Conclusões do Advogado-Geral

Conclusões do Advogado-Geral

1. O que constitui uma «prática comercial» na aceção da Diretiva 2005/29/CE (a seguir «Diretiva PCD»)? (2) Ou, mais especificamente, pode a comunicação de informação errada a um único consumidor ser considerada uma «prática comercial» nessa aceção? No presente caso, é esta, na essência, a questão para a qual o órgão jurisdicional de reenvio procura orientação. Nas observações que se seguem, enuncio as razões que sustentam uma resposta negativa à referida questão.

I – Quadro jurídico

2. O considerando 6 no preâmbulo da Diretiva PCD menciona o princípio da proporcionalidade. De acordo com esse princípio, a Diretiva protege os consumidores das consequências de práticas comerciais desleais se estas forem substanciais, reconhecendo embora que, em alguns casos, o impacto sobre os consumidores pode ser negligenciável.

3. O considerando 7 da Diretiva PCD enuncia:

«A presente diretiva refere‑se a práticas comerciais relacionadas com o propósito de influenciar diretamente as decisões de transação dos consumidores em relação a produtos [...]».

4. O considerando 9 da referida diretiva explica:

«A presente diretiva não prejudica as ações individuais intentadas por quem tenha sofrido um prejuízo provocado por uma prática comercial desleal. Também não prejudica as disposições da [UE] e nacionais relativas ao direito dos contratos […]»

5. O artigo 1.° da Diretiva PCD prevê:

«A presente diretiva tem por objetivo contribuir para o funcionamento correto do mercado interno e alcançar um elevado nível de defesa dos consumidores através da aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às práticas comerciais desleais que lesam os interesses económicos dos consumidores.»

6. O artigo 2.° da Diretiva PCD tem a seguinte redação:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva, entende‑se por:

[…]

d) ‘Práticas comerciais das empresas face aos consumidores’ (a seguir designadas também por ‘práticas comerciais’): qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing , por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores […]

[…]»

7. O artigo 3.° da Diretiva PCD prevê:

«1. A presente diretiva é aplicável às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores, tal como estabelecidas no artigo 5.°, antes, durante e após uma transação comercial relacionada com um produto.

2. A presente diretiva não prejudica o direito contratual e, em particular, as normas relativas à validade, à formação ou aos efeitos de um contrato.

[…]»

8. Nos termos do artigo 5.° da Diretiva PCD («Proibição de práticas comerciais desleais»):

«1. São proibidas as práticas comerciais desleais.

2. Uma prática comercial é desleal se:

a) For contrária às exigências relativas à diligência profissional,

e

b) Distorcer ou for suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico, em relação a um produto, do consumidor médio a que se destina ou que afeta, ou do membro médio de um grupo quando a prática comercial for destinada a um determinado grupo de consumidores.

[…]

4. Em especial, são desleais as práticas comerciais:

a) Enganosas, tal como definido nos artigos 6.° e 7.°,

ou

b) Agressivas, tal como definido nos artigos 8.° e 9.°

5. O anexo I inclui a lista das práticas comerciais que são consideradas desleais em quaisquer circunstâncias. A lista é aplicável em todos os Estados‑Membros e só pode ser alterada mediante revisão da presente diretiva.»

II – Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

9. Em abril de 2010, L. S. solicitou à UPC Magyarország (a seguir «UPC»), uma empresa prestadora de serviços de televisão por cabo, informações sobre o período de faturação exato a que se referia a fatura anual emitida em 2010, uma vez que a data não constava da fatura.

10. L. S. foi posteriormente informado de que a última fatura anual se referia ao período compreendido entre 11 de janeiro de 2010 e 10 de fevereiro de 2011. Para fazer coincidir o termo do contrato com o último dia de serviço já pago, L. S. solicitou a resolução do contrato com efeitos a partir de 10 de fevereiro de 2011. Contudo, o serviço só foi efetivamente desligado quatro dias depois, em 14 de fevereiro de 2011. Em 12 de março de 2011, foi emitida uma ordem de pagamento relativa aos montantes em atraso no valor de 5 243 HUF (cerca de 18 euros) correspondente a esses quatro dias, ou seja, entre 11 e 14 de fevereiro de 2011.

11. L. S. apresentou uma reclamação no Budapest Főváros Kormányhivatala Fogyasztóvédelmi Felügyelőségénél (Inspeção da defesa do consumidor, que faz parte da administração governamental de Budapeste capital, a seguir «autoridade de primeiro grau»), por considerar que lhe tinha sido prestada uma informação errada. Em resultado deste facto, o cliente não pôde fazer coincidir o termo do contrato com o último dia do período real de faturação, por forma a poder solicitar os serviços de outra empresa após a data da resolução do contrato. Assim, durante um período transitório, viu‑se obrigado a pagar as faturas de duas empresas.

12. Por decisão de 11 de julho de 2011, a autoridade de primeiro grau condenou a UPC no pagamento de uma multa de 25 000 HUF (aproximadamente 85 euros). Por decisão de 10 de outubro de 2011, o Nemzeti Fogyasztóvédelmi Hatóság (Instituto nacional de defesa do consumidor), na qualidade de autoridade de segundo grau, considerou a reclamação tinha fundamento, e confirmou a decisão da autoridade de primeiro grau.

13. Na sequência do recurso contencioso administrativo interposto pela UPC, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste) alterou a decisão do Instituto nacional de defesa do consumidor, e julgou improcedente o pedido de L. S. Especificamente, de acordo com essa sentença, a conduta da UPC não possuía caráter continuado. Um erro isolado de gestão, de caráter administrativo e relativo a um único cliente não pode ser considerado uma prática.

14. Nutrindo dúvidas quanto à adequada interpretação da Diretiva PCD, a Kúria, na apreciação judicial do recurso, decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões prejudiciais:

«1) Deve o artigo 5.° da [Diretiva PCD] ser interpretado no sentido de que, no caso das práticas comerciais enganosas previstas no artigo 5.°, n.° 4, desta diretiva, não se pode efetuar um exame distinto dos critérios estabelecidos no artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da [diretiva]?

2) Pode considerar‑se que uma comunicação de informação enganosa a um único consumidor constitui uma prática comercial na aceção da referida [d]iretiva?»

15. Foram apresentadas observações escritas no âmbito do presente processo pela UPC, o Governo húngaro e a Comissão, tendo todos apresentado alegações orais na audiência de 11 de setembro de 2014.

III – Análise

1. Observações preliminares

16. O presente processo está intimamente ligado ao acórdão do Tribunal CHS Tour Services (3) . Este acórdão constitui uma resposta à primeira das duas questões apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo. Mais especificamente, o Tribunal considerou que a Diretiva PCD deve ser interpretada no sentido de que, no caso de uma prática comercial preencher todos os critérios enunciados no artigo 6.°, n.° 1 desta diretiva para ser qualificada de prática enganosa para o consumidor, não é necessário verificar se essa prática é igualmente contrária às exigências da diligência profissional na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da mesma diretiva para que possa validamente ser considerada desleal e, como tal, proibida nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da referida diretiva (4) .

17. Na presente análise, debruçar‑me‑ei, por conseguinte, sobre a segunda questão (que, logicamente, é anterior à primeira), ou seja, se a comunicação de informação enganosa a um único consumidor constitui uma prática comercial na aceção da Diretiva PCD. Trata‑se de uma questão nova ainda não abordada pelo Tribunal de Justiça. Assim, o presente processo dá ao Tribunal a oportunidade de clarificar o âmbito de aplicação da diretiva.

2. O conceito de «práticas comerciais» compreende igualmente um ato isolado suscetível de prejudicar um único consumidor?

18. O Governo húngaro e a Comissão sustentam que «práticas comerciais», na aceção da Diretiva PCD, abrangem também um ato suscetível de prejudicar um único consumidor, como o que está em causa no processo principal, ou seja, a comunicação de informação errada a um único consumidor. O Governo húngaro, em particular, justifica o seu ponto de vista com base na necessidade de assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores. Esse objetivo é especificamente mencionado no artigo 1.° da Diretiva PCD e constitui um dos seus principais objetivos.

19. É verdade que a definição de «práticas comerciais» constante do artigo 2.° da Diretiva PCD é extremamente ampla. A expressão define «qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing , por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores».

20. Assim sendo, uma grande variedade de condutas que podem ter lugar antes da celebração de um contrato (como por exemplo uma conduta que afeta a decisão do consumidor de adquirir um determinado produto), ou em fases posteriores da relação contratual (como o tratamento de reclamações e os serviços pós‑venda) podem fazer parte do âmbito de aplicação da diretiva. Tal é demonstrado pela lista negra indicativa das práticas desleais, constante do Anexo I da Diretiva PCD. Nesse sentido, nada parece constar da Diretiva PCD que, à partida, exclua do seu âmbito de aplicação a prestação de informações erradas sobre questões como prazos de pagamento, condições de resolução de um contrato de consumo, ou outras informações relativas ao cumprimento do contrato. Seguramente que quanto mais lata for a interpretação do âmbito da diretiva, maior será a probabilidade de se alcançar um nível elevado de defesa do consumidor, conforme exigido pela diretiva.

21. Contudo, entendo que não é viável concluir do que precede que o alcance da Diretiva PCD também se estende a uma conduta — ainda que desleal ou enganosa ‑ que se destine exclusivamente a um único consumidor. São múltiplas as razões que fundamentam esta posição.

a) Os limites do que pode ser entendido pelo termo «prática»

22. Como observado supra , o texto da Diretiva PCD não exclui, de forma clara, do seu âmbito de aplicação um ato isolado destinado a um único consumidor. Porém, na minha opinião, o termo «prática» limita por definição os tipos de condutas passíveis de serem abrangidas pela diretiva. De facto, o pressuposto óbvio que determina a aplicação da diretiva à conduta do profissional na relação da empresa face ao consumidor («B2C») (tal como os comportamentos enunciados na lista do Anexo I) é que a conduta em questão constitua uma «prática».

23. Para que assim seja, considero que devem ser preenchidas uma ou ambas das seguintes condições: i) a conduta seja orientada para um grupo indeterminado de destinatários; ii) a conduta seja repetida relativamente a mais do que um consumidor. Caso contrário, a conduta em causa muito dificilmente se conjuga com o termo «prática» utilizado em todas as versões linguísticas da Diretiva (5) .

24. No que respeita à primeira condição (caso em que a conduta tem lugar apenas uma vez), a conduta em causa deve destinar‑se a um grupo indeterminado de consumidores. A ideia dominante de que a conduta imputada deve ter um grau de «relevância para o mercado» (6) pode ta mbém ser inferida dos artigos 5.° a 8.° da Diretiva PCD: todas essas disposições remetem para práticas comerciais que afetam o comportamento económico de um «consumidor médio» ou de um «membro médio de um grupo de consumidores». Como exemplo paradigmático desse tipo de prática pode referir‑se, naturalmente, um anúncio publicado num jornal ou revista, ou um letreiro numa loja, explicando a política de devoluções para todos os clientes (atuais ou potenciais). Embora diferente, é possível encontrar um exemplo muito próximo no CHS Tour Services . Estava em causa uma brochura publicitária contendo uma informação falsa. Muito embora a comunicação de informação falsa tenha ocorrido apenas uma vez, destinava‑se a um grupo indeterminado de potenciais consumidores, pelo que foi considerada sujeita à aplicação da Diretiva PCD (7) .

25. Em alternativa, quando a conduta não se destina a um grupo indeterminado de consumidores, mas antes a um consumidor individual, como no presente caso, o profissional terá de o repetir para que corresponda ao termo «prática» utilizado na Diretiva PCD. Por outras palavras, o comportamento em questão tem de ser reiterada e relativo a mais do que um consumidor. O facto de ser necessário que exista repetição da conduta em relação a mais do que um consumidor significa que a segunda condição se sobrepõe, em certa medida, à primeira.

26. No presente caso, estamos perante a comunicação de informação errada, num ato isolado, a um único consumidor e não a um grupo de consumidores. Embora caiba, em última análise, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, não parece haver nada que sugira que a prestação de informação errada por parte de funcionários da UPC ‑ que ocorreu em relação a L. S. — será um fenómeno recorrente. Na ausência de qualquer indicador objetivo nesse sentido, tenho dificuldade em entender como poderá um caso isolado de conduta desleal ‑ ou talvez, mais especificamente, enganosa ‑ constituir uma «prática comercial» na aceção da Diretiva PCD.

b) A Diretiva PCD e o direito contratual

27. Pondo de lado o significado do termo «prática», atribuo também especial importância ao artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva PCD. Esta disposição prevê especificamente que a Diretiva não prejudica o direito contratual. Isso reflete o raciocínio subjacente ao considerando 9 do preâmbulo da Diretiva.

28. No entanto, a abordagem sustentada pelas duas partes que apresentaram observações no presente processo em apoio de L. S., significa que a Diretiva PCD se aplica (para além do direito nacional dos contratos) a cada relação contratual individual. Esta premissa teria repercussões consideráveis em muitos aspetos. Sobretudo, diluiria a distinção entre direito privado e direito público e, em particular, a distinção entre as diversas sanções aplicáveis.

29. O objetivo da Diretiva PCD é estabelecer um mecanismo de controlo abrangente sobre a conduta «B2C» [empresa face ao consumidor] suscetível de afetar o comportamento económico dos consumidores. Com o propósito de garantir a eficácia desse controlo, a Diretiva exige aos Estados‑Membros que criem o quadro regulamentar necessário provido de ações inibitórias e multas destinadas a combater tais práticas (8) .

30. Contudo, importa ter presente que, nos termos do artigo 13.° da Diretiva PCD, as sanções que os Estados‑Membros devem estabelecer para condutas contrárias ao disposto na Diretiva assentam fortemente na esfera do direito público, sendo autónomos das vias de recurso contratuais. Não obstante, se o âmbito de aplicação da Diretiva PCD fosse alargado por forma a incluir uma conduta isolada, como ao que está em causa no processo principal, implicaria, na prática, a possibilidade de se impor a um profissional comerciante uma sanção de direito público (sob a forma de multa) por toda e qualquer violação contratual, para além de possíveis vias de recurso contratuais que assistem ao consumidor individual. Por outras palavras, seguindo a lógica das partes que apresentaram observações nesse sentido, toda e qualquer prática contratual negligente acarretaria automaticamente sanções de direito público.

31. Na minha opinião, esta atuação excederia claramente o necessário para assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores (9) . Na verdade, não se deverá esquecer que as sanções de direito público visam proteger o interesse público e, no presente processo, isto teria de corresponder aos interesses coletivos dos consumidores.

32. Infelizmente, a Diretiva PCD não limita explicitamente o seu âmbito de aplicação à proteção dos interesses coletivos dos consumidores. Contudo, como tem sido assinalado por vários analistas, a Diretiva visa a defesa dos interesses coletivos dos consumidores e não a garantia de reparação nos casos individuais (10) . A reparação em casos individuais é suportada pelas vias de recurso contratuais ao abrigo do direito (nacional) dos contratos. Posto isto, a Diretiva PCD pode, obviamente, ter um efeito multiplicador de litígios contratuais. O facto de um determinado tipo de comportamento ser considerado contrário à Diretiva PCD pode assumir relevância num litígio entre um profissional e um consumidor individual (para avaliar, por exemplo, a validade do contrato em causa nos termos das disposições aplicáveis do direito dos contratos (11) .

33. Neste contexto, cumpre também mencionar o artigo 11.° da Diretiva PCD. O referido artigo exige que os Estados‑Membros assegurem a existência de meios adequados e eficazes para lutar contra as práticas comerciais desleais, a fim de garantir o cumprimento das disposições da Diretiva no interesse dos consumidores. Acresce ainda que o artigo 11.° confere às pessoas ou organizações que, de acordo com a legislação nacional, tenham um interesse legítimo em combater as práticas comerciais desleais a possibilidade de intentar uma ação judicial para contestar práticas comerciais desleais ou submetê‑las a uma autoridade administrativa competente (12) .

34. No caso de o legislador pretender introduzir um conjunto adicional de sanções (de direito público) para cada situação de «negligência» contratual, a inclusão dessa disposição na Diretiva PCD parece paradoxal. Se a existência de uma prática comercial desleal fosse determinada numa base individual, seria desnecessário incluir na diretiva disposições específicas em matéria de supervisão coletiva das práticas comerciais desleais. Esta perspetiva é reforçada pelo disposto no artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2009/22/CE (13), que refere a Diretiva PCD como um dos instrumentos aprovados destinados a proteger os interesses coletivos dos consumidores.

35. Por último, gostaria de salientar que não se pode considerar desejável a aplicação, a pretexto da defesa do consumidor, da Diretiva PCD a questões que não fazem parte, claramente, do seu âmbito de aplicação. Assim, é meu entendimento que a conduta «B2C», como por exemplo, a comunicação de informação errada a um único consumidor não pode, na medida em que constitui um ato isolado, ser considerada uma «prática comercial», na aceção da Diretiva PCD.

IV – Conclusão

36. Face ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais apresentadas pela Kúria:

«A comunicação de informação enganosa a um único consumidor, na medida em que constitui um ato isolado, não pode ser considerada uma ‘prática comercial’, na aceção da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.° 2006/2004.»

(1) .

(2) — Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de maio de 2005 relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.° 2006/2004 («diretiva relativa às práticas comerciais desleais») (JO L 149, p. 22).

(3) — C‑435/11, EU:C:2013:574.

(4) — V. ibid ., n.° 48 e a parte decisória do acórdão.

(5) — Adotando a língua inglesa como exemplo, o substantivo «practice» [«prática»] é definido como «the habitual doing or carrying out of something» [maneira habitual de proceder ou realizar algo] no Shorter Oxford English Dictionary , 6 ª edição, Volume 2, Oxford University Press, Oxford: 2007, p. 2311.

(6) — V. Glöckner, J., «The Scope of Application of the UCP Directive — «I know what you did last Summer», 5(2010) International Review of Intellectual Property and Competition Law , pp. 570 a 592, na p. 589.

(7) — EU:C:2013:574, n.os 28 e segs.

(8) — Para efeitos de análise, v., por exemplo, Collins, H., «The Unfair Commercial Practices Directive», 4(1) 2005 European Review of Contract Law , pp. 417 a 441, nas pp. 424 e 425.

(9) — V., a este respeito, considerando 6 do Preâmbulo da Diretiva PCD.

(10) — Wilhelmsson, T., «Scope of the Directive», em Howells, G., Micklitz, H. W., e Wilhelmsson, T., European Fair Trading Law: The Unfair Commercial Practices Directive , pp. 49 a 81, na p. 72; Glöckner, op. cit., p. 589; Keirsbilck, B., The New European Law of Unfair Commercial Practices and Competition Law , Hart Publishing, Oxford: 2011, pp. 247 e 248.

(11) — V., por exemplo, Pereničová and Perenič (C‑453/10, EU:C:2012:144, n.° 40) sobre a incidência des práticas comerciais desleais na validade do contrato. Para uma apreciação académica, v., com mais pormenor, Wilhemsson, op. cit., p. 73; e Collins, op. cit., p. 424.

(12) — De referir igualmente que em vários momentos do texto, a Diretiva PCD refere «consumidores» no plural: «interesses económicos dos consumidores», «decisões de transação dos consumidores». Embora, no presente caso, o uso do plural dificilmente possa ser considerado um argumento decisivo, a escolha do plural pode, no entanto, ser interpretada como uma forma de reforçar a ideia de que estamos perante a proteção dos interesses coletivos.

(13) — Diretiva 2009/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de abril de 2009 relativa às ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores (JO L 110, p. 30).


CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 23 de outubro de 2014 ( 1 )

Processo C‑388/13

UPC Magyarország kft

contra

Nemzeti Fogyasztóvédelmi Hatóság

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Kúria (Hungria)]

«Práticas comerciais desleais — Informação errada prestada por uma empresa de telecomunicações a um assinante dos respetivos serviços que o fez incorrer em despesas adicionais — Conceito de ‘práticas comerciais’ — Papel do direito contratual»

1. 

O que constitui uma «prática comercial» na aceção da Diretiva 2005/29/CE (a seguir «Diretiva PCD»)? ( 2 ) Ou, mais especificamente, pode a comunicação de informação errada a um único consumidor ser considerada uma «prática comercial» nessa aceção? No presente caso, é esta, na essência, a questão para a qual o órgão jurisdicional de reenvio procura orientação. Nas observações que se seguem, enuncio as razões que sustentam uma resposta negativa à referida questão.

I – Quadro jurídico

2.

O considerando 6 no preâmbulo da Diretiva PCD menciona o princípio da proporcionalidade. De acordo com esse princípio, a Diretiva protege os consumidores das consequências de práticas comerciais desleais se estas forem substanciais, reconhecendo embora que, em alguns casos, o impacto sobre os consumidores pode ser negligenciável.

3.

O considerando 7 da Diretiva PCD enuncia:

«A presente diretiva refere‑se a práticas comerciais relacionadas com o propósito de influenciar diretamente as decisões de transação dos consumidores em relação a produtos [...]».

4.

O considerando 9 da referida diretiva explica:

«A presente diretiva não prejudica as ações individuais intentadas por quem tenha sofrido um prejuízo provocado por uma prática comercial desleal. Também não prejudica as disposições da [UE] e nacionais relativas ao direito dos contratos […]»

5.

O artigo 1.o da Diretiva PCD prevê:

«A presente diretiva tem por objetivo contribuir para o funcionamento correto do mercado interno e alcançar um elevado nível de defesa dos consumidores através da aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às práticas comerciais desleais que lesam os interesses económicos dos consumidores.»

6.

O artigo 2.o da Diretiva PCD tem a seguinte redação:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva, entende‑se por:

[…]

d)

‘Práticas comerciais das empresas face aos consumidores’ (a seguir designadas também por ‘práticas comerciais’): qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing, por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores […]

[…]»

7.

O artigo 3.o da Diretiva PCD prevê:

«1.   A presente diretiva é aplicável às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores, tal como estabelecidas no artigo 5.o, antes, durante e após uma transação comercial relacionada com um produto.

2.   A presente diretiva não prejudica o direito contratual e, em particular, as normas relativas à validade, à formação ou aos efeitos de um contrato.

[…]»

8.

Nos termos do artigo 5.o da Diretiva PCD («Proibição de práticas comerciais desleais»):

«1.   São proibidas as práticas comerciais desleais.

2.   Uma prática comercial é desleal se:

a)

For contrária às exigências relativas à diligência profissional,

e

b)

Distorcer ou for suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico, em relação a um produto, do consumidor médio a que se destina ou que afeta, ou do membro médio de um grupo quando a prática comercial for destinada a um determinado grupo de consumidores.

[…]

4.   Em especial, são desleais as práticas comerciais:

a)

Enganosas, tal como definido nos artigos 6.° e 7.°,

ou

b)

Agressivas, tal como definido nos artigos 8.° e 9.°

5.   O anexo I inclui a lista das práticas comerciais que são consideradas desleais em quaisquer circunstâncias. A lista é aplicável em todos os Estados‑Membros e só pode ser alterada mediante revisão da presente diretiva.»

II – Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

9.

Em abril de 2010, L. S. solicitou à UPC Magyarország (a seguir «UPC»), uma empresa prestadora de serviços de televisão por cabo, informações sobre o período de faturação exato a que se referia a fatura anual emitida em 2010, uma vez que a data não constava da fatura.

10.

L. S. foi posteriormente informado de que a última fatura anual se referia ao período compreendido entre 11 de janeiro de 2010 e 10 de fevereiro de 2011. Para fazer coincidir o termo do contrato com o último dia de serviço já pago, L. S. solicitou a resolução do contrato com efeitos a partir de 10 de fevereiro de 2011. Contudo, o serviço só foi efetivamente desligado quatro dias depois, em 14 de fevereiro de 2011. Em 12 de março de 2011, foi emitida uma ordem de pagamento relativa aos montantes em atraso no valor de 5243 HUF (cerca de 18 euros) correspondente a esses quatro dias, ou seja, entre 11 e 14 de fevereiro de 2011.

11.

L. S. apresentou uma reclamação no Budapest Főváros Kormányhivatala Fogyasztóvédelmi Felügyelőségénél (Inspeção da defesa do consumidor, que faz parte da administração governamental de Budapeste capital, a seguir «autoridade de primeiro grau»), por considerar que lhe tinha sido prestada uma informação errada. Em resultado deste facto, o cliente não pôde fazer coincidir o termo do contrato com o último dia do período real de faturação, por forma a poder solicitar os serviços de outra empresa após a data da resolução do contrato. Assim, durante um período transitório, viu‑se obrigado a pagar as faturas de duas empresas.

12.

Por decisão de 11 de julho de 2011, a autoridade de primeiro grau condenou a UPC no pagamento de uma multa de 25000 HUF (aproximadamente 85 euros). Por decisão de 10 de outubro de 2011, o Nemzeti Fogyasztóvédelmi Hatóság (Instituto nacional de defesa do consumidor), na qualidade de autoridade de segundo grau, considerou a reclamação tinha fundamento, e confirmou a decisão da autoridade de primeiro grau.

13.

Na sequência do recurso contencioso administrativo interposto pela UPC, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste) alterou a decisão do Instituto nacional de defesa do consumidor, e julgou improcedente o pedido de L. S. Especificamente, de acordo com essa sentença, a conduta da UPC não possuía caráter continuado. Um erro isolado de gestão, de caráter administrativo e relativo a um único cliente não pode ser considerado uma prática.

14.

Nutrindo dúvidas quanto à adequada interpretação da Diretiva PCD, a Kúria, na apreciação judicial do recurso, decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 5.o da [Diretiva PCD] ser interpretado no sentido de que, no caso das práticas comerciais enganosas previstas no artigo 5.o, n.o 4, desta diretiva, não se pode efetuar um exame distinto dos critérios estabelecidos no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), da [diretiva]?

2)

Pode considerar‑se que uma comunicação de informação enganosa a um único consumidor constitui uma prática comercial na aceção da referida [d]iretiva?»

15.

Foram apresentadas observações escritas no âmbito do presente processo pela UPC, o Governo húngaro e a Comissão, tendo todos apresentado alegações orais na audiência de 11 de setembro de 2014.

III – Análise

1. Observações preliminares

16.

O presente processo está intimamente ligado ao acórdão do Tribunal CHS Tour Services ( 3 ). Este acórdão constitui uma resposta à primeira das duas questões apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo. Mais especificamente, o Tribunal considerou que a Diretiva PCD deve ser interpretada no sentido de que, no caso de uma prática comercial preencher todos os critérios enunciados no artigo 6.o, n.o 1 desta diretiva para ser qualificada de prática enganosa para o consumidor, não é necessário verificar se essa prática é igualmente contrária às exigências da diligência profissional na aceção do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), da mesma diretiva para que possa validamente ser considerada desleal e, como tal, proibida nos termos do artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva ( 4 ).

17.

Na presente análise, debruçar‑me‑ei, por conseguinte, sobre a segunda questão (que, logicamente, é anterior à primeira), ou seja, se a comunicação de informação enganosa a um único consumidor constitui uma prática comercial na aceção da Diretiva PCD. Trata‑se de uma questão nova ainda não abordada pelo Tribunal de Justiça. Assim, o presente processo dá ao Tribunal a oportunidade de clarificar o âmbito de aplicação da diretiva.

2. O conceito de «práticas comerciais» compreende igualmente um ato isolado suscetível de prejudicar um único consumidor?

18.

O Governo húngaro e a Comissão sustentam que «práticas comerciais», na aceção da Diretiva PCD, abrangem também um ato suscetível de prejudicar um único consumidor, como o que está em causa no processo principal, ou seja, a comunicação de informação errada a um único consumidor. O Governo húngaro, em particular, justifica o seu ponto de vista com base na necessidade de assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores. Esse objetivo é especificamente mencionado no artigo 1.o da Diretiva PCD e constitui um dos seus principais objetivos.

19.

É verdade que a definição de «práticas comerciais» constante do artigo 2.o da Diretiva PCD é extremamente ampla. A expressão define «qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing, por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores».

20.

Assim sendo, uma grande variedade de condutas que podem ter lugar antes da celebração de um contrato (como por exemplo uma conduta que afeta a decisão do consumidor de adquirir um determinado produto), ou em fases posteriores da relação contratual (como o tratamento de reclamações e os serviços pós‑venda) podem fazer parte do âmbito de aplicação da diretiva. Tal é demonstrado pela lista negra indicativa das práticas desleais, constante do Anexo I da Diretiva PCD. Nesse sentido, nada parece constar da Diretiva PCD que, à partida, exclua do seu âmbito de aplicação a prestação de informações erradas sobre questões como prazos de pagamento, condições de resolução de um contrato de consumo, ou outras informações relativas ao cumprimento do contrato. Seguramente que quanto mais lata for a interpretação do âmbito da diretiva, maior será a probabilidade de se alcançar um nível elevado de defesa do consumidor, conforme exigido pela diretiva.

21.

Contudo, entendo que não é viável concluir do que precede que o alcance da Diretiva PCD também se estende a uma conduta — ainda que desleal ou enganosa ‑ que se destine exclusivamente a um único consumidor. São múltiplas as razões que fundamentam esta posição.

a) Os limites do que pode ser entendido pelo termo «prática»

22.

Como observado supra, o texto da Diretiva PCD não exclui, de forma clara, do seu âmbito de aplicação um ato isolado destinado a um único consumidor. Porém, na minha opinião, o termo «prática» limita por definição os tipos de condutas passíveis de serem abrangidas pela diretiva. De facto, o pressuposto óbvio que determina a aplicação da diretiva à conduta do profissional na relação da empresa face ao consumidor («B2C») (tal como os comportamentos enunciados na lista do Anexo I) é que a conduta em questão constitua uma «prática».

23.

Para que assim seja, considero que devem ser preenchidas uma ou ambas das seguintes condições: i) a conduta seja orientada para um grupo indeterminado de destinatários; ii) a conduta seja repetida relativamente a mais do que um consumidor. Caso contrário, a conduta em causa muito dificilmente se conjuga com o termo «prática» utilizado em todas as versões linguísticas da Diretiva ( 5 ).

24.

No que respeita à primeira condição (caso em que a conduta tem lugar apenas uma vez), a conduta em causa deve destinar‑se a um grupo indeterminado de consumidores. A ideia dominante de que a conduta imputada deve ter um grau de «relevância para o mercado» ( 6 ) pode também ser inferida dos artigos 5.° a 8.° da Diretiva PCD: todas essas disposições remetem para práticas comerciais que afetam o comportamento económico de um «consumidor médio» ou de um «membro médio de um grupo de consumidores». Como exemplo paradigmático desse tipo de prática pode referir‑se, naturalmente, um anúncio publicado num jornal ou revista, ou um letreiro numa loja, explicando a política de devoluções para todos os clientes (atuais ou potenciais). Embora diferente, é possível encontrar um exemplo muito próximo no CHS Tour Services. Estava em causa uma brochura publicitária contendo uma informação falsa. Muito embora a comunicação de informação falsa tenha ocorrido apenas uma vez, destinava‑se a um grupo indeterminado de potenciais consumidores, pelo que foi considerada sujeita à aplicação da Diretiva PCD ( 7 ).

25.

Em alternativa, quando a conduta não se destina a um grupo indeterminado de consumidores, mas antes a um consumidor individual, como no presente caso, o profissional terá de o repetir para que corresponda ao termo «prática» utilizado na Diretiva PCD. Por outras palavras, o comportamento em questão tem de ser reiterada e relativo a mais do que um consumidor. O facto de ser necessário que exista repetição da conduta em relação a mais do que um consumidor significa que a segunda condição se sobrepõe, em certa medida, à primeira.

26.

No presente caso, estamos perante a comunicação de informação errada, num ato isolado, a um único consumidor e não a um grupo de consumidores. Embora caiba, em última análise, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, não parece haver nada que sugira que a prestação de informação errada por parte de funcionários da UPC ‑ que ocorreu em relação a L. S. — será um fenómeno recorrente. Na ausência de qualquer indicador objetivo nesse sentido, tenho dificuldade em entender como poderá um caso isolado de conduta desleal ‑ ou talvez, mais especificamente, enganosa ‑ constituir uma «prática comercial» na aceção da Diretiva PCD.

b) A Diretiva PCD e o direito contratual

27.

Pondo de lado o significado do termo «prática», atribuo também especial importância ao artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva PCD. Esta disposição prevê especificamente que a Diretiva não prejudica o direito contratual. Isso reflete o raciocínio subjacente ao considerando 9 do preâmbulo da Diretiva.

28.

No entanto, a abordagem sustentada pelas duas partes que apresentaram observações no presente processo em apoio de L. S., significa que a Diretiva PCD se aplica (para além do direito nacional dos contratos) a cada relação contratual individual. Esta premissa teria repercussões consideráveis em muitos aspetos. Sobretudo, diluiria a distinção entre direito privado e direito público e, em particular, a distinção entre as diversas sanções aplicáveis.

29.

O objetivo da Diretiva PCD é estabelecer um mecanismo de controlo abrangente sobre a conduta «B2C» [empresa face ao consumidor] suscetível de afetar o comportamento económico dos consumidores. Com o propósito de garantir a eficácia desse controlo, a Diretiva exige aos Estados‑Membros que criem o quadro regulamentar necessário provido de ações inibitórias e multas destinadas a combater tais práticas ( 8 ).

30.

Contudo, importa ter presente que, nos termos do artigo 13.o da Diretiva PCD, as sanções que os Estados‑Membros devem estabelecer para condutas contrárias ao disposto na Diretiva assentam fortemente na esfera do direito público, sendo autónomos das vias de recurso contratuais. Não obstante, se o âmbito de aplicação da Diretiva PCD fosse alargado por forma a incluir uma conduta isolada, como ao que está em causa no processo principal, implicaria, na prática, a possibilidade de se impor a um profissional comerciante uma sanção de direito público (sob a forma de multa) por toda e qualquer violação contratual, para além de possíveis vias de recurso contratuais que assistem ao consumidor individual. Por outras palavras, seguindo a lógica das partes que apresentaram observações nesse sentido, toda e qualquer prática contratual negligente acarretaria automaticamente sanções de direito público.

31.

Na minha opinião, esta atuação excederia claramente o necessário para assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores ( 9 ). Na verdade, não se deverá esquecer que as sanções de direito público visam proteger o interesse público e, no presente processo, isto teria de corresponder aos interesses coletivos dos consumidores.

32.

Infelizmente, a Diretiva PCD não limita explicitamente o seu âmbito de aplicação à proteção dos interesses coletivos dos consumidores. Contudo, como tem sido assinalado por vários analistas, a Diretiva visa a defesa dos interesses coletivos dos consumidores e não a garantia de reparação nos casos individuais ( 10 ). A reparação em casos individuais é suportada pelas vias de recurso contratuais ao abrigo do direito (nacional) dos contratos. Posto isto, a Diretiva PCD pode, obviamente, ter um efeito multiplicador de litígios contratuais. O facto de um determinado tipo de comportamento ser considerado contrário à Diretiva PCD pode assumir relevância num litígio entre um profissional e um consumidor individual (para avaliar, por exemplo, a validade do contrato em causa nos termos das disposições aplicáveis do direito dos contratos ( 11 ).

33.

Neste contexto, cumpre também mencionar o artigo 11.o da Diretiva PCD. O referido artigo exige que os Estados‑Membros assegurem a existência de meios adequados e eficazes para lutar contra as práticas comerciais desleais, a fim de garantir o cumprimento das disposições da Diretiva no interesse dos consumidores. Acresce ainda que o artigo 11.o confere às pessoas ou organizações que, de acordo com a legislação nacional, tenham um interesse legítimo em combater as práticas comerciais desleais a possibilidade de intentar uma ação judicial para contestar práticas comerciais desleais ou submetê‑las a uma autoridade administrativa competente ( 12 ).

34.

No caso de o legislador pretender introduzir um conjunto adicional de sanções (de direito público) para cada situação de «negligência» contratual, a inclusão dessa disposição na Diretiva PCD parece paradoxal. Se a existência de uma prática comercial desleal fosse determinada numa base individual, seria desnecessário incluir na diretiva disposições específicas em matéria de supervisão coletiva das práticas comerciais desleais. Esta perspetiva é reforçada pelo disposto no artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2009/22/CE ( 13 ), que refere a Diretiva PCD como um dos instrumentos aprovados destinados a proteger os interesses coletivos dos consumidores.

35.

Por último, gostaria de salientar que não se pode considerar desejável a aplicação, a pretexto da defesa do consumidor, da Diretiva PCD a questões que não fazem parte, claramente, do seu âmbito de aplicação. Assim, é meu entendimento que a conduta «B2C», como por exemplo, a comunicação de informação errada a um único consumidor não pode, na medida em que constitui um ato isolado, ser considerada uma «prática comercial», na aceção da Diretiva PCD.

IV – Conclusão

36.

Face ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais apresentadas pela Kúria:

«A comunicação de informação enganosa a um único consumidor, na medida em que constitui um ato isolado, não pode ser considerada uma ‘prática comercial’, na aceção da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004.»


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de maio de 2005 relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 («diretiva relativa às práticas comerciais desleais») (JO L 149, p. 22).

( 3 ) C‑435/11, EU:C:2013:574.

( 4 ) V. ibid., n.o 48 e a parte decisória do acórdão.

( 5 ) Adotando a língua inglesa como exemplo, o substantivo «practice» [«prática»] é definido como «the habitual doing or carrying out of something» [maneira habitual de proceder ou realizar algo] no Shorter Oxford English Dictionary, 6 a edição, Volume 2, Oxford University Press, Oxford: 2007, p. 2311.

( 6 ) V. Glöckner, J., «The Scope of Application of the UCP Directive — «I know what you did last Summer», 5(2010) International Review of Intellectual Property and Competition Law, pp. 570 a 592, na p. 589.

( 7 ) EU:C:2013:574, n.os 28 e segs.

( 8 ) Para efeitos de análise, v., por exemplo, Collins, H., «The Unfair Commercial Practices Directive», 4(1) 2005 European Review of Contract Law, pp. 417 a 441, nas pp. 424 e 425.

( 9 ) V., a este respeito, considerando 6 do Preâmbulo da Diretiva PCD.

( 10 ) Wilhelmsson, T., «Scope of the Directive», em Howells, G., Micklitz, H. W., e Wilhelmsson, T., European Fair Trading Law: The Unfair Commercial Practices Directive, pp. 49 a 81, na p. 72; Glöckner, op. cit., p. 589; Keirsbilck, B., The New European Law of Unfair Commercial Practices and Competition Law, Hart Publishing, Oxford: 2011, pp. 247 e 248.

( 11 ) V., por exemplo, Pereničová and Perenič (C‑453/10, EU:C:2012:144, n.o 40) sobre a incidência des práticas comerciais desleais na validade do contrato. Para uma apreciação académica, v., com mais pormenor, Wilhemsson, op. cit., p. 73; e Collins, op. cit., p. 424.

( 12 ) De referir igualmente que em vários momentos do texto, a Diretiva PCD refere «consumidores» no plural: «interesses económicos dos consumidores», «decisões de transação dos consumidores». Embora, no presente caso, o uso do plural dificilmente possa ser considerado um argumento decisivo, a escolha do plural pode, no entanto, ser interpretada como uma forma de reforçar a ideia de que estamos perante a proteção dos interesses coletivos.

( 13 ) Diretiva 2009/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de abril de 2009 relativa às ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores (JO L 110, p. 30).