CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 17 de março de 2015 ( 1 )

Processo C‑39/14

BVVG Bodenverwertungs‑ und ‑verwaltungs GmbH

estando presentes:

Thomas Erbs

Ursula Erbs

Landkreis Jerichower Land

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Auxílios de Estado — Programa de privatização de terras e de edifícios utilizados para fins agrícolas ou florestais nos novos Länder na Alemanha — Legislação nacional que sujeita a venda de terrenos agrícolas a autorização — Lei relativa às transações de prédios rústicos (Grundstücksverkehrsgesetz) — Recusa de autorização de um contrato de compra e venda de um terreno celebrado na sequência de um concurso público com o concorrente que apresentou a proposta mais elevada — Preço acordado fortemente desproporcionado em relação ao valor de mercado do terreno — Formas de determinação do valor do terreno — Qualificação como auxílio de Estado»

1. 

No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre uma questão de interpretação do artigo 107.o TFUE, no quadro de um litígio que põe em causa as condições e modalidades de venda de terrenos agrícolas e florestais, no contexto da privatização de terras e edifícios anteriormente pertencentes ao Estado nos novos Länder da Alemanha ( 2 ). O presente processo situa‑se, deste modo, no prolongamento do processo em que foi proferido o acórdão Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe ( 3 ), suscitando ao mesmo tempo questões inéditas que levarão o Tribunal de Justiça a precisar a sua jurisprudência sobre as condições a que estão sujeitas as vendas de terras públicas à luz das regras do Tratado em matéria de auxílios de Estado.

I – Quadro jurídico

2.

Resulta da decisão de reenvio que a BVVG Bodenverwertungs‑ und ‑verwaltungs GmbH ( 4 ) tem a missão legal, entre outras, de proceder à privatização das terras e edifícios anteriormente pertencentes ao Estado, utilizados para fins agrícolas ou florestais nos Länder de Brandeburgo, de Meclemburgo‑Pomerânia Ocidental, da Saxónia, da Saxónia‑Anhalt e da Turíngia (novos Bundesländer). A BVVG, que é uma pessoa coletiva de direito privado, age para esse efeito por conta do Bundesanstalt für vereinigungsbedingte Sonderaufgaben ( 5 ), organismo público federal dotado de personalidade jurídica.

3.

A venda de terrenos agrícolas e florestais na RFA está sujeita, de modo geral, às disposições da Lei das transações de prédios rústicos (Grundstücksverkehrsgesetz) ( 6 ), que visa proteger as estruturas agrícolas.

4.

O artigo 2.o, n.o 1, da GrdstVG dispõe:

«A alienação onerosa de um terreno e o respetivo contrato de compra e venda dependem de autorização; […]»

5.

O artigo 4.o da GrdstVG precisa, porém:

«Não é necessária autorização, quando

1.   O Estado Federal ou um Land sejam partes na alienação […]».

6.

O § 9 da GrdstVG prevê:

«1.   A autorização só poderá ser recusada, ou sujeita a restrições mediante a imposição de deveres (§ 10) ou de condições (§11), se se verificarem factos de que resulte que:

1.

A alienação implica uma distribuição indevida da superfície e dos solos, ou

2.

Por força da alienação, o imóvel, ou vários imóveis limítrofes ou economicamente interligados e pertencentes ao alienante, são reduzidos ou separados de forma economicamente inviável, ou

3.

O preço é fortemente desproporcionado face ao valor do imóvel.

2.   Considera‑se que existe, em regra, uma redução ou uma distribuição indevida da superfície e dos solos, na aceção do n.o 1, ponto 1, quando a alienação é contrária a medidas destinadas ao aperfeiçoamento da estrutura agrária.

3.   Considera‑se que existe, em regra, uma redução ou separação economicamente inviável, na aceção do n.o 1, ponto 2, quando, por via de partilha de uma herança, de trespasse ou de alienação mediante uma forma jurídica específica:

1.

Uma exploração agrícola autónoma perca a sua viabilidade;

2.

Um terreno agrícola se torne inferior a um hectare;

[…]»

4.   Se o terreno for alienado para fins não agrícolas ou florestais, a autorização prevista no n.o 1, ponto 3, não pode ser recusada.»

[…]»

II – Factos na origem do litígio do processo principal

7.

Resulta da decisão de reenvio que, na sequência de um concurso público em que apresentou a proposta mais elevada, o casal Erbs, por escritura notarial de 31 de março de 2008, adquiriu à BVVG um terreno agrícola de cerca de 2,6 hectares pelo montante de 29000 euros.

8.

Por decisão de 5 de junho de 2008, o Landkreis Jerichower Land, na sua qualidade de autoridade local competente, recusou a autorização para o contrato de compra e venda, ao abrigo do artigo 9.o, n.o 1, ponto 3, da GrdstVG ( 7 ), com o fundamento de que o preço acordado era fortemente desproporcionado em relação ao valor do terreno vendido.

9.

O recurso interposto pelo casal Erbs da decisão controvertida foi julgado improcedente em primeira e segunda instância. O órgão jurisdicional de segunda instância entendeu neste caso que o preço acordado de 29000 euros era fortemente desproporcionado em relação ao valor do terreno vendido, uma vez que um relatório de peritos indicava que o valor do terreno no mercado agrícola era de 14168,61 euros, tomando em consideração outras vendas realizadas anteriormente pela BVVG, e de 13648,19 euros, não tomando em consideração essas vendas. Considerou, portanto, que o preço acordado ultrapassava estes valores em mais de 50% e que a venda por este preço teria efeitos desfavoráveis sobre as estruturas agrícolas, precisando‑se, por um lado, que um agricultor, ouvido como testemunha, mas que não tinha participado no concurso público, estaria disposto a adquirir o terreno por um preço que fosse até 50% acima do seu valor no mercado agrícola e, por outro, que o casal Erbs não era um agricultor profissional.

III – Questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

10.

Nestas circunstâncias, tendo a BVVG interposto recurso para o Bundesgerichtshof, este órgão jurisdicional supremo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«É contrária ao artigo 107.o, n.o 1, TFUE uma disposição do direito nacional como o § 9, n.o 1, ponto 3, da Grundstücksverkehrsgesetz (Lei relativa às transações de prédios rústicos), a qual, com vista ao aperfeiçoamento da estrutura agrária, proíbe uma entidade de natureza estatal como a BVVG de alienar um terreno agrícola ao proponente que apresenta a proposta mais [elevada] num concurso público, quando essa proposta é fortemente desproporcionada face ao valor do terreno?»

11.

O órgão jurisdicional de reenvio tem o cuidado de precisar que, na sua perspetiva, esta questão engloba três interrogações. Em primeiro lugar, no seu entender, há que averiguar se a venda de um prédio rústico público pela BVVG por um preço inferior ao preço estabelecido num concurso público implica um benefício para o comprador, se a venda pelo preço estabelecido no concurso público for proibida por uma lei geral que se aplica também aos vendedores privados. Em segundo lugar, pressupondo‑se que há esse benefício, coloca‑se em seguida a questão de saber se o mesmo pode ser justificado pela finalidade da lei, a saber, a melhoria das estruturas agrícolas. Finalmente, em terceiro lugar, é conveniente determinar se a recusa da venda pelo preço estabelecido num concurso público é em si mesma ilícita à luz do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, num momento em que nem sequer constitui ainda um auxílio, em virtude do efeito antecipado que produz.

12.

A BVVG, o casal Erbs, o Governo alemão e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. A BVVG, o Landkreis Jerichower Land, o governo alemão e a Comissão também fizeram alegações na audiência pública realizada em 11 de dezembro de 2014.

IV – Resumo das observações das partes

13.

A BVVG considera, em geral, que deve ser dada uma resposta afirmativa à questão prejudicial do Bundesgerichtshof, uma vez que estão reunidos os elementos constitutivos de um auxílio de Estado.

14.

No seu entender, a aplicação da disposição controvertida implica, antes de mais, a utilização de recursos do Estado Federal, na medida em que o produto da privatização das terras e edifícios anteriormente pertencentes ao Estado é pago ao orçamento federal. Dessa forma, qualquer recusa de venda de um terreno pelo preço mais elevado proposto num concurso público implica uma perda de rendimentos do Estado Federal, produzindo ao mesmo tempo efeitos mais gerais de compressão dos preços. Por outro lado, a sua aplicação favorece os agricultores profissionais, que têm a oportunidade de fazer a aquisição de terrenos oferecidos em concurso público a um preço inferior ao preço da melhor proposta.

15.

Este benefício procede do modo de determinação do valor de mercado dos terrenos com base no qual as autoridades locais podem reconhecer uma larga desproporção na aceção da disposição controvertida e, assim, adotar uma decisão de recusa de autorização. A BVVG entende que a determinação deste valor através de peritos só pode aproximar‑se do valor de mercado se se basear num grande número de concursos públicos, o que não acontece no caso.

16.

O casal Erbs considera, no essencial, que a venda do terreno não implicou uma redução ou uma repartição não rentável das terras e que não afetou uma empresa agrícola autónoma ou a viabilidade de um agricultor.

17.

O governo alemão considera que o Tribunal de Justiça deve dar uma resposta negativa à questão prejudicial, na medida em que a disposição controvertida não implica a concessão de nenhum benefício, seja sob a forma de subvenção ou de uma redução de encargos. Considera que, em todo o caso, nenhuma empresa determinada fica beneficiada, já que a BVVG não tem a obrigação de vender ao agricultor que se mostrou interessado em comprar. Se é verdade que a decisão de recusa de autorização produz um efeito restritivo em relação à BVVG e ao casal Erbs, não implica, pelo contrário, nenhuma vantagem.

18.

Finalmente, a Comissão, recordando que não compete ao órgão jurisdicional nacional decidir quanto à compatibilidade de um eventual auxílio com o Tratado, considera que a regulamentação nacional pode constituir um «auxílio de Estado» na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, concentrando as suas observações no exame da questão da existência de uma vantagem seletiva, ao mesmo tempo que remete para o órgão jurisdicional de reenvio o cuidado de examinar se, no caso vertente, há uma intervenção com recursos do Estado.

V – Observações liminares

19.

O exame da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio exige uma série de observações liminares. Analisarei antes de mais o alcance da questão prejudicial colocada, o que me levará a propor ao Tribunal de Justiça uma reformulação da mesma. Tentarei em seguida expor as razões pelas quais uma lei sobre as transações de prédios rústicos como a GrdstVG, de aplicação genérica até no plano territorial, pode e, neste caso, até deve ser examinada à luz das disposições do Tratado em matéria de auxílios de Estado. Precisado esse aspeto, apresentarei o conteúdo da disposição controvertida. Finalmente, abordarei em último lugar a objeção de princípio suscitada pelo governo alemão, segundo a qual a disposição controvertida não pode ser qualificada de auxílio de Estado por não implicar nenhuma vantagem efetiva concedida a uma empresa.

A – Quanto ao alcance da questão prejudicial

20.

Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pede formalmente ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a questão de saber se o artigo 107.o, n.o 1, TFUE se opõe à disposição controvertida, ou seja, se a medida que esta prevê constitui um auxílio incompatível com o mercado interno.

21.

Ora, como a Comissão notou nas suas observações escritas, não compete nem ao Tribunal de Justiça nem ao órgão jurisdicional de reenvio pronunciar‑se sobre a compatibilidade de uma medida nacional com o artigo 107.o, n.o 1, TFUE, uma vez que esta matéria é da competência exclusiva da Comissão, sob a fiscalização do juiz da União Europeia ( 8 ). Por consequência, um tribunal nacional não pode, no âmbito de um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo [267.°] CE, questionar o Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade de um auxílio de Estado ou de um regime de auxílios com o mercado comum ( 9 ). Deste ponto de vista, o Tribunal de Justiça não pode dar resposta, no quadro deste processo prejudicial, à segunda interrogação do órgão jurisdicional de reenvio.

22.

Todavia, os órgãos jurisdicionais nacionais mantêm a competência para se pronunciarem sobre a qualificação de uma medida como auxílio de Estado e daí tirarem consequências nos termos do artigo 108.o, n.o 3, última frase, TFUE ( 10 ). Compete‑lhes, em especial, garantir aos particulares que serão retiradas todas as consequências das violações desta disposição, em conformidade com o direito nacional, quer no que diz respeito à validade dos atos de execução das medidas de auxílio, quer à restituição dos apoios financeiros concedidos em violação dessa disposição ou de eventuais medidas provisórias ( 11 ).

23.

Mais precisamente, o Tribunal de Justiça já decidiu que a competência da Comissão para apreciar a compatibilidade de um auxílio com o mercado comum não obsta a que um tribunal nacional interrogue o Tribunal de Justiça a título prejudicial sobre a interpretação da noção de auxílio ( 12 ). Assim, o Tribunal de Justiça pode, nomeadamente, fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os elementos de interpretação que se prendam com o direito da União e que possam permitir‑lhe determinar se uma medida nacional pode ser qualificada de auxílio de Estado na aceção desse direito ( 13 ).

24.

Há também que recordar neste contexto que o Tribunal de Justiça já precisou que, se um órgão jurisdicional nacional tiver dúvidas sobre a qualificação de uma medida, pode pedir esclarecimentos à Comissão a esse respeito. Na sua Comunicação de 23 de novembro de 1995 sobre a cooperação entre os tribunais nacionais e a Comissão no domínio dos auxílios estatais ( 14 ), a Comissão encorajou expressamente os tribunais nacionais a contactarem‑na quando encontram dificuldades na aplicação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE e explicou a natureza das informações que estava em condições de fornecer ( 15 ). A este respeito, deve notar‑se que, em virtude do dever de cooperação leal entre as instituições comunitárias e os Estados‑Membros, que decorre do artigo 4.o, n.o 3, TUE ( 16 ), a Comissão deve responder o mais rapidamente possível aos pedidos dos tribunais nacionais ( 17 ).

25.

Por consequência, se se concluir que o mecanismo de autorização instituído pela disposição controvertida pode conter elementos de auxílios de Estado, incumbe então às autoridades alemãs competentes notificá‑lo à Comissão para que esta se pronuncie sobre a sua compatibilidade com o mercado interno. Enquanto se espera uma decisão definitiva da Comissão, compete ao órgão jurisdicional de reenvio afirmar o efeito direto do artigo 108.o, n.o 3, última frase, TFUE, ou seja, garantir os direitos que essa disposição confere aos interessados, opondo‑se à recusa de autorização da celebração do contrato de compra e venda acordado entre a BVVG e o casal Erbs e aos seus efeitos ( 18 ).

26.

Também há que recordar que, com exceção dos auxílios de minimis ( 19 ), os Estados‑Membros transmitirão à Comissão ( 20 ), para ser publicado no seu sítio web ( 21 ), um resumo das informações relativas às medidas suscetíveis de estar abrangidas por uma isenção por categoria, incluindo os auxílios concedidos no sector agrícola ( 22 ).

27.

À luz destas considerações, proponho que o Tribunal de Justiça reformule a questão prejudicial submetida pelo Bundesgerichtshof nos termos seguintes: «deve o artigo 107.o, n.o 1, TFUE ser interpretado no sentido de que uma disposição do direito nacional que, com a finalidade de melhorar as estruturas agrícolas, proíbe a uma empresa do Estado vender, em concurso público, um terreno agrícola ao proponente que apresenta a melhor proposta, quando esta proposta é fortemente desproporcionada em relação ao valor do terreno, é suscetível de ser qualificada de auxílio de Estado?»

B – Quanto à especificidade do regime controvertido

28.

A disposição controvertida ( 23 ), sumariamente apresentada, permite às autoridades locais competentes oporem‑se às vendas de terrenos agrícolas ou florestais efetuadas em concursos públicos, quando considerem que os preços acordados são fortemente desproporcionados em relação ao valor dos terrenos.

29.

O regime em que se inscreve ( 24 ) assenta, neste caso, num mecanismo de autorização prévia de certas transferências de propriedade de terrenos agrícolas ou florestais que são objeto de contratos de compra e venda, cuja aplicação é condicionada pela ultrapassagem de um preço‑limiar cuja avaliação assenta num sistema de determinação do valor de mercado agrícola destes terrenos. O órgão jurisdicional de reenvio define, aliás, a disposição controvertida como «uma regulação de preços que contém uma restrição admissível da propriedade».

30.

A autorização de transferência da propriedade de terrenos agrícolas ou florestais que sejam objeto de contratos de compra e venda não é exigida, nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da GrdstVG, quando o Estado Federal ou um Land é parte no contrato, mas é exigida, pelo contrário, por força da própria jurisprudência do Bundesgerichtshof ( 25 ), quando a BVVG é parte na venda, como é o caso no processo principal. Apesar da sua missão legal que consiste em efetivar a privatização das terras nos novos Länder, a BVVG, que é uma pessoa coletiva de direito privado, não é abrangida pela isenção prevista pelo artigo 4.o, n.o 1, da GrdstVG.

31.

Deve, assim, realçar‑se que a GrdstVG, uma lei que, de modo geral, sujeita a autorização as transferências de propriedade dos terrenos agrícolas e florestais que ocorram na Alemanha entre privados, também se aplica a todas as transações de terrenos agrícolas que ocorram no quadro da privatização de terras anteriormente pertencentes ao Estado, administradas pela BVVG, na medida em que esta entidade não é abrangida pela isenção prevista no artigo 4.o, n.o 1, da GrdstVG.

32.

Por consequência, é esta isenção que tem como efeito submeter as vendas de terrenos agrícolas e florestais públicos a uma autorização, quando se verificam as condições previstas na disposição controvertida. Pelo facto de a BVVG proceder à venda de terrenos anteriormente pertencentes ao Estado e pagar o produto dessa venda ao orçamento federal é que o regime controvertido pode implicar recursos do Estado e, dessa forma, pode ficar sujeito às disposições do Tratado em matéria de auxílios de Estado.

33.

Todavia, é conveniente examinar com maior precisão o conteúdo da disposição controvertida.

C – Sobre o conteúdo da disposição controvertida

34.

A autorização de transferência de propriedade de terrenos só pode ser recusada, por um lado, se se tratar de terrenos agrícolas ou florestais e, por outro, se se verificarem outras circunstâncias, nomeadamente, no que respeita à disposição controvertida, que o preço proposto e acordado no contrato de compra e venda seja fortemente desproporcionado em relação ao valor de mercado agrícola dos terrenos.

35.

Não definindo a GrdstVG o conceito «fortemente desproporcionado», foram os órgãos jurisdicionais alemães, em particular o órgão jurisdicional de reenvio, que o definiram. Verifica‑se uma larga desproporção quando o preço de venda acordado ultrapassa em mais de 50% o valor de mercado agrícola do terreno ( 26 ).

36.

O órgão jurisdicional de reenvio expõe, a este respeito, que a disposição controvertida tem por finalidade evitar que os agricultores profissionais tenham de suportar custos de aquisição de novos terrenos suscetíveis de pôr em risco a viabilidade das suas explorações. Essa disposição visa, portanto, fazer cessar as operações de especulação sobre terrenos agrícolas e florestais e promover a melhoria das estruturas agrícolas.

37.

O governo alemão precisou que a decisão de recusa de autorização tem por efeito bloquear o registo da propriedade do terreno a favor do comprador, o que impede a transferência da propriedade, de modo que um contrato de compra e venda celebrado fica provisoriamente ineficaz até que haja uma decisão judicial definitiva sobre essa decisão. Se a decisão de recusa for anulada, o contrato de compra e venda provisoriamente ineficaz torna‑se exequível pelo preço de venda acordado e o comprador pode registar a propriedade a seu favor. No caso contrário, a decisão de recusa torna‑se definitiva e o contrato celebrado torna‑se nulo e sem efeitos. Todavia, o facto de a decisão se tornar definitiva não implica nenhum direito à aquisição do terreno por um agricultor que tivesse manifestado o seu interesse no quadro do concurso público ou no quadro do processo contencioso contra a decisão de recusa de autorização.

38.

A disposição controvertida visa, assim, impedir que as vendas de terrenos agrícolas ou florestais realizadas no quadro de um concurso público se façam por preços que se afastem substancialmente em mais de 50% dos preços considerados «aceitáveis» pelas autoridades locais competentes, ou seja, preços proporcionados ao que estas consideram ser o valor de mercado agrícola.

39.

Precisado este aspeto, há que notar que a execução do regime controvertido, que implica, por hipótese, que o preço mais elevado proposto para um determinado terreno no quadro de um concurso público seja superior em mais de 50% ao valor de mercado agrícola estimado pelas autoridades locais competentes, pode, em teoria, ocorrer em casos muito diferentes, que variam nomeadamente em função do número de propostas apresentadas e da estrutura dos preços propostos.

40.

Isto para sublinhar que não é possível apreciar o regime controvertido e decidir a questão da sua qualificação à luz do artigo 107.o TFUE sem tomar em consideração as condições concretas da sua execução, mais precisamente as circunstâncias em que o mesmo é aplicado. Como terei a oportunidade de demonstrar, a apreciação do caráter desproporcionado do preço oferecido no quadro de um concurso público por um determinado terreno não é o mesmo consoante nesse concurso tenha sido apresentada uma única proposta, um número reduzido de propostas ou um grande número de propostas.

41.

Daí resulta que, para apreciar esse caráter desproporcionado, há que, naturalmente, examinar o modo concreto de determinação do preço de mercado agrícola dos terrenos pelas autoridades locais competentes, mas também tomar em consideração o número de propostas apresentadas e a estrutura dos preços propostos no quadro do concurso público.

D – Sobre a particularidade da situação no processo principal

42.

Finalmente, há que insistir na particularidade da situação no processo principal, que é objeto da terceira interrogação do órgão jurisdicional de reenvio ( 27 ) e que dá ao governo alemão um dos principais argumentos para concluir que o regime controvertido não pode ser qualificado de auxílio de Estado.

43.

Com efeito, este governo alega que a decisão de recusa de autorização discutida no processo principal não implica para a BVVG nenhuma obrigação de vender o terreno em causa ao agricultor profissional que manifestou interesse em adquiri‑lo. Não se pode, pois, considerar que o terreno em causa foi vendido por um preço inferior ao preço de mercado, tal como fixado no quadro do concurso público. A disposição controvertida não pode, por consequência, ser qualificada de auxílio de Estado, porque não há qualquer intervenção efetiva com dispêndio de recursos do Estado.

44.

É seguramente verdade que, não tendo havido qualquer venda do terreno em causa ao agricultor profissional que manifestou interesse em adquiri‑lo, no quadro do concurso público em causa no processo principal, por um preço inferior à proposta mais elevada, não se pode considerar que houve uma concessão de um auxílio efetivo.

45.

Todavia, se não se realizou tal venda no caso do processo principal, foi antes de mais e principalmente porque as duas partes no contrato, que é o objeto da decisão de recusa de autorização, impugnaram essa decisão nos tribunais alemães, tendo a BVVG suscitado precisamente a questão de saber se a disposição controvertida pode ser qualificada de auxílio de Estado, questão que deu origem ao presente processo prejudicial.

46.

Por outro lado, o facto de as autoridades nacionais ainda não terem dado seguimento à sua decisão de recusa de autorização num caso determinado não permite concluir que a questão da qualificação da disposição controvertida como auxílio de Estado é hipotética. Em especial, não pode considerar‑se que o alegado comportamento das autoridades locais competentes se repetirá sistemática e perpetuamente, a menos que se prive a disposição controvertida da sua substância e dos seus efeitos.

47.

Em todo o caso, o facto de as autoridades locais competentes disporem de poder discricionário quanto às consequências da sua decisão de recusa de autorização continua a não ter influência sobre a questão de saber se o regime controvertido é suscetível de conter elementos de auxílios de Estado. A qualificação de uma medida como auxílio de Estado não pode estar subordinada nem à constatação prévia da sua efetiva execução nem mesmo à avaliação prospetiva da sua frequência de execução sem pôr em causa o sistema de controlo permanente dos auxílios de Estado estabelecido pelos artigos 107.° e 108.° TFUE.

48.

No termo destas primeiras considerações, estou em condições de abordar o núcleo do problema suscitado pelo litígio no processo principal, que consiste em determinar se e em que medida a execução do regime controvertido é suscetível de estar abrangida pela qualificação de como auxílio de Estado.

VI – Quanto à qualificação do regime controvertido como medida de auxílio de Estado

49.

Para que uma medida nacional possa ser qualificada de «auxílio», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, é necessário designadamente e antes de mais que se trate de uma intervenção do Estado ou por meio de recursos estatais e que conceda uma vantagem ao seu beneficiário ( 28 ).

50.

Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que só as vantagens concedidas direta ou indiretamente e provenientes de recursos estatais devem ser consideradas auxílios na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. A distinção estabelecida nesta disposição entre os «auxílios concedidos pelos Estados» e os auxílios «provenientes de recursos estatais» não significa que todas as vantagens concedidas por um Estado constituam auxílios, quer sejam ou não financiadas por recursos estatais, mas destina‑se apenas a incluir neste conceito as vantagens atribuídas diretamente pelo Estado e as atribuídas por organismos públicos ou privados, designados ou instituídos pelo Estado ( 29 ).

51.

Dito isto, o conceito de «auxílio», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, abrange não apenas prestações positivas, como subvenções, mas também intervenções que, sob diversas formas, aliviam os encargos que, normalmente, oneram o orçamento de uma empresa, pelo que, não sendo subvenções na aceção estrita do termo, têm a mesma natureza e efeitos idênticos ( 30 ). Basta, a este respeito, estabelecer um nexo suficientemente direto entre, por um lado, a vantagem concedida ao beneficiário e, por outro, uma diminuição das receitas do Orçamento do Estado ( 31 ).

52.

Deve também recordar‑se, para completar a resposta a dar à segunda interrogação do órgão jurisdicional de reenvio ( 32 ), que o simples facto de uma medida prosseguir uma finalidade social não é suficiente para, sem mais, subtrair semelhante medida à qualificação como auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Com efeito, esta disposição não faz a distinção segundo as causas ou os objetivos das intervenções estatais, definindo‑as, sim, em função dos seus efeitos ( 33 ).

53.

Como o Tribunal de Justiça já sublinhou, não se pode excluir a possibilidade de uma venda de terrenos públicos a um preço inferior ao do mercado constituir um auxílio de Estado ( 34 ). O Tribunal de Justiça precisou que a venda, pelas autoridades públicas, de terras ou de edifícios a uma empresa ou a um particular que exerça uma atividade económica como a agricultura ou a silvicultura pode conter elementos de auxílio de Estado, designadamente quando não é efetuada pelo valor de mercado, isto é, pelo preço que um investidor privado teria podido fixar, atuando em condições normais de concorrência ( 35 ).

54.

O Tribunal de Justiça deduziu daí que, quando o direito nacional institui regras de cálculo do valor de mercado das terras para a sua venda pelas autoridades públicas, a respetiva aplicação, para ser conforme com o artigo 107.o TFUE, deve levar, em todos os casos, a um preço o mais próximo possível do valor de mercado ( 36 ).

55.

É à luz destes diferentes elementos que se deve apreciar se e em que medida a aplicação da disposição controvertida implica a concessão de uma vantagem a uma empresa e, desse modo, pode ser abrangida pela qualificação como auxílio de Estado, o que me leva a analisar antes de mais o sistema de determinação do valor de mercado agrícola dos terrenos agrícolas e florestais pelas autoridades locais competentes.

A – O sistema de determinação do valor de mercado agrícola dos terrenos

56.

Como resulta do despacho de reenvio (n.o 32), o valor de mercado agrícola dos terrenos, que não é definido pela GrdstVG, é o preço que deve ser obtido por terrenos do mesmo tipo e na mesma situação no momento da celebração do contrato no contexto de uma transação contratual livre entre agricultores, ou seja, uma transação de prédios rústicos no sector agrícola, precisando‑se que as vendas a pessoas que não são agricultores também devem ser tomadas em consideração na medida em que sejam realizadas com vista a outra utilização agrícola do terreno.

57.

Nem o órgão jurisdicional de reenvio nem os interessados que apresentaram observações escritas ou alegações forneceram indicações precisas sobre o modo como a autoridade local competente para recusar a autorização exigida pela disposição controvertida determinou o valor de mercado agrícola do terreno, que é o objeto do contrato, relativamente ao qual foi constatada a larga desproporção que justificou a recusa de autorização. Resulta, porém, das observações escritas da BVVG que esse valor é determinado a partir dos preços de referência estabelecidos pelas comissões de avaliação com base em indicadores e valores de referência regionais (n.os 41 e 42).

58.

O órgão jurisdicional de reenvio limita‑se a precisar que, no litígio do processo principal, o tribunal de segunda instância confirmou a decisão de recusa de autorização da autoridade local competente com base num relatório de peritos que tinha encomendado, sem fornecer mais precisões. A BVVG precisou, porém, nas suas observações escritas, que as propostas apresentadas pelas empresas agrícolas no quadro do concurso público não são tomadas em consideração.

59.

A aplicação do mecanismo de autorização prévia pressupõe assim que, num concurso público para a venda de um terreno agrícola que tenha levado à celebração de um contrato de compra e venda com um adquirente não agricultor ou com um agricultor não profissional, um agricultor profissional tenha manifestado o seu interesse na aquisição do terreno, que é o objeto do contrato, e que o preço acordado nesse contrato ultrapasse em mais de 50% o preço pelo qual esse agricultor se declarou disposto a adquirir o terreno.

B – Existência de uma intervenção com recursos do Estado

60.

Não restam dúvidas de que a aplicação da disposição controvertida pode implicar uma intervenção com recursos do Estado, na medida em que pode implicar uma perda de rendimentos do Estado no produto da privatização de terrenos que são objeto de uma decisão de recusa de autorização de transferência de propriedade. Tal como alegou a BVVG, revertendo os seus resultados de cada exercício para o orçamento federal, conclui‑se que a aplicação da decisão controvertida pode conduzir automaticamente a uma renúncia pelo Estado aos recursos correspondentes à diferença entre o valor de mercado agrícola avaliado pelas autoridades locais competentes e o preço mais alto proposto no concurso público ( 37 ).

C – Pressupostos da existência de uma vantagem concedida a uma empresa

61.

O governo alemão alega essencialmente que o regime controvertido não pode ser qualificado de auxílio de Estado na medida em que não favorece nenhuma empresa e não implica nenhuma vantagem concreta para uma empresa ou para uma produção. Entende, em especial, que seria errado considerar que o preço de mercado do terreno em causa corresponde à proposta mais elevada apresentada no concurso público, uma vez que a jurisprudência do Tribunal de Justiça e a Comunicação da Comissão de 10 de julho de 1997 no que respeita a auxílios estatais no âmbito da venda de terrenos e imóveis públicos (comunicação n.o 97/C 209/03) ( 38 ) admite que o preço de mercado pode perfeitamente ser estabelecido por peritos independentes.

62.

A este respeito, há que notar antes de mais que, na sua comunicação de 1997, a Comissão reconhece que se considera que a venda de terrenos e de edifícios pertencentes ao Estado não contém elementos de auxílio de Estado se for realizada na sequência de um concurso público aberto e incondicional ou se, na falta de tal procedimento, for precedida por uma avaliação por um ou mais peritos independentes para fixar o valor de mercado dos ativos em causa com base em indicadores de mercado e critérios de avaliação de aceitação geral.

63.

Como já observei ( 39 ), o Tribunal de Justiça, no seu acórdão Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe ( 40 ), decidiu que, quando o direito nacional institui regras de cálculo do valor de mercado das terras para a sua venda pelas autoridades públicas, a respetiva aplicação, para ser conforme com o artigo 107.o TFUE, deve levar, em todos os casos, a um preço o mais próximo possível do valor de mercado ( 41 ). O Tribunal de Justiça confirmou que, se os métodos do proponente com a proposta mais elevada e o do relatório pericial são suscetíveis de fornecer preços que correspondem aos valores reais de mercado, não se pode excluir que outros métodos possam igualmente atingir o mesmo resultado ( 42 ). Precisou porém, a este respeito, que um método de avaliação do valor das terras agrícolas que não contiver um mecanismo de atualização que permita uma aproximação o mais precisa possível entre o valor de mercado e o preço de venda das terras, designadamente em períodos de fortes aumentos, não é apto a refletir a realidade dos preços de mercado em causa ( 43 ).

64.

Neste caso, embora o regime controvertido apresente caraterísticas que o aproximam de um procedimento de avaliação do valor de mercado dos ativos por peritos independentes, tal como descrito no título II, n.o 2, da comunicação de 1997, apresenta também e principalmente a particularidade de neutralizar os efeitos de um concurso público incondicional, tal como o previsto no Título II, n.o 1 da comunicação de 1997.

65.

Como já observei, o Tribunal de Justiça dispõe de poucas informações sobre a metodologia seguida pelas autoridades locais competentes ou pelos peritos designados pelos órgãos jurisdicionais nacionais para avaliar o preço dos terrenos no quadro da aplicação da disposição controvertida, mais precisamente sobre os indicadores de mercado e os critérios de avaliação que utilizam. Por isso, não tem a possibilidade de determinar se o procedimento de avaliação é, em si mesmo, suscetível de responder às exigências da sua própria jurisprudência e às indicações da comunicação de 1997.

66.

Esta é, porém, uma apreciação que compete exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio, devendo o Tribunal de Justiça procurar fornecer‑lhe todos os elementos de interpretação do direito da União pertinentes para o efeito. A este respeito, é conveniente insistir em que essa apreciação deve fazer‑se em relação ao próprio regime controvertido, mas também em relação à sua aplicação concreta, devendo o órgão jurisdicional de reenvio assegurar‑se, em especial, de que a avaliação do valor de mercado dos terrenos pelas autoridades locais competentes ou pelos peritos designados pelos tribunais nacionais não leve a um resultado que se afaste do valor de mercado ( 44 ).

67.

Ora, como já sublinhei ( 45 ), esta apreciação depende tanto da metodologia e dos critérios de avaliação utilizados como das circunstâncias próprias de cada concurso público, em especial do número de propostas apresentadas e da estrutura dos preços propostos.

68.

A este respeito, deve observar‑se, antes de mais, que só pode considerar‑se que a própria metodologia de avaliação do valor de mercado agrícola dos terrenos responde a estas exigências, no espírito do acórdão Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe ( 46 ) e das exigências de atualização que ele impõe, na medida em pondere os preços propostos nos concursos públicos, sendo esta ponderação tanto mais importante quanto maior for o número de propostas apresentadas.

69.

Com efeito, por definição, os preços propostos num concurso público aberto e incondicional fornecem em qualquer hipótese a indicação mais fiável e mais atualizada do valor de mercado de um determinado terreno. Por consequência, o valor de mercado agrícola de um terreno só pode ser o mais próximo do valor de mercado ( 47 ), quando é fixado pelas autoridades locais competentes ou por peritos posteriormente a um concurso público, na medida em que a metodologia de avaliação pondere todos os preços propostos nesse concurso.

70.

Em seguida, como já observei, a qualificação do regime controvertido não depende apenas da metodologia de avaliação do valor de mercado agrícola seguida pelas autoridades locais competentes ou pelos tribunais nacionais, mas também das circunstâncias próprias de cada caso concreto, nos diferentes tipos de casos que podem teoricamente configurar‑se.

71.

Assim, num primeiro caso, o valor de mercado agrícola estimado pelas autoridades locais competentes pode ser próximo do essencial das propostas apresentadas num concurso público e a proposta mais elevada pode ser a única claramente superior quer aos outros preços propostos quer ao valor de mercado estimado. Neste caso, é lícito presumir que a proposta mais elevada é especulativa e que o valor estimado corresponde ao preço do mercado, de modo que poderia deduzir‑se desse facto que a aplicação do regime controvertido não contém elementos de auxílios de Estado.

72.

Num segundo caso, a proposta mais elevada pode ser próxima do conjunto das outras propostas apresentadas no concurso público e o valor de mercado agrícola estimado pelas autoridades locais competentes pode ser o único claramente inferior ao conjunto das propostas. Neste caso, é difícil considerar que o valor de mercado estimado corresponde ao preço do mercado e, por conseguinte, poderia considerar‑se que a aplicação do regime controvertido contém elementos de auxílios de Estado.

73.

Por consequência, quando as autoridades nacionais competentes e/ou os órgãos jurisdicionais nacionais verificam se estão reunidas as condições de aplicação da disposição controvertida e apreciam o caráter desproporcionado do preço mais elevado proposto num concurso público comparando‑o com o valor de mercado agrícola que elas calcularam, devem ter em conta as circunstâncias próprias de cada caso concreto, tomando em consideração, em especial, a estrutura dos preços propostos.

74.

Resta ainda evocar o caso em que só tenha sido apresentada uma única proposta no concurso público. Em tal caso, a metodologia de avaliação do valor de mercado agrícola seguida pelas autoridades locais competentes e pelos órgãos jurisdicionais nacionais reveste seguramente uma importância decisiva.

75.

Na apreciação que o órgão jurisdicional de reenvio deve fazer a este respeito, pode utilmente ter em conta, a título de comparação, o sistema de determinação do valor dos terrenos elaborado pela própria BVVG, o Vergleichspreissystem (VPS) ( 48 ), que a República Federal da Alemanha teve o cuidado de notificar à Comissão ( 49 ). Esta instituição considerou, nesse caso, depois de ter mandado avaliar esse método por um perito ( 50 ), que a aplicação do método VPS não continha elementos de auxílios de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Mais precisamente, a Comissão considerou que o método VPS não conferia nenhuma vantagem ao comprador de um terreno, na medida em que permitia refletir o valor de mercado desse terreno, precisando‑se que esta apreciação apenas é válida para as vendas realizadas pela BVVG no quadro da privatização de terras agrícolas e florestais dos novos Länder da Alemanha.

76.

O método VPS, que se funda no método de avaliação comparativo (Vergleichswertverfahren) utilizado pelos avaliadores independentes na Alemanha ( 51 ), baseia‑se na fixação de um preço de venda médio por comparação de dados pertinentes respeitantes a um grande número de transações passadas semelhantes. Os dados pertinentes, que se referem, entre outros, à localização regional, à situação, à dimensão e à qualidade dos terrenos vendidos ( 52 ), são compilados numa base de dados que é permanentemente atualizada, pelo menos uma vez por mês ou mais, se necessário, com as novas transações e indicadores do mercado ( 53 ).

77.

É à luz destes elementos, entre outros, que o órgão jurisdicional de reenvio deve apreciar se o regime controvertido e a sua aplicação favorecem certas empresas ou certas produções, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, anotando‑se que, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma medida deve ser considerada seletiva, mesmo quando afeta todo um setor económico ( 54 ), quando favorece empresas que se encontrem, tendo em conta o objetivo prosseguido, em situação factual e jurídica comparável ( 55 ), na medida em que não se justifique pela natureza ou pela economia geral do sistema em que se inscreve ( 56 ).

78.

Ora, a aplicação da disposição controvertida é suscetível de favorecer os agricultores profissionais que, na sequência de concursos públicos organizados pela BVVG para a venda de terrenos agrícolas, têm a possibilidade de fazer a respetiva aquisição a um preço inferior à proposta mais elevada ou até ao conjunto das propostas.

79.

Decorre de todas estas considerações que o artigo 107.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma disposição do direito nacional como a que está em causa no processo principal, a qual, com a finalidade de melhorar as estruturas agrícolas, proíbe a uma entidade dependente do Estado vender, num concurso público, um terreno agrícola ao proponente que apresenta a proposta mais elevada, quando esta é fortemente desproporcionada em relação ao valor do terreno, só pode deixar de ser qualificada de auxílio de Estado na medida em que esse valor seja o mais próximo possível do valor do mercado, o que implica, nomeadamente, que a sua avaliação tenha em conta os preços propostos no concurso público. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se essa disposição cumpre estas exigências e se a sua aplicação concreta é suscetível de levar à fixação de um preço que se afaste do valor do mercado e tirar as consequências dessa apreciação.

VII – Conclusão

80.

Proponho ao Tribunal de Justiça que responda do modo seguinte ao pedido de decisão prejudicial que lhe foi submetido pelo Bundesgerichtshof:

«O artigo 107.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma disposição do direito nacional como a que está em causa no processo principal, a qual, com a finalidade de melhorar as estruturas agrícolas, proíbe uma entidade dependente do Estado de vender, através de um concurso público, um terreno agrícola ao proponente que apresenta a proposta mais elevada, quando esta é fortemente desproporcionada em relação ao valor do terreno, só pode deixar de ser qualificada de auxílio de Estado na medida em que esse valor seja o mais próximo possível do valor do mercado, o que implica, nomeadamente, que a sua avaliação tenha em conta os preços propostos no concurso público. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se essa disposição cumpre estas exigências e se a sua aplicação concreta é suscetível de levar à fixação de um preço que se afasta do valor do mercado e tirar as consequências dessa apreciação.»


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) De modo muito geral, v. Kadner, Th., Die Transformation des Vermögensrechts in Ostdeutschland nach der Wiedervereinigung, ZEuP, 1997, p. 86; Rohde, G., Grunstückeigentums‑ und Bodennutzungsrechtsverhältnisse in den neuen Bundesländern nach dem Einigungsvertrag, DNotZ, 1991, p. 186.

( 3 ) C‑239/09, EU:C:2010:778.

( 4 ) A seguir «BVVG».

( 5 ) Organismo público responsável por missões específicas resultantes da reunificação, a seguir «BvS».

( 6 ) A seguir «GrdstVG».

( 7 ) A seguir «disposição controvertida».

( 8 ) V., nomeadamente, acórdão Lucchini (C‑119/05, EU:C:2007:434, n.o 52).

( 9 ) V., nomeadamente, acórdão Enirisorse (C‑237/04, EU:C:2006:197, n.o 23); e despacho Acanfora (C‑181/13, EU:C:2014:127, n.o 22).

( 10 ) V., nomeadamente, acórdãos Steinike & Weinlig (78/76, EU:C:1977:52, n.o 2); Fédération nationale du commerce extérieur des produits alimentaires e Syndicat national des négociants et transformateurs de saumon (C‑354/90, EU:C:1991:440, n.os 8 a 14), bem como Adria‑Wien Pipeline e Wietersdorfer & Peggauer Zementwerke (C‑143/99, EU:C:2001:598, n.os 26 a 29).

( 11 ) V., nomeadamente, acórdãos Fédération nationale du commerce extérieur des produits alimentaires e Syndicat national des négociants et transformateurs de saumon (EU:C:1991:440, n.o 12) bem como SFEI e o. (C‑39/94, EU:C:1996:285, n.o 40).

( 12 ) V., nomeadamente, acórdão DM Transport (C‑256/97, EU:C:1999:332, n.o 15).

( 13 ) V., nomeadamente, acórdão Fallimento Traghetti del Mediterraneo (C‑140/09, EU:C:2010:335, n.o 24) e Paint Graphos e o. (C‑78/08 a C‑80/08, EU:C:2011:550, n.o 35).

( 14 ) JO C 312, p. 8.

( 15 ) V. também a Comunicação da Comissão de 9 de abril de 2009, relativa à aplicação da legislação em matéria de auxílios estatais pelos tribunais nacionais (JO C 85, p. 1, n.os 89 e segs.).

( 16 ) V. despacho Zwartveld e o. (C‑2/88 IMM, EU:C:1990:315, n.os 17 e 18).

( 17 ) V., nomeadamente, acórdão SFEI e o. (EU:C:1996:285, n.o 50).

( 18 ) V., nomeadamente, acórdãos SFEI e o. (EU:C:1996:285, n.o 28) e Piaggio (C‑295/97, EU:C:1999:313, n.os 29 a 32).

( 19 ) V. artigo 3.o do Regulamento (CE) n.o 1535/2007 da Comissão, de 20 de dezembro de 2007, relativo à aplicação dos artigos 87.° e 88.° do Tratado CE aos auxílios de minimis no setor da produção de produtos agrícolas (JO L 337, p. 35). O artigo 4.o, n.o 1, segundo parágrafo, deste regulamento precisa, porém que, no caso de ser excedido o limiar referido no n.o 2 do artigo 3.o (a saber, 7500 EUR para uma empresa durante um período de três exercícios fiscais) o Estado‑Membro em causa deve assegurar que a medida de auxílio que determinou tal superação seja notificada à Comissão ou recuperada junto do beneficiário. Nos termos do seu artigo 7.o, segundo parágrafo, esse regulamento era aplicável de 1 de janeiro de 2008 a 31 de dezembro de 2013. Foi substituído pelo regulamento (UE) n.o 1408/2013 da Comissão, de 18 de dezembro de 2013, relativo à aplicação dos artigos 107.° e 108.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia aos auxílios de minimis no setor agrícola (JO L 352, p. 9), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2014. Este novo regulamento, para além de modificar o limite máximo das ajudas de minimis, prevê, no seu artigo 6.o, um novo mecanismo de controlo, que já não contém a obrigação de notificação prevista no artigo 4, n.o 1, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 1535/2007.

( 20 ) V. artigo 3.o, n.o 2, do regulamento (CE) n.o 994/98 do Conselho, de 7 de maio de 1998, relativo à aplicação dos artigos 92.° e 93.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia a determinadas categorias de auxílios estatais horizontais (JO L 142, p. 1).

( 21 ) V. artigo 1.o, n.o 3, do regulamento (UE) n.o 733/2013 do Conselho, de 22 de julho de 2013, que altera o Regulamento (CE) n.o 994/98, relativo à aplicação dos artigos 92.° e 93.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia a determinadas categorias de auxílios estatais horizontais (JO L 204, p. 11), que modifica, entre outros, o artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 994/98.

( 22 ) Regulamento (CE) n.o 1857/2006 da Comissão, de 15 de dezembro de 2006, relativo à aplicação dos artigos 87.° e 88.° do Tratado aos auxílios estatais a favor das pequenas e médias empresas que se dedicam à produção de produtos agrícolas e que altera o Regulamento (CE) n.o 70/2001 (JO L 358, p. 3); este regulamento foi revogado pelo regulamento (UE) n.o 702/2014 da Comissão, de 25 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios no setor agrícola e florestal e nas zonas rurais compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.° e 108.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (JO L 193, p. 1), em vigor desde 1 de julho de 2014.

( 23 ) V., nomeadamente, Schramm, L., Probleme der Grundstücksverkehrsgenehmigung und des siedkungsrechtlichen Vorkaufsrechts in den neuen Bundesländern, NL‑BzAR, 2005, n.o 8, p. 322.

( 24 ) A seguir «regime controvertido».

( 25 ) Acórdão de 27 de novembro de 2009 (BLw 4/09, NJW‑RR 2010, 886 n.o 12).

( 26 ) V., citado pelo governo alemão, acórdão do Bundesgerichtshof de 27 de abril de 2001 (BLw 14/00, NJW‑RR 2001, 1021).

( 27 ) V. n.o 11 destas conclusões.

( 28 ) V., nomeadamente, acórdãos Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C‑280/00, EU:C:2003:415, n.os 74 e 75) e Libert e o. (C‑197/11 e C‑203/11, EU:C:2013:288, n.o 74).

( 29 ) V., nomeadamente, acórdãos van Tiggele (82/77, EU:C:1978:10, n.os 24 e 25) bem como PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160, n.o 58).

( 30 ) V., nomeadamente, acórdãos Banco Exterior de España (C‑387/92, EU:C:1994:100, n.o 13); SFEI e o. (EU:C:1996:285, n.o 58); Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe (EU:C:2010:778, n.o 30), e Eventech (C‑518/13, EU:C:2015:9, n.o 33).

( 31 ) V., nomeadamente, acórdão Eventech (EU:C:2015:9, n.o 34).

( 32 ) V. n.os 11 e 20 das presentes conclusões.

( 33 ) V., nomeadamente, acórdão Heiser (C‑172/03, EU:C:2005:130, n.o 46).

( 34 ) Acórdão Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe (EU:C:2010:778, n.o 31).

( 35 ) V. acórdão Commission/Scott (C‑290/07 P, EU:C:2010:480, n.o 68) e Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe (EU:C:2010:778, n.o 34).

( 36 ) V. acórdão Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe (EU:C:2010:778, n.o 35)

( 37 ) V. nomeadamente, a contrario, acórdão Eventech (EU:C:2015:9, n.o 44).

( 38 ) JO C 209, p. 3, a seguir «comunicação de 1997».

( 39 ) V. n.os 53 e 54 das presentes conclusões.

( 40 ) EU:C:2010:778.

( 41 ) V. n.os 35 e 48.

( 42 ) n.o 39.

( 43 ) V. n.o 43.

( 44 ) V. acórdão Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe (EU:C:2010:778, n.o 52).

( 45 ) V. n.o 40 das presentes conclusões.

( 46 ) EU:C:2010:778, n.o 43.

( 47 ) Acórdão Seydaland Vereinigte Agrarbetriebe (EU:C:2010:778, n.o 35).

( 48 ) A seguir «método VPS».

( 49 ) Decisão n.o C(2012) 9457 da Comissão, de 19 de dezembro de 2012, relativa a uma proposta de método alternativo de avaliação de terras agrícolas e florestais vendidas na Alemanha pela agência pública BVVG (http://ec.europa.eu/competition/state_aid/cases/246093/246093_1396874_125_2.pdf).

( 50 ) V. n.os 21 a 23 da decisão, onde se precisa que o perito contratado devia determinar se o método VPS permitia estabelecer o valor de mercado das terras agrícolas e florestais e se o mesmo se fundava em critérios de avaliação de aceitação geral, em conformidade com o Título II, n.o 2, alínea a), da comunicação de 1997.

( 51 ) Os padrões de avaliação estão, neste caso, consignados nos Allgemeine Grundsätze der Immobilienwertermittlungsverordnung («ImmoWertV»); v. n.o 28 dessa decisão.

( 52 ) V. n.os 17 e 29 da referida decisão.

( 53 ) V. n.o 32 da decisão.

( 54 ) V., nomeadamente, acórdão Unicredito Italiano (C‑148/04, EU:C:2005:774, n.o 45).

( 55 ) V., nomeadamente, acórdãos Adria‑Wien Pipeline e Wietersdorfer & Peggauer Zementwerke (EU:C:2001:598, n.o 41); GIL Insurance e o. (C‑308/01, EU:C:2004:252, n.o 68); Heiser (C‑172/03, EU:C:2005:130, n.o 40), bem como Eventech (EU:C:2015:9, n.o 55).

( 56 ) V., nomeadamente, acórdão Adria‑Wien Pipeline e Wietersdorfer & Peggauer Zementwerke (EU:C:2001:598, n.o 42).