CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 15 de janeiro de 2015 ( 1 )

Processo C‑586/13

Martin Meat

contra

Géza Simonfay

e

Ulrich Salburg

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Pesti Központi Kerületi Bíróság (Hungria)]

«Livre prestação de serviços — Destacamento de trabalhadores — Ato de Adesão de 2003 — Medidas transitórias — Acesso dos nacionais húngaros ao mercado de trabalho de Estados que eram já Estados‑Membros da União Europeia à data de adesão da República da Hungria — Exigência de uma autorização de trabalho para a disponibilização de trabalhadores — Diretiva 96/71/CE — Artigo 1.o, n.o 3 — Medidas transitórias relativas à livre circulação de pessoas na Áustria»

1. 

A Martin Meat Kft (a seguir «Martin Meat»), uma sociedade húngara especializada no processamento de carne, propôs no Pesti Központi Kerületi Bíróság (tribunal distrital central de Peste) (Hungria) (a seguir «órgão jurisdicional de reenvio») uma ação de responsabilidade civil contra os seus consultores jurídicos, com fundamento no facto de estes não a terem informado de que o contrato celebrado com a Alpenrind GmbH (a seguir «Alpenrind»), um matadouro estabelecido na Áustria, constituía uma disponibilização de trabalhadores húngaros na Áustria e de que, consequentemente, esses trabalhadores não podiam exercer uma atividade profissional nesse Estado‑Membro sem uma autorização de trabalho. O órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça orientações sobre a interpretação do capítulo 1 do anexo X ao Ato de Adesão de 2003 ( 2 ), que estabelece medidas transitórias sobre a livre circulação de pessoas no contexto da adesão da Hungria à União Europeia.

2. 

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se os trabalhadores da Martin Meat foram «disponibilizados» na Áustria (caso em que, segundo o acórdão Vicoplus e o. ( 3 ), a Áustria podia exigir que possuíssem uma autorização de trabalho nos termos do capítulo 1, ponto 2, do anexo X ( 4 )) ou se estavam «destacados» naquele Estado‑Membro. O Tribunal de Justiça é, assim, convidado a esclarecer melhor os critérios de distinção entre a «disponibilização» e o «destacamento» de trabalhadores.

3. 

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional nacional pergunta se o regime específico de limites transitórios à livre prestação de serviços que envolvam a circulação temporária de trabalhadores na Áustria e na Alemanha em certos setores sensíveis, estabelecido no capítulo 1, ponto 13, do anexo X, afeta o âmbito do capítulo 1, ponto 2, desse anexo. O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a mera existência daquele regime específico significa que, em outros setores (como o do processamento de carne), a Áustria não podia impor limites, com base no ponto 2, à disponibilização de trabalhadores húngaros no seu território durante o período transitório de cinco anos a seguir à adesão.

Direito da UE

Ato de Adesão de 2003

4.

O anexo X ao Ato de Adesão de 2003 estabelece medidas transitórias aplicáveis no contexto da adesão da Hungria à União Europeia. O ponto 1 do capítulo 1 do referido anexo, que diz respeito à livre circulação de pessoas, estabelece essencialmente que os atuais artigo 45.o TFUE e primeiro parágrafo do artigo 56.o TFUE são plenamente aplicáveis em relação à liberdade de circulação dos trabalhadores e à liberdade de prestação de serviços que envolvam a circulação temporária de trabalhadores, tal como definidas no artigo 1.o da Diretiva 96/71/CE ( 5 ), entre a Hungria e os restantes Estados‑Membros (à exceção de Chipre e de Malta), sob reserva apenas das disposições transitórias previstas nos pontos 2 a 14.

5.

Os pontos 2 e 5, que dizem respeito à livre circulação de trabalhadores, estabelecem, em especial ( 6 ):

«2.

Em derrogação dos artigos 1.° a 6.° do Regulamento (CEE) n.o 1612/68 [ ( 7 ) ] e até ao termo do período de dois anos a contar da data da adesão, os [antigos] Estados‑Membros devem aplicar medidas nacionais, ou medidas resultantes de acordos bilaterais, que regulamentem o acesso de nacionais húngaros aos seus mercados de trabalho. Os [antigos] Estados‑Membros podem continuar a aplicar essas medidas até ao termo do período de cinco anos a contar da data da adesão.

[…]

5.

Um Estado‑Membro que mantenha medidas nacionais ou medidas resultantes de acordos bilaterais no termo do período indicado no ponto 2 pode, em caso de perturbações ou de ameaça de perturbações graves do seu mercado de trabalho, e após notificação da Comissão, continuar a aplicar essas medidas até ao termo do período de sete anos a contar da data da adesão. Na falta dessa notificação, são aplicáveis os artigos 1.° a 6.° do Regulamento (CEE) n.o 1612/68.»

6.

O ponto 13 diz respeito à livre prestação de serviços que envolvam a circulação temporária de trabalhadores húngaros na Áustria e na Alemanha nos setores sensíveis nele enumerados ( 8 ). Esse ponto dispõe:

«Para fazer face a perturbações ou a ameaça de perturbações graves em determinados setores de serviços sensíveis dos seus mercados de trabalho, que possam surgir, em certas regiões, na sequência da prestação transnacional de serviços definida no artigo 1.o da Diretiva 96/71/CE, e enquanto aplicarem, por força das disposições transitórias acima previstas, medidas nacionais ou medidas resultantes de acordos bilaterais à livre circulação de trabalhadores húngaros, a Alemanha e a Áustria podem, após notificação da Comissão, prever derrogações do [primeiro parágrafo do artigo 56.o TFUE] a fim de, no contexto da prestação de serviços por empresas estabelecidas na Hungria, limitar a circulação temporária de trabalhadores cujo direito a exercer uma atividade na Alemanha e na Áustria esteja sujeito a medidas nacionais.

[…]»

7.

A lista dos setores de serviços que podem estar abrangidos por esta suspensão na Áustria é a seguinte: atividades dos serviços relacionados com a horticultura; serragem, corte e acabamento da pedra; fabricação de estruturas de construção metálicas; construção, incluindo atividades afins; atividades de segurança; atividades de limpeza industrial; cuidados domiciliários de enfermagem; e serviço social e atividades sem alojamento.

Diretiva 96/71

8.

O considerando 3 da Diretiva 96/71 salienta que a realização do mercado interno proporciona condições dinâmicas para a prestação transnacional de serviços e convida um número crescente de empresas a destacar trabalhadores para executarem temporariamente um trabalho no território de um Estado‑Membro diferente do Estado onde habitualmente trabalham.

9.

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, a Diretiva 96/71 é aplicável às empresas estabelecidas num Estado‑Membro que, no âmbito de uma prestação transnacional de serviços, destaquem trabalhadores para o território de outro Estado‑Membro. O artigo 1.o, n.o 3 dispõe que a diretiva é aplicável sempre que as referidas empresas tomem uma das seguintes medidas transnacionais:

«a)

Destacar um trabalhador para o território de um Estado‑Membro, por sua conta e sob a sua direção, no âmbito de um contrato celebrado entre a empresa destacadora e o destinatário da prestação de serviços que trabalha nesse Estado‑Membro, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre a empresa destacadora e o trabalhador;

[…]

c)

Destacar, na qualidade de empresa de trabalho temporário ou de empresa que põe um trabalhador à disposição, um trabalhador para uma empresa utilizadora estabelecida no território de um Estado‑Membro ou que nele exerça a sua atividade, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre o trabalhador e a empresa de trabalho temporário ou a empresa que põe o trabalhador à disposição.»

10.

O artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 96/71 define «trabalhador destacado» como «qualquer trabalhador que, por um período limitado, trabalhe no território de um Estado‑Membro diferente do Estado onde habitualmente exerce a sua atividade».

Direito austríaco

11.

Nos termos do § 3(1) da Arbeitskräfteüberlassungsgesetz (Lei relativa à disponibilização de trabalhadores, a seguir «AÜG»), a disponibilização de trabalhadores consiste em colocar trabalhadores à disposição de terceiros para fins de prestação de trabalho. O § 4(1) da AÜG dispõe que, para determinar se tal disponibilização existe, é necessário tomar em consideração a verdadeira natureza económica de uma dada situação, mais do que a sua aparência. O § 4(2) da AÜG estabelece critérios a aplicar para identificar uma situação de disponibilização de trabalhadores.

12.

De acordo com a Ausländerbeschäftigungsgesetz (Lei relativa ao emprego de nacionais estrangeiros), que era aplicável aos trabalhadores dos novos Estados‑Membros sujeitos a medidas transitórias em matéria de livre circulação de trabalhadores, estes trabalhadores necessitavam apenas de obter a confirmação do destacamento caso fossem destacados de outros Estados‑Membros da UE no contexto de um contrato de prestação de serviços. Em contrapartida, se fossem disponibilizados na aceção da AÜG, necessitavam de autorizações de trabalho.

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

13.

Em 2007, a Martin Meat celebrou um contrato com a Alpenrind (a seguir «contrato de 2007»). Nos termos do contrato de 2007, a Martin Meat comprometia‑se a processar 25 meias carcaças de bovino por semana e a acondicioná‑las em embalagens de carne cortada em pedaços, no matadouro da Alpenrind situado em Salzburgo e em instalações da Alpenrind que a Martin Meat arrendaria. A Martin Meat deveria executar o contrato de 2007 utilizando o seu próprio pessoal, ou seja, trabalhadores húngaros.

14.

A Martin Meat era remunerada de acordo com a quantidade de carne processada. A Alpenrind podia reduzir essa remuneração se a carne processada fosse de má qualidade. A Martin Meat fornecia parte do equipamento e ferramentas necessários para o processamento, mas os seus trabalhadores também utilizavam as máquinas da Alpenrind.

15.

Além disso, a Martin Meat era responsável pela organização do trabalho e o seu encarregado dava instruções individuais aos trabalhadores. O encarregado da Alpenrind transmitia ao encarregado da Martin Meat instruções sobre a carne que devia ser processada e o modo como tal devia ser feito.

16.

A Martin Meat pediu a Géza Simonfay e a Ulrich Salburg (a seguir «consultores jurídicos») um parecer jurídico sobre se a deslocação dos seus trabalhadores para a Áustria para executarem o contrato de 2007 estava sujeita a restrições transitórias naquele Estado‑Membro e, em especial, se os referidos trabalhadores necessitavam de autorizações de trabalho.

17.

Os consultores jurídicos informaram a Martin Meat de que, uma vez que as atividades de processamento e acondicionamento de carne não estavam abrangidas pelos setores protegidos enumerados no capítulo 1, ponto 13, do anexo X ao Ato de Adesão de 2003 e que o contrato de 2007 envolvia o destacamento de trabalhadores e não a sua disponibilização, os seus trabalhadores podiam trabalhar na Áustria sem autorizações de trabalho mesmo antes de 1 de maio de 2011 (o termo do período de sete anos a contar da data de adesão da Hungria à União Europeia) ( 9 ).

18.

Porém, as autoridades austríacas entenderam que o contrato de 2007 envolvia a disponibilização de trabalhadores na Áustria e que, como tal, esses trabalhadores necessitavam de autorizações de trabalho para trabalharem em Salzburgo. Consequentemente, foi aplicada uma coima de 700000 euros à Alpenrind, que a Martin Meat teve de pagar, nos termos do contrato de 2007. As ações de impugnação da legalidade da coima interpostas pela Alpenrind na Áustria foram julgadas improcedentes, nomeadamente, em última instância, pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo).

19.

No processo principal perante os órgãos jurisdicionais húngaros, a Martin Meat pede a condenação dos consultores jurídicos no pagamento de uma indemnização pelos danos causados por um parecer jurídico que considera incorreto. Naquele contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pediu uma decisão prejudicial sobre as seguintes questões:

«1.

Deve entender‑se que há ‘disponibilização de mão de obra’, nos termos do direito da [UE] e, em particular, da definição adotada no acórdão [Vicoplus e o.], no caso de a [prestadora de serviços] assumir a obrigação de processar, através do[…] seu[…] próprio[... pessoal], meias carcaças de bovino no matadouro da cliente, nas instalações dadas por esta em arrendamento, e de as acondicionar em embalagens de carne prontas para comercialização, sendo que a prestadora de serviços recebe uma retribuição em função dos quilogramas de carne processada, devendo suportar uma redução do preço estipulado para o processamento da carne no caso de esta ser de qualidade insuficiente, e tendo ainda em conta que, no Estado‑Membro de acolhimento, a prestadora de serviços presta o serviço exclusivamente àquela cliente e que é esta que controla a qualidade dos trabalhos de processamento da carne?

2.

Deve o princípio fundamental contido no acórdão [Vicoplus e o.], segundo o qual a disponibilização de mão de obra podia ser limitada durante a vigência das disposições transitórias relativas à livre circulação de trabalhadores previstas nos tratados de adesão dos [novos] Estados‑Membros que aderiram à União Europeia em 1 de maio de 2004, aplicar‑se também a um destacamento de trabalhadores efetuado no âmbito de uma disponibilização de mão de obra, através da qual uma empresa com sede num [novo] Estado‑Membro destaca trabalhadores para a Áustria, caso o referido destacamento se efetue num setor não protegido nos termos dos tratados de adesão?»

20.

Foram apresentadas observações escritas pelos consultores jurídicos e pela Áustria, Alemanha, Hungria, Polónia e Comissão Europeia, tendo todos eles, juntamente com a Martin Meat, apresentado observações orais na audiência que teve lugar em 9 de outubro de 2014.

Análise

Observações preliminares

21.

O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 96/71 qualifica todas as situações abrangidas pelo n.o 3, incluindo as alíneas a) e c), de «destacamento». Nas presentes conclusões, porém, designarei a situação abrangida pelo artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71 por «destacamento (de trabalhadores)» e a situação abrangida pelo artigo 1.o, n.o 3, alínea c) por «disponibilização (de trabalhadores)». Além disso, por uma questão de clareza, utilizarei os termos «prestador de serviços» e «cliente» no contexto do destacamento e «empresa que disponibiliza recursos humanos» e «empresa utilizadora» no contexto da disponibilização.

22.

Embora o órgão jurisdicional de reenvio não tenha suscitado esta questão, é necessário determinar, a título preliminar, se a Martin Meat, uma empresa especializada no processamento de carne, está abrangida pelo âmbito do artigo 1.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 96/71 caso disponibilize trabalhadores na aceção dessa disposição. A questão coloca‑se porque a versão inglesa do artigo 1.o, n.o 3, alínea c), faz referência a medidas tomadas por «a temporary employment undertaking or placement agency» (uma empresa de trabalho temporário ou uma empresa que põe um trabalhador à disposição), o que sugere que apenas estão abrangidas as empresas especializadas na disponibilização de trabalhadores. No entanto, muitas outras versões linguísticas oficiais em que o artigo 1.o, n.o 3, alínea c), foi adotado em 1996 utilizam termos mais abrangentes, sugerindo que essa disposição é aplicável a todas as empresas que disponibilizam trabalhadores num Estado‑Membro (incluindo aquelas que não sejam especializadas na disponibilização de trabalhadores) ( 10 ).

23.

Segundo jurisprudência assente, a necessidade de uma interpretação uniforme das disposições de direito da União Europeia impede que o texto de uma disposição seja considerado isoladamente, exigindo, pelo contrário, que seja interpretado e aplicado à luz das versões redigidas nas restantes línguas oficiais ( 11 ). Em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto comunitário, a disposição em causa deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação em que se integra ( 12 ).

24.

Em face deste cenário, afigura‑se indiscutível que o artigo 1.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 96/71 não é exclusivamente aplicável a empresas especializadas na disponibilização (ou colocação à disposição) de trabalhadores. A finalidade dessa diretiva era, conforme resulta claramente dos seus considerandos 6 e 13, resolver problemas resultantes da transnacionalização das relações de trabalho através da coordenação das legislações dos Estados‑Membros, de modo a prever um núcleo de regras imperativas de proteção mínima que as entidades patronais que destacassem trabalhadores deveriam observar no país de acolhimento ( 13 ). Esse objetivo ficaria comprometido se as referidas regras imperativas não fossem aplicáveis à relação de trabalho entre uma empresa e os trabalhadores que esta disponibiliza num Estado‑Membro de acolhimento pelo simples facto de não ser uma empresa especializada na disponibilização de trabalhadores (mas antes uma empresa que disponibiliza pessoal, por exemplo, a uma empresa que opera no mesmo setor mas que tem sede em outro Estado‑Membro). Do mesmo modo, os diferentes regimes de limites transitórios à livre circulação de pessoas no contexto do destacamento e da disponibilização, estabelecidos em vários anexos ao Ato de Adesão de 2003, perderiam, em grande parte, o seu efeito útil.

25.

Por último, importa salientar que o capítulo 1 do anexo X ao Ato de Adesão de 2003 prevê diferentes fases nos limites transitórios à livre circulação de trabalhadores. A primeira é o período de 1 de maio de 2004 a 30 de abril de 2006, a segunda vai de 1 de maio de 2006 a 30 de abril de 2009 e a terceira de 1 de maio de 2009 a 30 de abril de 2011. O presente reenvio prejudicial, que diz respeito à circulação transfronteiriça em 2007, envolve o segundo período de medidas transitórias (ou seja, o capítulo 1, ponto 2, do anexo X), durante o qual os antigos Estados‑Membros podiam aplicar medidas que regulamentassem o acesso de nacionais húngaros aos seus mercados de trabalho e, consequentemente, derrogar os artigos 1.° a 6.° do Regulamento n.o 1612/68 ( 14 ), sem terem de provar quaisquer perturbações graves (ou ameaça de perturbações graves) dos seus mercados de trabalho.

Orientações jurisprudenciais

26.

No acórdão Vicoplus e o., o Tribunal de Justiça clarificou o âmbito dos limites transitórios à livre circulação dos trabalhadores no contexto da adesão da República da Polónia à União Europeia e os critérios de distinção entre disponibilização de trabalhadores e destacamento de trabalhadores. A argumentação do Tribunal de Justiça naquele acórdão é aplicável, por analogia, no contexto da adesão da República da Hungria à União Europeia, dado que as disposições do capítulo 1 do anexo X ao Ato de Adesão de 2003 correspondem, no essencial, às disposições constantes do capítulo 2 do anexo XII ( 15 ).

27.

O Tribunal de Justiça começou por recordar que resulta da sua jurisprudência que a atividade de uma empresa que consiste na disponibilização, mediante remuneração, de mão de obra que permanece ao serviço desta empresa sem ser celebrado qualquer contrato de trabalho com o utilizador constitui uma atividade profissional que, em princípio, deve ser considerada um «serviço» na aceção do artigo 57.o TFUE ( 16 ). Neste contexto, relembro que, segundo jurisprudência assente, o artigo 56.o TFUE opõe‑se a que um Estado‑Membro obrigue as empresas que, estabelecidas num outro Estado‑Membro, se deslocam ao território do primeiro para aí prestarem serviços e que empregam, regular e habitualmente, nacionais de países terceiros, a obterem, para estes trabalhadores, uma autorização de trabalho ( 17 ).

28.

Seguidamente, o Tribunal de Justiça explicou que uma empresa que disponibiliza trabalhadores, embora seja uma prestadora de serviços na aceção do TFUE, exerce atividades que têm precisamente por objeto permitir o acesso de trabalhadores ao mercado de trabalho do Estado‑Membro de acolhimento ( 18 ). Mesmo continuando ao serviço da referida empresa, um trabalhador que tenha sido disponibilizado nas circunstâncias previstas no artigo 1.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 96/71 encontra‑se tipicamente afetado, durante o período da sua disponibilização, a um lugar na empresa utilizadora que, de outro modo, teria sido ocupado por um trabalhador desta ( 19 ).

29.

Por conseguinte, as medidas adotadas pelos antigos Estados‑Membros com o objetivo de limitar a disponibilização de trabalhadores nacionais dos novos Estados‑Membros devem ser consideradas medidas que regulamentam o acesso destes nacionais ao mercado de trabalho dos antigos Estados‑Membros em causa. No contexto da adesão da Hungria (e não da Polónia), isto significa que as referidas medidas são reguladas, em especial, pelo capítulo 1, ponto 2, do anexo X ao Ato de Adesão de 2003 ( 20 ). Consequentemente, durante o período transitório de cinco anos a contar da data da adesão, os antigos Estados‑Membros podem subordinar a disponibilização de trabalhadores húngaros no seu território à obtenção de uma autorização de trabalho ( 21 ). Em contrapartida, o destacamento de trabalhadores no contexto de um contrato de prestação de serviços não diz respeito ao acesso aos mercados de trabalho dos antigos Estados‑Membros. Por conseguinte, não pode estar sujeito a limites transitórios nesses Estados, com base nas referidas disposições.

30.

Essa conclusão é consentânea com a finalidade do capítulo 1, ponto 2, do anexo X, que é (tal como o capítulo 2, ponto 2, do anexo XII relativamente à adesão da Polónia) a de evitar, na sequência da adesão, perturbações do mercado de trabalho dos antigos Estados‑Membros devido à chegada imediata de um grande número de trabalhadores húngaros ( 22 ). Um trabalhador disponibilizado está em concorrência direta com os trabalhadores locais no mercado de trabalho do Estado‑Membro de acolhimento ( 23 ). Assim, seria artificial estabelecer uma distinção entre os casos em que o trabalhador em causa obtém indiretamente acesso ao mercado de trabalho do Estado‑Membro de acolhimento através de um contrato de disponibilização de mão de obra e os casos em que o faz de modo independente. Em ambos os casos, a circulação de (um número potencialmente elevado) de trabalhadores é suscetível de perturbar o mercado de trabalho do Estado‑Membro de acolhimento. Se a disponibilização de mão de obra fosse excluída do âmbito de aplicação do capítulo 1, ponto 2, do anexo X ao Ato de Adesão de 2003, correr‑se‑ia o risco de privar esta disposição de uma grande parte do seu efeito útil ( 24 ).

31.

No acórdão Vicoplus e o., o Tribunal de Justiça definiu a disponibilização de trabalhadores como uma prestação de serviços mediante remuneração, na qual o trabalhador disponibilizado permanece ao serviço da «empresa que disponibiliza recursos humanos», sem ser celebrado qualquer contrato de trabalho com a empresa utilizadora (primeiro critério); que se caracteriza pela circunstância de a deslocação do trabalhador para o Estado‑Membro de acolhimento constituir o próprio objeto da prestação de serviços efetuada pela «empresa que disponibiliza recursos humanos» (segundo critério); e em que o trabalhador realiza o seu trabalho sob o controlo e a direção da empresa utilizadora (terceiro critério) ( 25 ). Em contrapartida, o Tribunal de Justiça considerou que o facto de o trabalhador regressar ou não ao seu Estado‑Membro de origem no termo do destacamento e de existir ou não correspondência entre as tarefas realizadas pelo trabalhador no Estado‑Membro de acolhimento e a atividade principal do seu empregador não são critérios decisivos ( 26 ).

Questão 2: A Áustria podia impor limites à disponibilização de trabalhadores húngaros no seu território, em todos os setores, em 2007?

32.

Abordarei em primeiro lugar a segunda questão. Os consultores jurídicos alegam, no essencial, que, ao contrário de outros antigos Estados‑Membros (exceto a Alemanha), a Áustria não podia limitar a disponibilização de trabalhadores húngaros no seu território durante o período de cinco anos a seguir à adesão (ou seja, com base no capítulo 1, ponto 2, do anexo X), a menos que a circulação de trabalhadores ocorresse no âmbito de um dos setores sensíveis enumerados no capítulo 1, ponto 13, do anexo X. No seu entender, seria incompatível com o regime específico previsto no ponto 13 permitir que a Áustria impusesse restrições à disponibilização de trabalhadores em todos os setores. Se a tese defendida pelos consultores jurídicos estiver correta, a qualificação do contrato de 2007 como disponibilização de trabalhadores é irrelevante. Em qualquer caso, a Áustria não podia exigir autorizações de trabalho aos trabalhadores da Martin Meat com base no capítulo 1, ponto 2, do anexo X. Porém, se a tese defendida pelos consultores jurídicos estiver incorreta e o contrato de 2007 envolver o destacamento de trabalhadores e não a sua disponibilização, o ponto 13 do referido anexo é inútil, dado que o processamento de carne não figura entre os setores sensíveis abrangidos por essa disposição.

33.

Ao contrário dos consultores jurídicos, não vejo por que razão o ponto 13,que respeita exclusivamente à livre prestação de serviços em certos setores sensíveis na Áustria e na Alemanha, limitaria a possibilidade geral que o capítulo 1, ponto 2, do anexo X confere àqueles dois Estados‑Membros de regulamentarem a circulação de trabalhadores húngaros no seu território no período de cinco anos a seguir à adesão ( 27 ). No meu entender, aqueles dois pontos têm simplesmente âmbitos de aplicação distintos.

34.

Essa conclusão é compatível não só com a estrutura do capítulo 1 ( 28 ) e com o texto do ponto 2 (que não faz qualquer distinção entre os 15 antigos Estados‑Membros) como também com a finalidade desta última disposição. Tal como o Tribunal de Justiça deixou bem claro no acórdão Vicoplus e o., tanto a decisão de arranjar um novo emprego tomada por trabalhadores individuais como a disponibilização de trabalhadores podem perturbar os mercados de trabalho dos antigos Estados‑Membros ( 29 ). Além disso, a Áustria e a Alemanha apoiaram, desde o início, o estabelecimento de medidas transitórias para proteger os mercados de trabalho do previsível influxo de trabalhadores dos novos Estados‑Membros na sequência da sua adesão à União Europeia ( 30 ). Afigura‑se improvável que tenham aceitado disposições que lhes atribuíssem, durante o período de cinco anos a seguir à adesão, menos margem de manobra para regulamentar a entrada de trabalhadores húngaros no seu território do que aos restantes antigos Estados‑Membros; e não vislumbro qualquer razão válida para esta interpretação.

35.

Consequentemente, a resposta à segunda questão, nos moldes em que a reformulei, é afirmativa.

Questão 1: Que parâmetros são relevantes para determinar se existiu disponibilização de trabalhadores?

36.

Tal como referi anteriormente, no acórdão Vicoplus e o. o Tribunal de Justiça estabeleceu três critérios cumulativos para identificar uma situação de disponibilização de trabalhadores ( 31 ).

37.

O primeiro critério não ajuda a distinguir a disponibilização de trabalhadores do destacamento de trabalhadores. Ambos pressupõem a existência de uma relação de trabalho entre os trabalhadores em causa e a empresa que os destaca ou que os disponibiliza. Concentrar‑me‑ei, assim, no segundo e terceiro critérios.

38.

Importa referir, desde já, que o facto de uma determinada situação estar ou não abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 1.o, n.o 3, alínea a) ou c), da Diretiva 96/71 não depende exclusivamente das condições do contrato de prestação de serviços. É necessário examinar o modo como esse contrato é executado à luz de todas as circunstâncias relevantes. Caso contrário, poderiam ser estabelecidas cláusulas contratuais astuciosas, que permitissem às partes contratantes evitar a aplicação dos limites transitórios à livre circulação de trabalhadores adotados com base no Ato de Adesão de 2003.

39.

Quanto ao segundo critério, no acórdão Vicoplus e o., o Tribunal de Justiça distinguiu entre «a disponibilização da deslocação temporária de trabalhadores que são enviados para outro Estado‑Membro para aí efetuarem trabalhos no âmbito de uma prestação de serviços do seu empregador […], encontrando‑se a deslocação para este efeito […] referida no artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71». O Tribunal de Justiça salientou que, neste último caso, «o destacamento de trabalhadores para outro Estado‑Membro por parte do seu empregador é acessório em relação a uma prestação de serviços executada pelo referido empregador neste Estado», ao passo que, no contexto da disponibilização, «a deslocação de trabalhadores para outro Estado‑Membro constitui o próprio objeto de uma prestação de serviços transnacional» ( 32 ).

40.

Consequentemente, o ponto de partida consiste em determinar se, em dada situação, a tónica é colocada na prestação de um serviço diferente da disponibilização de trabalhadores a uma empresa utilizadora ( 33 ). Na análise do «próprio objeto» do contrato, é essencial determinar se o contrato visa um resultado específico que possa ser distinguido da disponibilização de trabalhadores e se a remuneração do prestador do serviço se baseia nesse resultado. É evidente que o preço de certos serviços se baseia essencialmente no volume de trabalho (em alguns casos, traduzido no número de trabalhadores) necessário para os prestar. Porém, tal não significa necessariamente que tenha existido disponibilização de trabalhadores, mesmo quando o contrato de prestação de serviços (ou a estimativa) menciona aquela informação. O que importa determinar é se o preço que o cliente aceita pagar constitui a contrapartida de um serviço claramente distinto da disponibilização de pessoal.

41.

Nas suas conclusões no processo Vicoplus e o., o advogado‑geral Y. Bot deu o exemplo de um contrato de prestação de serviços em que uma empresa especializada na instalação de equipamento informático (A) estabelecida num determinado Estado‑Membro se compromete a enviar os seus engenheiros para uma empresa (B) situada noutro Estado‑Membro para desenvolverem o sistema informático desta. Embora esse contrato envolva a circulação transnacional de trabalhadores, o seu objeto é a prestação de serviços informáticos (possivelmente associada ao fornecimento de equipamento eletrónico). Como tal, envolve um destacamento de trabalhadores ( 34 ). Imaginemos agora que A se compromete a enviar pessoal para trabalhar, durante um ano, numa empresa especializada no desenvolvimento de jogos eletrónicos (C), a fim de ajudar a desenvolver um novo jogo. C paga uma remuneração mensal a A, calculada com base num montante fixo por trabalhador e por dia de trabalho. O objeto do referido contrato é, sem dúvida, a colocação de determinados trabalhadores à disposição de C. Se estes trabalhadores executarem as suas tarefas sob o controlo e a direção de C ( 35 ), estamos claramente perante um caso de disponibilização de trabalhadores.

42.

O contrato de 2007 tinha por objeto o processamento (e acondicionamento) de carne ou a disponibilização de trabalhadores?

43.

Tendo em conta as informações disponíveis, não tenho grandes dúvidas de que a opção correta é a primeira. A Martin Meat comprometeu‑se a processar 25 meias carcaças de bovino por semana para a Alpenrind e a acondicioná‑las em embalagens de carne cortada em pedaços. Os consultores jurídicos alegaram, na audiência, que a Martin Meat determinou livremente o número de trabalhadores necessário para executar o contrato de 2007. Além disso, a remuneração da Martin Meat dependia da quantidade de carne processada. A Alpenrind tinha a faculdade de reduzir a remuneração se a carne fosse de má qualidade. Todos estes elementos tendem a confirmar que a circulação de trabalhadores húngaros em causa no processo principal não constituía o «próprio objeto» do contrato de 2007. Era acessória em relação à prestação de serviços de processamento e acondicionamento de carne à Alpenrind.

44.

A Comissão, apoiada na audiência pelo Governo húngaro, alega, no fundo, que a distinção entre a disponibilização e o destacamento de trabalhadores deve assentar na identificação da parte que suporta o risco económico nos termos do contrato ( 36 ). No seu entender, o facto de esse risco ser maioritariamente suportado pelo prestador de serviços indica geralmente que o contrato envolve um destacamento e não uma disponibilização de trabalhadores.

45.

Creio, porém, que esse não pode ser um parâmetro decisivo.

46.

É certo que, em regra, o prestador de serviços suporta o risco associado ao incumprimento total ou parcial, ou ao cumprimento defeituoso, do contrato. Não obstante, tal como alega acertadamente o Governo polaco, a natureza dos riscos económicos incorridos no contexto de um contrato de prestação de serviços e a sua distribuição entre as partes revelam mais sobre o mercado do serviço em causa e as condições estabelecidas pelas partes em cada contrato do que sobre a qualificação de uma situação como disponibilização de trabalhadores.

47.

Por conseguinte, por um lado, uma empresa que disponibiliza trabalhadores pode, ainda assim, suportar uma parte dos riscos associados à execução do contrato. Por exemplo, o contrato poderá estipular que, em caso de ausência do serviço de um trabalhador disponibilizado (por exemplo, por motivos de saúde), a empresa que disponibiliza recursos humanos deverá substituí‑lo a suas expensas ou, em alternativa, indemnizar a empresa utilizadora. Essa condição seria absolutamente irrelevante para o objeto do contrato, que é a disponibilização de trabalhadores.

48.

Por outro lado, o cliente poderá suportar riscos económicos substanciais relacionados com a execução de um contrato de prestação de serviços. Por exemplo, o contrato de 2007 poderia ter estipulado que a Alpenrind suportaria o risco de um possível atraso na produção causado pela indisponibilidade temporária dos trabalhadores da Martin Meat ou que a Alpenrind teria de comprar e segurar todo o equipamento necessário para o processamento e acondicionamento da carne ( 37 ). O simples facto de o cliente aceitar suportar determinados riscos económicos não alteraria, porém, o objeto do contrato, que — no meu entender — era a prestação de um serviço distinto da disponibilização de pessoal.

49.

Do mesmo modo, o facto de o contrato ser ou não executado nas instalações do cliente/empresa utilizadora e de, em caso afirmativo, ser ou não paga uma renda, o facto de o cliente/empresa utilizadora prestar ou não formação aos trabalhadores em causa e o facto de ser ou não o único cliente/empresa utilizadora no Estado‑Membro de acolhimento não são parâmetros decisivos para efeitos de distinção entre uma disponibilização e um destacamento. A presença ou a ausência de cada um destes fatores dependerá do mercado do serviço em causa e das cláusulas do contrato.

50.

Embora os trabalhadores disponibilizados a uma empresa utilizadora trabalhem frequentemente nas instalações desta e utilizem o seu equipamento, não tem de ser necessariamente assim. Imaginemos que a remuneração da Martin Meat se baseava numa determinada quantia por trabalhador e por dia de trabalho e que os seus trabalhadores estavam sob o controlo e a direção da Alpenrind, pelo que tinham sido disponibilizados a esta última empresa. Essa conclusão não seria afetada pelo facto de os trabalhadores em causa executarem o seu trabalho para a Alpenrind em instalações pertencentes à Martin Meat. Em contrapartida, os trabalhadores de um prestador de serviços que tenham sido destacados trabalham frequentemente nas instalações do cliente e utilizam as ferramentas e o equipamento deste.

51.

Do mesmo modo, o facto de o cliente/empresa utilizadora prestar formação aos trabalhadores em causa não é decisivo. A sua relevância dependerá da atividade em questão e das cláusulas do contrato. Por exemplo, é perfeitamente concebível que as partes num contrato de prestação de serviços que envolva o destacamento de trabalhadores estabeleçam que o cliente deverá prestar formação sobre medidas de saúde e segurança no local de trabalho ou sobre a sua história e estratégia comercial. Do mesmo modo, tanto a disponibilização como o destacamento são cenários possíveis quando o prestador de serviços/empresa que disponibiliza recursos humanos só tem um cliente/empresa utilizadora no Estado‑Membro de acolhimento, uma vez que esta situação poderá resultar, por exemplo, das capacidades do prestador de serviços/empresa que disponibiliza recursos humanos, da natureza dos serviços em causa ou simplesmente do facto de o prestador de serviços/empresa que disponibiliza recursos humanos (ainda) não ser conhecido no Estado‑Membro de acolhimento.

52.

O terceiro critério prende‑se com a questão de saber se o trabalhador «trabalha sob o controlo e a direção» da empresa utilizadora ( 38 ).

53.

No contexto da disponibilização, é a empresa utilizadora que organiza o trabalho, dá instruções aos trabalhadores em causa sobre o modo como devem executar as suas tarefas e controla o cumprimento dessas instruções ( 39 ). O Tribunal de Justiça deixou bem claro no acórdão Vicoplus e o. ( 40 ) que «[t]al é o corolário do facto de este trabalhador não efetuar o seu trabalho no âmbito de uma prestação de serviços executada pelo seu empregador no Estado‑Membro de acolhimento».

54.

Pode inferir‑se desta afirmação que o segundo e terceiro critérios estão intimamente relacionados. Normalmente, o objeto do contrato ajuda a identificar a parte a cujo controlo e direção os trabalhadores em causa estão sujeitos. Se a remuneração se basear essencialmente no volume de trabalho executado por cada trabalhador e não num serviço claramente distinto da disponibilização de trabalhadores, a empresa utilizadora recorrerá provavelmente à possibilidade de dar a esses trabalhadores instruções precisas sobre o modo como devem executar as suas tarefas e também de fiscalizar o cumprimento dessas instruções. Ao fazê‑lo, a empresa utilizadora estará simplesmente a tentar fazer o melhor uso possível do pessoal disponibilizado. Em contrapartida, se a remuneração for calculada por referência a um serviço distinto da disponibilização de pessoal, é muito provável que os trabalhadores permaneçam sob o controlo e a direção do prestador de serviços. Nesse caso, é o prestador de serviços, e não o cliente, que tem interesse em que os seus trabalhadores sejam utilizados da forma mais eficiente possível com vista a prestar o serviço em questão.

55.

Nesse contexto, é essencial distinguir entre o controlo e a direção dos próprios trabalhadores e a verificação, por parte do cliente, de que o contrato de prestação de serviços foi corretamente executado. Conforme salientam, com razão, os consultores jurídicos, é normal que um cliente verifique, de um modo ou de outro, se o serviço prestado está em conformidade com o contrato. Além disso, consoante as circunstâncias, um cliente poderá dar determinadas instruções aos trabalhadores do prestador de serviços sobre o modo como o contrato de prestação de serviços deve ser executado. Porém, essas instruções não significam que exista «direção» e «controlo» dos trabalhadores do prestador de serviços. Esses trabalhadores continuam subordinados ao prestador de serviços, que é a única entidade com o poder de tomar as medidas que considerar adequadas caso aqueles não executem as suas tarefas em conformidade com as instruções.

56.

No processo principal, resulta, em especial, do despacho de reenvio e das observações orais da Martin Meat que o encarregado da Alpenrind transmitia ao encarregado da Martin Meat instruções sobre a carne que devia ser processada e o modo como tal devia ser feito, e verificava se as embalagens de carne produzidas estavam em conformidade com essas instruções. A Alpenrind terá também fornecido informações sobre as regras de saúde e segurança que os trabalhadores da Martin Meat deveriam respeitar na execução das suas tarefas. Na audiência, a Martin Meat esclareceu que permaneceu responsável pela organização do trabalho e que o seu encarregado distribuía as tarefas pelos trabalhadores em causa, dando‑lhes instruções individuais em húngaro sobre o modo como a carne deveria ser processada e acondicionada (em conformidade com as instruções da Alpenrind) e fiscalizando o cumprimento dessas instruções. Não existe qualquer indicação de que a Alpenrind podia tomar medidas individuais em relação aos trabalhadores da Martin Meat. Segundo as informações ao dispor do Tribunal de Justiça, afigura‑se que as instruções da Alpenrind não prejudicavam os poderes de controlo e direção da Martin Meat sobre os seus trabalhadores.

57.

Em última análise, a apreciação da matéria de facto compete ao órgão jurisdicional nacional. Dito isto, tendo em conta os elementos ao dispor do Tribunal de Justiça, concluo, sem grande hesitação, que a circulação de trabalhadores em causa no processo principal constituía um destacamento [artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71] e não uma disponibilização [artigo 1.o, n.o 3, alínea c)].

58.

Se o Tribunal de Justiça subscrever o meu entendimento e o órgão jurisdicional nacional concluir, com base nos factos, que o contrato de 2007 envolvia um destacamento, e não uma disponibilização, de trabalhadores da Martin Meat junto da Alpenrind, as consequências merecem ser analisadas. Referi já que os consultores jurídicos erraram ao concluir que a existência do ponto 13 do anexo X ao Ato de Adesão de 2003 obstava a que a Áustria invocasse o ponto 2 desse anexo relativamente às atividades económicas não abrangidas pelos setores sensíveis enumerados no ponto 13. No entanto, esses consultores informaram corretamente a Martin Meat de que as autoridades austríacas não podiam exigir que os trabalhadores húngaros desta empresa fossem titulares de autorizações de trabalho para executarem o contrato de 2007 celebrado com a Alpenrind. Presumivelmente, daqui resultaria que — uma vez que a conclusão constante do parecer jurídico (desnecessidade de autorizações de trabalho) estava correta, ainda que parte dos argumentos expostos talvez fosse incorreta — os consultores jurídicos não incorreriam em responsabilidade civil.

59.

Não obstante, as autoridades austríacas aplicaram uma coima de 700000 euros à Alpenrind porque o pessoal da Martin Meat não possuía autorizações de trabalho, tendo essa coima sido paga pela Martin Meat, nos termos das cláusulas do contrato de 2007. A Alpenrind impugnou, sem sucesso, a legalidade da coima. Em especial, o Supremo Tribunal Administrativo austríaco, que julgou o recurso em última instância, não apresentou um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.o TFUE. Possivelmente, terá considerado que a questão de direito da União Europeia era um acte clair contra a Alpenrind (e, por associação, a Martin Meat).

60.

O resultado é extremamente infeliz. Se o Supremo Tribunal Administrativo tivesse apresentado um pedido de decisão prejudicial em conformidade com o espírito do artigo 267.o, n.o 3, TFUE, teria obtido atempadamente as orientações necessárias para decidir a favor da Alpenrind e a coima teria sido anulada. Como não o fez, a Martin Meat está obrigada a pagar uma coima de montante significativo que, neste caso, nunca deveria ter sido imposta, dado que a exigência de autorizações de trabalho ao pessoal da Martin Meat violava o anexo X do Ato de Adesão de 2003. A Martin Meat poderá agora ter de solicitar um parecer jurídico adequado na Áustria sobre a probabilidade de conseguir provar a responsabilidade extracontratual da Áustria perante os órgãos jurisdicionais austríacos, tendo em conta os fatores identificados na jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a responsabilidade por danos causados a particulares por uma violação do direito da União Europeia praticada por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância ( 41 ).

Conclusão

61.

À luz de todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Pesti Központi Kerületi Bíróság nos seguintes termos:

1)

A livre prestação de serviços e a definição de «serviços» nos artigos 56.° e 57.° TFUE (respetivamente) não se opunham a que, durante o período transitório previsto no capítulo 1, ponto 2, do anexo X ao Ato de Adesão de 2003, a República da Áustria sujeitasse a disponibilização no seu território, na aceção do artigo 1.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 96/71/CE, de trabalhadores de nacionalidade húngara à obtenção de uma autorização de trabalho.

2)

Para determinarem se um serviço que envolve a circulação temporária de trabalhadores constitui uma disponibilização de trabalhadores na aceção do artigo 1.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 96/71, ou um destacamento de trabalhadores na aceção do artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da mesma, com base nos critérios identificados pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão Vicoplus e o. (C‑307/09 a C‑309/09, EU:C:2011:64), as autoridades nacionais devem ter em consideração, em especial, se o contrato visa um resultado específico suscetível de ser distinguido da disponibilização de trabalhadores, se a remuneração tem por base esse resultado e quem efetivamente organiza o trabalho, dá instruções aos trabalhadores sobre o modo como devem executar as suas tarefas e verifica se estes estão a trabalhar de acordo com essas instruções.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Ato relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (a seguir «Ato de Adesão de 2003») (JO 2003, L 236, p. 33). Utilizarei a expressão «antigos Estados‑Membros» para designar os Estados que já pertenciam à União Europeia à data daquela adesão e a expressão «novos Estados‑Membros» para designar os Estados que aderiram à União Europeia em 1 de maio de 2004.

( 3 ) Acórdão Vicoplus e o. (C‑307/09 a C‑309/09, EU:C:2011:64).

( 4 ) V. n.o 29, infra.

( 5 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 1996, relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços (JO 1997, L 18, p. 1).

( 6 ) Os pontos 3, 4, 6 a 12 e 14 não são relevantes para o presente processo.

( 7 ) Regulamento do Conselho, de 15 de outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77). Esse regulamento foi revogado pelo Regulamento (UE) n.o 492/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativo à livre circulação dos trabalhadores na União (JO L 141, p. 1). Porém, este último regulamento não é relevante para o presente processo ratione temporis.

( 8 ) Esse regime é diferente dos limites específicos à livre prestação de serviços previstos no capítulo 2 do anexo X, respeitantes à Diretiva 97/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de março de 1997, relativa aos sistemas de indemnização dos investidores (JO L 84, p. 22), e à Diretiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de março de 2000, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e ao seu exercício (JO L 126, p. 1). Mais uma vez, esse capítulo não é relevante para o presente processo.

( 9 ) Uma vez que se afigura que o parecer jurídico não foi junto aos autos do processo nacional depositado junto do Tribunal de Justiça, baseei a minha narrativa no despacho de reenvio e nas observações apresentadas pelos consultores jurídicos.

( 10 ) V., por exemplo, a versão francesa («détacher, en tant qu’entreprise de travail intérimaire ou en tant qu’entreprise qui met un travailleur à disposition […]»), a versão neerlandesa («als uitzendbedrijf of als onderneming van herkomst, een werknemer ter beschikking stellen van een ontvangende onderneming […]»), a versão alemã («als Leiharbeitsunternehmen oder als einen Arbeitnehmer zur Verfügung stellendes Unternehmen einen Arbeitnehmer in ein verwendendes Unternehmen entsenden […]»), a versão italiana («distacchino, in quanto imprese di lavoro temporaneo o in quanto imprese che effettuano la cessione temporanea di lavoratori […]»), ou a versão sueca («I egenskap av företag för uthyrning av arbetskraft eller företag som ställer arbetskraft till förfogande […]») (o sublinhado é meu).

( 11 ) V., por exemplo, acórdão Profisa (C‑63/06, EU:C:2007:233, n.o 13 e jurisprudência referida).

( 12 ) Acórdão Profisa (EU:C:2007:233, n.o 14 e jurisprudência referida).

( 13 ) V., nesse sentido, acórdão Laval un Partneri (C‑341/05, EU:C:2007:809, n.o 59).

( 14 ) Estas disposições, que estão inseridas na parte I, título I, do Regulamento n.o 1612/68 («Do acesso ao emprego»), dizem respeito ao acesso ao próprio mercado de trabalho, ao passo que o título II (artigos 7.° a 9.°) incide sobre a igualdade de tratamento entre trabalhadores nacionais e trabalhadores migrantes, e o título III (artigos 10.° a 12.°) respeita às famílias dos trabalhadores. Os títulos II e III não estão abrangidos pelo regime transitório previsto no capítulo 1 do anexo X e, como tal, eram aplicáveis aos trabalhadores húngaros a partir de 1 de maio de 2004. V., por analogia, no que respeita às medidas transitórias estabelecidas na sequência da adesão da República Portuguesa à Comunidade, o acórdão Lopes da Veiga (9/88, EU:C:1989:346, n.os 9 e 10).

( 15 ) A mesma conclusão é válida para a circulação de trabalhadores da República Checa (capítulo 1 do anexo V), Estónia (capítulo 1 do anexo VI), Letónia (capítulo 1 do anexo VIII), Lituânia (capítulo 2 do anexo IX), Eslovénia (capítulo 2 do anexo XIII) e Eslováquia (capítulo 1 do anexo XIV).

( 16 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 27 e jurisprudência referida).

( 17 ) Acórdãos Vander Elst (C‑43/93, EU:C:1994:310, n.o 26), Comissão/Luxemburgo (C‑445/03, EU:C:2004:655, n.o 24) e Comissão/Áustria (C‑168/04, EU:C:2006:595, n.o 40).

( 18 ) Acórdãos Rush Portuguesa (C‑113/89, EU:C:1990:142, n.o 16) e Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 30).

( 19 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 31).

( 20 ) Acórdãos Rush Portuguesa (EU:C:1990:142, n.os 14 e 16) e Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 32).

( 21 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 41).

( 22 ) Acórdãos Lopes da Veiga (EU:C:1989:346, n.o 10) e Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 34 e a jurisprudência referida).

( 23 ) Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Vicoplus e o. (C‑307/09 a C‑309/09, EU:C:2010:510, n.o 71).

( 24 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 35). V. também as conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Vicoplus e o. (EU:C:2010:510, n.o 51).

( 25 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 51).

( 26 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.os 49 e 50).

( 27 ) V. acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 41).

( 28 ) V. n.os 4 a 7, supra.

( 29 ) V. n.o 30, supra.

( 30 ) Currie, S., Migration, Work and Citizenship in the Enlarged European Union (Ashgate, Farnham, 2008), pp. 21‑22.

( 31 ) V. n.o 31, supra.

( 32 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 46) (o sublinhado é meu).

( 33 ) Tal como acontece no processo principal, esse serviço pode consistir na execução de tarefas conducentes à produção de bens.

( 34 ) Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Vicoplus (EU:C:2010:510, n.o 65).

( 35 ) Sobre esta questão, v. n.os 52 a 56, infra.

( 36 ) Nas suas observações, as partes não esclarecem se este seria um (quarto) critério autónomo ou se faria parte do segundo critério identificado no acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64).

( 37 ) Não pretendo especular sobre a inclusão ou não destas cláusulas no contrato de 2007. Este facto não é do meu conhecimento e, em qualquer caso, o apuramento da matéria de facto compete ao órgão jurisdicional nacional. Estes exemplos servem unicamente para ilustrar os meus argumentos.

( 38 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.os 47 e 48). V. também o artigo 1.o, n.o 1 e o artigo 3.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2008/104/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa ao trabalho temporário (JO L 327, p. 9).

( 39 ) Conforme referiu o advogado‑geral Y. Bot nas suas conclusões no processo Vicoplus e o. (EU:C:2010:510, n.o 63), tem de existir «subordinação de facto do trabalhador em relação à empresa utilizadora, no que respeita à organização, execução e condições de trabalho».

( 40 ) Acórdão Vicoplus e o. (EU:C:2011:64, n.o 47).

( 41 ) V., entre outros, acórdãos Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:513, n.os 53 a 56) e Traghetti del Mediterraneo (C‑173/03, EU:C:2006:391, n.o 32).