CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 15 de outubro de 2015 ( 1 )

Processo C‑431/14 P

República Helénica

contra

Comissão Europeia

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Auxílios compensatórios pagos pelo Organismo Grego de Seguros Agrícolas (ELGA) em 2008 e 2009 — Decisão que declara os auxílios incompatíveis com o mercado interno e ordena a sua recuperação — Conceito de auxílio de Estado — Auxílios de Estado que podem ser considerados compatíveis com o mercado interno — Artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE — Quadro comunitário temporário relativo às medidas de auxílio estatal destinadas a apoiar o acesso ao financiamento durante a crise financeira e económica»

1. 

Com o presente recurso, a República Helénica pede a anulação do acórdão do Tribunal Geral Grécia/Comissão (a seguir «acórdão recorrido») ( 2 ), pelo qual o referido órgão jurisdicional negou provimento ao seu recurso de anulação da Decisão 2012/157/UE da Comissão, de 7 de dezembro de 2011, relativa a auxílios compensatórios pagos pelo Organismo Grego de Seguros Agrícolas (ELGA) em 2008 e 2009 (a seguir «decisão controvertida») ( 3 ).

Quadro jurídico

TFUE

2.

O artigo 107.o, n.o 1, TFUE dispõe que, salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.

3.

Nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, podem ser considerados compatíveis com o mercado interno os auxílios destinados nomeadamente a sanar uma perturbação grave da economia de um Estado‑Membro.

Quadro comunitário temporário relativo às medidas de auxílio estatal destinadas a apoiar o acesso ao financiamento durante a crise financeira e económica

4.

A Comissão Europeia publicou, em 22 de janeiro de 2009, uma comunicação relativa ao quadro comunitário temporário relativo às medidas de auxílio estatal destinadas a apoiar o acesso ao financiamento durante a atual crise financeira e económica (a seguir «QCT») ( 4 ). Salientava, nessa comunicação, nomeadamente, que esta crise global exigia respostas excecionais no plano das políticas, para além do apoio de emergência ao sistema financeiro ( 5 ). Tendo em conta a gravidade desta crise e o seu impacto na economia global dos Estados‑Membros, a Comissão considerava justificadas, durante um período de tempo limitado, certas categorias de auxílios estatais para ultrapassar estas dificuldades e que tais auxílios podiam, em consequência, ser declarados compatíveis com o mercado comum com base no que passou a ser o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE.

5.

Ao mesmo tempo que anunciava que autorizaria temporariamente e sob certas condições a concessão de auxílios abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, a Comissão precisava que essa autorização não incluía os regimes de auxílios a favor de empresas do setor da produção agrícola primária ( 6 ).

6.

No ponto 7 do QCT, a Comissão indicava, nomeadamente, o seguinte:

«A Comissão aplica as disposições da presente comunicação a partir de 17 de dezembro de 2008, data em que adotou os princípios do seu conteúdo, tendo em conta o contexto financeiro e económico, que requeria ação imediata. A presente comunicação é justificada pelos problemas de financiamento de caráter excecional e transitório que se registam atualmente por força da crise bancária e não será aplicada após 31 de dezembro de 2010. Com base em considerações ponderosas de política de concorrência ou de política económica e após consulta dos Estados‑Membros, a Comissão pode rever a presente comunicação antes desta data. […]

[…]

Em conformidade com a Comunicação da Comissão relativa à determinação das regras aplicáveis à apreciação dos auxílios estatais concedidos ilegalmente [ ( 7 )], a Comissão aplica, no caso de auxílios não notificados:

a)

a presente comunicação, se o auxílio tiver sido concedido após 17 de dezembro de 2008;

[…]»

7.

A Comissão alterou o QCT por uma comunicação publicada em 31 de outubro de 2009 ( 8 ). Nos termos do ponto 1 dessa comunicação:

«[…]

A possibilidade prevista no ponto 4.2 de conceder um montante limitado de auxílio compatível não se aplica às empresas do setor da produção primária de produtos agrícolas. Contudo, os agricultores veem‑se confrontados com dificuldades cada vez maiores na obtenção de crédito, em consequência da crise financeira.

[…] [é] conveniente introduzir um montante limitado separado de auxílio compatível para as empresas do setor da produção primária de produtos agrícolas.»

8.

O ponto 4.2.2, terceiro parágrafo, alínea h), do QCT, conforme alterado por esta comunicação dispõe:

«A Comissão irá considerar este tipo de auxílios estatais compatível com o mercado comum ao abrigo do n.o 3, alínea b), do artigo [107.° TFUE], desde que estejam cumulativamente cumpridas as seguintes condições:

[…]

h)

[o] regime de auxílio seja aplicável, enquanto tal, às empresas de transformação e comercialização de produtos agrícolas […], a não ser que o auxílio esteja subordinado à condição de ser total ou parcialmente cedido a produtores primários. Caso o auxílio seja concedido a empresas do setor da produção primária de produtos agrícolas […], o equivalente‑subvenção pecuniário (ou equivalente‑subvenção bruto) não deve exceder 15000 [euros] por empresa […].»

9.

Esta alteração entrou em vigor a 28 de outubro de 2009.

Direito grego

10.

A Lei n.o 1790/1988 criou um organismo de interesse público, denominado «Organismo Grego de Seguros Agrícolas» (ELGA). O ELGA, que é uma pessoa coletiva de direito privado pertencente integralmente ao Estado, tem por objeto, nomeadamente, segurar a produção vegetal e animal e o capital vegetal e animal das explorações agrícolas face aos prejuízos decorrentes de riscos naturais.

11.

Em conformidade com o artigo 3.o‑A da Lei n.o 1790/1988, na versão aplicável ao litígio, o regime de seguros do ELGA é obrigatório e cobre riscos naturais, como inundações e seca. O artigo 5.o‑A impõe para o efeito uma contribuição especial de seguro a favor do ELGA a cargo dos produtores agrícolas que beneficiam desse regime de seguro. A taxa dessa contribuição, cujas receitas fazem parte do orçamento do Estado, varia consoante a origem animal ou vegetal do produto coberto pelo seguro.

Antecedentes do litígio e decisão controvertida

12.

O Ministro da Economia e das Finanças e o Ministro do Desenvolvimento Rural e da Alimentação adotaram, em 30 de janeiro de 2009, o Decreto ministerial conjunto n.o 262037 relativo à compensação a título excecional por danos à produção agrícola (a seguir «Decreto ministerial conjunto»). O Decreto ministerial conjunto previa que o ELGA pagaria a título excecional compensações no montante de 425 milhões de euros devido à diminuição da produção de certas culturas vegetais ocorrida na campanha de cultivo de 2008, por causa de condições climatéricas adversas. As despesas ocasionadas pela sua aplicação, que recaíam sobre o orçamento do ELGA, foram financiadas através de um empréstimo contraído por este organismo junto dos bancos, com a garantia do Estado.

13.

Por carta de 20 de março de 2009, enviada em resposta a um pedido de informações da Comissão, a República Helénica informou que, em 2008, o ELGA tinha pago indemnizações aos agricultores pelos danos cobertos pelo seguro, no montante de 386986648 euros. Esse montante provinha, em parte, das contribuições de seguro pagas pelos produtores e, em parte, das receitas obtidas graças a um empréstimo de 444 milhões de euros contraído pelo ELGA junto de uma instituição bancária com a garantia do Estado.

14.

Por decisão de 27 de janeiro de 2010 ( 9 ), a Comissão deu início ao procedimento formal de exame previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE, no processo C 3/10 (ex NN 39/09), relativo aos pagamentos compensatórios efetuados pelo ELGA durante 2008 e 2009.

15.

Em 7 de dezembro de 2011, a Comissão adotou a decisão controvertida, que dispõe nomeadamente o seguinte:

«Artigo 1.o

1.   As indemnizações pagas pelo [ELGA] aos produtores de produtos agrícolas em 2008 e 2009 constituem auxílios estatais.

2.   Os auxílios compensatórios concedidos em 2008 no quadro do regime de seguro especial obrigatório são compatíveis com o mercado interno na parte respeitante ao montante de 349493652,03 [euros], que o ELGA concedeu aos produtores para compensar danos nas respetivas produções vegetais, assim como na parte respeitante às perdas na produção agrícola causadas por ursos, no montante de 91500 [euros], e a ações corretivas realizadas no quadro dos auxílios supramencionados. Os auxílios compensatórios correspondentes ao montante restante, pagos em 2008 no quadro do regime de seguro especial, são incompatíveis com o mercado interno.

3.   Os auxílios compensatórios no montante de 27614905 [euros], concedidos em 2009 pelo [despacho ministerial conjunto], são compatíveis com o mercado interno.

Os auxílios compensatórios no montante de 387404547 [euros], concedidos aos produtores anteriormente a 28 de outubro de 2009, são incompatíveis com o mercado interno. Esta conclusão não prejudica os auxílios que, à data da sua concessão, satisfaziam todas as condições fixadas no Regulamento (CE) n.o 1535/2007 [da Comissão, de 20 de dezembro de 2007, relativo à aplicação dos artigos [107.° e 108.° TFUE] aos auxílios de minimis no setor da produção de produtos agrícolas (JO L 337, p. 35)].

Artigo 2.o

1.   A [República Helénica] deve adotar todas as medidas necessárias para recuperar junto dos beneficiários os auxílios incompatíveis referidos no artigo 1.o já ilegalmente colocados à sua disposição.

[…]»

Tramitação processual no Tribunal Geral e acórdão recorrido

16.

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 8 de fevereiro de 2012, a República Helénica interpôs um recurso de anulação da decisão controvertida. Por requerimento separado apresentado na Secretaria do Tribunal Geral no mesmo dia, a República Helénica deduziu também um pedido de medidas provisórias, ao abrigo dos artigos 278.° TFUE e 279.° TFUE, destinado a suspender a execução da decisão controvertida. Por despacho do presidente do Tribunal Geral Grécia/Comissão ( 10 ), foi suspensa a execução da decisão controvertida, na medida em que essa decisão obrigava a República Helénica a recuperar os auxílios incompatíveis referidos no artigo 1.o da mesma junto dos seus beneficiários.

17.

A República Helénica invocou sete fundamentos em apoio do seu recurso de anulação da decisão controvertida. Através do acórdão recorrido, o Tribunal Geral negou provimento ao recurso na íntegra.

Tramitação no Tribunal de Justiça, fundamentos do presente recurso e pedidos das partes

18.

Mediante o seu recurso, interposto por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 19 de setembro de 2014, a República Helénica pede que o Tribunal de Justiça anule o acórdão recorrido e a decisão controvertida e condene a Comissão nas despesas.

19.

A República Helénica invoca três fundamentos em apoio do seu pedido. O primeiro, que consiste, em substância, na violação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, numa falta de fundamentação e numa desvirtuação dos elementos de prova, subdivide‑se em duas partes. Na primeira, a República Helénica alega que o Tribunal Geral qualificou como recursos estatais as contribuições obrigatórias pagas em 2008 e 2009 pelos agricultores que beneficiaram de auxílios compensatórios durante esses anos. Na segunda, alega que o Tribunal Geral não considerou que os montantes correspondentes a essas contribuições deviam ser deduzidos dos auxílios a recuperar, uma vez que esses montantes não trouxeram aos agricultores em causa nenhuma vantagem económica suscetível de falsear a concorrência. Com o seu segundo fundamento, que consiste na violação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE e numa falta de fundamentação, a República Helénica alega, em substância, que o Tribunal Geral considerou que os pagamentos compensatórios efetuados pelo ELGA em 2009 trouxeram aos seus beneficiários uma vantagem económica seletiva suscetível de falsear a concorrência entre os Estados‑Membros e constituíam, assim, auxílios de Estado. Segundo a recorrente, a situação excecional de crise que a economia grega atravessava na altura, impede de chegar a essa conclusão. O terceiro fundamento consiste numa interpretação e aplicação erradas do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE e numa falta de fundamentação. Numa primeira parte, a República Helénica alega que o Tribunal Geral considerou que os pagamentos controvertidos efetuados em 2009 não podiam ser declarados compatíveis com o mercado interno em conformidade com esta disposição na medida em que o regime de flexibilização dos auxílios de Estado previsto pelo QCT não se aplicava aos auxílios concedidos às empresas do setor da produção primária agrícola. Sustenta que, a este respeito, o Tribunal Geral devia ter tido em conta a situação de crise recordada acima. Na segunda parte, a República Helénica alega que o Tribunal Geral não examinou os seus argumentos segundo os quais a decisão controvertida era excessiva na medida em que ordenava, em dezembro de 2011, a recuperação dos pagamentos compensatórios pagos pelo ELGA em 2008 e 2009, quando precisamente essa crise se tinha agravado.

20.

A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que declare o recurso inadmissível ou que lhe negue provimento e que condene a República Helénica nas despesas.

21.

Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 30 de setembro de 2014, a República Helénica apresentou um pedido de medidas provisórias ao abrigo dos artigos 278.° TFUE e 279.° TFUE destinado, designadamente, a que o Tribunal de Justiça suspenda a execução do acórdão recorrido até que seja proferido o acórdão deste recurso. O vice‑presidente do Tribunal de Justiça indeferiu esse pedido de medidas provisórias por considerar que não preenchia o requisito relativo ao fumus boni juris ( 11 ).

22.

Por carta apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 2 de março de 2015, a República Helénica, em conformidade com o artigo 16.o, terceiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requereu a formação do Tribunal de Justiça em Grande Secção.

23.

Na sua reunião geral de 30 de junho de 2015, O Tribunal de Justiça decidiu atribuir processo à Grande Secção em aplicação desta disposição, para efeitos da eventual aplicação do artigo 181.o do Regulamento de Processo. Por outro lado, considerou que o processo não necessitava de audiência nem de apresentação de conclusões.

24.

Na sua primeira deliberação, a Grande Secção considerou, contudo, que o exame da primeira parte do terceiro fundamento justificava a realização de uma audiência e a apresentação de conclusões. Por conseguinte, na sua reunião geral de 2 de setembro de 2015, o Tribunal de Justiça decidiu dar início à fase oral do processo e convidou as partes a concentrarem as suas alegações na referida parte.

25.

A República Helénica e a Comissão participaram na audiência realizada em 6 de outubro de 2015.

Análise

Observações preliminares

26.

Limitar‑me‑ei a examinar a primeira parte do terceiro fundamento do presente recurso. Como recordei acima, com efeito, é unicamente esta parte da argumentação da República Helénica que levou a Grande Secção a considerar, apesar das orientações inicialmente adotadas na reunião geral de 30 de junho de 2015, que o presente caso exigia uma audiência e a apresentação de conclusões.

27.

Antes de mais, saliento que as presentes conclusões visam exclusivamente examinar a admissibilidade e a procedência desta argumentação, que incide em substância, sobre o próprio princípio da aplicação direta do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE independentemente dos requisitos previstos no QCT. Esta análise jurídica não implica de forma alguma o exame da questão económica subjacente. Assim, abster‑me‑ei de confirmar ou infirmar as dificuldades atravessadas pelo setor agrícola na Grécia desde 2008 ou ainda de determinar o seu alcance ( 12 ).

Exame da primeira parte do terceiro fundamento

Argumentos das partes

28.

Segundo a República Helénica, foi erradamente que o Tribunal Geral não declarou os pagamentos controvertidos efetuados pelo ELGA em 2009 compatíveis com o mercado interno baseando‑se diretamente no artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE. A crise que atravessava nessa época tinha provocado uma perturbação grave da sua economia na aceção desta disposição, que justificava a concessão de auxílios às empresas do setor agrícola. Na sua opinião, a exclusão desses auxílios do regime de flexibilização previsto no QCT antes da sua alteração em outubro de 2009 não é relevante. As circunstâncias excecionais de crise que afetavam a economia grega quando os referidos auxílios foram concedidos distinguiam‑se com efeito da situação financeira global que tinha justificado a adoção da referida comunicação.

29.

A Comissão defende que esta parte da alegação da República Helénica é inadmissível. Por um lado, esta alegação visa pôr em causa uma apreciação dos factos realizada pelo Tribunal Geral. Por outro, considera que a alegação formulada neste sentido é intempestiva, uma vez que a República Helénica não demonstrou em primeira instância as circunstâncias excecionais de crise que invoca no presente recurso. A Comissão contesta também a procedência da primeira parte do terceiro fundamento.

Apreciação

30.

A alegação da Comissão na parte em que contesta a admissibilidade da primeira parte do terceiro fundamento não pode ser acolhida.

31.

Em conformidade com os artigos 256.°, n.o 1, TFUE e 58.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça, o recurso de uma decisão do Tribunal Geral é limitado às questões de direito. Assim, o Tribunal Geral é o único competente para apurar e apreciar os factos pertinentes, bem como para examinar os elementos de prova, uma vez que a apreciação dos factos e dos elementos de prova não constitui, exceto em caso de desvirtuação dos mesmos, uma questão de direito sujeita, como tal, à fiscalização do Tribunal de Justiça no âmbito de recurso de uma decisão do Tribunal Geral ( 13 ).

32.

Contudo, a primeira parte do terceiro fundamento não tem por objeto convidar o Tribunal de Justiça a proceder a uma nova apreciação dos factos realizada pelo Tribunal Geral no que se refere às alegações da República Helénica sobre a crise económica que atravessava em 2009. Com este aspeto do seu recurso, a República Helénica denuncia exclusivamente o erro de direito supostamente cometido pelo Tribunal Geral na interpretação e aplicação do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, ao considerar que esta disposição não podia ser aplicada diretamente e independentemente do QCT.

33.

Também não me convence o raciocínio da Comissão segundo o qual esta alegação equivale a invocar tardiamente factos que não foram demonstrados perante o primeiro juiz.

34.

Decorre dos autos de primeira instância que a República Helénica, como o Tribunal Geral recordou no n.o 153 do acórdão recorrido, invocou em apoio do seu recurso de anulação a existência de uma grave crise que afetava a sua economia desde finais de 2008. Esta alegação visava, nomeadamente, demonstrar que os pagamentos controvertidos efetuados pelo ELGA em 2009 deviam ter sido declarados compatíveis com o mercado interno com base no artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE. Ora, no acórdão recorrido, o Tribunal Geral não se pronunciou sobre a existência, enquanto tal, de uma perturbação grave da economia grega nessa altura, na acessão da referida disposição. Em resposta ao quarto fundamento do recurso de anulação, o referido tribunal considerou, em substância, que a Comissão estava vinculada pelo QCT, pelo que não podia declarar os pagamentos efetuados pelo ELGA em 2009 compatíveis com o mercado interno diretamente com base no artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE ( 14 ). Como indiquei acima ( 15 ), só este raciocínio de direito é que é objeto da primeira parte do terceiro fundamento do presente recurso.

35.

Quanto ao mérito, cabe, antes de mais, recordar que o Tribunal Geral nos n.os 185 a 188 do acórdão recorrido declarou o seguinte:

«185

No que se refere aos argumentos suscitados no âmbito do quarto fundamento, há que declarar que, contrariamente ao que a República Helénica defende, a Comissão devia basear‑se no [QCT] e não aplicar diretamente o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE para apreciar a compatibilidade dos pagamentos efetuados pelo ELGA em 2009 devido à crise económica existente na Grécia.

186

Com efeito, como decorre da jurisprudência, ao adotar essas regras de conduta e ao anunciar, através da sua publicação, que as aplicará no futuro aos casos a que essas regras dizem respeito, a Comissão autolimita‑se no exercício do seu poder de apreciação e não pode afastar‑se dessas regras sob pena de poder ser sancionada, eventualmente, por violação de princípios gerais do direito, como os da igualdade de tratamento ou da proteção da confiança legítima (v. acórdão Alemanha e o./Kronofrance, [C‑75/05 P e C‑80/05 P, EU:C:2008:482], n.o 60, e jurisprudência referida; acórdão […] Holland Malt/Comisão, C‑464/09 P, [EU:C:2010:733], n.o 46).

187

Assim, no domínio específico dos auxílios de Estado, a Comissão tem de respeitar os enquadramentos e comunicações que adota, na medida em que não se afastem das normas do Tratado (v. acórdão Holland Malt/Comissão, [C‑464/09 P, EU:C:2010:733], n.o 47, e jurisprudência referida).

188

Consequentemente, há que julgar improcedentes as alegações da República Helénica, segundo as quais, por causa da grave perturbação da economia grega devido à crise económica que se manifestava na Grécia desde finais de 2008 e em 2009, a Comissão devia ter declarado os pagamentos efetuados pelo ELGA em 2009 compatíveis diretamente com base no artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE.»

36.

Seguidamente, que há que recordar a jurisprudência assente segundo a qual o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, enquanto disposição derrogatória ao princípio geral da incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado comum, deve ser interpretado de forma estrita ( 16 ).

37.

Assim, os auxílios a que se refere a referida disposição não são ex lege compatíveis com o mercado interno, mas a Comissão pode considerá‑los compatíveis com esse mercado. Esta apreciação é da competência exclusiva desta instituição, que atua sob controlo das jurisdições da União ( 17 ).

38.

A este respeito, a Comissão goza, por força da jurisprudência constante recordada pelo Tribunal Geral no n.o 161 do acórdão recorrido, de um vasto poder de apreciação cujo exercício implica apreciações complexas de ordem económica e social que devem ser efetuadas num contexto comunitário. O Tribunal de Justiça, ao fiscalizar a legalidade do exercício dessa liberdade, não pode substituir a apreciação da Comissão pela sua própria apreciação na matéria, devendo limitar‑se a examinar se aquela está viciada por erro manifesto ou por desvio de poder ( 18 ).

39.

No caso em apreço, no que se refere à apreciação dos auxílios concedidos pelo ELGA em 2009 às empresas especializadas na produção primária agrícola na Grécia ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, a Comissão limitou o exercício desse poder de apreciação ao adotar o QCT. Na sua versão original, esta comunicação excluía com efeito tais auxílios do regime de flexibilização da disciplina dos auxílios que instituía ( 19 ). Na audiência, a Comissão indicou, em substancia, que esta exclusão se justificava pelas especificidades do setor da produção primária agrícola, que beneficia de medidas de apoio da União Europeia. É também no exercício do seu amplo poder de apreciação que a Comissão decidiu depois alterar o QCT quanto a este ponto de modo a que dele beneficiassem, sob certas condições, os auxílios às empresas que se dedicam à produção primária de produtos agrícolas concedidos a partir de 28 de outubro de 2009. Segundo a Comissão, esta evolução era motivada pela crescente dificuldade dos agricultores em acederem ao crédito

40.

Ora, como o Tribunal Geral recordou acertadamente no n.o 187 do acórdão recorrido, no domínio dos auxílios de Estado, a Comissão tem de respeitar os enquadramentos e comunicações que adota, na medida em que não se afastem das normas do Tratado ou de qualquer outra norma de direito primário ( 20 ).

41.

Por outro lado, a República Helénica, através da primeira parte do terceiro fundamento do presente recurso, não pretende pôr em causa a parte do acórdão recorrido em que o Tribunal Geral examinou a exceção de ilegalidade que suscitou relativamente ao ponto 4.2.2, terceiro parágrafo, alínea h), do QCT e relativa ao facto de este último excluir sem fundamentação do seu regime de flexibilização os auxílios concedidos às empresas do setor primário agrícola. Também não visa criticar a parte do referido acórdão em que o Tribunal Geral julgou improcedente a sua alegação segundo a qual a Comissão estava obrigada a aplicar a alteração do QCT levada a cabo em outubro de 2009 com efeitos retroativos a 17 de dezembro de 2008.

42.

Consequentemente, considero que o Tribunal de Justiça deve pronunciar‑se sobre a primeira parte do terceiro fundamento no sentido de que foi acertadamente que o Tribunal Geral declarou que a Comissão não se podia desviar do QCT e, em especial, da exclusão que este estabelecia no seu ponto 4.2.2, terceiro parágrafo, alínea h), no que se refere aos auxílios controvertidos concedidos pelo ELGA em 2009, sob pena de poder ser sancionada, se for o caso, por violação dos princípios gerais do direito, como os da igualdade de tratamento ou da proteção da confiança legítima ( 21 ).

43.

O facto de o QCT ter sido adotado sem obter a aprovação da República Helénica não é pertinente a este respeito, como salientou com razão a Comissão na audiência em resposta a uma questão colocada às partes. É certo que as orientações propostas pela Comissão aos Estados‑Membros ao abrigo do artigo 108.o, n.o 1, TFUE, representam, segundo jurisprudência constante, um elemento da cooperação regular e periódica no âmbito da qual a Comissão procede, com os Estados‑Membros, ao exame permanente dos regimes de auxílios existentes e lhes propõe medidas adequadas exigidas pelo desenvolvimento progressivo ou pelo funcionamento do mercado comum ( 22 ). Na medida em que estas propostas de medidas adequadas sejam aceites por um Estado‑Membro, têm força vinculativa em relação a este ( 23 ). É obvio, contudo, que estes princípios não se aplicam a uma comunicação como o QCT, mediante o qual a Comissão limita o exercício do amplo poder de apreciação de que dispõe ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE e que a vincula desde que a referida comunicação não se afaste das normas do Tratado.

Conclusão

44.

Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça julgue improcedente a primeira parte do terceiro fundamento por ser manifestamente infundada.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) T‑52/12, EU:T:2014:677.

( 3 ) JO 2012, L 78, p. 21.

( 4 ) JO C 16, p. 1.

( 5 ) Ponto 4.1, terceiro parágrafo, do QCT.

( 6 ) Ponto 4.2.2, terceiro parágrafo, alínea h), do QCT.

( 7 ) JO 2002, C 119, p. 22.

( 8 ) JO C 261, p. 2.

( 9 ) JO C 72, p. 12.

( 10 ) T‑52/12 R, EU:T:2012:447.

( 11 ) Despacho Grécia/Comissão, C‑431/14 P‑R, EU:C:2014:2418.

( 12 ) Um certo número de explicações suplementares dadas na audiência sobre essas dificuldades não me parecem pertinentes para o tratamento do presente recurso.

( 13 ) V., nomeadamente, despacho Industrias Alen/The Clorox Company, C‑422/12 P, EU:C:2014:57, n.o 37 e jurisprudência referida.

( 14 ) N.os 185 a 188 do acórdão recorrido, que também cito no número seguinte das presentes conclusões.

( 15 ) N.o 32, supra.

( 16 ) Acórdãos Alemanha/Comissão, C‑301/96, EU:C:2003:509, n.o 106, e Freistaat Sachsen e o./Comissão, C‑57/00 P e C‑61/00 P, EU:C:2003:510, n.o 98.

( 17 ) Acórdão Banco Privado Português e Massa Insolvente do Banco Privado Português, C‑667/13, EU:C:2015:151, n.o 66 e jurisprudência referida.

( 18 ) Acórdãos Itália/Comissão, C‑66/02, EU:C:2005:768, n.o 135, Portugal/Comissão, C‑88/03, EU:C:2006:511, n.o 99, e Unicredito Italiano, C‑148/04, EU:C:2005:774, n.o 71.

( 19 ) Ponto 4.2.2, terceiro parágrafo, alínea h) do QCT. Esses auxílios estão plenamente sujeitos ao Regulamento (CE) n.o 1857/2006 da Comissão, de 15 de dezembro de 2006, relativo à aplicação dos artigos [107.° e 108.° TFUE) aos auxílios estatais a favor das pequenas e médias empresas que se dedicam à produção de produtos agrícolas e que altera o Regulamento (CE) n.o 70/2001 (JO L 358, p. 3), ao qual as notas de pé de página 17 e 18 do QCT fazem referência.

( 20 ) V., nomeadamente, acórdãos Alemanha/Comissão, C‑288/96, EU:C:2000:537, n.o 62, Países Baixos/Comissão, C‑382/99, EU:C:2002:363, n.o 24, e Holland Malt/Comissão, C‑464/09 P, EU:C:2010:733, n.o 47.

( 21 ) V., neste sentido, acórdão Banco Privado Português e Massa Insolvente do Banco Privado Português, C‑667/13, EU:C:2015:151, n.o 69 e jurisprudência referida. O Tribunal de Justiça confirmou nesse acórdão, em substância, que a Comissão podia, sem infringir o artigo 107, n.o 3, TFUE, declarar um auxílio incompatível com o mercado interno pelo único motivo de não satisfazer os requisitos estabelecidos na sua Comunicação relativa à aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas adotadas em relação às instituições financeiras no contexto da atual crise financeira global (JO 2008, C 270, p. 8) (v. n.os 66 a 75 do acórdão).

( 22 ) V., nomeadamente, acórdãos IJssel‑Vliet, C‑311/94, EU:C:1996:383, n.os 36 e 37, e Alemanha/Comissão, C‑242/00, EU:C:2002:380, n.o 28 e jurisprudência referida.

( 23 ) Acórdãos IJssel‑Vliet, C‑311/94, EU:C:1996:383, n.os 42 e 43, Comissão/Conselho, C‑111/10, EU:C:2013:785, n.o 51, Comissão/Conselho, C‑117/10, EU:C:2013:786, n.o 63, Comissão/Conselho, C‑118/10, EU:C:2013:787, n.o 55, e Comissão/Conselho, C‑121/10, EU:C:2013:784, n.o 52. V., também, neste sentido, acórdão CIRFS e o./Comissão, C‑313/90, EU:C:1993:111, n.o 35.