CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 4 de junho de 2015 ( 1 )

Processo C‑650/13

Thierry Delvigne

contra

Commune de Lesparre‑Médoc

e

Préfet de la Gironde

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal d’instance de Bordeaux (França)]

«Artigos 10.° e 14.°, n.o 3, TUE — Artigo 20.o, n.o 2, alínea b), TFUE — Artigo 223.o, n.o 1, TFUE — Artigos 39.° e 49.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 52.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Ato relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu — Âmbito de aplicação do direito da União — Democracia representativa — Representação direta — Participação na vida democrática da União — Parlamento Europeu — Direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu — Restrição a um direito fundamental — Legislação nacional que prevê a privação perpétua dos direitos civis e políticos — Legislação penal mais favorável inaplicável aos condenados em última instância antes da sua entrada em vigor — Igualdade de tratamento entre nacionais de Estados‑Membros — Inadmissibilidade»

1. 

No contexto de um processo judicial que tem por objeto a exclusão do recenseamento eleitoral de um cidadão privado do seu direito de eleger e de ser eleito, de forma indefinida, como pena acessória de uma condenação pelo crime de homicídio, foram submetidas ao Tribunal de Justiça duas questões relativas à compatibilidade com o direito da União da legislação nacional que torna possível essa situação, com referência específica a dois artigos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), relativos a outros tantos direitos fundamentais: o direito à aplicação retroativa da lei penal mais favorável (artigo 49.o, n.o 1, terceiro período) e o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu (artigo 39.o, n.o 2) ( 2 ).

2. 

Como acontece frequentemente cada vez que se coloca o problema da possível aplicação das disposições da Carta a um ato de uma autoridade pública nacional (artigo 51.o, n.o 1), também neste caso é necessário o exame prévio, com apoio, fundamentalmente, na doutrina do acórdão Åkerberg Fransson ( 3 ), da questão de saber se se trata de disposições legais nacionais adotadas em aplicação do direito da União.

3. 

Para esta questão prévia, proporei uma resposta separada, que, em seguida, permitirá que me ocupe exclusivamente do problema colocado pela segunda questão, ou seja, o do respeito, pela legislação nacional, do direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu, desta vez com o auxílio importante auxílio da doutrina do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

I – Quadro normativo

A – Direito internacional

4.

O artigo 3.o do Protocolo Adicional n.o 1 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, celebrada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), dispõe o seguinte:

«As Altas Partes Contratantes obrigam‑se a organizar, com intervalos razoáveis, eleições livres, por escrutínio secreto, em condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo na eleição do órgão legislativo.»

B – Direito da União

1. Tratado da União Europeia

5.

O artigo 10.o TUE estabelece o seguinte:

«1.   O funcionamento da União baseia‑se na democracia representativa. Os cidadãos estão diretamente representados, ao nível da União, no Parlamento Europeu.

[...]

3.   Todos os cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da União. As decisões são tomadas de forma tão aberta e tão próxima dos cidadãos quanto possível.

[...]»

6.

Nos termos do artigo 14.o, n.o 3, TUE, «[o]s membros do Parlamento Europeu são eleitos, por sufrágio universal direto, livre e secreto, por um mandato de cinco anos».

2. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia

7.

O artigo 20.o TFUE tem a seguinte redação:

«1.   É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.

2.   Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos nos Tratados. Assistem‑lhes, nomeadamente:

[...]

b)

O direito de eleger e ser eleitos nas eleições para o Parlamento Europeu, bem como nas eleições municipais do Estado‑Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado;

[...]

Estes direitos são exercidos nas condições e nos limites definidos pelos Tratados e pelas medidas adotadas para a sua aplicação.»

8.

De acordo com o artigo 22.o, n.o 2, TFUE, «[s]em prejuízo do disposto no n.o 1 do artigo 223.o e das disposições adotadas em sua aplicação, qualquer cidadão da União residente num Estado‑Membro que não seja o da sua nacionalidade, goza do direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu no Estado‑Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado. Esse direito será exercido sem prejuízo das modalidades adotadas pelo Conselho, deliberando por unanimidade, de acordo com um processo legislativo especial, e após consulta do Parlamento Europeu; essas regras podem prever disposições derrogatórias, sempre que problemas específicos de um Estado‑Membro o justifiquem».

3. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

9.

O artigo 39.o da Carta estabelece o seguinte:

«1. Todos os cidadãos da União gozam do direito de eleger e de serem eleitos para o Parlamento Europeu no Estado‑Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado.

2.   Os membros do Parlamento Europeu são eleitos por sufrágio universal direto, livre e secreto.»

10.

De acordo com o artigo 49.o, n.o 1, da Carta, «[n]inguém pode ser condenado por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, não constituía infração perante o direito nacional ou o direito internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida. Se, posteriormente à infração, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa a pena aplicada».

11.

O artigo 51.o da Carta tem a seguinte redação:

«1.   As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.

2.   A presente Carta não torna o âmbito de aplicação do direito da União extensivo a competências que não sejam as da União, não cria quaisquer novas atribuições ou competências para a União, nem modifica as atribuições e competências definidas pelos Tratados.»

12.

Segundo o artigo 52.o da Carta:

«1.   Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

2.   Os direitos reconhecidos pela presente Carta que se regem por disposições constantes dos Tratados são exercidos de acordo com as condições e limites por eles definidos.

3.   Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

[...]»

4. Ato relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu ( 4 )

13.

O artigo 1.o do Ato de 1976 dispõe o seguinte:

«1.   Em cada Estado‑Membro, os deputados do Parlamento Europeu são eleitos por escrutínio, de listas ou de voto único transferível, de tipo proporcional.

[...]

3.   A eleição processa‑se por sufrágio universal direto, livre e secreto.»

14.

Nos termos do artigo 8.o do Ato de 1976, «[s]ob reserva do disposto no presente ato, o processo eleitoral será regulado, em cada Estado‑Membro, pelas disposições nacionais […]».

C – Direito francês

15.

De acordo com o artigo 28.o do Código Penal aprovado pela Lei n.o 1810‑02‑12, de 12 de fevereiro de 1810 (a seguir «antigo Código Penal»), a condenação a uma pena criminal implicará a degradação cívica, sendo esta entendida, segundo o artigo 34.o do antigo Código Penal, como a privação do direito de voto, de eleição, de elegibilidade e de todos os direitos cívicos e políticos, em geral.

16.

O antigo Código Penal foi revogado pela Lei n.o 92‑1336, de 16 de dezembro de 1992, relativa à entrada em vigor do novo Código Penal e à alteração de determinadas disposições de direito penal e de processo penal, com efeitos a 1 de março de 1994.

17.

O artigo 370.o da Lei n.o 92‑1336, de 16 de dezembro de 1992 (a seguir «Lei de 1992»), conforme alterado pelo artigo 13.o da Lei n.o 94‑89, de 1 de fevereiro de 1994, estabelece que, sem prejuízo do disposto no artigo 702.o‑1 do Código de Processo Penal, são mantidas as penas de privação de direitos cívicos, civis e de família, bem como a proibição de ser jurado decorrentes de uma condenação penal proferida em última instância antes da entrada em vigor desta lei.

18.

O artigo 702.o‑1 do Código de Processo Penal, conforme alterado pela Lei n.o 2009‑1436, de 24 de novembro de 2009, relativa à execução de penas, estabelece que qualquer pessoa afetada por uma privação, proibição ou incapacidade decorrentes de uma condenação penal, a título de pena principal ou acessória, pode requerer judicialmente o seu levantamento total ou parcial.

19.

A Lei n.o 77‑729, de 7 de julho de 1977, relativa à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu, dispõe, no seu artigo 2.o, que a mesma é regulada pelo Código Eleitoral.

20.

O capítulo 1 do título I do livro I do Código Eleitoral, que estabelece as condições requeridas para se ser eleitor, dispõe no seu artigo L2 que são eleitores os franceses maiores de 18 anos que gozem dos seus direitos civis e políticos e que não estejam abrangidos por qualquer das causas de incapacidade previstas na lei.

21.

De acordo com o artigo L6 do Código Eleitoral, as pessoas que os tribunais, em aplicação da lei, tenham privado do direito de voto não podem ser inscritas no recenseamento eleitoral, pelo prazo fixado na sentença.

II – Matéria de facto

22.

O pedido de decisão prejudicial tem origem num recurso judicial interposto por T. Delvigne contra a decisão administrativa pela qual foi ordenada a sua exclusão do recenseamento eleitoral, em consequência da sua condenação, por decisão transitada em julgado, a uma pena de privação do direito de eleger e de ser eleito, acessória à de doze anos de prisão por crime de homicídio.

23.

Em 30 de março de 1988, data do trânsito em julgado da sentença de condenação de T. Delvigne, o antigo Código Penal francês previa a privação perpétua, dos condenados a penas criminais, do direito de eleger e de ser eleito. A Lei de 1992 eliminou o caráter automático e indefinido dessa pena acessória, mas apenas no que dizia respeito às decisões condenatórias proferidas depois da entrada em vigor do novo Código.

24.

T. Delvigne impugnou, no tribunal d’instance de Bordeaux, a sua exclusão do recenseamento eleitoral, tendo requerido que fosse submetido um pedido de decisão prejudicial, por entender que a regulamentação nacional aplicada implica um tratamento discriminatório contrário à Carta. O acolhimento dessa pretensão pelo tribunal d’instance deu origem ao presente processo.

III – Questões submetidas

25.

O texto das questões prejudiciais submetidas pelo tribunal d’instance de Bordeaux, em 9 de dezembro de 2013, é o seguinte:

«Deve o artigo 49.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ser interpretado no sentido de impedir que um artigo da lei nacional mantenha uma proibição, de resto indefinida e desproporcionada, de que as pessoas condenadas antes da entrada em vigor da lei penal mais favorável, Lei n.o 94‑89 de 1 de fevereiro de 1994, possam beneficiar de uma pena mais leve?

Deve o artigo 39.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, aplicável às eleições do Parlamento Europeu, ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros da União Europeia que não prevejam uma proibição geral, indefinida e automática de exercer direitos civis e políticos, a fim de não criar desigualdade de tratamento entre os nacionais dos Estados‑Membros?»

IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

26.

Intervieram no processo, tendo apresentado alegações escritas, T. Delvigne, a Commune de Lesparre‑Médoc, os Governos alemão, do Reino Unido, espanhol e francês, bem como o Parlamento Europeu e a Comissão. Todos compareceram na audiência, que teve lugar em 20 de janeiro de 2015. Durante a mesma, ao abrigo do artigo 61.o, n.os 1 e 2, do Regulamento de Processo, as partes foram convidadas a responder a várias questões: 1) O artigo 370.o da Lei de 1992 é um caso de aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta? 2) A que «objetivos de interesse geral», na aceção do artigo 52, n.o 1, da Carta, correspondem as restrições ao direito de eleger e de ser eleito, decorrentes de uma condenação penal? 3) Como pergunta dirigida, em especial, ao Governo francês, que pessoas estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 370.o da Lei de 1992 e em que condições podem obter o levantamento, total ou parcial, da privação do direito? 4) A T. Delvigne, em especial: pediu o levantamento, total ou parcial, da privação do direito de eleger e de ser eleito e, sendo esse o caso, com que resultados?

V – Alegações

A – Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial e à competência do Tribunal de Justiça

27.

Antes de mais, o Governo francês alega que a decisão de reenvio é manifestamente inadmissível, na medida em que nada indica quanto às razões pelas quais as questões submetidas seriam necessárias à decisão do litígio no processo principal, nem define, de forma bastante, o contexto factual e normativo em que as referidas questões se inserem.

28.

Os Governos espanhol e francês consideram que o Tribunal de Justiça não tem competência para responder às questões submetidas. Para o Governo francês, a legislação nacional em causa é alheia ao âmbito de aplicação do direito da União, uma vez que a disposição implicada tem caráter de norma transitória de direito penal, que prossegue objetivos que não estão abrangidos pela regulamentação da União. O Governo espanhol sublinha a competência dos Estados‑Membros no que diz respeito à definição dos titulares do direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu.

29.

O Governo alemão, por sua vez, alega que o Tribunal de Justiça não tem competência para se pronunciar sobre a primeira questão, na medida em que o tribunal de reenvio não fornece qualquer elemento que permita considerar que o objeto do litígio no processo principal está relacionado com a interpretação ou com a aplicação de outra norma da União, diferente das constantes da Carta.

30.

Tanto T. Delvigne como a Comissão e, no que diz respeito unicamente à segunda questão, o Parlamento Europeu, defendem a competência do Tribunal de Justiça. No entender da Comissão, os Estados‑Membros aplicam o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, quando adotam disposições de alcance geral ou individual que visem estabelecer quem são os beneficiários do direito de eleger e de ser eleito para o Parlamento Europeu. O direito da União, e, em especial, o artigo 8.o do Ato de 1976, obriga‑os a fazer uso da sua competência para esse efeito e, nesse sentido, estão vinculados pelos direitos reconhecidos na Carta.

31.

O Parlamento Europeu entende que a Carta é aplicável e que, em consequência, cabe responder à segunda questão. Na sua opinião, tendo em conta o artigo 14.o, n.o 3, TUE, o artigo 223.o, n.o 1, TFUE e os artigos 1.°, n.o 3, e 8.° do Ato de 1976, a França aplicou o direito da União, na aceção da Carta, ao adotar disposições nacionais sobre o direito de voto para o Parlamento Europeu. Estas disposições constituem as disposições do direito da União diferentes das constantes da Carta e, através das mesmas, a França satisfaz uma obrigação concreta decorrente do direito da União, a saber, garantir a eleição por sufrágio universal dos membros do Parlamento Europeu. Por outro lado, à luz do artigo 8.o do Ato de 1976, embora o processo eleitoral seja regulado pelas disposições nacionais, estas enquadram‑se no direito da União. O facto de o direito francês regular o processo eleitoral para o Parlamento Europeu remetendo para as disposições do Código Eleitoral aplicável às restantes eleições que se realizam em França não implica que a organização das eleições europeias corresponda a uma competência não atribuída à União.

B – Quanto à primeira questão

32.

T. Delvigne considera que o artigo 49.o da Carta se opõe a uma disposição como a constante do artigo 370.o da Lei de 1992, que impede que uma norma penal mais favorável tenha efeito retroativo, criando, desse modo, uma situação de desigualdade entre as pessoas condenadas antes de 1994 e as condenadas depois dessa data.

33.

A Commune de Lesparre‑Médoc, os Governos do Reino Unido e francês — a título subsidiário — e a Comissão alegam que o artigo 49.o, n.o 1, da Carta não se opõe à aplicação da legislação em causa no processo principal, uma vez que, à data do trânsito em julgado da sentença de condenação de T. Delvigne, não estava em vigor uma legislação menos severa. Isto resulta tanto do teor do artigo 49.o, n.o 1, da Carta como da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

C – Quanto à segunda questão

34.

T. Delvigne defende que o artigo 39.o da Carta também se opõe ao disposto no artigo 370.o da Lei de 1992, na medida em que cria uma desigualdade em razão da nacionalidade, e invoca, para este efeito, a violação do artigo 3.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH.

35.

A Commune de Lesparre‑Médoc considera que não há desigualdade de tratamento, uma vez que a pena prevista no Código Eleitoral antes da Lei de 1992 era aplicável, nas mesmas condições, a qualquer cidadão da União que pretendesse votar em França.

36.

O Governo francês propõe, a título subsidiário, que a resposta seja no sentido de que o artigo 39.o da Carta não proíbe que os Estados‑Membros prevejam uma privação indefinida do exercício do direito de eleger e de ser eleito em caso de condenação penal por um crime grave, desde que seja contemplada a possibilidade de revogação da mesma. Em primeiro lugar, o Governo francês explica que a legislação nacional não prevê uma privação geral e indefinida. Por um lado, a privação afeta as pessoas que, como T. Delvigne, tenham sido condenadas a uma pena privativa da liberdade compreendida entre cinco anos e prisão perpétua; não se trata de uma pena automática e independente da duração da pena ou da gravidade do crime. Por outro lado, as pessoas que tenham sido punidas com uma pena de privação podem requerer o seu levantamento, o que T. Delvigne parece não ter feito.

37.

Em segundo lugar, o Governo francês alega que o artigo 52.o, n.o 1, da Carta autoriza os Estados‑Membros a preverem restrições ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela própria Carta, desde que sejam cumpridas condições que, no entender deste governo, estão satisfeitas no caso da regulamentação nacional em causa.

38.

O Governo alemão propõe que se responda que o artigo 39.o, n.o 2, da Carta deve ser interpretado no sentido de que o princípio do sufrágio universal permite a privação do direito de eleger e de ser eleito, por razões imperiosas, como assegurar que a representação do círculo eleitoral não seja confiada a pessoas que foram objeto de uma condenação definitiva. Uma razão deste tipo justificaria a privação do direito de eleger e de ser eleito, em caso de condenação penal transitada em julgado, desde que a norma estabeleça, de forma suficiente, uma distinção em função da gravidade da pena e da duração da privação, competindo ao tribunal nacional determinar se a regulamentação aplicada cumpre essas exigências.

39.

O Governo do Reino Unido considera que o artigo 39.o da Carta não impede que os Estados‑Membros adotem uma medida que, como a que foi aplicada no caso em apreço, não discrimina entre nacionais dos Estados‑Membros. Em seu entender, é evidente que o direito da União não reconhece um direito de voto suscetível de ser invocado contra essa medida com outro fundamento que não seja uma discriminação em razão da nacionalidade. Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça declarou que a determinação do direito de eleger e de ser eleito nas eleições europeias compete aos Estados‑Membros e que o artigo 39.o da Carta não pode ser interpretado de outro modo, a não ser com risco de alargar as competências da União, em violação do artigo 6.o, n.o 1, TUE. Em segundo lugar, T. Delvigne não pode invocar o artigo 39.o, n.o 1, da Carta, uma vez que tem nacionalidade francesa e não exerceu a liberdade de circulação na qualidade de cidadão europeu. O artigo 39.o reflete os direitos conferidos pelos artigos 20.° e 22.° TFUE e é aplicável dentro dos limites e nas condições previstos nessas disposições. Assim, o direito reconhecido no artigo 39.o da Carta está reservado aos cidadãos da União residentes num Estado‑Membro diferente do da sua nacionalidade. O facto de, em casos excecionais, os cidadãos da União poderem invocar essa qualidade de cidadãos da União perante o Estado‑Membro de que são nacionais não afeta a proibição de discriminação no âmbito do direito de eleger e de ser eleito.

40.

O Parlamento Europeu alega que o artigo 39.o da Carta reconhece direitos subjetivos em benefício dos particulares. Em seu entender, o direito de voto que o mesmo reconhece é garantido, não só aos cidadãos da União que votam num Estado‑Membro diferente do da sua nacionalidade, mas também aos nacionais do Estado‑Membro de voto.

41.

A este respeito, o Parlamento Europeu defende, em primeiro lugar, que, segundo resulta da redação e das anotações à Carta, o artigo 39.o inclui dois direitos fundamentais diferentes, a saber, um direito de os cidadãos da União, que não são nacionais do Estado‑Membro onde residem, votarem neste último para as eleições europeias (n.o 1) e, além disso, um direito à eleição por sufrágio universal direto, livre e secreto dos membros do Parlamento Europeu (n.o 2).

42.

Em segundo lugar, o Parlamento Europeu alega que o alcance do n.o 2 dessa disposição não está limitado pela expressão «nas mesmas condições que os nacionais desse Estado», uma vez que a cidadania da União, à qual este direito está associado, implica um estatuto cujos efeitos jurídicos se produzem mesmo na ausência de um elemento transfronteiriço.

43.

Em terceiro lugar, o Parlamento Europeu considera que, para que seja conferido um efeito útil ao artigo 39.o, n.o 2, da Carta, se deve entender que esta disposição inclui um direito subjetivo que vem completar o artigo 14.o, n.o 3, TUE. Neste sentido, o sufrágio universal, que é o conceito central para definir o conteúdo deste direito, implica um direito ratione personae, em princípio, geral, que implica uma proteção incondicional, não só dos cidadãos da União que votam num Estado‑Membro que não é o seu Estado‑Membro de origem, mas também dos nacionais do Estado‑Membro do lugar de voto.

44.

Para o Parlamento Europeu, qualquer restrição ao direito de voto para as eleições europeias constitui uma ingerência no direito ao sufrágio universal, de que os cidadãos da União são titulares, consagrado na Carta e, de acordo com o artigo 52.o, n.o 1, da própria Carta e com a jurisprudência, os Estados‑Membros só podem restringir um direito se respeitarem determinadas condições. À luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o Parlamento Europeu entende que a restrição seria desproporcionada se fosse cumulativa, geral, automática e indiferenciada relativamente à gravidade da infração cometida. Pelo contrário, poderia ser considerada proporcionada se fosse aplicável a determinadas infrações suficientemente diferenciadas e houvesse a possibilidade da sua revisão, competindo ao tribunal nacional proceder a este exame da proporcionalidade, tendo em conta o uso que tenha sido feito dessa possibilidade.

45.

Por último, a Comissão salienta, antes de mais, que, ao contrário do que o tribunal de reenvio parece considerar, as disposições nas quais a exclusão de T. Delvigne do recenseamento eleitoral foi fundamentada não implicam uma diferença de tratamento entre os nacionais de Estados‑Membros diferentes, mas entre diferentes categorias de eleitores. Esta diferença deve ser apreciada à luz da exigência de sufrágio universal nas eleições para o Parlamento Europeu.

46.

Nesta linha, a Comissão inclina‑se a responder à questão no mesmo sentido que o Parlamento Europeu.

VI – Apreciação

47.

O presente pedido de decisão prejudicial foi objeto de objeções quanto à admissibilidade de duas perspetivas muito diferentes. Por um lado, como é posto em evidência, com diferente intensidade, pelos intervenientes, a decisão de reenvio está redigida em termos tão pobres que não torna fácil aceitar que preenche os requisitos exigidos pela jurisprudência no que diz respeito à forma correta de expor o quadro factual e normativo no qual se inserem as questões submetidas ao Tribunal de Justiça e à fundamentação das razões que tornam a sua resposta necessária para a resolução do litígio no processo principal.

48.

Por outro lado e, em meu entender, de forma muito mais relevante, também foi suscitado um problema de competência, nesta mesma perspetiva da admissibilidade. Discute‑se, com efeito, se o Tribunal de Justiça pode dar resposta às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, ambas relacionadas com o respeito, por parte de um Estado‑Membro, de vários direitos fundamentais consagrados na Carta. E discute‑se na medida em que — é observado por algumas das partes — não se trata de atos adotados em aplicação do direito da União, com as consequências que logicamente podem daí resultar no que diz respeito à competência do Tribunal de Justiça. Estas duas questões devem ser analisadas separadamente, a título preliminar.

A – Quanto à admissibilidade do pedido prejudicial

49.

Como foi referido, o Governo francês defende que a presente questão prejudicial, nos termos em que foi formulada, é manifestamente inadmissível. Na sua opinião, a deficiente exposição do quadro factual e normativo em que se inserem as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio não permite compreender, de forma exata, os termos do litígio no processo principal, o que, além de impedir que o Tribunal de Justiça esteja em condições de dar uma resposta útil para a decisão desse litígio, priva os Estados‑Membros e outros interessados da possibilidade de apresentarem observações nos termos do artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça.

50.

Com exceção das partes no processo principal, todos os intervenientes neste processo estão de acordo, em maior ou menor medida, com a crítica feita pelo Governo francês, embora não ao ponto de requererem que o pedido seja declarado inadmissível por esse motivo.

51.

Em resposta a estas objeções, há que dizer, antes de mais, que foram poucas as ocasiões em que um pedido prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça tão pobre quanto à sua argumentação mas, ao mesmo tempo, tão expressivo no que diz respeito ao problema de interpretação do direito da União que especificamente coloca.

52.

Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio limitou‑se praticamente a transmitir ao Tribunal de Justiça os termos em que, no processo principal, T. Delvigne colocou as suas dúvidas sobre a compatibilidade da regulamentação nacional aplicável no caso com os artigos 39.° e 49.° da Carta, tudo isto de forma manifestamente sucinta e quase sem desenvolvimento argumentativo. Visto unicamente desta perspetiva, é forçoso reconhecer que algumas das críticas que foram feitas à decisão de reenvio do presente pedido prejudicial têm fundamento.

53.

E, contudo, ao mesmo tempo, com toda a sua pobreza expositiva, as duas questões que são apresentadas ao Tribunal de Justiça são, em última análise, tão simples e expressivas, por si mesmas, que não é necessário um grande esforço de imaginação para «reconstruir», de forma bastante, pelo menos para efeitos de resposta ao órgão jurisdicional de reenvio, os problemas em matéria de direitos fundamentais que estão aqui em jogo. Com efeito, as considerações feitas pelo Governo do Reino Unido, no n.o 2 das suas observações escritas demonstram que não é difícil imaginar o alcance da questão de mérito colocada pelo tribunal d’instance.

54.

Por outro lado, no presente caso, a questão de mérito suscitada no processo principal, na qual estão implicados direitos fundamentais, parece já ter sido esclarecida da perspetiva e com os instrumentos processuais que o direito nacional disponibiliza. É a Carta, quanto a duas das suas disposições, o que agora se pretende invocar face a atos das autoridades públicas do Estado‑Membro em causa, na medida em que, implicitamente, e no que diz respeito às eleições para o Parlamento Europeu, se consideram adotados em aplicação do direito da União. Nestas circunstâncias, e sem com isso pretender desculpar as deficiências da decisão de reenvio, entendo que cabe examinar com especial cuidado se, efetivamente, as deficiências descritas impedem, ou não, na realidade, que o Tribunal de Justiça se debruce sobre as questões submetidas. Isto porque é preciso não esquecer que, de acordo com jurisprudência assente, só pode ser negada resposta a um pedido de decisão prejudicial quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas ( 5 ).

55.

Para esse efeito, entendo que os dados e as considerações que o órgão jurisdicional de reenvio fornece são suficientes para identificar o problema de compatibilidade com o direito da União que se coloca ao aplicar a legislação nacional em causa e, mais concretamente, o disposto no artigo 370.o da Lei de 1992.

56.

No que diz respeito à primeira questão, o tribunal d’instance refere que esse «artigo manteve a interdição perpétua de direitos cívicos, decorrente de uma condenação penal proferida em última instância, anterior a 1 de março de 1994» e indica, em seguida, que T. Delvigne — numa apreciação que esse órgão jurisdicional adota, ao afirmar que «acolhe o pedido» de reenvio prejudicial ( 6 ) — «alega que este artigo viola várias disposições da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e [as] do artigo 3.o do Protocolo adicional n.o 1 à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais».

57.

Esta não é uma afirmação destituída de qualquer base argumentativa, dado que o órgão jurisdicional de reenvio esclarece que se trata «principalmente [da] desigualdade de tratamento daí resultante em relação a pessoas condenadas depois de 1 de março de 1994 e que beneficiam de uma lei mais favorável, tendo ele próprio sido condenado em última instância em 30 de março de 1988, e [da] contradição [que daí resulta] [...] entre a norma francesa e a norma comunitária.»

58.

As «várias disposições da Carta» que T. Delvigne invocava de modo geral, foram circunscritas, em concreto, ao artigo 49.o pelo tribunal d’instance de Bordeaux, ao formular a primeira questão que submeteu ao Tribunal de Justiça no sentido de saber se aquela disposição, em concreto, «impe[de] que um artigo da lei nacional mantenha uma proibição, de resto indefinida e desproporcionada, de que as pessoas condenadas antes da entrada em vigor da lei penal mais favorável, Lei n.o 94‑89 de 1 de fevereiro de 1994, possam beneficiar de uma pena mais leve».

59.

A decisão de reenvio mostra‑se ainda menos expressiva, no que diz respeito à segunda questão. Porém, as considerações nela desenvolvidas pelo órgão jurisdicional de reenvio nem por isso são completamente incapazes de transmitir o problema jurídico a que o mesmo deve dar resposta no processo principal. Assim, pouco antes de formular as suas duas questões, aquele órgão jurisdicional afirma que «importa [...] submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia as duas questões prejudiciais [...], referindo‑se, uma, ao critério temporal e, a outra, ao critério de nacionalidade». Certamente, o «critério de nacionalidade» só se torna visível na redação da segunda questão, na qual se pergunta se «o artigo 39.o da Carta [...], aplicável às eleições do Parlamento Europeu, [deve] ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros [...] que não prevejam uma proibição geral, indefinida e automática de exercer direitos civis e políticos, a fim de não criar desigualdade de tratamento entre os nacionais dos Estados‑Membros».

60.

A decisão de reenvio permite, pois, identificar, de forma bastante, os dois problemas jurídicos relevantes sobre os quais é pedida a apreciação do Tribunal de Justiça, a fim de que o tribunal d’instance possa determinar se a regulamentação nacional aplicável no processo a quo é, ou não, compatível com o direito da União. Por um lado, a questão de saber se, em circunstâncias como as do presente caso, à luz do artigo 49.o da Carta, deve ser excluída a aplicação retroativa de uma legislação penal mais favorável. Por outro, a de saber se, de acordo com o artigo 39.o da Carta, é possível uma privação indefinida do direito de eleger e de ser eleito, como pena acessória.

61.

Em consequência, considero que o Tribunal de Justiça está em condições de apreender, com um mínimo de suficiência, o problema, quanto à compatibilidade com o direito da União da regulamentação nacional em causa no processo principal, que o tribunal de reenvio é chamado a decidir e, nessa medida, de lhe facilitar a decisão desse litígio, fornecendo‑lhe a interpretação pertinente desse direito.

62.

Por conseguinte, em meu entender, da perspetiva da alegada falta dos requisitos formais da decisão de reenvio, o pedido de decisão prejudicial preenche as condições necessárias para ser julgado admissível. Proponho, portanto, que o Tribunal de Justiça julgue improcedentes as exceções de inadmissibilidade suscitadas.

B – Quanto à competência do Tribunal de Justiça: o alcance da aplicação da Carta nas circunstâncias do caso

63.

Também foram várias e diversificadas as observações feitas pelas partes quanto à questão de saber se as autoridades nacionais atuaram «aplic[ando] o direito da União», na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, com a consequente repercussão sobre a competência do Tribunal de Justiça para dar resposta ao órgão jurisdicional de reenvio. Nuns casos, como no do Governo alemão, a resposta a esta questão estabeleceu uma distinção entre os direitos fundamentais invocados, o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu (artigo 39.o da Carta) e o direito a uma pena posterior mais favorável (artigo 49.o, n.o 1, terceiro período, da Carta). Pelas razões que exporei, entendo que, nas circunstâncias do presente caso, esta análise diferenciada da questão submetida se impõe. Mas antes há que recordar, muito resumidamente, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça à regra em causa.

1. Quanto ao alcance da regra segundo a qual a Carta tem por destinatários os Estados‑Membros «apenas quando apliquem o direito da União» (artigo 51.o, n.o 1, da Carta). Apresentação

64.

O enunciado que acabo de reproduzir colocou, desde o início, problemas de interpretação, tendo dado lugar a um importante debate doutrinário ( 7 ), alimentado, em parte, por uma certa tensão que se pretendeu encontrar entre a jurisprudência anterior e a redação daquela disposição ( 8 ).

65.

O acórdão proferido no processo Åkerberg Fransson ( 9 ) veio declarar, confirmando reiterada doutrina anterior, que, «no essencial [...] os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União são aplicáveis em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora dessas situações. É nesta medida que o Tribunal de Justiça já recordou que não pode apreciar, à luz da Carta, uma regulamentação nacional que não se enquadra no âmbito do direito da União. Em contrapartida, quando uma regulamentação nacional se enquadra no âmbito de aplicação desse direito, o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial, deve fornecer todos os elementos de interpretação necessários à apreciação, pelo órgão jurisdicional nacional, da conformidade desta regulamentação com os direitos fundamentais cujo respeito assegura» ( 10 ).

66.

No n.o 21 deste mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, como princípio, que, dado que «os direitos fundamentais garantidos pela Carta devem […] ser respeitados quando uma regulamentação nacional se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União, não podem existir situações que estejam abrangidas pelo direito da União em que os referidos direitos fundamentais não sejam aplicados. A aplicabilidade do direito da União implica a aplicabilidade dos direitos fundamentais garantidos pela Carta».

67.

Por último, igualmente como declaração de princípio, o n.o 29 do acórdão prevê o caso de situações reguladas pelo direito nacional que «não [sejam] inteiramente determinada[s] pelo direito da União». Nesse caso, as autoridades públicas nacionais têm legitimidade para «aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, desde que essa aplicação não comprometa o nível de proteção previsto pela Carta nem o primado, a unidade e a efetividade do direito da União» ( 11 ).

68.

Neste sentido, importa recordar que, a este respeito, o Tribunal de Justiça remete para o acórdão Melloni, em cujo n.o 60, em relação ao artigo 53.o da Carta e, portanto, referindo‑se à possibilidade de os Estados‑Membros estabelecerem padrões de proteção mais elevados, declara que «o artigo 53.o da Carta confirma que, quando um ato do direito da União exige medidas nacionais de execução, as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais podem aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, desde que essa aplicação não comprometa o nível de proteção previsto pela Carta, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, nem o primado, a unidade e a efetividade do direito da União» ( 12 ).

69.

Por conseguinte, o «âmbito de aplicação do direito da União» é definido como aquele em que se enquadram «todas as situações reguladas pelo direito da União». Ao mesmo tempo, a aplicação da Carta não pode dar origem a uma ampliação das competências atribuídas à União pelos Tratados, pois, como é recordado no próprio acórdão Åkerberg Fransson ( 13 ), de acordo com o artigo 6.o TUE, n.o 1, «de forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados. Da mesma forma, por força do artigo 51.o, n.o 2, da Carta, esta não torna o âmbito de aplicação do direito da União extensivo a competências que não sejam as da União, não cria quaisquer novas atribuições ou competências para a União, nem modifica as atribuições e competências definidas pelos Tratados» ( 14 ).

70.

Devemos, pois, determinar, a partir daqui, se no presente caso estamos perante uma «situação regulada pelo Direito da União».

2. Quanto à necessidade de analisar separadamente esta questão

71.

Como acabo de indicar, considero que a questão de saber se o ato das autoridades públicas nacionais foi adotado «em aplicação do direito da União» deve ter uma resposta diferenciada em função de cada um dos dois direitos fundamentais invocados.

72.

A minha proposta neste sentido deve ser explicada. Com efeito, pode não parecer evidente que uma determinada situação verificada no interior de um Estado‑Membro seja, ao mesmo tempo, analisável e não analisável da perspetiva da Carta, conforme a disposição que seja invocada.

73.

Acontece, porém, que, nas circunstâncias do presente caso, se verifica uma situação peculiar, que está na própria origem do pedido deduzido no processo principal. Com efeito, a situação que T. Delvigne denunciou poderia ser sanada por duas vias diferentes e, no fundo, alternativas: por um lado, mediante a declaração de que o direito penal que lhe foi — e continua a ser —, efetivamente, aplicado viola o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu (artigo 39.o da Carta). Por outro, mediante a declaração alternativa de que, em todo o caso, o direito penal posterior que não lhe foi aplicado o deveria ter sido, em coerência com a garantia consagrada no artigo 49.o da Carta (direito à retroatividade da lei penal mais favorável). Como se vê, ambas as vias poderiam, eventualmente, conduzir ao mesmo resultado.

74.

Mas os problemas colocados pela análise da questão de saber se estamos perante um caso de aplicação do direito da União apresentam‑se de forma muito diferente, conforme a pretensão seja uma ou outra: isto é, conforme a pretensão vise uma declaração no sentido de que a lei que lhe foi aplicada viola — materialmente — o direito de eleger e de ser eleito, ou vise uma determinada aplicação retroativa de uma lei penal que não lhe foi aplicada.

75.

Por conseguinte, abordarei, em separado e pela ordem em que o órgão jurisdicional nacional a apresenta, a questão de saber se estamos perante um caso de direito nacional adotado em aplicação do direito da União.

3. Quanto à questão de saber se o direito à aplicação retroativa da lei penal mais favorável, reconhecido no artigo 49.o, n.o 1, terceiro período, da Carta pode ser validamente invocado contra uma condenação penal proferida nas circunstâncias do caso

76.

É conveniente recordar que, no presente caso, houve uma alteração legislativa do direito penal nacional, sem dúvida qualificável como um caso de reformatio in mitius, que excluiu, no entanto, a possibilidade de afetar as condenações proferidas antes da entrada em vigor da lei. Contudo, como acabo de referir, antes de analisar, eventualmente, o alcance da garantia reconhecida na Carta e, em especial, se a mesma é extensiva também às condenações definitivas, já proferidas à data da entrada em vigor da referida alteração, é necessário examinar se a condenação penal em causa teve lugar «em aplicação do direito da União». Caso se chegue à conclusão contrária, é evidente que não valerá a pena abordar as diversas questões possíveis relativas ao alcance material deste direito fundamental ( 15 ).

77.

Posso adiantar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça permite concluir, sem dificuldade, que não foi esse o caso. Recordemos que, no acórdão Åkerberg Fransson, já referido, a respeito de uma problemática que tem uma inegável semelhança com a do presente caso, e examinando, em concreto, se uma garantia da lei penal, como o é o princípio ne bis in idem, era aplicável a uma condenação proferida num caso de fraude em matéria de IVA, o Tribunal de Justiça identificou um caso de aplicação do direito da União no facto de o processo‑crime em causa estar relacionado com «incumprimentos das […] obrigações de declaração em matéria de IVA» ( 16 ).

78.

Neste mesmo sentido, nessa ocasião, o Tribunal de Justiça declarou que a situação em causa no processo principal era regulada por direito adotado em aplicação do direito da União, na medida em que este impõe aos Estados‑Membros «a obrigação de tomar todas as medidas legislativas e administrativas necessárias para garantir a cobrança da totalidade do IVA devido no seu território e de lutar contra a fraude» ( 17 ), conforme resulta do artigo 4.o, n.o 3, TUE, por um lado, e da Diretiva 2006/112, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, e da Sexta Diretiva, por outro.

79.

A estas disposições acrescia «o artigo 325.o TFUE[, que] obriga os Estados‑Membros a combater as atividades ilícitas lesivas dos interesses financeiros da União através de medidas dissuasivas e efetivas e, em particular obriga‑os a adotar, para combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União, as mesmas medidas que adotarem para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses» ( 18 ).

80.

Para o Tribunal de Justiça, «uma vez que os recursos próprios da União compreendem, nomeadamente, nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da Decisão 2007/436[...], relativa ao sistema de recursos próprios das Comunidades Europeias […], as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à matéria coletável harmonizada do IVA determinada segundo as regras da União, existe, assim, uma relação direta entre a cobrança das receitas do IVA no respeito do direito da União aplicável e a colocação à disposição do orçamento da União dos recursos IVA correspondentes, uma vez que qualquer falha na cobrança das receitas está potencialmente na origem de uma redução dos recursos próprios» ( 19 ).

81.

Em conclusão, no processo Åkerberg Fransson tratava‑se de um caso no qual um Estado‑Membro devia tomar as medidas legislativas e administrativas necessárias para dar cumprimento a uma obrigação imposta pelo direito da União.

82.

Em claro contraste com a situação anterior, no presente caso não existem — e certamente não foram invocadas — disposições do direito da União que, à semelhança das que existiam naquele processo, possam fundamentar e despoletar o poder de aplicar sanções do Estado‑Membro. Pelo contrário, o ius puniendi do Estado‑Membro foi exercido numa matéria de todo alheia à competência da União, em concreto, na repressão de um crime de homicídio. No presente caso não existe, pois, um direito da União que permita afirmar que a sanção penal foi decidida em aplicação do mesmo.

83.

Desta perspetiva, só me resta acrescentar que o facto de um entendimento diferente do alcance do direito à reformatio in mitius, nos termos defendidos por T. Delvigne, ter podido traduzir‑se na aplicação ao mesmo da alteração legislativa posterior à sua condenação, com consequências, em última análise, sobre o gozo, por aquele, do direito de eleger e de ser eleito, não basta para alterar a conclusão anterior.

84.

O Tribunal de Justiça declarou que a mera suscetibilidade de afetação indireta de uma matéria abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União não basta para considerar regulada por este direito a situação à qual é aplicada a norma nacional de que resulta essa afetação ( 20 ).

85.

Nessa mesma linha, o Tribunal de Justiça também declarou que «o conceito de ‘aplicação do direito da União’, na aceção do artigo 51.o da Carta, impõe a existência de um nexo de ligação de um certo grau, que ultrapassa a mera proximidade das matérias em causa ou as incidências indiretas de uma matéria na outra» ( 21 ). O Tribunal de Justiça fez notar igualmente que, «[p]ara determinar se uma regulamentação nacional pertence ao domínio de aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o da Carta, importa verificar, entre outros elementos, se tem por objetivo aplicar uma disposição do direito da União, qual o caráter dessa legislação e se a mesma prossegue objetivos diferentes dos abrangidos pelo direito da União, ainda que seja suscetível de afetar indiretamente este último, bem como se existe uma regulamentação de direito da União específica na matéria ou suscetível de o afetar» ( 22 ).

86.

Em conclusão, e seguindo esta mesma linha, o facto de a eficácia retroativa da referida alteração ter podido produzir o efeito colateral e, de certo modo, aleatório, de uma recuperação do direito de eleger e de ser eleito não permite afirmar que o artigo 49.o, n.o 1, terceiro período, da Carta «regula» esta situação; em última análise, que o ato das autoridades nacionais foi adotado em aplicação do direito da União.

87.

Por conseguinte, entendo que uma disposição nacional, como a que está em causa no presente processo, que nega determinado efeito retroativo a uma legislação penal que não foi adotada em aplicação do direito da União também não tem o caráter de legislação nacional adotada em aplicação do direito da União.

88.

Em conclusão, considero que, nas circunstâncias do caso, o Tribunal de Justiça não tem competência para se pronunciar sobre a compatibilidade da regulamentação nacional a que o tribunal d’instance faz referência com o direito reconhecido no artigo 49.o, n.o 1, terceiro período, da Carta.

4. Quanto à questão de saber se o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu, como é reconhecido no artigo 39.o, n.o 2, da Carta, pode ser invocado contra uma legislação penal nacional que prevê uma perda definitiva do direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu

89.

Com a sua segunda questão, o tribunal de Bordeaux coloca o problema da compatibilidade com a Carta da privação definitiva do direito de eleger e de ser eleito, que, originariamente, foi aplicada a T. Delvigne — e que este continua a «cumprir» — com base na legislação penal em vigor à data da prática dos atos criminosos de que foi declarado autor.

90.

Uma vez mais, há que colocar a questão relativa à verificação da circunstância que, de acordo com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, determinaria a vinculação dos atos adotados pelas autoridades públicas dos Estados‑Membros às obrigações decorrentes da mesma. Uma vez mais, se coloca, fundamentalmente, a questão de saber se se pode afirmar que nos encontramos perante uma situação na qual o direito da União regulou ou determinou a aplicação da legislação penal em causa.

91.

No presente caso, a conclusão a que devemos chegar é claramente diferente. A situação de perda do direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu, em que T. Delvigne se encontra como consequência da legislação francesa que, como se verá, por força do direito da União, regula as eleições para o Parlamento Europeu — por remissão para a legislação geral nacional em matéria eleitoral (artigo 2.o da Lei n.o 77‑729, de 7 de julho de 1977) e, por sua vez, desta para a legislação penal (artigo L2 do Código Eleitoral) —, decorre de uma legislação adotada em aplicação do direito da União.

92.

Neste caso, entendo que existe uma clara relação entre a regulamentação nacional controvertida e o direito da União. Antes de mais, essa relação resulta da assunção pelo direito primário de uma competência para o estabelecimento das disposições necessárias para permitir a eleição dos membros do Parlamento Europeu «segundo um processo uniforme em todos os Estados‑Membros ou baseado em princípios comuns a todos os Estados‑Membros». De acordo com o disposto no artigo 223.o, n.o 1, TFUE, na linha — é certo que com matizes — do seu precedente imediato, ou seja, o artigo 190.o CE, enquanto ao Parlamento Europeu compete a elaboração de «um projeto destinado a estabelecer as disposições necessárias» para permitir aquele objetivo, é competência do Conselho estabelecer essas disposições «deliberando por unanimidade de acordo com um processo legislativo especial e após aprovação do Parlamento Europeu», embora as disposições em causa só «entr[em] em vigor após a sua aprovação pelos Estados‑Membros, em conformidade com as respetivas normas constitucionais» ( 23 ).

93.

Esta previsão do artigo 223.o, n.o 1, TFUE pressupõe que o legislador da União deve assumir a regulação da eleição dos seus deputados de acordo com duas opções: ou estabelecendo um processo uniforme, ou fixando princípios comuns. Independentemente das diferenças que existem entre uma e outra opção, o que importa, para o caso em apreço, é que ambas têm por objeto uma matéria que ficou abrangida pelo âmbito de competência da União, cabendo ao legislador da União, no mínimo, a qualidade de «colegislador» nessa matéria.

94.

É evidente que o legislador da União, quer seja estabelecendo um processo de eleição dos membros do Parlamento Europeu, quer seja fixando os princípios comuns com base nos quais essa eleição deve ser levada a cabo, participa no exercício de uma competência peculiar, que, eventualmente, poderia ser qualificada de «partilhada», mas que, em todo o caso, o implica de forma direta. A competência em causa é «partilhada» num duplo sentido: num primeiro sentido, na medida em que, enquanto a iniciativa e a elaboração das disposições que regulam o referido processo ou, sendo esse o caso, a delimitação dos princípios comuns que o devem inspirar são da competência exclusiva do legislador da União, a decisão quanto à «entrada em vigor» dessas disposições é reservada aos Estados‑Membros. Num segundo sentido, porque, uma vez estabelecido um processo uniforme ou, em alternativa, fixados os princípios comuns que devem servir de base aos processos eleitorais europeus, subsistirá sempre uma margem para o exercício das competências próprias dos Estados‑Membros no que diz respeito à regulação das eleições para o Parlamento Europeu.

95.

A primeira conclusão que deve ser extraída da observação anterior é a de que, por força do TFUE, já existe uma determinada competência do legislador da União que permite rejeitar a crítica segundo a qual a aplicação da Carta pode ter como consequência uma alteração das competências da União, no sentido proibido pelo artigo 6.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE. E esta conclusão não é alterada pelo facto de, como se sabe, a previsão do artigo 223.o, n.o 1, TFUE não se ter realizado.

96.

Com efeito, o processo pretendido no artigo 223.o, n.o 1, TFUE ainda não foi estabelecido ( 24 ). Mas o mandato contido nessa disposição, apesar de ainda estar por cumprir, demonstra a vontade de o legislador primário fazer da eleição dos membros do Parlamento Europeu uma «situação regulada pelo direito da União», na aceção do acórdão Åkerberg Fransson, embora não de modo exclusivo, mas com a participação dos direitos dos Estados‑Membros no contexto do processo uniforme estabelecido pela União ou, sendo esse o caso, dos princípios comuns fixados pela mesma.

97.

O interesse da União pelo processo de escolha dos membros do Parlamento Europeu já tinha sofrido uma mudança qualitativa quando os deputados europeus começaram a ser eleitos por sufrágio universal direto dos cidadãos dos Estados‑Membros ( 25 ). Para esse efeito, teve que ser adotado, inicialmente, o Ato de 1976, relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu, cujo artigo 1.o, n.o 3, impunha a eleição «por sufrágio universal direto, livre e secreto».

98.

É certo que pouco mais previa o referido Ato de 1976, que, no seu artigo 8.o, dispunha que, «[s]ob reserva do disposto no presente ato, o processo eleitoral será regulado, em cada Estado‑Membro, pelas disposições nacionais». Mas, em todo o caso, a eleição do Parlamento Europeu por sufrágio universal e direto representava a configuração desta Câmara à imagem e semelhança dos Parlamentos dos Estados‑Membros. Importa não esquecer que o Tribunal de Justiça deu provimento ao pedido do partido «Os Verdes» no seu acórdão Os Verdes/Parlamento ( 26 ) com base nesse Ato, qualificando pela primeira vez os Tratados de carta constitucional.

99.

O reforço progressivo das competências do Parlamento Europeu e a crescente aproximação da sua posição institucional e política àquela que, nos ordenamentos dos Estados‑Membros, é própria dos Parlamentos nacionais mais não fizeram do que tornar cada vez mais premente a necessidade de o seu processo de eleição se adequar à sua qualidade de órgão de representação da vontade dos cidadãos «da União». Dito nos termos que utilizei nas conclusões que apresentei no processo Åkerberg Fransson, parece não ser discutível que, neste caso, estamos perante «[...um interesse específico da União em que [o] exercício do poder [pelos Estados‑Membros, quando aplicam o direito da União,] esteja em conformidade com a conceção dos direitos fundamentais por parte da União» ( 27 ).

100.

Nesta mesma linha, o artigo 14.o, n.o 2, TUE e, em coerência com este, o artigo 39.o, n.o 1, da Carta, abandonando a formulação anterior, constante do artigo 189.o CE, já não se referem aos deputados ao Parlamento Europeu como «representantes dos povos dos Estados reunidos na Comunidade», mas, de forma muito mais direta, como «representantes dos cidadãos da União» ( 28 ).

101.

Nesta nova qualidade de Câmara que representa diretamente os cidadãos da União, é óbvio que o Parlamento Europeu já dificilmente pode ser um simples conjunto de deputados eleitos segundo processos eleitorais nacionais que sejam, talvez, completamente divergentes quanto às suas conceções ou premissas de base. A unidade da representação dos cidadãos exige a adoção de um processo eleitoral uniforme ou, pelo menos, inspirado em princípios comuns. Assim o entendeu, creio, o legislador do artigo 223.o, n.o 1, TFUE.

102.

O facto de o mandato que agora consta dessa disposição nunca se ter chegado a materializar no sentido indicado torna necessário que a União continue a servir‑se do auxílio dos processos eleitorais nacionais, como o Ato de 1976 continua a prever. É certo que agora — ainda — compete aos Estados‑Membros determinar a entrada em vigor desse processo. Mas embora estes tenham, deste modo, por assim dizer, a competência para determinar essa entrada em vigor, deixaram de ter a competência incondicionada que anteriormente tinham para regular o processo de eleição dos deputados europeus elegíveis pela sua circunscrição. Portanto, a remissão praticamente total para os processos eleitorais nacionais, ainda hoje necessária, não decorre da existência de uma tão extensa competência própria dos Estados‑Membros a esse respeito, mas é fruto da necessidade de suprir o vazio que, caso contrário, se verificaria, em consequência de o mandato consignado no artigo 223.o, n.o 1, TFUE não ter sido cumprido.

103.

Das considerações anteriores resulta que, em qualquer caso e no que aqui é relevante estamos, indubitavelmente, perante um âmbito em que é imprescindível a aplicação do direito da União.

104.

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para responder à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, na medida em que nos encontramos no âmbito de aplicação do direito da União. No entanto, esta conclusão deve ser objeto de uma precisão importante, decorrente do alcance limitado que a competência do legislador da União tem no que diz respeito à regulação das eleições para o Parlamento Europeu.

105.

Com efeito, não se deve esquecer o que o Tribunal de Justiça declarou no n.o 29 do acórdão Åkerberg Fransson e que foi reproduzido anteriormente: no caso de situações reguladas pelo direito nacional que não «[são] inteiramente determinada[s] pelo direito da União», as autoridades públicas nacionais têm legitimidade para «aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, desde que essa aplicação não comprometa o nível de proteção previsto pela Carta nem o primado, a unidade e a efetividade do direito da União» ( 29 ).

106.

Neste sentido, de acordo com as considerações que tenho vindo a desenvolver, é evidente que o conjunto do direito eleitoral que deve regular as eleições para o Parlamento Europeu não é «inteiramente determinado», nem de facto, nem de direito, pelo direito da União. Ou seja, mesmo numa situação de cumprimento do disposto no artigo 223.o, n.o 1, TFUE, a competência do legislador da União não abarca todo o direito eleitoral em matéria de eleições para o Parlamento Europeu, mas apenas a instituição de um processo uniforme ou de princípios comuns. Esta situação implicaria, desde logo, que o direito nacional adotado nessa matéria não fosse «inteiramente determinado» pelo direito da União. Isto é ainda mais certo numa situação em que a previsão do artigo 223.o, n.o 1, TFUE não foi concretizada. Daí que os Estados‑Membros disponham de uma margem para a aplicação de padrões de proteção diferentes daqueles que são estabelecidos na Carta — e, por remissão para o acórdão Melloni ( 30 ), mais elevados —, sempre, evidentemente, com a condição a que acabo de fazer referência no final do número anterior.

107.

Portanto, como conclusão intermédia, entendo que uma legislação nacional como a que está em causa no presente processo, que regula, de forma direta ou através de remissão, as eleições para o Parlamento Europeu, é uma legislação adotada «em aplicação» do direito da União, independentemente do facto de não ser «inteiramente determinada» pelo mesmo, na aceção do n.o 29 do acórdão Åkerberg Fransson e com as consequências aí previstas.

C – Quanto ao mérito

1. Observação preliminar

108.

A questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, nos termos em que foi formulada, parece centrada no n.o 1 do artigo 39.o da Carta, dado que só nesse número é feita referência ao princípio da igualdade, embora apenas para garantir que os cidadãos da União residentes num Estado‑Membro diferente do da sua nacionalidade possam participar nas eleições para o Parlamento Europeu nas mesmas condições que os nacionais do Estado de residência. No entanto, é manifesto que a igualdade que T. Delvigne invoca, e a que o tribunal d’instance faz referência na sua decisão de reenvio, não é a do n.o 1 do artigo 39.o da Carta, mas a do n.o 2 da referida disposição.

109.

Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, exatamente, se «[d]eve o artigo 39.o da Carta [...], aplicável às eleições do Parlamento Europeu, ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros da União Europeia que não prevejam uma proibição geral, indefinida e automática de exercer direitos civis e políticos, a fim de não criar desigualdade de tratamento entre os nacionais dos Estados‑Membros». Como veremos, a referência à «proibição geral, indefinida e automática» evoca, de forma direta, a doutrina do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa à privação do direito de eleger e de ser eleito em contextos puramente internos ( 31 ), ou seja, em relação à própria definição do direito de voto enquanto direito político. Por isso, quando o tribunal d’instance fala de «desigualdade de tratamento entre os nacionais dos Estados‑Membros», entendo que se refere exclusivamente aos nacionais franceses e não a estes em relação aos nacionais de outros Estados‑Membros.

110.

Há, portanto, que deslocar a atenção para o n.o 2 do artigo 39.o da Carta, ou seja, para o exercício do direito de eleger e de ser eleito em sentido estrito, uma vez que a questão de direitos fundamentais em causa no caso de T. Delvigne não é propriamente a de saber se, em circunstâncias iguais às suas, os nacionais de outros Estados‑Membros podem participar nas eleições para o Parlamento Europeu, seja em França ou noutros Estados‑Membros. A questão é, sim, a de saber se, como cidadão da União, a regulamentação nacional aplicada é compatível com um direito fundamental reconhecido pela Carta a todos os cidadãos europeus, mesmo no caso de o exercerem no Estado‑Membro de que são nacionais.

111.

Delimitada deste modo a questão, há que recordar que a mesma tem origem num processo que tem por objeto a exclusão de T. Delvigne do recenseamento eleitoral, em consequência de, em 1988, ter sido condenado a uma pena principal de prisão de 12 anos e a uma pena acessória de privação perpétua do direito de eleger e de ser eleito. No processo a quo, T. Delvigne pede que lhe seja aplicada retroativamente a legislação penal que, em 1992, suprimiu o caráter automático e indefinido dessa pena acessória, embora unicamente no que diz respeito às condenações proferidas depois da entrada em vigor da referida legislação.

2. Quanto ao respeito do direito de eleger e de ser eleito para o Parlamento Europeu (artigo 39.o, n.o 2, da Carta) por parte da legislação nacional

112.

No presente caso estamos perante uma situação de inelegibilidade definitiva associada à situação de ter sido objeto de uma determinada decisão condenatória. Em especial, trata‑se de um caso que cabe qualificar de «restrição» ao exercício de um direito fundamental, na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta. De acordo com esta disposição, essa restrição só é admissível no caso de «ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial» do direito em causa, devendo tratar‑se, em todo o caso, de uma restrição que observe o «princípio da proporcionalidade» e que, além disso, se for «necessária», «correspond[a] efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros».

113.

Há que examinar se, de acordo com a jurisprudência relativa a esta matéria, nas circunstâncias do caso, se verificam as condições necessárias para que a restrição em causa seja considerada compatível com as exigências da Carta.

114.

É indiscutível que a referida restrição foi prevista por lei, uma vez que resulta da aplicação conjugada do Código Penal, da Lei de 1992 e do Código Eleitoral. A questão é a de saber se, além disso, respeita o conteúdo essencial do direito de eleger e de ser eleito, sendo de partilhar a observação, feita pelo Governo alemão, de que uma privação «automática e duradoira» do direito de eleger ou de ser eleito, em caso de condenação penal, seria contrária ao conteúdo essencial do sufrágio universal, dado que tornaria impossível para determinados cidadãos da União o exercício deste direito ( 32 ).

115.

Com efeito, no contexto da Carta, o respeito pelo conteúdo essencial dos direitos reconhecidos pela mesma opera como limite último e intransponível a qualquer possível restrição do exercício desses direitos, como um «limite dos limites» ( 33 ). Em conclusão, o desrespeito do referido conteúdo essencial conduz a que o direito fundamental em causa resulte «irreconhecível como tal», de modo que já não será possível, então, falar de «restrição» ao exercício de um direito, mas, pura e simplesmente, de «supressão» do mesmo.

116.

Uma vez transposta para o caso em apreço a observação anterior, e dada a própria natureza da restrição em causa, aquilo de que se trata, em última análise, é de determinar se a mesma é proporcionada, sendo certo que, se o não fosse, teria desrespeitado o limite que a Carta impôs a qualquer possível restrição dos direitos fundamentais, ou seja, o conteúdo essencial dos mesmos.

117.

Para proceder à apreciação do caráter proporcionado, ou não, da restrição examinada é necessário partir do dado de que, nesta matéria, é possível observar grande diversidade entre as diferentes legislações nacionais, tão diversas que, de acordo com o direito da União, apenas se pode ter em conta o menor denominador comum partilhado pelos Estados‑Membros e, em consequência, a doutrina do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 3.o do Protocolo Adicional n.o 1 à Convenção Europeia.

118.

Com efeito, um exame de direito comparado demonstra a existência de uma grande diversidade nas legislações dos Estados‑Membros quanto à privação do direito de eleger e de ser eleito, como consequência de uma sanção penal ( 34 ), tendo sido o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a estabelecer como menor denominador comum admissível no contexto do artigo 3.o do Protocolo Adicional n.o 1 à Convenção Europeia a possibilidade da privação perpétua do direito de eleger e de ser eleito desde que essa privação não resulte de um sistema que responda a critérios de generalidade, de automaticidade e de aplicação indiferenciada. Com efeito, para o Tribunal Europeu é contrária àquela disposição da convenção qualquer legislação que prive, «sem matizes», do direito de voto um grande número de indivíduos, «de forma indiferenciada» e «automaticamente [...], independentemente da duração da pena e da natureza ou gravidade da infração que tenham cometido e da sua situação pessoal», tendo aquele concluído que «uma restrição deste tipo, geral, automática e indiferenciada, a um direito consagrado na convenção, e que reveste uma importância crucial, ultrapassa uma margem de apreciação aceitável, por mais ampla que esta seja, e é incompatível com o artigo 3.o do Protocolo n.o 1» ( 35 ).

119.

Em especial, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem valoriza, muito em especial, a possibilidade de a medida de privação ser suscetível de revisão, tendo considerado que um sistema nacional que permite obter o restabelecimento do direito de voto, através de pedido apresentado passados três anos do cumprimento da pena principal e desde que seja demonstrado bom comportamento efetivo e constante, não padece de uma rigidez excessiva, incompatível com a Convenção de Roma ( 36 ).

120.

Nestas circunstâncias, entendo que os Estados‑Membros podem contemplar, entre as causas de privação do direito de eleger e de ser eleito, a eventualidade de uma condenação penal, sem que isso implique a sua incompatibilidade com o direito da União, embora apenas nos termos em que essa privação seja aceitável de acordo com a doutrina do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Isto resulta, claramente, da jurisprudência do Tribunal de Justiça, que, no seguimento dessa doutrina, sempre recordou que «os Estados contratantes gozam de um amplo poder de apreciação para impor condições ao direito de voto. No entanto, essas condições não podem reduzir os direitos em causa a ponto de os violar na sua essência e de os privar de serem efetivos[,] [d]evem prosseguir um objetivo legítimo e os meios utilizados não podem ser desproporcionados» ( 37 ).

121.

Na minha opinião, a regulamentação nacional em causa no processo principal não é, em princípio, incompatível com a doutrina do Tribunal Europeu, dado que o direito francês prevê a possibilidade de revisão da privação perpétua do direito de eleger e de ser eleito, embora a sua efetividade tenha sido posta seriamente em causa no decurso da audiência. É o que parece prever o artigo 702‑1 do Código de Processo Penal, conforme alterado pela Lei n.o 2009‑1436, de 24 de novembro de 2009, relativa à execução de penas, nos termos do qual qualquer pessoa afetada por uma privação, proibição ou incapacidade decorrentes de uma condenação penal, a título de pena principal ou acessória, pode requerer judicialmente o seu levantamento total ou parcial.

122.

Esse simples facto, conjuntamente com o de não ser certo que a regulamentação em questão apresente as características de generalidade, automaticidade e aplicação indiferenciada que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem critica, uma vez que não parece ser aplicável a todos os crimes, mas apenas aos de certa gravidade poderia excluir a incompatibilidade dessa regulamentação com o direito da União, sempre sob fiscalização do órgão jurisdicional.

123.

Em síntese, por tudo o que foi exposto, é ao órgão jurisdicional de reenvio que, em definitivo, compete determinar se as possibilidades de revisão que o direito nacional oferece demonstram ser, na prática, suficientemente viáveis, de forma a excluir que, de facto, a privação do direito de eleger e de ser eleito acabe por ser irremediavelmente perdurável, com a consequência de ser desproporcionada e, em última análise, constituir uma violação do conteúdo essencial do direito. A este respeito, podem constituir elementos de apreciação pertinentes a maior ou menor dificuldade real do processo de revisão no que diz respeito às condições exigidas para a sua abertura, à razoabilidade do seu custo, com especial atenção para a possibilidade de obtenção do benefício de justiça gratuita, nos casos em que seja requerida assistência ou representação judiciárias, bem como para a prática adotada pelas autoridades que devem conhecer do pedido de revisão, no que diz respeito ao rigor das condições que são exigidas para a sua concessão.

124.

Em conclusão, considero que o artigo 39.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não se opõe a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal desde que não estabeleça uma privação do direito de eleger e de ser eleito de caráter geral, indefinida e automática, sem possibilidade suficientemente viável de revisão, aspeto este que compete ao órgão jurisdicional nacional determinar.

VII – Conclusão

125.

Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao pedido de decisão prejudicial submetido nos seguintes termos:

«1.

Nas circunstâncias do caso, o Tribunal de Justiça não tem competência para se pronunciar sobre a compatibilidade da regulamentação nacional a que o tribunal d’instance faz referência com o direito reconhecido pelo artigo 49.o, n.o 1, terceiro período, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

2.

O artigo 39.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não se opõe a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal desde que não estabeleça uma privação do direito de eleger e de ser eleito de caráter geral, indefinida e automática, sem possibilidade suficientemente viável de revisão, aspeto este que compete ao órgão jurisdicional nacional determinar.»


( 1 )   Língua original: espanhol.

( 2 )   Por comodidade, referir‑me‑ei a seguir ao «direito de voto».

( 3 )   C‑617/10, EU:C:2013:105.

( 4 )   Anexo à Decisão 76/787/CECA, CEE, Euratom do Conselho, de 20 de setembro de 1976, relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal direto (JO L 278, p. 1), alterado pela Decisão 2002/772/CE, Euratom do Conselho, de 25 de junho de 2002 e de 23 de setembro de 2002 (JO L 283, p. 1, seguir «Ato de 1976»).

( 5 )   Neste sentido, acórdãos Rüffler (C‑544/07, EU:C:2009:258, n.o 38), Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.o 29) e Di Donna (C‑492/11, EU:C:2013:428, n.o 25).

( 6 )   Esta afirmação afigura‑se‑me suficiente para esclarecer a dúvida expressada pela Comissão no n.o 20 das suas observações escritas, no qual chama a atenção para o facto de a formulação das questões submetidas ser idêntica à proposta por T. Delvigne, facto do qual decorreria que algumas das apreciações feitas sobre a regulamentação francesa não refletiam a «opinião definitiva do órgão jurisdicional de reenvio» sobre esta matéria. Em meu entender, na medida em que esse órgão jurisdicional declara «acolher» o pedido de T. Delvigne, deve entender‑se que o mesmo adota as razões expostas por este como fundamento da sua pretensão relativa à submissão do pedido de decisão prejudicial e, nessa medida, essas razões tornaram‑se também suas.

( 7 )   A título de exemplo, Groussot, X., Pech, L., e Petursson, G. T.: «The Scope of Application of EU Fundamental Rights on Member States’ Action: In Search of Certainty in EU Adjudication», Eric Stein Working Paper 1/2011. Nusser, J.: Die Bindung der Mitgliedstaaten an die Unionsgrundrechte, Ed. Mohr Siebeck, Tubinga, 2011, pp. 54 e segs.; Kokott, J., e Sobotta, C.: «The Charter of Fundamental Rights of the European Union after Lisbon», EUI Working Papers, Academy of European Law, n.o 6, 2010; Alonso García, R.: «The General Provisions of the Charter of Fundamental Rights of the European Union», European Law Journal, n.o 8, 2002; Eeckhout, P.: «The EU Charter of Fundamental Rights and the federal question», 39 Common Market Law Review, 2002; Jacqué, J. P., «La Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne: aspects juridiques généraux», REDP, vol. 14, n.o 1, 2002; Egger, A.: «EU‑Fundamental Rights in the National Legal Order: The Obligations of Member States Revisited», Yearbook of European Law, vol. 25, 2006; Rosas, A., e Kaila, H.: «L’application de la Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne par la Cour de justice — un premier bilan», Il Diritto dell’Unione Europea, 1/2011, e, Weiler, J., e Lockhart, N.: «‘Taking rights seriously’ seriously: The European Court and its Fundamental Rights Jurisprudence — Part I» n.o 32, Common Market Law Review, 1995.

( 8 )   Neste sentido, por um lado, acórdãos Wachauf (C‑5/88, EU:C:1989:321) e Bostock (C‑2/92, EU:C:1994:116) e, por outro, acórdãos ERT (C‑260/89, EU:C:1991:254) e Familiapress (C‑368/95, EU:C:1997:325), em oposição aos acórdãos Maurin (C‑144/95, EU:C:1996:235), Kremzow (C‑299/95, EU:C:1997:254) e Annibaldi (C‑309/96, EU:C:1997:631).

( 9 )   C‑617/10, EU:C:2013:105.

( 10 )   Acórdão Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 19). O Tribunal de Justiça prossegue fazendo referência aos acórdãos ERT (C‑260/89, EU:C:1991:254, n.o 42), Kremzow (C‑299/95, EU:C:1997:254, n.o 15), Annibaldi (C‑309/96, EU:C:1997:631, n.o 13), Roquette Frères (C‑94/00, EU:C:2002:603, n.o 25), Sopropé (C‑349/07, EU:C:2008:746, n.o 34), Dereci e o. (C‑256/11, EU:C:2011:734, n.o 72) e Vinkov (C‑27/11, EU:C:2012:326, n.o 58).

( 11 )   Acórdão Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 21).

( 12 )   Acórdão Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107).

( 13 )   C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 23.

( 14 )   A este último respeito, no mesmo sentido, acórdão Dereci e o. (C‑256/11, EU:C:2011:734, n.o 71).

( 15 )   A título geral, Lascuraín Sánchez, J. A.: Sobre la retroactividad penal favorable, Civitas, Madrid, 2000.

( 16 )   Acórdão Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 24).

( 17 )   Acórdão Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 25).

( 18 )   Acórdão Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 26).

( 19 )   Acórdão Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 26).

( 20 )   Acórdão Annibaldi (C‑309/96, EU:C:1997:631, n.os 21 a 23).

( 21 )   Acórdão Siragusa (C‑206/13, EU:C:2014:126, n.o 24).

( 22 )   Acórdão Siragusa (C‑206/13, EU:C:2014:126, n.o 25), com referência aos acórdãos Annibaldi (C‑309/96, EU:C:1997:631, n.os 21 a 23), Iida (C‑40/11, EU:C:2012:691, n.o 79) e Ymeraga e o. (C‑87/12, EU:C:2013:291, n.o 41).

( 23 )   A título geral, sobre os artigos 190.° CE e 223.°, n.o 1, TFUE, González Alonso, L. N.: «El Parlamento Europeo ante las elecciones de junio de 2009: reflexiones a la luz del Tratado de Lisboa», Revista Unión Europea Aranzadi, maio de 2009, pp. 7 a 13.

( 24 )   Não faltaram tentativas por parte do Parlamento Europeu no sentido de dar cumprimento a este mandato. É de assinalar um primeiro Relatório sobre a proposta de modificação do Ato de 1976, de 28 de abril de 2011, realizado pelo deputado Andrew Duff (PE 440.210v04‑00), no qual era proposta a criação de listas eleitorais correspondentes a toda a UE, e sugeridas a criação de uma circunscrição única, constituída pelo conjunto do território da União Europeia, e a obrigação de assegurar representação das mulheres nas listas, bem como a atribuição de lugares de acordo com o método proporcional corrigido de Hondt, proposta esta que, ao não ter conseguido uma maioria suficiente na Comissão dos Assuntos Constitucionais, deu origem a um segundo relatório do mesmo deputado, de 2 de fevereiro de 2012, que também não conseguiu uma maioria suficiente na mesma Comissão e, em consequência, não chegou a ser apreciado em sessão plenária. Depois destas tentativas falhadas, foi aprovada a Resolução de 22 de novembro de 2012 sobre as eleições para o Parlamento Europeu em 2014 (P7_TA(2012)0462, relatório do deputado Carlo Casini). Com esta resolução, o Parlamento aprovou a Diretiva 2013/1/UE do Conselho, de 20 de dezembro de 2012, que altera a Diretiva 93/109/CE no que se refere a alguns aspetos do sistema de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu dos cidadãos da União residentes num Estado‑Membro de que não tenham a nacionalidade (JO L 26, p. 27). Esta alteração visa melhorar os procedimentos de intercâmbio de informação entre Estados‑Membros, bem como os de inscrição no recenseamento de cidadãos da União que não tenham a nacionalidade. Do mesmo modo, em 10 de junho de 2013, o Parlamento Europeu adotou uma recomendação, que aprovou uma proposta do Conselho que fixava a composição do Parlamento Europeu (PE 513.240v01‑00), proposta que, por sua vez, se baseava noutra Resolução do Parlamento adotada em plenário, em 13 de março de 2013 (P7_TA(2013)0082). Mais tarde, em julho de 2013, o Parlamento também adotou uma Resolução sobre a melhoria da organização das eleições de 2014 (P7_TA(2013)0323), na qual se prevê um reforço dos poderes do Parlamento para a eleição do Presidente da Comissão.

( 25 )   Sobre a importância que a doutrina da época atribuiu a essa novidade, v., por exemplo, Lodge, J.: «The significance of direct elections for the European Parliament’s role in the European Community and the drafting of a common electoral law», Common Market Law Review 16, 1979, pp. 195 a 208, Paulin, B. e Forman, J.: «L’élection du Parlement Européen au suffrage universel direct», Cahiers de Droit Européen 5‑6, 1976, pp. 506 a 536, e, Charpentier, J. et al.: La signification politique de l’élection du parlement européen au suffrage universel direct, Centre Européen Universitaire de Nancy, Nancy, 1978.

( 26 )   Processo 294/83, EU:C:1986:166, n.o 23.

( 27 )   Conclusões Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2012:340, n.o 40). O sublinhado é meu.

( 28 )   Neste aspeto, o estatuto de cidadão da União avançou consideravelmente na sua «tend[ência para] ser um estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros que permite aos que se encontrem na mesma situação obter, independentemente da sua nacionalidade e sem prejuízo das exceções expressamente previstas a este respeito, o mesmo tratamento jurídico», já assinalada pelo Tribunal de Justiça, no processo Espanha/Reino Unido (C‑145/04, EU:C:2006:543, n.o 74). Além disso, e como o advogado‑geral A. Tizzano fez notar nas conclusões que apresentou nesse mesmo processo (C‑145/04, EU:C:2006:231, n.o 68), sendo certo que nenhuma disposição comunitária previa, então, «aberta e diretamente que [o direito de voto para as eleições europeias] fa[zia] parte dos direitos de que os cidadãos da União Europeia gozam nos termos do n.o 2 do artigo 17.o CE[,] [p]oderá, contudo, observar‑se que o n.o 2 do artigo 19.o CE, ao permitir que os cidadãos de um Estado‑Membro votem nas eleições europeias no Estado‑Membro onde residem nas mesmas condições que os cidadãos desse Estado, de certo modo tem como pressuposto a atribuição do direito em questão aos cidadãos da União. E também seria possível argumentar no mesmo sentido com base nos artigos 189.° e 190.° CE, que preveem que o Parlamento Europeu é composto pelos representantes dos ‘povos’ e, portanto (pelo menos), dos cidadãos dos ‘Estados reunidos na Comunidade’».

( 29 )   Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 29).

( 30 )   Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.o 60).

( 31 )   Processos Hirst c. Reino Unido (n.o 2) [GC], n.o 74026/01, 2005‑IX, Frodl c. Áustria, n.o 20201/04, Scoppola c. Itália (n.o 3) [GC], n.o 126/05, Greens e MT c. Reino Unido, n.os 60041/08 e 60054/08.

( 32 )   N.o 31 das observações escritas apresentadas pelo Governo alemão.

( 33 )   V., sobre este conceito, De Otto, I.: «La regulación del ejercicio de los derechos fundamentales. La garantía de su contenido esencial en el artículo 53.1 de la Constitución», Obras Completas, Universidad de Oviedo e Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Oviedo, 2010, pp. 1471 a 1513. Na doutrina alemã, responsável pela criação do referido conceito, v., por todos, Häberle, P.: Die Wesensgehaltsgarantie des Art. 19 Abs. 2 GG, 3.a ed., C. F. Müller, Karlsruhe, 1983, e Schneider, L.: Der Schutz des Wesensgehalts von Grundrechten nach Art. 19 Abs. 2 GG, Duncker & Humblot, Berlim, 1983.

( 34 )   Esta diversidade já foi referida, em 1993, na proposta da Comissão que deu origem à Diretiva 93/109/CE do Conselho, de 6 de dezembro de 1993, que estabelece o sistema de exercício do direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu dos cidadãos da União residentes num Estado‑Membro de que não tenham a nacionalidade (JO L 329, p. 34). Na doutrina, por exemplo, Rottinghaus, B.: Incarceration and Enfranchisement: International Practices, Impact and Recommendations for Reform, International Foundation for Election Systems, Washington DC 2003, Ewald, A. e Rottinghaus, B.: Criminal Disenfranchisement in an International Perspetive, Cambridge University Press, 2009.

( 35 )   Processos Hirst c. Reino Unido (n.o 2) [GC], n.o 74026/01, 2005‑IX, § 82, Frodl c. Áustria, n.o 20201/04, § 25, Scoppola c. Itália (n.o 3) [GC], n.o 126/05, § 96.

( 36 )   Processo Scoppola c. Itália (n.o 3) [GC], n.o 126/05, § 109.

( 37 )   Processo Espanha/Reino Unido (C‑145/04, EU:C:2006:543, n.o 94).