em regiões periféricas, tais como as regiões insulares e as regiões de baixa densidade populacional». Esta disposição precisa que, se for caso disso, os Estados‑Membros devem estabelecer um quadro jurídico ou exigir aos operadores das redes de transporte e de distribuição que garantam que as tarifas cobradas pelo transporte e pela distribuição de eletricidade verde reflitam as vantagens realizáveis, em termos de custos, resultantes da ligação da central à rede, podendo essas vantagens em termos de custos «resultar da utilização direta da rede de baixa tensão». |
58. |
Uma terceira série de disposições cria uma possibilidade de discriminação positiva, justificada pelo objetivo de proteção do ambiente. |
59. |
Incluo nesta categoria o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2003/54, o qual, retomando, em substância, os termos do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 96/92, permite aos Estados‑Membros impor às empresas do setor da eletricidade obrigações de serviço público que podem respeitar, nomeadamente, à «proteção do ambiente», «incluindo a eficiência energética e a proteção do clima» ( 21 ), desde que tais obrigações «[sejam] claramente definidas, transparentes, não discriminatórias, verificáveis e garant[am] a igualdade de acesso das empresas do setor da energia elétrica da União Europeia aos consumidores nacionais» ( 22 ). |
60. |
Devem igualmente figurar na referida categoria o artigo 11.o, n.o 3, da Diretiva 96/92, o artigo 14.o, n.o 4, da Diretiva 2003/54 e o artigo 7, n.o 1, da Diretiva 2001/77, que concediam à eletricidade verde um acesso prioritário à rede. |
61. |
A proibição de qualquer discriminação, nomeadamente tarifária, entre os utilizadores da rede opõe‑se a que um Estado‑Membro adote uma medida, como as que estão em causa no processo principal, que prevê a gratuitidade da distribuição apenas em benefício da eletricidade verde diretamente injetada nas redes de distribuição? |
62. |
Numa primeira análise, a resposta parece evidente, dado que a medida de gratuitidade consagra uma dupla discriminação, por um lado, entre a eletricidade verde e a que não é produzida a partir de fontes de energia renováveis e, por outro, entre a eletricidade injetada diretamente nas redes de distribuição e aquela que, tal como a eletricidade importada, é injetada primeiro nas redes de transporte. Além disso, esta última discriminação parece diretamente contrária à regra prevista no artigo 7.o, n.o 6, primeiro parágrafo, da Diretiva 2001/77, que proíbe as discriminações em função da proveniência geográfica da eletricidade verde. |
63. |
Porém, há que apurar se esta discriminação pode ser justificada invocando o objetivo da promoção do recurso às fontes de energia renováveis. |
64. |
Embora o Tribunal de Justiça não tenha consagrado expressamente a possibilidade de invocar a proteção do ambiente como justificação de medidas discriminatórias, o que teria permitido levar a uma clarificação saudável de uma jurisprudência que foi qualificada de «confusionista» ( 23 ), há vários acórdãos que só podem ser compreendidos partindo do princípio de que tal objetivo pode ser reconhecido como justificação de medidas cujo caráter discriminatório foi previamente apurado. |
65. |
Com efeito, este fenómeno de ocultação da discriminação resulta indubitavelmente da jurisprudência, ainda que o processo aplicado para chegar a esta solução continue rodeado de algum mistério. |
66. |
Recordo que, no seu acórdão de 9 de julho de 1992, Comissão/Bélgica ( 24 ), relativo ao processo dito «dos resíduos da Valónia», o Tribunal de Justiça, embora declarando que as exigências imperativas só são consideradas quando se trate de medidas distintivamente aplicáveis aos produtos nacionais e aos importados, admitiu, todavia, baseando‑se no princípio da reparação, prioritariamente na fonte, dos danos ao ambiente, bem como nos princípios da autossuficiência e da proximidade, que, «tendo em conta as diferenças entre os resíduos produzidos de um lugar para outro e a sua relação com o lugar em que são produzidos», as medidas impugnadas, que proibiam a importação de resíduos na região em questão, não podiam ser consideradas discriminatórias ( 25 ). |
67. |
Foi, portanto, em aplicação da jurisprudência segundo a qual o princípio da igualdade de tratamento exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, que o Tribunal de Justiça evitou a discriminação, dado que a existência de uma situação diferente decorrente da «particularidade dos resíduos» justificava um tratamento diferente. |
68. |
No seu acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra ( 26 ), o Tribunal de Justiça, sem atribuir importância ao caráter discriminatório ou não de uma regulamentação nacional que obrigava os fornecedores de eletricidade a comprar, a preços mínimos, eletricidade verde produzida na sua zona de abastecimento, considerou que essa regulamentação não era incompatível com a liberdade de circulação de mercadorias com fundamento, nomeadamente, em que a medida era útil para a proteção do ambiente e tinha «também» por objetivo a proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais, bem como a preservação dos vegetais, que constituíam razões de interesse geral definidas no artigo 30.o CE. |
69. |
Observo, por fim, que, no seu acórdão de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium ( 27 ), o Tribunal de Justiça respondeu à questão relativa à eventual violação das regras da não discriminação considerando, em particular, que «o tribunal de reenvio não explica[va] de que modo [o] regime [de certificados verdes era] suscetível de gerar uma diferença de tratamento constitutiva de uma discriminação pela nacionalidade nem de que modo essa diferença de tratamento [era] eventualmente distinta da relativa às garantias de origem e à eletricidade importada de outros Estados‑Membros já objeto da primeira questão prejudicial» ( 28 ), que convidava o Tribunal de Justiça a examinar a medida nacional à luz da livre circulação de mercadorias. |
70. |
A questão da discriminação é, portanto, absorvida no exame geral da existência de um entrave e da sua eventual justificação. |
71. |
Embora o fundamento da solução pareça ter evoluído e, além disso, seja difícil determinar se a mesma se encontra agora no abandono da regra segundo a qual uma medida indistintamente aplicável pode ser justificada por uma das exigências imperativas consagradas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça ou na associação da promoção do recurso às fontes de energia renováveis a certas razões de interesse geral definidas no artigo 30.o CE, é possível inferir destes precedentes jurisprudenciais que o Tribunal de Justiça admite que medidas nacionais discriminatórias podem ser justificadas pelo objetivo da proteção do ambiente, desde que respeitem o princípio da proporcionalidade ( 29 ). |
72. |
Não vejo por que razão assim não deva ser quando a medida nacional deva ser examinada não à luz do princípio geral da não discriminação, mais de variantes particulares deste princípio contidas em disposições de direito derivado. |
73. |
Na minha opinião, estas regras de não discriminação só se oporiam à invocação da justificação relativa à proteção do ambiente se proibissem ou harmonizassem as legislações nacionais relativas às restrições que podem ser aplicadas às importações de eletricidade verde com o objetivo de promover o recurso às fontes de energia renováveis. Por outras palavras, seria só no caso de uma disposição de direito derivado proibir qualquer entrave à importação de eletricidade verde ou prever expressamente os casos em que podem ser admitidas restrições para assegurar a promoção do recurso a esta eletricidade que os Estados‑Membros deixariam de dispor de uma margem de manobra que lhes permitisse invocar tais razões para justificar uma restrição. |
74. |
Ora, tais disposições não se encontram nas Diretivas 96/92 e 2003/54 nem na Diretiva 2001/77, observando‑se que o artigo 7.o, n.o 6, desta última, que visa proibir as discriminações baseadas num critério geográfico em detrimento das instalações de produção de eletricidade verde, em particular quando estejam situadas nas regiões periféricas, que têm dificuldades de ligação às principais redes europeias de eletricidade, não pode ser interpretado no sentido de excluir qualquer diferença de tratamento baseada num critério nacional e justificada, segundo a lógica do Tribunal de Justiça, pelo destaque de uma diferença objetiva de situações entre a produção de eletricidade verde localizada no território nacional e a produção de eletricidade verde nos outros Estados‑Membros.
|
75. |
Analisarei a proporcionalidade dos regimes em causa no processo principal sob a perspetiva da liberdade de circulação de mercadorias. |
C – Quanto às questões primeira e segunda
76. |
Com a primeira e segunda questões, que devem ser examinadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 28.° e 30.° CE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional, como as que estão em causa no processo principal, a qual, ao reservar o benefício da distribuição gratuita da eletricidade verde apenas às instalações de produção diretamente ligadas às redes de distribuição situadas no Estado‑Membro em causa ou numa região do território desse Estado, exclui, desse modo, as instalações de produção situadas nos outros Estados‑Membros. |
77. |
A questão submetida é, portanto, a de saber se os regimes em causa no processo principal são suscetíveis de entravar as importações de eletricidade, em particular verde, proveniente de outros Estados‑Membros e constituem, consequentemente, medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, proibidas, em princípio, pelo artigo 28.o CE, salvo se essas regulamentações puderem ser objetivamente justificadas. |
78. |
Uma vez que esta questão apresenta, evidentemente, semelhanças com aquelas a que o Tribunal de Justiça respondeu nos seus dois recentes acórdãos de 1 de julho de 2014, Ålands Vindkraft ( 30 ), e de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium ( 31 ), relativos à conformidade com o direito da União de regimes nacionais de apoio à produção de eletricidade verde, o ponto de partida do raciocínio a que se deve proceder consiste em determinar se a economia das soluções que decorrem desses dois precedentes pode ser pura e simplesmente transposta para o caso em apreço ou se, pelo contrário, este apresenta particularidades que justifiquem um afastamento. |
79. |
Os interessados que apresentaram observações no Tribunal de Justiça não se enganaram, de resto, a este respeito. |
80. |
Por um lado, a Região da Flandres, o Governo grego bem como a Comissão sustentam, com base num raciocínio analógico, que as limitações territoriais aplicadas aos regimes de distribuição gratuita de eletricidade verde devem ser consideradas justificadas dado que, à semelhança das regulamentações em questão nos processos que deram origem aos acórdãos de 1 de julho de 2014, Ålands Vindkraft ( 32 ), e de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium ( 33 ), prosseguem o objetivo legítimo de promoção do recurso às fontes de energia renováveis na produção de eletricidade. Há, todavia, que assinalar uma diferença notável entre, por um lado, a posição da Região da Flandres e, por outro, a do Governo grego bem como da Comissão. A Região da Flandres considera que a limitação aplicada à gratuitidade da distribuição da eletricidade verde não constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, uma vez que, ao respeitar exclusivamente à eletricidade diretamente injetada nas redes de distribuição, não teria como efeito limitar as trocas transfronteiriças de eletricidade, que só podem ocorrer nas redes de transporte, com exclusão das redes de distribuição. O Governo grego e a Comissão consideram, pelo contrário, que as regulamentações em questão constituem medidas de efeito equivalente, mas que estas são justificadas pelo objetivo de proteção do ambiente, sob reserva, segundo a Comissão, de um exame mais aprofundado do seu caráter proporcionado, o qual incumbe ao órgão jurisdicional nacional, tomando em conta o efeito cumulado dos outros mecanismos de apoio à produção de eletricidade verde. |
81. |
A Essent alega, pelo contrário, que existem pontos de divergência que excluem, na sua opinião, qualquer transposição da jurisprudência anterior. Em particular, considera que, enquanto o mecanismo dos certificados verdes constitui um mecanismo de apoio à produção de eletricidade verde, que garante, por intermédio da autoridade reguladora, uma vantagem ao produtor antes da intervenção das forças do mercado, ao permitir a negociação dos certificados num mercado específico em condições equitativas, o regime de gratuitidade da distribuição da eletricidade verde respeita exclusivamente à distribuição e ao consumo de eletricidade, favorece unilateralmente os fornecedores e tem um impacto financeiro muito mais importante, dado que os custos de distribuição representaram, durante o período em questão, até 37% da fatura final de eletricidade. |
82. |
Por contestável que seja, na minha opinião, a fundamentação dos acórdãos de 1 de julho de 2014, Ålands Vindkraft ( 34 ), e de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium ( 35 ), não me parece possível propor desde já, nas presentes conclusões, o abandono da solução neles consagrada, pressupondo tal inversão da jurisprudência uma evolução marcada do quadro jurídico, o que não caracteriza de modo algum o presente processo, o qual respeita, pelo contrário, a uma situação jurídica antiga e já passada. É, portanto, seguindo a grelha de análise traçada por estes acórdãos que examinarei a compatibilidade de uma regulamentação nacional como as que estão em causa no processo principal com as disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de mercadorias. |
83. |
Além disso, depois de apurar se os regimes em questão no processo principal constituem entraves à livre circulação de mercadorias, verificarei, se for caso disso, se esses eventuais entraves podem ser justificados pelo objetivo da promoção do recurso às fontes de energia renováveis. |
1. Quanto à existência de um entrave à livre circulação de mercadorias
84. |
No princípio era a fórmula do acórdão de 11 de julho de 1974, Dassonville ( 36 ), segundo a qual constituía uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação qualquer medida nacional suscetível de entravar direta ou indiretamente, atual ou potencialmente, o comércio intracomunitário ( 37 ). |
85. |
A este respeito, há que constatar que as regulamentações em causa no processo principal são efetivamente suscetíveis de entravar, pelo menos indiretamente e potencialmente, as importações de eletricidade ( 38 ), em especial verde, proveniente dos outros Estados‑Membros. |
86. |
Com efeito, na medida em que é pacífico que a eletricidade importada é necessariamente transportada através da rede de transporte, sem poder ser diretamente injetada nas redes de distribuição situadas na Região da Flandres ou na Bélgica, a limitação da gratuitidade da distribuição à eletricidade verde produzida por instalações de produção diretamente ligadas a estas redes de distribuição confere uma vantagem particular à eletricidade verde produzida na Região da Flandres ou na Bélgica, desfavorecendo a eletricidade importada. |
87. |
Uma vez que só as instalações de produção de eletricidade situadas na Região da Flandres ou na Bélgica podem beneficiar da vantagem concedida, pouco importa que tal regime preferencial possa ter igualmente um efeito restritivo sobre as instalações flamengas ou belgas que estejam diretamente ligadas não à rede de distribuição, mas à rede de transporte ( 39 ). |
88. |
Uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal constitui, consequentemente, uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa às importações, incompatível com o artigo 28.o CE, salvo se for objetivamente justificada. |
2. Quanto à eventual justificação
89. |
Referindo‑se a uma jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça, nos seus acórdãos de 1 de julho de 2014, Ålands Vindkraft ( 40 ), e de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium ( 41 ), declarou que uma regulamentação ou uma prática nacional que constitui uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas pode ser justificada por uma das razões de interesse geral enumeradas no artigo 30.o CE ou por exigências imperativas, devendo a medida nacional, em ambos os casos, ser adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido e não ir além do necessário para o atingir ( 42 ). |
90. |
Seguidamente, associando o objetivo de promoção do recurso às fontes de energia renováveis para a produção de eletricidade tanto ao conceito jurisprudencial de exigência imperativa como às razões de interesse geral definidas no artigo 30.o CE, o Tribunal de Justiça considerou que este objetivo é, em princípio, suscetível de justificar eventuais entraves à livre circulação de mercadorias. |
91. |
Tendo admitido este princípio, o Tribunal de Justiça procedeu a um exame da proporcionalidade do entrave à liberdade de circulação decorrente dos regimes nacionais de apoio da eletricidade verde. |
92. |
É à mesma apreciação do caráter proporcionado das medidas nacionais em questão no processo principal que se deve proceder, verificando se essas medidas são necessárias e respondem efetivamente ao objetivo de promoção do recurso às fontes de energia renováveis. |
93. |
No que respeita, em primeiro lugar, à aptidão das medidas nacionais em causa no processo principal para alcançar o objetivo prosseguido, importa salientar que, ao contrário dos regimes de apoio examinados no âmbito dos processos que deram origem aos acórdãos de 1 de julho de 2014, Ålands Vindkraft ( 43 ), e de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium ( 44 ), concebidos de maneira a beneficiar diretamente a produção de eletricidade verde ( 45 ), as medidas de distribuição gratuita da eletricidade verde em causa no processo principal não favorecem diretamente os produtores, dado que beneficiam, em primeira linha, os fornecedores e, eventualmente, os consumidores, sob condição de os fornecedores repercutirem sobre os mesmos a vantagem que retiram da gratuitidade da distribuição. |
94. |
Todavia, estas medidas parecem adequadas para atingir o objetivo prosseguido, dado que, ao eliminarem o custo de distribuição, incitam os fornecedores a aumentar a parte de eletricidade verde no seu cabaz energético e contribuem, portanto, ainda que indiretamente, para o aumento da procura, favorecendo correlativamente o aumento do recurso às fontes de energia renováveis na produção de eletricidade. |
95. |
O artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/77 constitui, de resto, um índice da indiferença do caráter direto ou indireto do auxílio para a qualificação do regime de apoio, dado que esta disposição insere na definição de tal regime qualquer mecanismo através do qual um produtor de eletricidade beneficia, com base em regulamentações emitidas pelas entidades públicas, de um apoio «direto ou indireto». |
96. |
No que respeita, em segundo lugar, à questão de saber se as medidas nacionais em causa no processo principal não vão além do necessário para alcançar o objetivo prosseguido, há que constatar que o Tribunal de Justiça, baseando‑se na circunstância de o legislador da União ter imposto aos diferentes Estados‑Membros a obrigação de fixarem objetivos nacionais de modo a repartir equitativamente os esforços a envidar, tendo em conta as diferenças relativas às situações iniciais, às possibilidades de desenvolvimento da energia proveniente de fontes de energia renováveis e aos cabazes energéticos, admitiu que os regimes de apoio possam ser acompanhados de limitações territoriais, sendo a ação a nível nacional considerada mais adequada do que uma ação contemplada à escala da União. |
97. |
Embora não subscreva esta abordagem, não vejo qualquer diferença fundamental entre as limitações territoriais relativas aos regimes de apoio baseados numa obrigação de compra numa zona de abastecimento determinada ou na utilização de certificados verdes e a limitação territorial do regime de distribuição gratuita da eletricidade verde, em questão no processo principal, que se destina a contribuir para a realização, por parte do Reino da Bélgica, dos objetivos ambientais relativos à redução das emissões de gazes com efeitos de estufa. À semelhança do regime dos certificados verdes, a medida de distribuição gratuita visava, segundo o preâmbulo da Portaria de 4 de abril de 2003, promover a produção descentralizada de eletricidade verde em instalações locais. |
98. |
Consequentemente, há que responder às primeira e segunda questões que os artigos 28.° e 30.° CE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional, como as que estão em causa no processo principal, a qual, ao reservar o benefício da distribuição gratuita da eletricidade verde apenas às instalações de produção diretamente ligadas às redes de distribuição situadas no Estado‑Membro em causa ou numa região do território desse Estado, exclui, desse modo, as instalações de produção situadas nos outros Estados‑Membros. |
V – Conclusão
99. |
Atendendo às considerações anteriores, entendo que se deve responder às questões submetidas pelo rechtbank van eerste aanleg te Brussel (Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas, Bélgica) que, por um lado, as regras de não discriminação previstas no artigo 12.o CE, na Diretiva 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de dezembro de 1996, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade, na Diretiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 96/92/CE, e na Diretiva 2001/77/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de setembro de 2001, relativa à promoção da eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis no mercado interno da eletricidade, e, por outro, os artigos 28.° e 30.° CE, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional, como as que estão em causa no processo principal, a qual, ao reservar o benefício da distribuição gratuita da eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis apenas às instalações de produção diretamente ligadas às redes de distribuição situadas no Estado‑Membro em causa ou numa região do território desse Estado, exclui, desse modo, as instalações de produção situadas nos outros Estados‑Membros. |
( 1 ) Língua original: francês.
( 2 ) JO 2003, L 176, p. 37.
( 3 ) A seguir «Essent».
( 4 ) A seguir «eletricidade verde».
( 5 ) C‑573/12, EU:C:2014:2037.
( 6 ) C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192.
( 7 ) V. as minhas conclusões no processo Ålands Vindkraft (C‑573/12, EU:C:2014:37) e nos processos apensos Essent Belgium (C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2013:294).
( 8 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de dezembro de 1996, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade (JO 1997, L 27, p. 20).
( 9 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de setembro de 2001, relativa à promoção da eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis no mercado interno da eletricidade (JO 2001, L 283, p. 33).
( 10 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 2003/54 (JO 2009, L 211, p. 55).
( 11 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis que altera e subsequentemente revoga as Diretivas 2001/77 e 2003/30/CE (JO 2009, L 140, p. 16).
( 12 ) Belgisch Staatsblad, 22 de setembro de 2000, p. 32166, a seguir «decreto relativo à eletricidade».
( 13 ) Belgisch Staatsblad, 31 de dezembro de 2004, p. 87220.
( 14 ) Belgisch Staatsblad, 23 de outubro de 2001, p. 36778, a seguir «Portaria de 28 de setembro de 2001».
( 15 ) Belgisch Staatsblad, 30 de abril de 2003, p. 23334, a seguir «Portaria de 4 de abril de 2003».
( 16 ) Belgisch Staatsblad, 23 de março de 2004, p. 16296, a seguir «Portaria de 5 de março de 2004».
( 17 ) Belgisch Staatsblad, 27 de maio de 2005, p. 24763.
( 18 ) Que é atualmente o Vlamse Regulator van de Elektriciteits‑ en Gasmarkt (VREG).
( 19 ) V., nomeadamente, acórdão de 29 de outubro de 2015, Nagy (C‑583/14, EU:C:2015:737, n.o 20 e jurisprudência referida).
( 20 ) Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se um regime de gratuitidade de distribuição como os que estão em causa no processo principal constitui um regime de auxílio estatal, não me dedicarei a um exame desse regime à luz das disposições em matéria de auxílios estatais.
( 21 ) Este trecho foi acrescentado pela Diretiva 2003/54.
( 22 ) Idem.
( 23 ) V. Rigaux, A., Revue Europe no 2, fevereiro de 2012, comentário 75. Este adjetivo foi retomado por Le Baut‑Ferrarese, B., Revue Environnement et Développement durable no 11, novembro de 2014, comentário 75. V. igualmente para uma análise crítica da decisão do Tribunal de Justiça, Michel, V., «Marché intérieur et politiques de l’Union: brèves réflexions sur une quête d’unité », L’identité du droit de l’Union européenne — Mélanges en l’honneur de Claude Blumann, 2015, p. 229.
( 24 ) C‑2/90, EU:C:1992:310.
( 25 ) N.os 34 a 36.
( 26 ) C‑379/98, EU:C:2001:160.
( 27 ) C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192.
( 28 ) N.o 119.
( 29 ) V., neste sentido, nomeadamente, López Escudero, M., «Régimes nationaux d’aide à l’énergie verte face à la libre circulation des marchandises dans l’Union européenne», Revues des affaires européennes, 2014/3, p. 593, especialmente p. 599, e Le Baut‑Ferrarese, B., op. cit.
( 30 ) C‑573/12, EU:C:2014:2037.
( 31 ) C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192.
( 32 ) C‑573/12, EU:C:2014:2037.
( 33 ) C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192.
( 34 ) C‑573/12, EU:C:2014:2037.
( 35 ) C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192.
( 36 ) 8/74, EU:C:1974:82.
( 37 ) N.o 5. V., igualmente, acórdãos de 1 de julho de 2014, Ålands Vindkraft (C‑573/12, EU:C:2014:2037, n.o 66), e de 11 de setembro de 2014, Essent Belgium (C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192, n.o 77).
( 38 ) Recordo que o Tribunal de Justiça, que, no seu acórdão de 10 de dezembro de 1968, Comissão/Itália (7/68, EU:C:1968:51), adotou uma definição ampla do conceito de «mercadorias», no sentido de abranger todos os «produtos avaliáveis em dinheiro e suscetíveis, como tal, de ser objeto de transações comerciais» (p. 891) (v. igualmente, neste sentido, acórdão de 14 de abril de 2011, Vlaamse Dierenartsenvereniging e Janssens, C‑42/10, C‑45/10 e C‑57/10, EU:C:2011:253, n.o 68 bem como jurisprudência referida), reconheceu explicitamente que a eletricidade constitui uma mercadoria (v. acórdão de 17 de julho de 2008, Essent Netwerk Noord e o., C‑206/06, EU:C:2008:413, n.o 43 e jurisprudência referida).
( 39 ) V., neste sentido, acórdãos de 20 de março de 1990, Du Pont de Nemours Italiana (C‑21/88, EU:C:1990:121, n.o 13), e de 16 de maio de 1991, Comissão/Itália (C‑263/85, EU:C:1991:212).
( 40 ) C‑573/12, EU:C:2014:2037.
( 41 ) C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192.
( 42 ) V., respetivamente, n.o 76 e n.o 89.
( 43 ) C‑573/12, EU:C:2014:2037.
( 44 ) C‑204/12 a C‑208/12, EU:C:2014:2192.
( 45 ) V., respetivamente, n.o 95 e n.o 98.