CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MELCHIOR WATHELET

apresentadas em 25 de fevereiro de 2014 ( 1 )

Processos apensos C‑129/13 e C‑130/13

Kamino International Logistics BV (C‑129/13),e

Datema Hellmann Worldwide Logistics BV (C‑130/13)

contra

Staatssecretaris van Financiën

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

«Cobrança de uma dívida aduaneira — Direito de defesa — Princípio do respeito dos direitos de defesa — Efeito direto»

I – Introdução

1.

Os processos submetidos ao Tribunal de Justiça têm por objeto os direitos de defesa, nomeadamente, do direito de ser ouvido no âmbito de um procedimento administrativo.

2.

Com as suas decisões de reenvio de 22 de fevereiro de 2013, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 18 de março de 2013, o Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos), interroga, em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça acerca da aplicabilidade direta do princípio do respeito dos direitos de defesa. Em caso de resposta afirmativa, pergunta se o direito de ser ouvido deve ser considerado infringido uma vez que a pessoa singular ou coletiva em causa apenas teve oportunidade de manifestar a sua posição no âmbito de um recurso administrativo, ou seja, após a decisão inicial ter sido adotada. Por último, questiona o Tribunal de Justiça acerca das consequências jurídicas de uma eventual infração do princípio do respeito dos direitos de defesa e das circunstâncias suscetíveis de as influenciar.

II – Quadro jurídico

A – Direito da União

1. Carta dos direitos fundamentais da União Europeia

3.

O artigo 41.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), sob a epígrafe «Direito a uma boa administração», dispõe o seguinte nos seus n.os 1 e 2:

«1.   Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável.

2.   Este direito compreende, nomeadamente:

a)

o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente;

[...]»

4.

O artigo 51.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação» prevê o seguinte no seu n.o 1:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.»

2. Regulamento (CEE) n.o 2913/92

5.

Os artigos 220.° e 221.° do Regulamento (CEE) n.o 2913/92 do Conselho de 12 de outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (a seguir «CAC») ( 2 ), estão incluídos no capítulo 3, secção 1, sob a epígrafe «Registo de liquidação e comunicação ao devedor do montante dos direitos».

6.

O artigo 220.o, n.o 1, do CAC estabelece que:

«Sempre que o registo de liquidação do montante de direitos resultante de uma dívida aduaneira não tenha sido efetuado em conformidade com o disposto nos artigos 218.° e 219.° ou tenha sido efetuado num nível inferior ao montante legalmente devido, o registo de liquidação do montante de direitos a cobrar ou da parte por cobrar deverá efetuar‑se no prazo de dois dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras se tenham apercebido dessa situação e em que possam calcular o montante legalmente devido e determinar o devedor (registo de liquidação a posteriori). Este prazo pode ser prorrogado nos termos do artigo 219.o».

7.

O artigo 221.o do CAC prevê que:

«1.   O montante dos direitos deve ser comunicado ao devedor, de acordo com modalidades adequadas, logo que o respetivo registo de liquidação seja efetuado.

[...]

3.   A comunicação ao devedor não se pode efetuar após o termo de um prazo de três anos a contar da data de constituição da dívida aduaneira. Este prazo é suspenso a partir do momento em que for interposto um recurso na aceção do artigo 243.o, até ao termo do processo de recurso da dívida aduaneira.

[...]»

8.

Os artigos 243.° a 245.° do CAC estão incluídos no título VIII, sob a epígrafe «Direito de recurso».

9.

O artigo 243.o do CAC dispõe o seguinte:

«1.   Todas as pessoas têm o direito de interpor recurso das decisões tomadas pelas autoridades aduaneiras ligadas à aplicação da legislação aduaneira e lhe digam direta e individualmente respeito.

Tem igualmente o direito de interpor recurso qualquer pessoa que, tendo solicitado uma decisão relativa à aplicação da legislação aduaneira junto das autoridades aduaneiras, delas não obtenha uma decisão no prazo fixado no n.o 2 do artigo 6.o

O recurso será interposto no Estado‑Membro em que a decisão foi tomada ou solicitada.

2.   O direito de recurso pode ser exercido:

a)

Numa primeira fase, perante a autoridade aduaneira designada para esse efeito, pelos Estados‑Membros;

b)

Numa segunda fase, perante uma instância independente, que pode ser uma autoridade judiciária ou um órgão especializado equivalente, nos termos das disposições em vigor nos Estados‑Membros».

10.

O artigo 244.o do CAC prevê o seguinte:

«A interposição de recurso não tem efeito suspensivo da execução da decisão contestada.

Todavia, as autoridades aduaneiras suspenderão, total ou parcialmente, a execução dessa decisão sempre que tenham motivos fundamentados para pôr em dúvida a conformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira ou que seja de recear um prejuízo irreparável para o interessado.

Quando a decisão contestada der origem à aplicação de direitos de importação ou de direitos de exportação, a suspensão da execução dessa decisão fica sujeita à existência ou à constituição de uma garantia. Contudo, essa garantia pode não ser exigida quando possa suscitar, por força da situação do devedor, graves dificuldades de natureza económica ou social».

11.

O artigo 245.o do CAC estabelece que:

«As disposições relativas à aplicação do procedimento de recurso serão adotadas pelos Estados‑Membros.»

B – Direito neerlandês

12.

Segundo o artigo 4:8, n.o 1, da Lei geral em matéria administrativa (Algemene wet bestuursrecht, a seguir «Awb»), antes de tomar uma decisão que irá previsivelmente causar prejuízo a um interessado que não requereu essa decisão, a Administração dar‑lhe‑á oportunidade de ser ouvido, se, por um lado, a referida decisão tiver por base elementos sobre factos e interesses respeitantes ao interessado e, por outro, esses elementos não tiverem sido transmitidos pelo próprio interessado.

13.

O artigo 4:12, n.o 1, da Awb tem a seguinte redação:

«O órgão administrativo pode não aplicar o disposto nos artigos 4:7 e 4:8 quando tomar uma decisão no sentido do estabelecimento de uma obrigação ou de um direito de caráter financeiro se:

a)

for possível apresentar uma reclamação ou interpor um recurso administrativo dessa decisão, e

b)

as consequências negativas da decisão puderem ser totalmente eliminadas em resultado da reclamação ou do recurso.»

14.

O artigo 6:22 da Awb tem a seguinte redação:

«A decisão que é objeto de uma reclamação ou de um recurso pode, apesar da violação de uma norma jurídica escrita ou não escrita ou de um princípio geral de direito, ser mantida pelo órgão que se pronuncia sobre a reclamação ou o recurso, caso seja demonstrado que essa violação da norma ou do princípio não prejudicou os interessados.»

15.

O artigo 7:2 da Awb está redigido nos seguintes termos:

«1.   Antes de se pronunciar sobre a reclamação, o órgão administrativo deve permitir que o interessado seja ouvido.

2.   Em qualquer caso, o órgão administrativo informa o autor da reclamação, assim como os interessados que, no âmbito da preparação da decisão, manifestaram a sua posição.»

16.

As decisões administrativas podem, em seguida, ser objeto de recurso contencioso, com possibilidade de recurso.

III – Matéria de facto, processual principal e questões prejudiciais

A – Matéria de facto que está na base dos pedidos de decisão prejudicial

17.

Em cada um dos processos principais pendentes no órgão jurisdicional nacional, concretamente, a Kamino International Logistics BV, no processo C‑129/13, e a Datema Hellmann Worldwide Logistics BV, no processo C‑130/13 (a seguir «interessados»), um despachante aduaneiro apresentou em 2002 e em 2003, mediante mandato conferido pela mesma empresa, declarações para a introdução em livre prática de determinadas mercadorias, descritas como «toldos de jardim/tendas para festas e laterais». Os interessados declararam estas mercadorias na posição 6601 10 00 («guarda‑sóis de jardim e artefactos semelhantes») da Nomenclatura Combinada (a seguir «NC»). As autoridades aduaneiras cobraram direitos aduaneiros à taxa de 4,7%, correspondente a essa posição.

18.

Posteriormente, as autoridades aduaneiras neerlandesas efetuaram no mandante dos interessados uma inspeção para averiguar a exatidão dessa classificação pautal. Na sequência desta inspeção, a autoridade neerlandesa competente, a Inspeção Tributária, concluiu que a referida classificação era incorreta e que as mercadorias em causa deviam ser classificadas na posição 6306 99 00 da NC («tendas e artigos para acampamento»), à qual é aplicável uma taxa mais elevada (12,2%).

19.

Tendo em conta a diferença das taxas aplicáveis às duas posições referidas, a Inspeção Tributária, por decisão de 2 de abril de 2005, procedeu à cobrança a posteriori dos direitos aduaneiros adicionais (que, em ambos os casos, corresponde a um montante de cerca de 10000 euros). Para o efeito, cada um dos interessados recebeu um aviso de liquidação (a seguir «ADL»), emitido nos termos do artigo 220.o do CAC.

20.

Os interessados não tiveram a possibilidade de apresentar os seus argumentos antes da emissão desses ADL.

B – Tramitação do procedimento administrativo e judicial

21.

Os interessados apresentaram uma reclamação dos referidos ADL na Inspeção Tributária que, apesar de ter permitido que se pronunciassem, indeferiu as reclamações.

22.

O Rechtbank te Haarlem negou provimento aos recursos que os interessados interpuseram desta decisão da Inspeção Tributária. Em sede de recurso, o Gerechtshof te Amsterdam confirmou a decisão do Rechtbank te Haarlem, uma vez que impunha aos interessados o dever de pagarem as suas obrigações em matéria de ADL.

23.

Em seguida, os interessados interpuseram recurso no Hoge Raad der Nederlanden. Foi neste âmbito que se suscitaram as questões prejudiciais.

24.

Nas suas decisões de reenvio, o Hoge Raad der Nederlanden recorda que o Gerechtshof te Amsterdam considerou, em sede de recurso, que a Inspeção Tributária tinha violado o princípio do respeito dos direitos de defesa na medida em que não tinha permitido que, antes da emissão dos ADL, os interessados se manifestassem sobre os elementos que fundamentavam a cobrança a posteriori dos direitos aduaneiros.

25.

No entanto, assinala que nem o CAC nem o direito nacional aplicável preveem disposições processuais que obriguem as autoridades aduaneiras, antes de efetuarem uma comunicação de uma dívida aduaneira nos termos do artigo 221.o, n.o 1, do CAC, a permitir que o devedor de direitos aduaneiros se pronuncie sobre os elementos em que é fundamentada a cobrança a posteriori.

26.

Neste contexto, o Hoge Raad der Nederlanden questiona, em primeiro lugar, se o princípio do respeito dos direitos de defesa pode ser diretamente aplicável pelo órgão jurisdicional nacional. Em seguida, se a resposta a esta questão for afirmativa, pretende saber se é verdade que, conforme concluiu o Gerechtshof te Amsterdam, o princípio do respeito dos direitos de defesa (especialmente o direito de ser ouvido que deles é parte integrante), foi violado quando os interessados, apesar de não terem tido a possibilidade de apresentar os seus argumentos antes da primeira decisão da Inspeção Tributária, tiveram oportunidade de defender a sua posição na reclamação e no recurso. Por último, o Hoge Raad der Nederlanden pergunta ao Tribunal de Justiça quais são consequências jurídicas da violação do princípio dos direitos de defesa e se estas devem ser determinadas em conformidade com o direito nacional ou nos termos do direito da União. De forma mais precisa, e no caso de estas consequências jurídicas serem determinadas pelo direito da União, o Hoge Raad der Nederlanden pretende saber se, em caso de violação do princípio do respeito dos direitos de defesa, o órgão jurisdicional nacional está obrigado a anular a decisão impugnada ou se pode, na sua apreciação, ter em conta o facto de que se a violação em causa não tivesse ocorrido, a decisão teria sido idêntica.

C – Questões prejudiciais

27.

Nestas circunstâncias, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, formuladas em termos idênticos em cada um dos processos apensados:

«1)

O princípio previsto no direito da União segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa é suscetível de aplicação direta pelo órgão jurisdicional nacional?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

a)

O princípio previsto no direito da União segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa deve ser interpretado no sentido de que não é observado se o destinatário de uma proposta de decisão não tiver sido efetivamente ouvido antes de a administração ter tomado uma medida lesiva a seu respeito, não obstante na fase administrativa (de reclamação) subsequente, que antecede a impugnação judicial da decisão nos tribunais nacionais, lhe ter sido dada a oportunidade de se pronunciar?

b)

As consequências jurídicas da violação do princípio previsto no direito da União segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa são fixadas pelo direito nacional?

3)

Em caso de resposta negativa à segunda questão, alínea b: que circunstâncias pode o órgão jurisdicional nacional tomar em consideração, ao determinar aquelas consequências jurídicas? Pode, nomeadamente, ter em conta se ficou ou não demonstrado que o processo teria tido um desfecho diferente se a administração não tivesse violado o princípio previsto no direito da União do respeito dos direitos de defesa?»

IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

28.

Os pedidos de decisão prejudicial deram entrada no Tribunal de Justiça em 18 de março de 2013. Por decisão de 24 de abril de 2013, o presidente do Tribunal de Justiça ordenou a apensação dos processos.

29.

Os interessados, os Governos neerlandês, belga, grego e espanhol, assim como a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Na audiência de 15 de janeiro de 2014, os interessados, os Governos neerlandês, belga e grego, assim como a Comissão, apresentaram alegações.

V – Análise jurídica

A – Quanto à primeira questão prejudicial

30.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o princípio do respeito dos direitos de defesa pode ser diretamente aplicável pelo órgão jurisdicional nacional.

31.

É verdade que «os direitos de defesa, que incluem o direito de ser ouvido [...], figuram entre os direitos fundamentais que fazem parte integrante da ordem jurídica da União e são consagrados pela Carta» ( 3 ).

32.

Além disso, foi no âmbito de um processo relativo ao procedimento de recuperação a posteriori de direitos aduaneiros sobre a importação que o Tribunal de Justiça precisou que, por força deste princípio, «os destinatários de decisões que afetam de modo sensível os seus interesses devem ter a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão» ( 4 ). Dito de outro modo, «[o] direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efetiva, o seu ponto de vista no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses» ( 5 ).

33.

Por outro lado, «[o] direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente» passou a estar expressamente incluído, pelo artigo 41.o, n.o 2, da Carta, no direito a uma boa administração.

34.

Uma vez que não é possível contestar que, no caso em apreço, está em causa um processo relativo à cobrança a posteriori de direitos aduaneiros e, por conseguinte, à aplicação do direito da União, o artigo 41.o da Carta deve ser respeitado pelos Estados‑Membros, em conformidade com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

35.

Quanto ao papel do órgão jurisdicional nacional, o Tribunal de Justiça teve oportunidade de declarar, no acórdão Sopropé, já referido, que lhe compete «certificar‑se de que o prazo [destinado a recolher as observações dos interessados] individualmente fixado pela Administração corresponde à situação particular da pessoa ou da empresa em causa e que o mesmo lhes permitiu exercer os seus direitos de defesa, no respeito do princípio da efetividade» ( 6 ).

36.

Por conseguinte, considero que resulta do exposto que, não só as administrações nacionais têm a obrigação de respeitar os direitos de defesa quando aplicam o direito da União, mas também que, a fim de evitar que estes direitos sejam letra morta ou puramente formais, os interessados devem poder invocá‑los diretamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais ( 7 ).

B – Quanto à segunda questão prejudicial, alínea a)

37.

A segunda questão prejudicial divide‑se em duas subquestões.

38.

A segunda questão, alínea a), visa saber se os direitos de defesa do destinatário de uma decisão são violados se este não tiver sido ouvido antes da tomada de decisão (no caso em apreço, o ADL), mesmo que possa fazer valer a sua posição na fase de reclamação administrativa subsequente. A segunda questão, alínea b), é relativa às consequências jurídicas de uma violação do princípio do respeito dos direitos de defesa. Esta subquestão diz respeito à mesma temática que a terceira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Por conseguinte, irei posteriormente apreciá‑las em conjunto e, agora, limitarei a minha exposição à segunda questão, alínea a).

39.

Todavia, antes desta apreciação, gostaria de abordar uma questão amplamente discutida na audiência e referida pelo órgão jurisdicional de reenvio: trata‑se da questão de saber se o procedimento que decorre entre o ADL e a decisão sobre a reclamação apresentada com base na Awb constitui um procedimento único (neste caso os direitos de defesa do destinatário da decisão, por definição única, teriam sido necessariamente respeitados) ou se, em contrapartida, inclui duas fases e duas decisões, estando a segunda dependente da apresentação de reclamação da primeira (nesta caso coloca‑se a questão do respeito dos direitos de defesa, uma vez que o destinatário das decisões só foi ouvido após a decisão inicial e a sua reclamação).

40.

Ainda que a autoridade administrativa seja a mesma durante todo o procedimento (apesar de o representante do Governo neerlandês ter referido na audiência que esta autoridade podia recorrer a outra instância, mas sob a sua competência e a sua autoridade), inclino‑me claramente para a segunda parte da alternativa.

41.

Com efeito, a emissão e o envio do ADL constituem uma decisão com efeitos jurídicos próprios que impõem ao destinatário o dever de pagar, no caso em apreço, direitos aduaneiros adicionais. Ora, estes efeitos são definitivos se o destinatário, que nesta fase não foi ouvido, não tiver apresentado reclamação. É apenas no âmbito da eventual reclamação que a autoridade administrativa competente deverá ouvir o interessado, efetuar uma reapreciação completa do processo e adotar uma nova decisão ou confirmar o ADL impugnado.

42.

Além disso, resulta da apreciação do direito da União e do direito nacional aplicáveis que a reclamação não tem efeito suspensivo automático, de modo que o pagamento dos direitos aduaneiros continua a ser exigível. A possibilidade de requerer a suspensão (e, segundo as declarações do representante do Governo neerlandês na audiência, existe uma circular ministerial que impõe o seu deferimento, exceto nos casos de fraude) em nada altera o facto de o ADL constituir uma decisão com efeitos jurídicos autónomos.

43.

Por conseguinte, esta hipótese constitui a base do raciocínio que irei expor nas considerações seguintes.

1. Objetivo prosseguido pelo direito de ser ouvido

44.

Para responder à questão submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden, importa, antes de mais, recordar o objetivo prosseguido pelo princípio do respeito dos direitos de defesa, especialmente pelo direito de ser ouvido.

45.

Segundo o Tribunal de Justiça, «[a] regra segundo a qual deve ser dada ao destinatário de uma decisão lesiva dos seus interesses a possibilidade de apresentar as suas observações antes de esta ser tomada tem por finalidade permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes. A fim de assegurar uma proteção efetiva da pessoa ou da empresa em causa, essa regra tem, designadamente, por objeto permitir que tal empresa ou tal pessoa corrija um erro ou invoque determinados elementos relativos à sua situação pessoal, que militam no sentido de a decisão ser ou não tomada ou de que a mesma tenha determinado conteúdo» ( 8 ).

46.

Dito de outra forma, «[o] direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efetiva, o seu ponto de vista no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses» ( 9 ).

47.

O Tribunal de Justiça já explicitou o alcance do direito de ser ouvido no processo Gerlach ( 10 ), relativo ao procedimento de trânsito na União. Segundo o Tribunal de Justiça, resulta da legislação aplicável à época dos factos ( 11 ) que o Estado‑Membro da estância de partida apenas pode efetuar a cobrança dos direitos sobre a importação se tiver indicado previamente ao responsável principal que este dispunha de um prazo de três meses para apresentar as provas requeridas e se estas não tinham sido apresentadas no referido prazo. O Tribunal de Justiça considerou que, nestas condições, o referido prazo não podia ser concedido, pela primeira vez, no momento de um procedimento de reclamação da decisão das autoridades competentes de proceder à cobrança dos direitos de importação ( 12 ). Com efeito, o Tribunal de Justiça descreveu o direito do responsável principal como sendo aquele que consiste em «dar a conhecer de forma útil o seu ponto de vista quanto à regularidade da operação de trânsito antes da adoção da decisão de cobrança de que é destinatário e que afeta de forma sensível os seus interesses» ( 13 ).

48.

Decorre desta jurisprudência que o facto de conceder ao destinatário de uma decisão que lhe causa prejuízo o direito de defender a sua posição após a adoção da referida decisão, não respeita nem o direito de ser ouvido nem os direitos de defesa.

49.

Todavia, segundo jurisprudência igualmente assente, «os direitos fundamentais, como o princípio do respeito do direito de defesa, não constituem prerrogativas absolutas, mas podem comportar restrições, na condição de que estas correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituam, à luz da finalidade prosseguida, uma intervenção desmedida e intolerável que atente contra a própria substância dos direitos assim garantidos» ( 14 ). Também no acórdão Dokter e o., já referido, o Tribunal de Justiça precisou ainda que tal restrição «só pode constituir uma intervenção desmedida e intolerável que atente contra a própria substância dos direitos de defesa se os interessados forem privados da possibilidade de contestar as referidas medidas num processo posterior e de fazer valer utilmente o seu ponto de vista no quadro desse processo» ( 15 ).

2. Restrição ao princípio do direito de ser ouvido

50.

Para responder à questão de saber se a restrição ao direito de ser ouvido originada pelo procedimento iniciado pelo Reino dos Países Baixos preenche as condições previstas no acórdão Dokter e o., já referido, importa ter presente, por um lado, as condições obrigatórias impostas pelo próprio direito da União para a tomada em consideração a posteriori dos direitos que resultam de uma dívida aduaneira e, por outro, todo o procedimento administrativo, conforme organizado pela legislação nacional.

a) Prazos fixados pelo CAC

51.

O artigo 220.o, n.o 1, do CAC dispõe que, sempre que o registo de liquidação do montante de direitos resultante de uma dívida aduaneira não tenha sido efetuado em conformidade com o disposto nos seus artigos 218.° e 219.° ou tenha sido efetuado num nível inferior ao montante legalmente devido, o registo de liquidação do montante de direitos a cobrar ou da parte por cobrar deverá efetuar‑se no prazo de dois dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras se tenham apercebido dessa situação e em que possam calcular o montante legalmente devido e determinar o devedor. O artigo 221.o do CAC acrescenta que montante dos direitos deve ser comunicado ao devedor logo que o respetivo registo de liquidação seja efetuado.

52.

Este prazo de dois dias, imperativo, afigura‑se dificilmente compatível com a obrigação de ouvir o interessado antes da decisão de liquidação do montante dos direitos a cobrar.

53.

A adequação deste prazo com o princípio do respeito dos direitos de defesa foi, aliás, já discutida num processo de incumprimento que envolvia a República Italiana ( 16 ). Embora o Tribunal de Justiça tenha considerado que o princípio do respeito dos direitos de defesa se aplicava num procedimento de cobrança a posteriori, completou, no entanto, esta afirmação com uma reserva segundo a qual o referido princípio «não pode, em contrapartida [...] permitir que um Estado‑Membro viole a sua obrigação de apurar, nos prazos previstos na regulamentação comunitária, o direito [da União] sobre os recursos próprios» ( 17 ).

54.

Por conseguinte, neste acórdão, o Tribunal de Justiça optou por fazer referência ao princípio de uma reserva. Resulta desta formulação que, apesar de ser verdade que o princípio do direito de defesa deve ser respeitado, não pode conduzir à violação dos prazos impostos aos Estados‑Membros pela legislação aduaneira da União.

55.

Consciente da limitação dos direitos de defesa provocada por essa reserva, o Tribunal de Justiça atenuou‑a através da declaração de que, «[a]lém disso, importa recordar que o registo de liquidação e a comunicação dos direitos aduaneiros devidos, bem como a inscrição dos recursos próprios, não impedem o devedor de contestar, nos termos dos artigos 243.° e seguintes do Código Aduaneiro, a obrigação que lhe é imputada, e de apresentar todos os argumentos disponíveis» ( 18 ).

56.

O próprio legislador da União parece estar consciente da dificuldade dos Estados‑Membros ouvirem o interessado antes da liquidação do montante dos direitos a cobrar.

57.

Com efeito, por um lado, o artigo 22.o, n.o 6, do Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União (revisto) ( 19 ), passou a prever expressamente que, «[a]ntes de tomarem qualquer decisão suscetível de ter consequências adversas para o requerente, as autoridades aduaneiras devem comunicar ao requerente as razões em que tencionam fundamentar a sua decisão, dando‑lhe a oportunidade de apresentar os seus pontos de vista num prazo fixado a contar da data em que é recebida ou se considera que tenha sido recebida a comunicação». Além disso, o considerando 27 deste regulamento precisa que esta obrigação é necessária por força da Carta. Por outro lado, segundo o artigo 105.o, n.o 3, do referido regulamento, o registo de liquidação do montante dos direitos de importação ou de exportação exigíveis deve ser efetuado, quando as disposições pertinentes sejam aplicáveis ( 20 ), no prazo de 14 dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras «possam determinar o montante dos direitos de importação ou de exportação em questão e tomar uma decisão» ( 21 ).

b) Caraterísticas do procedimento administrativo nacional em causa

58.

No caso em apreço, o procedimento administrativo é organizado pela Awb. O princípio, previsto no artigo 4:8 da Awb, pretende que os órgãos da administração, antes de tomarem uma decisão que possa causar prejuízo a um interessado que não a requereu, permitam que este se pronuncie sobre a decisão prevista.

59.

No entanto, nos termos do artigo 4:12 da Awb, este princípio não se aplica às decisões com caráter financeiro se, por um lado, puder ser apresentada uma reclamação da decisão e se, por outro, as consequências desfavoráveis puderem ser totalmente eliminadas em resultado do recurso.

60.

No caso em apreço, estas duas condições afiguram‑se reunidas.

61.

Com efeito, os interessados tiveram a oportunidade de requerer a reapreciação da decisão ao órgão administrativo que a tomou (antes de poderem interpor um recurso contencioso com possibilidade de recurso).

62.

Ora, segundo o Governo neerlandês, esta reapreciação administrativa é efetuada ex nunc, ou seja, com base nas disposições legais e nos factos relevantes tal como se apresentavam no momento em que a decisão sobre a reclamação foi adotada. Por conseguinte, as consequências negativas da decisão recorrida poderiam ser eliminadas em resultado do procedimento de reclamação.

63.

Além disso, em conformidade com o artigo 7:2 da Awb, «[a]ntes de se pronunciar sobre a reclamação, o órgão administrativo permite que o interessado seja ouvido».

64.

No entanto, observo que, segundo o artigo 244.o, primeiro parágrafo, do CAC, a interposição de recurso não tem efeito suspensivo da execução da decisão contestada. É certo que o segundo parágrafo do referido artigo atenua a regra, uma vez que autoriza as autoridades aduaneiras a suspender, total ou parcialmente, a execução da referida decisão. Todavia, esta suspensão apenas é possível se as autoridades aduaneiras tiverem motivos fundamentados para questionar a conformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira ou se for de recear um prejuízo irreparável para o interessado. Por outro lado, o artigo 244.o, terceiro parágrafo, do CAC, impõe, neste caso, a constituição de uma garantia (sob reserva de graves dificuldades de natureza económica ou social para o devedor).

65.

Segundo o Governo neerlandês, as eventuais consequências negativas da decisão controvertida poderiam, não obstante, ser eliminadas a posteriori, na medida em que o pagamento poderia ser diferido em caso de reclamação e a decisão suspendida enquanto se aguarda o resultado da reclamação (e do recurso) por força das normas nacionais.

66.

Contudo, conforme já referi, o representante do Governo neerlandês afirmou na audiência que esta suspensão não era automática, devendo ser requerida pelo destinatário do ADL impugnado, na sua reclamação. Por outro lado, resulta igualmente das suas declarações que, embora a regra geral seja a concessão da suspensão, esta concessão apenas está prevista numa circular ministerial.

67.

Sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio (que, no seu pedido de decisão prejudicial, não referiu esta circular), tal norma, por definição suscetível de ser alterada a qualquer momento, não se afigura, em meu entender, capaz de suspender de modo suficientemente automático os efeitos jurídicos autónomos do ADL até à sua eventual alteração, especialmente a obrigação de pagamento dos direitos aduaneiros adicionais.

c) Conclusão sobre a segunda questão, alínea a)

68.

No caso em apreço, o destinatário do ADL não foi ouvido antes da adoção de uma decisão que lhe causa prejuízo mas o artigo 7:2 da Awb prevê expressamente que, antes de se pronunciar sobre a reclamação, o órgão administrativo deve permitir que o interessado seja ouvido.

69.

A necessidade de distinguir os direitos consagrados, por um lado, pelo artigo 41.o, da Carta (contencioso administrativo), e, por outro, pelo artigo 47.o, da Carta (contencioso judicial), é, além disso, respeitada, uma vez que a audição do interessado é efetivamente organizada no âmbito do procedimento administrativo, e não apenas no decurso de um recurso jurisdicional.

70.

Por conseguinte, não estamos perante um caso em que, retomando os termos do acórdão Dokter e o., já referido: «os interessados [teriam sido] privados da possibilidade de contestar [a decisão controvertida] num processo posterior e de fazer valer utilmente o seu ponto de vista no quadro desse processo» ( 22 ).

71.

Todavia, considero que estes elementos não são suficientes para constituírem uma restrição justificada ao princípio do respeito dos direitos de defesa, pelos três motivos seguintes.

72.

Em primeiro lugar, não entendo as razões que poderiam ser invocadas como objetivo de interesse geral justificativo da inexistência de audição prévia. As únicas exigências de prazos que resultam da legislação da União não se afiguram, a este respeito, suscetíveis de ser admitidas como tais.

73.

Em seguida, a decisão adotada sem audição do destinatário só pode ser objeto de uma nova decisão administrativa por iniciativa deste.

74.

Por último e principalmente, este procedimento de reclamação não tem efeito suspensivo automático. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta caraterística assume uma importância decisiva na apreciação de uma eventual justificação da restrição do direito de ser ouvido antes de ser tomada uma decisão que causa prejuízo.

75.

No seu acórdão Textdata Software ( 23 ), o Tribunal de Justiça decidiu, nomeadamente, que «a aplicação de uma sanção inicial de 700 euros sem notificação prévia nem a possibilidade de ser ouvido antes de a sanção ser aplicada não parece suscetível de afetar o conteúdo essencial do direito fundamental em causa, uma vez que a dedução de oposição fundamentada da decisão de aplicação da sanção pecuniária a torna imediatamente inaplicável e inicia um processo comum em cujo âmbito o direito de ser ouvido pode ser respeitado» (itálico meu).

76.

No caso em apreço, apesar de a segunda condição estar satisfeita (o destinatário é ouvido no âmbito do procedimento de reclamação), a primeira exigência (a inaplicabilidade imediata do ato que causa prejuízo em caso de recurso) não se verifica.

77.

Neste contexto, considero que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal viola o princípio do respeito dos direitos de defesa do administrado, especialmente o direito de ser ouvido.

78.

Caso o Tribunal de Justiça não concorde com a minha análise, não será necessário responder à segunda questão, alínea b), nem à terceira questão, na medida em que são relativas às consequências jurídicas de uma violação do princípio dos direitos de defesa.

C – Quanto à segunda questão, alínea b), e à terceira questão

79.

Com a segunda questão, alínea b), e a terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que esclareça se, por um lado, as consequências jurídicas da violação do princípio do respeito dos direitos de defesa por parte da administração são, ou não, determinadas pelo direito nacional e, por outro, se assim não for, que circunstâncias podem ser tidas em conta pelo órgão jurisdicional nacional no âmbito da sua apreciação. Na sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende expressamente que seja tomada em consideração a situação em que o resultado do processo decisório teria sido idêntico se o direito violado tivesse sido respeitado.

80.

Estas questões são respondidas de forma clara, precisa e inequívoca no acórdão G. e R., já referido. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou:

«35

A obrigação de respeitar os direitos de defesa dos destinatários de decisões que afetem sensivelmente os seus interesses incumbe, em princípio, às Administrações dos Estados‑Membros, sempre que estas tomem decisões abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União. Quando, como no presente caso, nem as condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa […], nem as consequências da violação destes direitos são fixadas pelo direito da União, estas condições e estas consequências são regidas pelo direito nacional, desde que as medidas adotadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares ou as empresas em situações de direito nacional comparáveis (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos de defesa conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) [...].

36

No entanto, ainda que seja possível aos Estados‑Membros permitirem o exercício dos direitos de defesa destes nacionais segundo as mesmas modalidades que as adotadas para regular as situações internas, estas devem ser conformes com o direito da União e não pôr, designadamente, em causa o efeito útil da Diretiva 2008/115.

[...]

38

À luz das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, importa salientar que, segundo o direito da União, uma violação dos direitos de defesa, especialmente do direito de ser ouvido, só justifica a anulação da decisão adotada no final do procedimento administrativo em causa se, não se verificando tal irregularidade, o procedimento pudesse conduzir a um resultado diferente [...]» ( 24 ).

81.

A regra não é nova. Esta foi já a solução adotada pelo Tribunal de Justiça no processo Distillers Company/Comissão ( 25 ), no qual a recorrente alegou, nomeadamente, que a autoridade competente não tinha tomado em consideração todos os argumentos de recurso invocados na fase oral, nem vários complementos à resposta que deu à comunicação de acusações da Comissão. Contudo, no seu acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que não era «necessário analisar [estas] irregularidades processuais» e que «só sucederia de outro modo se existisse a possibilidade de sem essas irregularidades no processo administrativo se obter um resultado diferente» ( 26 ).

82.

Na medida em que no processo que deu origem ao acórdão G. e R., o Tribunal de Justiça manteve esta solução apesar de se tratar de uma medida tão restritiva da liberdade das pessoas como a prorrogação de seis para dezoito meses de detenção de um estrangeiro que aguarda o regresso ao seu país, não imagino que possa ser de outro modo no âmbito de um procedimento relativo a questões estritamente financeiras.

83.

Por outro lado, assinalo que, no caso em apreço, a decisão administrativa relativa à reclamação, assim como as sentenças dos órgãos jurisdicionais de primeira instância e de recurso, confirmaram a decisão inicial, o que ocorreu após os interessados terem apresentado os seus argumentos.

84.

Atendendo a estas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão, alínea b), submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, que as condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa, e as consequências da violação destes direitos, são regidos pelo direito nacional, desde que as medidas decretadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares em situações de direito nacional comparáveis (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade).

85.

A transposição desta solução à matéria aduaneira impõe‑se na medida em que nos termos do artigo 245.o do CAC, que remete expressamente para o direito nacional, «[a]s disposições relativas à aplicação do procedimento de recurso serão adotadas pelos Estados‑Membros».

86.

Todavia, na medida em que o efeito pleno do direito da União deve ser garantido, sugiro ainda ao Tribunal de Justiça que, na resposta à terceira questão, declare ao órgão jurisdicional de reenvio que, segundo o direito da União, uma violação dos direitos de defesa — especialmente do direito de ser ouvido — só justifica a anulação da decisão adotada no final do procedimento administrativo em causa se, não se verificando tal irregularidade, o procedimento pudesse conduzir a um resultado diferente.

87.

Esta solução impõe‑se tanto mais que, no caso em apreço, os próprios interessados admitem que o procedimento de reclamação não teria conduzido a um resultado diferente se tivessem sido ouvidos antes da adoção da decisão controvertida, na medida em que não contestam a classificação pautal estabelecida pela Inspeção Tributária. Conforme afirmei anteriormente, a decisão administrativa relativa à reclamação e as sentenças dos órgãos jurisdicionais de primeira instância e de recurso confirmaram a decisão inicial.

VI – Conclusão

88.

Tendo em consideração o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden do seguinte modo:

«1)

O princípio segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa pode ser invocado diretamente, pelos particulares, nos órgãos jurisdicionais nacionais.

2)

a)

A legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que não permite ao destinatário de uma decisão que lhe causa prejuízo ser ouvido pela administração antes da adoção da decisão, não obstante na fase administrativa subsequente lhe ser dada essa oportunidade, apesar de este recurso não suspender automaticamente a decisão que lhe causa prejuízo, viola o princípio do respeito dos direitos de defesa do administrado, especialmente o direito de ser ouvido.

2)

b)

As condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa, e as consequências da violação destes direitos, são regidos pelo direito nacional, desde que as medidas decretadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares em situações de direito nacional comparáveis (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade).

3)

Uma vez que o órgão jurisdicional nacional tem a obrigação de garantir o efeito pleno do direito da União, deve, quando avalia as consequências de uma violação dos direitos de defesa, especialmente do direito de ser ouvido, ter em conta o facto de que tal violação só justifica a anulação da decisão adotada no final do procedimento administrativo em causa se, não se verificando tal irregularidade, este procedimento pudesse conduzir a um resultado diferente.»


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO L 302, p. 1, regulamento conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 2700/2000 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de novembro de 2000 (JO L 311, p. 17).

( 3 ) Acórdão de 10 de setembro de 2013, G. e R. (C‑383/13 PPU, n.o 32). V., igualmente, neste sentido, acórdão de 18 de julho de 2013, Comissão e o./Kadi (C‑584/10 P, C‑593/10 P e C‑595/10 P, n.o 99).

( 4 ) Acórdão de 18 de dezembro de 2008, Sopropé (C-349/07, Colet., p. I-10369, n.o 37).

( 5 ) Acórdão de 22 de novembro de 2012, M. (C‑277/11, n.o 87, e jurisprudência referida).

( 6 ) Acórdão Sopropé, já referido (n.o 44).

( 7 ) Tal como resulta da posição que tomei no processo que deu origem ao acórdão G. e R., já referido, relativo à Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO L 348, p. 98). V., n.o 52 das minhas conclusões neste processo.

( 8 ) Acórdão Sopropé, já referido (n.o 49); itálico meu.

( 9 ) Acórdão M., já referido (n.o 87 e jurisprudência referida); itálico meu.

( 10 ) Acórdão de 8 de março de 2007, Gerlach (C-44/06, Colet., p. I-2071).

( 11 ) Regulamento (CEE) n.o 222/77 do Conselho, de 13 de dezembro de 1976, relativo ao trânsito comunitário (JO L 38, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CEE) n.o 474/90 do Conselho, de 22 de fevereiro de 1990 (JO L 51, p. 1) e Regulamento (CEE) n.o 1062/87 da Comissão de 27 de março de 1987, que estabelece normas de execução e medidas de simplificação do regime de trânsito comunitário (JO L 107, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CEE) n.o 1429/90 da Comissão, de 29 de maio de 1990 (JO L 137, p. 21).

( 12 ) Acórdão Gerlach, já referido (n.o 36).

( 13 ) Ibidem (n.o 37); itálico meu.

( 14 ) Acórdão de 15 de junho de 2006, Dokter e o. (C-28/05, Colet., p. I-5431, n.o 75).

( 15 ) Ibidem (n.o 76).

( 16 ) V. acórdão de 17 de junho de 2010, Comissão/Itália (C-423/08, Colet., p. I-5449).

( 17 ) Ibidem (n.o 45).

( 18 ) Ibidem (n.o 46).

( 19 ) JO L 269 p. 1, e retificativo JO 2013, L 287, p. 90.

( 20 ) Em conformidade com o artigo 288.o, n.o 2, do Regulamento n.o 952/2013, os artigos 22.° e 105.° serão aplicáveis a partir de 1 de maio de 2016.

( 21 ) Enquanto o artigo 220.o, n.o 1, do CDC aplicável no caso em apreço apenas prevê um prazo de dois dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras se tenham apercebido dessa situação e em que possam calcular o montante legalmente devido e determinar o devedor.

( 22 ) N.o 76 deste acórdão.

( 23 ) Acórdão de 26 de setembro de 2013, Texdata Software (C‑418/11, n.o 85).

( 24 ) Acórdão G. e R., já referido; itálico meu.

( 25 ) Acórdão de 10 de julho de 1980 (30/78, Recueil, p. 2229).

( 26 ) Ibidem (n.o 26).


Conclusões do Advogado-Geral

Conclusões do Advogado-Geral

I – Introdução

1. Os processos submetidos ao Tribunal de Justiça têm por objeto os direitos de defesa, nomeadamente, do direito de ser ouvido no âmbito de um procedimento administrativo.

2. Com as suas decisões de reenvio de 22 de fevereiro de 2013, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 18 de março de 2013, o Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos), interroga, em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça acerca da aplicabilidade direta do princípio do respeito dos direitos de defesa. Em caso de resposta afirmativa, pergunta se o direito de ser ouvido deve ser considerado infringido uma vez que a pessoa singular ou coletiva em causa apenas teve oportunidade de manifestar a sua posição no âmbito de um recurso administrativo, ou seja, após a decisão inicial ter sido adotada. Por último, questiona o Tribunal de Justiça acerca das consequências jurídicas de uma eventual infração do princípio do respeito dos direitos de defesa e das circunstâncias suscetíveis de as influenciar.

II – Quadro jurídico

A – Direito da União

1. Carta dos direitos fundamentais da União Europeia

3. O artigo 41.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), sob a epígrafe «Direito a uma boa administração», dispõe o seguinte nos seus n. os  1 e 2:

«1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável.

2. Este direito compreende, nomeadamente:

a) o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente;

[...]»

4. O artigo 51.° da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação» prevê o seguinte no seu n.° 1:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.»

2. Regulamento (CEE) n.° 2913/92

5. Os artigos 220.° e 221.° do Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho de 12 de outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (a seguir «CAC») (2), estão incluídos no capítulo 3, secção 1, sob a epígrafe «Registo de liquidação e comunicação ao devedor do montante dos direitos».

6. O artigo 220.°, n.° 1, do CAC estabelece que:

«Sempre que o registo de liquidação do montante de direitos resultante de uma dívida aduaneira não tenha sido efetuado em conformidade com o disposto nos artigos 218.° e 219.° ou tenha sido efetuado num nível inferior ao montante legalmente devido, o registo de liquidação do montante de direitos a cobrar ou da parte por cobrar deverá efetuar‑se no prazo de dois dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras se tenham apercebido dessa situação e em que possam calcular o montante legalmente devido e determinar o devedor (registo de liquidação a posteriori ). Este prazo pode ser prorrogado nos termos do artigo 219.°».

7. O artigo 221.° do CAC prevê que:

«1. O montante dos direitos deve ser comunicado ao devedor, de acordo com modalidades adequadas, logo que o respetivo registo de liquidação seja efetuado.

[...]

3. A comunicação ao devedor não se pode efetuar após o termo de um prazo de três anos a contar da data de constituição da dívida aduaneira. Este prazo é suspenso a partir do momento em que for interposto um recurso na aceção do artigo 243.°, até ao termo do processo de recurso da dívida aduaneira.

[...]»

8. Os artigos 243.° a 245.° do CAC estão incluídos no título VIII, sob a epígrafe «Direito de recurso».

9. O artigo 243.° do CAC dispõe o seguinte:

«1. Todas as pessoas têm o direito de interpor recurso das decisões tomadas pelas autoridades aduaneiras ligadas à aplicação da legislação aduaneira e lhe digam direta e individualmente respeito.

Tem igualmente o direito de interpor recurso qualquer pessoa que, tendo solicitado uma decisão relativa à aplicação da legislação aduaneira junto das autoridades aduaneiras, delas não obtenha uma decisão no prazo fixado no n.° 2 do artigo 6.°

O recurso será interposto no Estado‑Membro em que a decisão foi tomada ou solicitada.

2. O direito de recurso pode ser exercido:

a) Numa primeira fase, perante a autoridade aduaneira designada para esse efeito, pelos Estados‑Membros;

b) Numa segunda fase, perante uma instância independente, que pode ser uma autoridade judiciária ou um órgão especializado equivalente, nos termos das disposições em vigor nos Estados‑Membros».

10. O artigo 244.° do CAC prevê o seguinte:

«A interposição de recurso não tem efeito suspensivo da execução da decisão contestada.

Todavia, as autoridades aduaneiras suspenderão, total ou parcialmente, a execução dessa decisão sempre que tenham motivos fundamentados para pôr em dúvida a conformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira ou que seja de recear um prejuízo irreparável para o interessado.

Quando a decisão contestada der origem à aplicação de direitos de importação ou de direitos de exportação, a suspensão da execução dessa decisão fica sujeita à existência ou à constituição de uma garantia. Contudo, essa garantia pode não ser exigida quando possa suscitar, por força da situação do devedor, graves dificuldades de natureza económica ou social».

11. O artigo 245.° do CAC estabelece que:

«As disposições relativas à aplicação do procedimento de recurso serão adotadas pelos Estados‑Membros.»

B – Direito neerlandês

12. Segundo o artigo 4:8, n.° 1, da Lei geral em matéria administrativa (Algemene wet bestuursrecht, a seguir «Awb»), antes de tomar uma decisão que irá previsivelmente causar prejuízo a um interessado que não requereu essa decisão, a Administração dar‑lhe‑á oportunidade de ser ouvido, se, por um lado, a referida decisão tiver por base elementos sobre factos e interesses respeitantes ao interessado e, por outro, esses elementos não tiverem sido transmitidos pelo próprio interessado.

13. O artigo 4:12, n.° 1, da Awb tem a seguinte redação:

«O órgão administrativo pode não aplicar o disposto nos artigos 4:7 e 4:8 quando tomar uma decisão no sentido do estabelecimento de uma obrigação ou de um direito de caráter financeiro se:

a) for possível apresentar uma reclamação ou interpor um recurso administrativo dessa decisão, e

b) as consequências negativas da decisão puderem ser totalmente eliminadas em resultado da reclamação ou do recurso.»

14. O artigo 6:22 da Awb tem a seguinte redação:

«A decisão que é objeto de uma reclamação ou de um recurso pode, apesar da violação de uma norma jurídica escrita ou não escrita ou de um princípio geral de direito, ser mantida pelo órgão que se pronuncia sobre a reclamação ou o recurso, caso seja demonstrado que essa violação da norma ou do princípio não prejudicou os interessados.»

15. O artigo 7:2 da Awb está redigido nos seguintes termos:

«1. Antes de se pronunciar sobre a reclamação, o órgão administrativo deve permitir que o interessado seja ouvido.

2. Em qualquer caso, o órgão administrativo informa o autor da reclamação, assim como os interessados que, no âmbito da preparação da decisão, manifestaram a sua posição.»

16. As decisões administrativas podem, em seguida, ser objeto de recurso contencioso, com possibilidade de recurso.

III – Matéria de facto, processual principal e questões prejudiciais

A – Matéria de facto que está na base dos pedidos de decisão prejudicial

17. Em cada um dos processos principais pendentes no órgão jurisdicional nacional, concretamente, a Kamino International Logistics BV, no processo C‑129/13, e a Datema Hellmann Worldwide Logistics BV, no processo C‑130/13 (a seguir «interessados»), um despachante aduaneiro apresentou em 2002 e em 2003, mediante mandato conferido pela mesma empresa, declarações para a introdução em livre prática de determinadas mercadorias, descritas como «toldos de jardim/tendas para festas e laterais». Os interessados declararam estas mercadorias na posição 6 601 10 00 («guarda‑sóis de jardim e artefactos semelhantes») da Nomenclatura Combinada (a seguir «NC»). As autoridades aduaneiras cobraram direitos aduaneiros à taxa de 4,7%, correspondente a essa posição.

18. Posteriormente, as autoridades aduaneiras neerlandesas efetuaram no mandante dos interessados uma inspeção para averiguar a exatidão dessa classificação pautal. Na sequência desta inspeção, a autoridade neerlandesa competente, a Inspeção Tributária, concluiu que a referida classificação era incorreta e que as mercadorias em causa deviam ser classificadas na posição 6 306 99 00 da NC («tendas e artigos para acampamento»), à qual é aplicável uma taxa mais elevada (12,2%).

19. Tendo em conta a diferença das taxas aplicáveis às duas posições referidas, a Inspeção Tributária, por decisão de 2 de abril de 2005, procedeu à cobrança a posteriori dos direitos aduaneiros adicionais (que, em ambos os casos, corresponde a um montante de cerca de 10 000 euros). Para o efeito, cada um dos interessados recebeu um aviso de liquidação (a seguir «ADL»), emitido nos termos do artigo 220.° do CAC.

20. Os interessados não tiveram a possibilidade de apresentar os seus argumentos antes da emissão desses ADL.

B – Tramitação do procedimento administrativo e judicial

21. Os interessados apresentaram uma reclamação dos referidos ADL na Inspeção Tributária que, apesar de ter permitido que se pronunciassem, indeferiu as reclamações.

22. O Rechtbank te Haarlem negou provimento aos recursos que os interessados interpuseram desta decisão da Inspeção Tributária. Em sede de recurso, o Gerechtshof te Amsterdam confirmou a decisão do Rechtbank te Haarlem, uma vez que impunha aos interessados o dever de pagarem as suas obrigações em matéria de ADL.

23. Em seguida, os interessados interpuseram recurso no Hoge Raad der Nederlanden. Foi neste âmbito que se suscitaram as questões prejudiciais.

24. Nas suas decisões de reenvio, o Hoge Raad der Nederlanden recorda que o Gerechtshof te Amsterdam considerou, em sede de recurso, que a Inspeção Tributária tinha violado o princípio do respeito dos direitos de defesa na medida em que não tinha permitido que, antes da emissão dos ADL, os interessados se manifestassem sobre os elementos que fundamentavam a cobrança a posteriori dos direitos aduaneiros.

25. No entanto, assinala que nem o CAC nem o direito nacional aplicável preveem disposições processuais que obriguem as autoridades aduaneiras, antes de efetuarem uma comunicação de uma dívida aduaneira nos termos do artigo 221.°, n.° 1, do CAC, a permitir que o devedor de direitos aduaneiros se pronuncie sobre os elementos em que é fundamentada a cobrança a posteriori .

26. Neste contexto, o Hoge Raad der Nederlanden questiona, em primeiro lugar, se o princípio do respeito dos direitos de defesa pode ser diretamente aplicável pelo órgão jurisdicional nacional. Em seguida, se a resposta a esta questão for afirmativa, pretende saber se é verdade que, conforme concluiu o Gerechtshof te Amsterdam, o princípio do respeito dos direitos de defesa (especialmente o direito de ser ouvido que deles é parte integrante), foi violado quando os interessados, apesar de não terem tido a possibilidade de apresentar os seus argumentos antes da primeira decisão da Inspeção Tributária, tiveram oportunidade de defender a sua posição na reclamação e no recurso. Por último, o Hoge Raad der Nederlanden pergunta ao Tribunal de Justiça quais são consequências jurídicas da violação do princípio dos direitos de defesa e se estas devem ser determinadas em conformidade com o direito nacional ou nos termos do direito da União. De forma mais precisa, e no caso de estas consequências jurídicas serem determinadas pelo direito da União, o Hoge Raad der Nederlanden pretende saber se, em caso de violação do princípio do respeito dos direitos de defesa, o órgão jurisdicional nacional está obrigado a anular a decisão impugnada ou se pode, na sua apreciação, ter em conta o facto de que se a violação em causa não tivesse ocorrido, a decisão teria sido idêntica.

C – Ques tões prejudiciais

27. Nestas circunstâncias, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, formuladas em termos idênticos em cada um dos processos apensados:

«1) O princípio previsto no direito da União segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa é suscetível de aplicação direta pelo órgão jurisdicional nacional?

2) Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

a) O princípio previsto no direito da União segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa deve ser interpretado no sentido de que não é observado se o destinatário de uma proposta de decisão não tiver sido efetivamente ouvido antes de a administração ter tomado uma medida lesiva a seu respeito, não obstante na fase administrativa (de reclamação) subsequente, que antecede a impugnação judicial da decisão nos tribunais nacionais, lhe ter sido dada a oportunidade de se pronunciar?

b) As consequências jurídicas da violação do princípio previsto no direito da União segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa são fixadas pelo direito nacional?

3) Em caso de resposta negativa à segunda questão, alínea b: que circunstâncias pode o órgão jurisdicional nacional tomar em consideração, ao determinar aquelas consequências jurídicas? Pode, nomeadamente, ter em conta se ficou ou não demonstrado que o processo teria tido um desfecho diferente se a administração não tivesse violado o princípio previsto no direito da União do respeito dos direitos de defesa?»

IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

28. Os pedidos de decisão prejudicial deram entrada no Tribunal de Justiça em 18 de março de 2013. Por decisão de 24 de abril de 2013, o presidente do Tribunal de Justiça ordenou a apensação dos processos.

29. Os interessados, os Governos neerlandês, belga, grego e espanhol, assim como a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Na audiência de 15 de janeiro de 2014, os interessados, os Governos neerlandês, belga e grego, assim como a Comissão, apresentaram alegações.

V – Análise jurídica

A – Quanto à primeira questão prejudicial

30. Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o princípio do respeito dos direitos de defesa pode ser diretamente aplicável pelo órgão jurisdicional nacional.

31. É verdade que «os direitos de defesa, que incluem o direito de ser ouvido [...], figuram entre os direitos fundamentais que fazem parte integrante da ordem jurídica da União e são consagrados pela Carta» (3) .

32. Além disso, foi no âmbito de um processo relativo ao procedimento de recuperação a posteriori de direitos aduaneiros sobre a importação que o Tribunal de Justiça precisou que, por força deste princípio, «os destinatários de decisões que afetam de modo sensível os seus interesses devem ter a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão» (4) . Dito de outro modo, «[o] direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efetiva, o seu ponto de vista no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses» (5) .

33. Por outro lado, «[o] direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente» passou a estar expressamente incluído, pelo artigo 41.°, n.° 2, da Carta, no direito a uma boa administração.

34. Uma vez que não é possível contestar que, no caso em apreço, está em causa um processo relativo à cobrança a posteriori de direitos aduaneiros e, por conseguinte, à aplicação do direito da União, o artigo 41.° da Carta deve ser respeitado pelos Estados‑Membros, em conformidade com o artigo 51.°, n.° 1, da Carta.

35. Quanto ao papel do órgão jurisdicional nacional, o Tribunal de Justiça teve oportunidade de declarar, no acórdão Sopropé, já referido, que lhe compete «certificar‑se de que o prazo [destinado a recolher as observações dos interessados] individualmente fixado pela Administração corresponde à situação particular da pessoa ou da empresa em causa e que o mesmo lhes permitiu exercer os seus direitos de defesa, no respeito do princípio da efetividade» (6) .

36. Por conseguinte, considero que resulta do exposto que, não só as administrações nacionais têm a obrigação de respeitar os direitos de defesa quando aplicam o direito da União, mas também que, a fim de evitar que estes direitos sejam letra morta ou puramente formais, os interessados devem poder invocá‑los diretamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais (7) .

B – Quanto à segunda questão prejudicial, alínea a)

37. A segunda questão prejudicial divide‑se em duas subquestões.

38. A segunda questão, alínea a), visa saber se os direitos de defesa do destinatário de uma decisão são violados se este não tiver sido ouvido antes da tomada de decisão (no caso em apreço, o ADL), mesmo que possa fazer valer a sua posição na fase de reclamação administrativa subsequente. A segunda questão, alínea b), é relativa às consequências jurídicas de uma violação do princípio do respeito dos direitos de defesa. Esta subquestão diz respeito à mesma temática que a terceira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Por conseguinte, irei posteriormente apreciá‑las em conjunto e, agora, limitarei a minha exposição à segunda questão, alínea a).

39. Todavia, antes desta apreciação, gostaria de abordar uma questão amplamente discutida na audiência e referida pelo órgão jurisdicional de reenvio: trata‑se da questão de saber se o procedimento que decorre entre o ADL e a decisão sobre a reclamação apresentada com base na Awb constitui um procedimento único (neste caso os direitos de defesa do destinatário da decisão, por definição única, teriam sido necessariamente respeitados) ou se, em contrapartida, inclui duas fases e duas decisões, estando a segunda dependente da apresentação de reclamação da primeira (nesta caso coloca‑se a questão do respeito dos direitos de defesa, uma vez que o destinatário das decisões só foi ouvido após a decisão inicial e a sua reclamação).

40. Ainda que a autoridade administrativa seja a mesma durante todo o procedimento (apesar de o representante do Governo neerlandês ter referido na audiência que esta autoridade podia recorrer a outra instância, mas sob a sua competência e a sua autoridade), inclino‑me claramente para a segunda parte da alternativa.

41. Com efeito, a emissão e o envio do ADL constituem uma decisão com efeitos jurídicos próprios que impõem ao destinatário o dever de pagar, no caso em apreço, direitos aduaneiros adicionais. Ora, estes efeitos são definitivos se o destinatário, que nesta fase não foi ouvido, não tiver apresentado reclamação. É apenas no âmbito da eventual reclamação que a autoridade administrativa competente deverá ouvir o interessado, efetuar uma reapreciação completa do processo e adotar uma nova decisão ou confirmar o ADL impugnado.

42. Além disso, resulta da apreciação do direito da União e do direito nacional aplicáveis que a reclamação não tem efeito suspensivo automático, de modo que o pagamento dos direitos aduaneiros continua a ser exigível. A possibilidade de requerer a suspensão (e, segundo as declarações do representante do Governo neerlandês na audiência, existe uma circular ministerial que impõe o seu deferimento, exceto nos casos de fraude) em nada altera o facto de o ADL constituir uma decisão com efeitos jurídicos autónomos.

43. Por conseguinte, esta hipótese constitui a base do raciocínio que irei expor nas considerações seguintes.

1. Objetivo prosseguido pelo direito de ser ouvido

44. Para responder à questão submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden, importa, antes de mais, recordar o objetivo prosseguido pelo princípio do respeito dos direitos de defesa, especialmente pelo direito de ser ouvido.

45. Segundo o Tribunal de Justiça, «[a] regra segundo a qual deve ser dada ao destinatário de uma decisão lesiva dos seus interesses a possibilidade de apresentar as suas observações antes de esta ser tomada tem por finalidade permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes. A fim de assegurar uma proteção efetiva da pessoa ou da empresa em causa, essa regra tem, designadamente, por objeto permitir que tal empresa ou tal pessoa corrija um erro ou invoque determinados elementos relativos à sua situação pessoal, que militam no sentido de a decisão ser ou não tomada ou de que a mesma tenha determinado conteúdo» (8) .

46. Dito de outra forma, «[o] direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efetiva, o seu ponto de vista no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses» (9) .

47. O Tribunal de Justiça já explicitou o alcance do direito de ser ouvido no processo Gerlach (10), relativo ao procedimento de trânsito na União. Segundo o Tribunal de Justiça, resulta da legislação aplicável à época dos factos (11) que o Estado‑Membro da estância de partida apenas pode efetuar a cobrança dos direitos sobre a importação se tiver indicado previamente ao responsável principal que este dispunha de um prazo de três meses para apresentar as provas requeridas e se estas não tinham sido apresentadas no referido prazo. O Tribunal de Justiça considerou que, nestas condições, o referido prazo não podia ser concedido, pela primeira vez, no momento de um procedimento de reclamação da decisão das autoridades competentes de proceder à cobrança dos direitos de importação (12) . Com efeito, o Tribunal de Justiça descreveu o direito do responsável principal como sendo aquele que consiste em «dar a conhecer de forma útil o seu ponto de vista quanto à regularidade da operação de trânsito antes da adoção da decisão de cobrança de que é destinatário e que afeta de forma sensível os seus interesses» (13) .

48. Decorre desta jurisprudência que o facto de conceder ao destinatário de uma decisão que lhe causa prejuízo o direito de defender a sua posição após a adoção da referida decisão, não respeita nem o direito de ser ouvido nem os direitos de defesa.

49. Todavia, segundo jurisprudência igualmente assente, «os direitos fundamentais, como o princípio do respeito do direito de defesa, não constituem prerrogativas absolutas, mas podem comportar restrições, na condição de que estas correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituam, à luz da finalidade prosseguida, uma intervenção desmedida e intolerável que atente contra a própria substância dos direitos assim garantidos» (14) . Também no acórdão Dokter e o., já referido, o Tribunal de Justiça precisou ainda que tal restrição «só pode constituir uma intervenção desmedida e intolerável que atente contra a própria substância dos direitos de defesa se os interessados forem privados da possibilidade de contestar as referidas medidas num processo posterior e de fazer valer utilmente o seu ponto de vista no quadro desse processo» (15) .

2. Restrição ao princípio do direito de ser ouvido

50. Para responder à questão de saber se a restrição ao direito de ser ouvido originada pelo procedimento iniciado pelo Reino dos Países Baixos preenche as condições previstas no acórdão Dokter e o., já referido, importa ter presente, por um lado, as condições obrigatórias impostas pelo próprio direito da União para a tomada em consideração a posteriori dos direitos que resultam de uma dívida aduaneira e, por outro, todo o procedimento administrativo, conforme organizado pela legislação nacional.

a) Prazos fixados pelo CAC

51. O artigo 220.°, n.° 1, do CAC dispõe que, sempre que o registo de liquidação do montante de direitos resultante de uma dívida aduaneira não tenha sido efetuado em conformidade com o disposto nos seus artigos 218.° e 219.° ou tenha sido efetuado num nível inferior ao montante legalmente devido, o registo de liquidação do montante de direitos a cobrar ou da parte por cobrar deverá efetuar‑se no prazo de dois dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras se tenham apercebido dessa situação e em que possam calcular o montante legalmente devido e determinar o devedor. O artigo 221.° do CAC acrescenta que montante dos direitos deve ser comunicado ao devedor logo que o respetivo registo de liquidação seja efetuado .

52. Este prazo de dois dias, imperativo, afigura‑se dificilmente compatível com a obrigação de ouvir o interessado antes da decisão de liquidação do montante dos direitos a cobrar.

53. A adequação deste prazo com o princípio do respeito dos direitos de defesa foi, aliás, já discutida num processo de incumprimento que envolvia a República Italiana (16) . Embora o Tribunal de Justiça tenha considerado que o princípio do respeito dos direitos de defesa se aplicava num procedimento de cobrança a posteriori , completou, no entanto, esta afirmação com uma reserva segundo a qual o referido princípio «não pode, em contrapartida [...] permitir que um Estado‑Membro viole a sua obrigação de apurar, nos prazos previstos na regulamentação comunitária, o direito [da União] sobre os recursos próprios» (17) .

54. Por conseguinte, neste acórdão, o Tribunal de Justiça optou por fazer referência ao princípio de uma reserva. Resulta desta formulação que, apesar de ser verdade que o princípio do direito de defesa deve ser respeitado, não pode conduzir à violação dos prazos impostos aos Estados‑Membros pela legislação aduaneira da União.

55. Consciente da limitação dos direitos de defesa provocada por essa reserva, o Tribunal de Justiça atenuou‑a através da declaração de que, «[a]lém disso, importa recordar que o registo de liquidação e a comunicação dos direitos aduaneiros devidos, bem como a inscrição dos recursos próprios, não impedem o devedor de contestar, nos termos dos artigos 243.° e seguintes do Código Aduaneiro, a obrigação que lhe é imputada, e de apresentar todos os argumentos disponíveis» (18) .

56. O próprio legislador da União parece estar consciente da dificuldade dos Estados‑Membros ouvirem o interessado antes da liquidação d o montante dos direitos a cobrar.

57. Com efeito, por um lado, o artigo 22.°, n.° 6, do Regulamento (UE) n.° 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União (revisto) (19), passou a prever expressamente que, «[a]ntes de tomarem qualquer decisão suscetível de ter consequências adversas para o requerente, as autoridades aduaneiras devem comunicar ao requerente as razões em que tencionam fundamentar a sua decisão, dando‑lhe a oportunidade de apresentar os seus pontos de vista num prazo fixado a contar da data em que é recebida ou se considera que tenha sido recebida a comunicação». Além disso, o considerando 27 deste regulamento precisa que esta obrigação é necessária por força da Carta. Por outro lado, segundo o artigo 105.°, n.° 3, do referido regulamento, o registo de liquidação do montante dos direitos de importação ou de exportação exigíveis deve ser efetuado, quando as disposições pertinentes sejam aplicáveis (20), no prazo de 14 dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras «possam determinar o montante dos direitos de importação ou de exportação em questão e tomar uma decisão» (21) .

b) Caraterísticas do procedimento administrativo nacional em causa

58. No caso em apreço, o procedimento administrativo é organizado pela Awb. O princípio, previsto no artigo 4:8 da Awb, pretende que os órgãos da administração, antes de tomarem uma decisão que possa causar prejuízo a um interessado que não a requereu, permitam que este se pronuncie sobre a decisão prevista.

59. No entanto, nos termos do artigo 4:12 da Awb, este princípio não se aplica às decisões com caráter financeiro se, por um lado, puder ser apresentada uma reclamação da decisão e se, por outro, as consequências desfavoráveis puderem ser totalmente eliminadas em resultado do recurso.

60. No caso em apreço, estas duas condições afiguram‑se reunidas.

61. Com efeito, os interessados tiveram a oportunidade de requerer a reapreciação da decisão ao órgão administrativo que a tomou (antes de poderem interpor um recurso contencioso com possibilidade de recurso).

62. Ora, segundo o Governo neerlandês, esta reapreciação administrativa é efetuada ex nunc , ou seja, com base nas disposições legais e nos factos relevantes tal como se apresentavam no momento em que a decisão sobre a reclamação foi adotada. Por conseguinte, as consequências negativas da decisão recorrida poderiam ser eliminadas em resultado do procedimento de reclamação.

63. Além disso, em conformidade com o artigo 7:2 da Awb, «[a]ntes de se pronunciar sobre a reclamação, o órgão administrativo permite que o interessado seja ouvido».

64. No entanto, observo que, segundo o artigo 244.°, primeiro parágrafo, do CAC, a interposição de recurso não tem efeito suspensivo da execução da decisão contestada. É certo que o segundo parágrafo do referido artigo atenua a regra, uma vez que autoriza as autoridades aduaneiras a suspender, total ou parcialmente, a execução da referida decisão. Todavia, esta suspensão apenas é possível se as autoridades aduaneiras tiverem motivos fundamentados para questionar a conformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira ou se for de recear um prejuízo irreparável para o interessado. Por outro lado, o artigo 244.°, terceiro parágrafo, do CAC, impõe, neste caso, a constituição de uma garantia (sob reserva de graves dificuldades de natureza económica ou social para o devedor).

65. Segundo o Governo neerlandês, as eventuais consequências negativas da decisão controvertida poderiam, não obstante, ser eliminadas a posteriori , na medida em que o pagamento poderia ser diferido em caso de reclamação e a decisão suspendida enquanto se aguarda o resultado da reclamação (e do recurso) por força das normas nacionais.

66. Contudo, conforme já referi, o representante do Governo neerlandês afirmou na audiência que esta suspensão não era automática, devendo ser requerida pelo destinatário do ADL impugnado, na sua reclamação. Por outro lado, resulta igualmente das suas declarações que, embora a regra geral seja a concessão da suspensão, esta concessão apenas está prevista numa circular ministerial.

67. Sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio (que, no seu pedido de decisão prejudicial, não referiu esta circular), tal norma, por definição suscetível de ser alterada a qualquer momento, não se afigura, em meu entender, capaz de suspender de modo suficientemente automático os efeitos jurídicos autónomos do ADL até à sua eventual alteração, especialmente a obrigação de pagamento dos direitos aduaneiros adicionais.

c) Conclusão sobre a segunda questão, alínea a)

68. No caso em apreço, o destinatário do ADL não foi ouvido antes da adoção de uma decisão que lhe causa prejuízo mas o artigo 7:2 da Awb prevê expressamente que, antes de se pronunciar sobre a reclamação, o órgão administrativo deve permitir que o interessado seja ouvido.

69. A necessidade de distinguir os direitos consagrados, por um lado, pelo artigo 41.°, da Carta (contencioso administrativo), e, por outro, pelo artigo 47.°, da Carta (contencioso judicial), é, além disso, respeitada, uma vez que a audição do interessado é efetivamente organizada no âmbito do procedimento administrativo, e não apenas no decurso de um recurso jurisdicional.

70. Por conseguinte, não estamos perante um caso em que, retomando os termos do acórdão Dokter e o., já referido: «os interessados [teriam sido] privados da possibilidade de contestar [a decisão controvertida] num processo posterior e de fazer valer utilmente o seu ponto de vista no quadro desse processo» (22) .

71. Todavia, considero que estes elementos não são suficientes para constituírem uma restrição justificada ao princípio do respeito dos direitos de defesa, pelos três motivos seguintes.

72. Em primeiro lugar, não entendo as razões que poderiam ser invocadas como objetivo de interesse geral justificativo da inexistência de audição prévia. As únicas exigências de prazos que resultam da legislação da União não se afiguram, a este respeito, suscetíveis de ser admitidas como tais.

73. Em seguida, a decisão adotada sem audição do destinatário só pode ser objeto de uma nova decisão administrativa por iniciativa deste.

74. Por último e principalmente, este procedimento de reclamação não tem efeito suspensivo automático. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta caraterística assume uma importância decisiva na apreciação de uma eventual justificação da restrição do direito de ser ouvido antes de ser tomada uma decisão que causa prejuízo.

75. No seu acórdão Textdata Software (23), o Tribunal de Justiça decidiu, nomeadamente, que «a aplicação de uma sanção inicial de 700 euros sem notificação prévia nem a possibilidade de ser ouvido antes de a sanção ser aplicada não parece suscetível de afetar o conteúdo essencial do direito fundamental em causa, uma vez que a dedução de oposição fundamentada da decisão de aplicação da sanção pecuniária a torna imediatamente inaplicável e inicia um processo comum em cujo âmbito o direito de ser ouvido pode ser respeitado» (itálico meu).

76. No caso em apreço, apesar de a segunda condição estar satisfeita (o destinatário é ouvido no âmbito do procedimento de reclamação), a primeira exigência (a inaplicabilidade imediata do ato que causa prejuízo em caso de recurso) não se verifica.

77. Neste contexto, considero que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal viola o princípio do respeito dos direitos de defesa do administrado, especialmente o direito de ser ouvido.

78. Caso o Tribunal de Justiça não concorde com a minha análise, não será necessário responder à segunda questão, alínea b), nem à terceira questão, na medida em que são relativas às consequências jurídicas de uma violação do princípio dos direitos de defesa.

C – Quanto à segunda questão, alínea b), e à terceira questão

79. Com a segunda questão, alínea b), e a terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que esclareça se, por um lado, as consequências jurídicas da violação do princípio do respeito dos direitos de defesa por parte da administração são, ou não, determinadas pelo direito nacional e, por outro, se assim não for, que circunstâncias podem ser tidas em conta pelo órgão jurisdicional nacional no âmbito da sua apreciação. Na sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende expressamente que seja tomada em consideração a situação em que o resultado do processo decisório teria sido idêntico se o direito violado tivesse sido respeitado.

80. Estas questões são respondidas de forma clara, precisa e inequívoca no acórdão G. e R., já referido. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou:

«35 A obrigação de respeitar os direitos de defesa dos destinatários de decisões que afetem sensivelmente os seus interesses incumbe, em princípio, às Administrações dos Estados‑Membros, sempre que estas tomem decisões abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União. Quando, como no presente caso, nem as condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa […], nem as consequências da violação destes direitos são fixadas pelo direito da União, estas condições e estas consequências são regidas pelo direito nacional , desde que as medidas adotadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares ou as empresas em situações de direito nacional comparáveis (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos de defesa conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) [...].

36 No entanto, ainda que seja possível aos Estados‑Membros permitirem o exercício dos direitos de defesa destes nacionais segundo as mesmas modalidades que as adotadas para regular as situações internas, estas devem ser conformes com o direito da União e não pôr, designadamente, em causa o efeito útil da Diretiva 2008/115.

[...]

38 À luz das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, importa salientar que, segundo o direito da União, uma violação dos direitos de defesa, especialmente do direito de ser ouvido, só justifica a anulação da decisão adotada no final do procedimento administrativo em causa se, não se verificando tal irregularidade, o procedimento pudesse conduzir a um resultado diferente [...]» (24) .

81. A regra não é nova. Esta foi já a solução adotada pelo Tribunal de Justiça no processo Distillers Company/Comissão (25), no qual a recorrente alegou, nomeadamente, que a autoridade competente não tinha tomado em consideração todos os argumentos de recurso invocados na fase oral, nem vários complementos à resposta que deu à comunicação de acusações da Comissão. Contudo, no seu acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que não era «necessário analisar [estas] irregularidades processuais» e que «só sucederia de outro modo se existisse a possibilidade de sem essas irregularidades no processo administrativo se obter um resultado diferente» (26) .

82. Na medida em que no processo que deu origem ao acórdão G. e R., o Tribunal de Justiça manteve esta solução apesar de se tratar de uma medida tão restritiva da liberdade das pessoas como a prorrogação de seis para dezoito meses de detenção de um estrangeiro que aguarda o regresso ao seu país, não imagino que possa ser de outro modo no âmbito de um procedimento relativo a questões estritamente financeiras.

83. Por outro lado, assinalo que, no caso em apreço, a decisão administrativa relativa à reclamação, assim como as sentenças dos órgãos jurisdicionais de primeira instância e de recurso, confirmaram a decisão inicial, o que ocorreu após os interessados terem apresentado os seus argumentos.

84. Atendendo a estas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão, alínea b), submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, que as condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa, e as consequências da violação destes direitos, são regidos pelo direito nacional, desde que as medidas decretadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares em situações de direito nacional comparáveis (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade).

85. A transposição desta solução à matéria aduaneira impõe‑se na medida em que nos termos do artigo 245.° do CAC, que remete expressamente para o direito nacional, «[a]s disposições relativas à aplicação do procedimento de recurso serão adotadas pelos Estados‑Membros».

86. Todavia, na medida em que o efeito pleno do direito da União deve ser garantido, sugiro ainda ao Tribunal de Justiça que, na resposta à terceira questão, declare ao órgão jurisdicional de reenvio que, segundo o direito da União, uma violação dos direitos de defesa — especialmente do direito de ser ouvido — só justifica a anulação da decisão adotada no final do procedimento administrativo em causa se, não se verificando tal irregularidade, o procedimento pudesse conduzir a um resultado diferente.

87. Esta solução impõe‑se tanto mais que, no caso em apreço, os próprios interessados admitem que o procedimento de reclamação não teria conduzido a um resultado diferente se tivessem sido ouvidos antes da adoção da decisão controvertida, na medida em que não contestam a classificação pautal estabelecida pela Inspeção Tributária. Conforme afirmei anteriormente, a decisão administrativa relativa à reclamação e as sentenças dos órgãos jurisdicionais de primeira instância e de recurso confirmaram a decisão inicial.

VI – Conclusão

88. Tendo em consideração o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden do seguinte modo:

«1) O princípio segundo o qual a administração deve respeitar os direitos de defesa pode ser invocado diretamente, pelos particulares, nos órgãos jurisdicionais nacionais.

2) a) A legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que não permite ao destinatário de uma decisão que lhe causa prejuízo ser ouvido pela administração antes da adoção da decisão, não obstante na fase administrativa subsequente lhe ser dada essa oportunidade, apesar de este recurso não suspender automaticamente a decisão que lhe causa prejuízo, viola o princípio do respeito dos direitos de defesa do administrado, especialmente o direito de ser ouvido.

2) b) As condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa, e as consequências da violação destes direitos, são regidos pelo direito nacional, desde que as medidas decretadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares em situações de direito nacional comparáveis (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade).

3) Uma vez que o órgão jurisdicional nacional tem a obrigação de garantir o efeito pleno do direito da União, deve, quando avalia as consequências de uma violação dos direitos de defesa, especialmente do direito de ser ouvido, ter em conta o facto de que tal violação só justifica a anulação da decisão adotada no final do procedimento administrativo em causa se, não se verificando tal irregularidade, este procedimento pudesse conduzir a um resultado diferente.»

(1) .

(2)  — JO L 302, p. 1, regulamento conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 2700/2000 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de novembro de 2000 (JO L 311, p. 17).

(3)  — Acórdão de 10 de setembro de 2013, G. e R. (C‑383/13 PPU, n.° 32). V., igualmente, neste sentido, acórdão de 18 de julho de 2013, Comissão e o./Kadi (C‑584/10 P, C‑593/10 P e C‑595/10 P, n.° 99).

(4)  — Acórdão de 18 de dezembro de 2008, Sopropé (C‑349/07, Colet., p. I‑10369, n.° 37).

(5)  — Acórdão de 22 de novembro de 2012, M. (C‑277/11, n.° 87, e jurisprudência referida).

(6)  — Acórdão Sopropé, já referido (n.° 44).

(7)  — Tal como resulta da posição que tomei no processo que deu origem ao acórdão G. e R., já referido, relativo à Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO L 348, p. 98). V., n.° 52 das minhas conclusões neste processo.

(8)  — Acórdão Sopropé, já referido (n.° 49); itálico meu.

(9)  — Acórdão M., já referido (n.° 87 e jurisprudência referida); itálico meu.

(10) — Acórdão de 8 de março de 2007, Gerlach (C‑44/06, Colet., p. I‑2071).

(11)  — Regulamento (CEE) n.° 222/77 do Conselho, de 13 de dezembro de 1976, relativo ao trânsito comunitário (JO L 38, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CEE) n.° 474/90 do Conselho, de 22 de fevereiro de 1990 (JO L 51, p. 1) e Regulamento (CEE) n.° 1062/87 da Comissão de 27 de março de 1987, que estabelece normas de execução e medidas de simplificação do regime de trânsito comunitário (JO L 107, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CEE) n.° 1429/90 da Comissão, de 29 de maio de 1990 (JO L 137, p. 21).

(12)  — Acórdão Gerlach, já referido (n.° 36).

(13)  — Ibidem (n.° 37); itálico meu.

(14)  — Acórdão de 15 de junho de 2006, Dokter e o. (C‑28/05, Colet., p. I‑5431, n.° 75).

(15)  — Ibidem (n.° 76).

(16)  — V. acórdão de 17 de junho de 2010, Comissão/Itália (C‑423/08, Colet., p. I‑5449).

(17)  — Ibidem (n.° 45).

(18)  — Ibidem (n.° 46).

(19)  — JO L 269 p. 1, e retificativo JO 2013, L 287, p. 90.

(20)  — Em conformidade com o artigo 288.°, n.° 2, do Regulamento n.° 952/2013, os artigos 22.° e 105.° serão aplicáveis a partir de 1 de maio de 2016.

(21)  — Enquanto o artigo 220.°, n.° 1, do CDC aplicável no caso em apreço apenas prevê um prazo de dois dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras se tenham apercebido dessa situação e em que possam calcular o montante legalmente devido e determinar o devedor.

(22)  — N.° 76 deste acórdão.

(23)  — Acórdão de 26 de setembro de 2013, Texdata Software (C‑418/11, n.° 85).

(24)  — Acórdão G. e R., já referido; itálico meu.

(25)  — Acórdão de 10 de julho de 1980 (30/78, Recueil, p. 2229).

(26)  — Ibidem (n.° 26).