ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

27 de fevereiro de 2014 ( *1 )

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Regimes de auxílios concedidos a sociedades promotoras de habitação social — Decisão de compatibilidade — Compromissos assumidos pelas autoridades nacionais para cumprimento do direito da União — Artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE — Recurso de anulação — Requisitos de admissibilidade — Interesse em agir — Legitimidade — Beneficiários a quem o ato diz direta e individualmente respeito — Conceito de ‘círculo fechado’»

No processo C‑132/12 P,

que tem por objeto um recurso de uma decisão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 29 de fevereiro de 2012,

Stichting Woonpunt, com sede em Maastricht (Países Baixos),

Stichting Havensteder, anteriormente Stichting Com.wonen, com sede em Roterdão (Países Baixos),

Woningstichting Haag Wonen, com sede na Haia (Países Baixos),

Stichting Woonbedrijf SWS.Hhvl, com sede em Eindhoven (Países Baixos),

representadas por P. Glazener e E. Henny, advocaten,

recorrentes,

sendo a outra parte no processo:

Comissão Europeia, representada por H. van Vliet, S. Noë e S. Thomas, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, A. Borg Barthet e E. Levits (relator), juízes,

advogado‑geral: M. Wathelet,

secretário: M. Ferreira, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 17 de abril de 2013,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de maio de 2013,

profere o presente

Acórdão

1

Com o seu recurso, a Stichting Woonpunt, a Stichting Havensteder, anteriormente Stichting Com.wonen, a Woningstichting Haag Wonen e a Stichting Woonbedrijf SWS.Hhvl pedem a anulação do despacho do Tribunal Geral da União Europeia de 16 de dezembro de 2011, Stichting Woonpunt e o./Comissão (T‑203/10, a seguir «despacho recorrido»), através do qual foi negado provimento ao seu recurso de anulação da Decisão C(2009) 9963 final da Comissão, de 15 de dezembro de 2009, relativa aos auxílios de Estado E 2/2005 e N 642/2009 — Países Baixos — Auxílio existente e auxílio especial por projeto a sociedades promotoras de habitação social (a seguir «decisão controvertida»).

Antecedentes do litígio e decisão controvertida

2

Os factos na origem do litígio foram expostos pelo Tribunal Geral nos n.os 1 a 14 do despacho recorrido do seguinte modo:

«1

As recorrentes [...] são sociedades de habitação (‘woningcorporaties’, a seguir ‘wocos’) com sede nos Países Baixos. As wocos são organismos sem fins lucrativos que têm por missão proceder à aquisição, à construção e ao arrendamento de habitações destinadas essencialmente a pessoas e a grupos socialmente desfavorecidos. As wocos exercem igualmente outras atividades, como a construção e arrendamento de apartamentos com rendas mais elevadas, a construção de apartamentos para venda, bem como a construção e o arrendamento de imóveis de interesse geral.

2

Em 15 de dezembro de 2009, a Comissão adotou a decisão [controvertida].

3

Em primeiro lugar, quanto ao auxílio E 2/2005, em 2002, as autoridades neerlandesas notificaram à Comissão Europeia o sistema geral de auxílios destinados às wocos. Dado que a Comissão considerou que as medidas de financiamento das wocos podiam ser qualificadas de auxílios existentes, as autoridades neerlandesas retiraram subsequentemente a sua notificação.

4

Em 14 de julho de 2005, a Comissão enviou às autoridades neerlandesas um ofício, nos termos do artigo 17.o do Regulamento (CE) n.o 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo [107.° TFUE] (JO L 83, p. 1), qualificando o sistema geral de auxílios de Estado em benefício das wocos de auxílios existentes (auxílio E 2/2005) e manifestando dúvidas sobre a sua compatibilidade com o mercado comum. A título preliminar, a Comissão indicou que as autoridades neerlandesas deviam redefinir a missão de serviço público atribuída às wocos, de modo a que a habitação social seja destinada a um conjunto claramente definido de pessoas ou de grupos socialmente desfavorecidos. Salientava que todas as atividades comerciais das wocos deviam ser exercidas em condições de mercado e não podiam beneficiar de auxílios de Estado. Por último, segundo a Comissão, a oferta de habitações sociais devia ser adaptada à procura das pessoas ou dos grupos socialmente desfavorecidos.

5

Na sequência do envio desse ofício, a Comissão e as autoridades neerlandesas iniciaram conversações a fim de tornar o regime de auxílios em causa conforme com o artigo 106.o, n.o 2, TFUE.

6

Em 16 de abril de 2007, a associação dos investidores imobiliários institucionais dos Países Baixos (Vereniging van Institutionele Beleggers in Vastgoed, Nederland [...]) apresentou uma denúncia à Comissão sobre o regime de auxílios concedidos às wocos. No mês de junho de 2009, o Vesteda Groep BV associou‑se a essa denúncia.

7

Por ofício de 3 de dezembro de 2009, as autoridades neerlandesas propuseram à Comissão compromissos destinados a alterar o sistema geral de auxílios de Estado a favor das wocos.

8

As medidas incluídas no sistema geral dos auxílios de Estado concedidos pelo [Reino dos] Países Baixos a favor das wocos e visadas no processo E 2/2005 são as seguintes:

a)

garantias do Estado para empréstimos concedidos pelo Fundo de Garantia para a construção de habitações sociais;

b)

auxílios do Fundo Central de Habitação, auxílios por projeto ou auxílios à racionalização, sob a forma de empréstimos a juros bonificados ou de subvenções diretas;

c)

venda pelos municípios de terrenos a preços inferiores aos preços do mercado;

d)

direito de contrair empréstimos junto do Bank Nederlandse Gemeenten.

9

Na decisão [controvertida], a Comissão qualificou cada uma destas medidas de auxílios de Estado e considerou que o sistema neerlandês de financiamento da habitação social constituía um auxílio existente, tendo este sido criado antes da entrada em vigor do Tratado CE nos Países Baixos e não tendo as reformas posteriores implicado a sua alteração substancial.

10

No considerando 41 da decisão [controvertida], a Comissão indicou:

‘As autoridades neerlandesas comprometeram‑se a alterar o funcionamento das wocos e as medidas que lhes conferem benefícios. No tocante a diversas alterações, as autoridades neerlandesas apresentaram os projetos das disposições a aprovar à Comissão. As novas regras foram objeto de um novo decreto ministerial, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2010, e de uma nova lei sobre a habitação, que entrará em vigor em 1 de janeiro de 2011. [...]’

11

A Comissão examinou a compatibilidade do auxílio E 2/2005 relativo ao sistema de financiamento das wocos conforme alterado na sequência dos compromissos assumidos pelas autoridades neerlandesas. Concluiu, no considerando 72 da decisão [controvertida], que ‘os auxílios pagos a título das atividades de habitação social, isto é, associados à construção e ao arrendamento de habitações destinadas a particulares, incluindo a construção e a manutenção de infraestruturas de apoio, […] são compatíveis com o artigo 106.o, n.o 2, TFUE’. Por consequência, a Comissão aceitou os compromissos assumidos pelas autoridades neerlandesas.

12

Em segundo lugar, no caso do auxílio N 642/2009, as autoridades neerlandesas notificaram em 18 de novembro de 2009 um regime de auxílios novo para a renovação dos bairros urbanos em declínio, qualificado de ‘auxílio especial por projeto destinado a certos distritos’, do qual são beneficiárias as wocos que intervêm nos bairros selecionados. Esse novo regime devia ser aplicado nas mesmas condições que as previstas para as medidas abrangidas pelo regime de auxílio existente, conforme alterado na sequência dos compromissos assumidos pelas autoridades neerlandesas.

13

O auxílio N 642/2009 devia assumir a forma de subvenções diretas pagas pelo Centraal Fonds Volkshuisvesting (Fundo Central da Habitação) para a realização de projetos específicos relativos à construção e ao arrendamento de alojamentos em zonas geográficas limitadas correspondentes às comunidades urbanas mais carenciadas. O seu financiamento devia ser assegurado por um novo imposto suportado pelas wocos que exercem as suas atividades fora das zonas urbanas sensíveis.

14

Na decisão [controvertida], a Comissão considerou que o auxílio N 642/2009 era compatível com o mercado comum. Considerou que ‘[o]s auxílios pagos a título das atividades de construção e de arrendamento de habitações destinadas a particulares, incluindo a construção e manutenção de infraestruturas anexas, e de construção e arrendamento de imóveis de interesse geral, são compatíveis com o artigo 106.o, n.o 2, TFUE’. Consequentemente, decidiu não colocar objeções relativamente às novas medidas notificadas.»

Tramitação do processo no Tribunal Geral e despacho recorrido

3

Por requerimento entrado na Secretaria do Tribunal Geral em 30 de abril de 2010, as recorrentes interpuseram um recurso de anulação da decisão controvertida nos termos do artigo 263.o TFUE.

4

Em apoio do seu recurso, as recorrentes invocaram diversos fundamentos.

5

Sem formalmente suscitar uma questão prévia de inadmissibilidade, a Comissão contestou, porém, a título preliminar, a admissibilidade desse recurso, alegando, por um lado, que a decisão controvertida, na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005, não dizia individualmente respeito às recorrentes, na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, e, por outro, que as referidas recorrentes não tinham interesse em agir para pedirem a anulação da parte da decisão controvertida relativa ao auxílio N 642/2009.

6

Nesse contexto, o Tribunal Geral decidiu pronunciar‑se previamente sobre essa questão.

7

Em primeiro lugar, tendo constatado que as recorrentes não eram destinatárias da decisão controvertida na parte em que esta tem por objeto o auxílio E 2/2005 e tendo recordado, no n.o 29 do despacho recorrido, que, nessas circunstâncias, não é admissível o recurso interposto por uma empresa contra uma decisão da Comissão que proíbe um regime de auxílios setorial quando essa decisão só diz respeito à referida empresa por pertencer ao setor em questão ou devido à sua qualidade de beneficiária potencial do referido regime, o Tribunal Geral concluiu, no n.o 30 desse despacho, que o mesmo é válido no tocante ao recurso de anulação de uma decisão com a qual a Comissão, atendendo ao respeito dos compromissos assumidos pelas autoridades nacionais, declarou compatíveis com o mercado comum as alterações introduzidas no regime de auxílios em causa.

8

No caso em apreço, o Tribunal Geral concluiu, nos n.os 31 e 32 do despacho recorrido, que a qualidade de wocos era atribuída em função de critérios objetivos que podiam ser preenchidos por um número indeterminado de operadores como potenciais beneficiários do auxílio E 2/2005 visado na decisão controvertida.

9

Por conseguinte, o Tribunal Geral concluiu que a sua mera qualidade de wocos não permitia às recorrentes considerar que a decisão controvertida, na parte respeitante ao auxílio E 2/2005, lhes dizia individualmente respeito.

10

Seguidamente, nos n.os 38 a 50 do despacho recorrido, o Tribunal Geral refutou os argumentos das recorrentes.

11

Antes de mais, indicou que os processos que deram origem aos acórdãos do Tribunal de Justiça invocados pelas recorrentes para fundamentar a sua posição, ou seja, os acórdãos de 17 de janeiro de 1985, Piraiki‑Patraiki e o./Comissão (11/82, Recueil, p. 207), e de 22 de junho de 2006, Bélgica e Forum 187/Comissão (C-182/03 e C-217/03, Colet., p. I-5479), se distinguiam do submetido ao Tribunal Geral, na medida em que, no quadro desses dois acórdãos do Tribunal de Justiça, as recorrentes pertenciam a um grupo cuja dimensão já não podia ser aumentada após a adoção das decisões em causa.

12

Em seguida, o Tribunal Geral considerou que as recorrentes não podiam alegar que o risco de um novo reconhecimento de uma instituição como woco era mínimo e que as wocos previamente reconhecidas eram identificáveis no momento da adoção da decisão controvertida. A este propósito, recordou que a possibilidade de determinar com maior ou menor precisão o número, ou mesmo a identidade, dos sujeitos jurídicos aos quais se aplica uma medida não implica que se deva considerar que essa medida diz individualmente respeito a esses sujeitos.

13

Respondendo ao argumento das recorrentes segundo o qual a decisão controvertida não afeta as wocos existentes do mesmo modo que as wocos a serem reconhecidas futuramente, o Tribunal Geral começou por salientar que o regime de auxílios visado nessa decisão foi declarado compatível com o mercado interno para o futuro. Em seguida, recordou que o facto de uma medida dizer respeito, do ponto de vista económico, mais a um operador do que aos seus concorrentes não permite individualizar esse operador. Por último, o Tribunal Geral considerou que as recorrentes pertenciam a uma categoria de operadores económicos definidos em função de critérios objetivos no quadro da qual não estão diferenciadas.

14

Daqui concluiu, no n.o 52 do despacho recorrido, que a decisão controvertida, na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005, não dizia individualmente respeito às recorrentes.

15

Em segundo lugar, no tocante à decisão controvertida na parte em que visa o auxílio N 642/2009, o Tribunal Geral considerou que as recorrentes não podiam invocar, no quadro da apreciação de um novo auxílio, uma situação anterior alegadamente mais favorável. Tendo salientado que a decisão controvertida declarou compatíveis os auxílios dos quais as recorrentes são potenciais beneficiárias, declarou, no n.o 63 do despacho recorrido, que as recorrentes não apresentaram a prova do seu interesse em agir contra a decisão controvertida, na parte em que visa o auxílio N 642/2009.

16

Por conseguinte, o Tribunal Geral julgou o recurso inadmissível na totalidade.

Pedidos das partes

17

Com o presente recurso, as recorrentes pedem ao Tribunal de Justiça que se digne:

anular o despacho recorrido;

remeter o processo ao Tribunal Geral; e

condenar a Comissão nas despesas.

18

A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao presente recurso e condene as recorrentes nas despesas.

Quanto ao presente recurso

19

Em apoio do seu recurso, os recorrentes invocam três fundamentos. O primeiro é relativo a um erro de direito, a uma apreciação incorreta dos factos pertinentes e a uma falta de fundamentação, por o Tribunal Geral ter subordinado a admissibilidade do recurso da decisão controvertida, na parte em que visa o auxílio E 2/2005, à questão de saber se as recorrentes eram beneficiárias efetivas ou potenciais das medidas. O segundo fundamento é relativo a um erro de direito, a uma apreciação incorreta dos factos pertinentes e a uma falta de fundamentação, por o Tribunal Geral ter considerado, relativamente à decisão controvertida, na parte em que visa o auxílio E 2/2005, que as recorrentes não pertenciam a um «círculo fechado» de wocos existentes. O terceiro fundamento é relativo a um erro de direito, a uma apreciação incorreta dos factos pertinentes e a uma falta de fundamentação, por o Tribunal Geral ter considerado que as recorrentes não tinham um interesse em agir contra a decisão controvertida na parte em que diz respeito ao auxílio N 642/2009.

20

Uma vez que os dois primeiros fundamentos do presente recurso visam as apreciações do Tribunal Geral a respeito da legitimidade ativa das recorrentes, há que apreciá‑los conjuntamente, após ter procedido ao exame do terceiro fundamento.

Quanto ao terceiro fundamento

Argumentos das partes

21

Segundo as recorrentes, em primeiro lugar, no n.o 59 do despacho recorrido, o Tribunal Geral pressupôs, erradamente, que as condições de aplicação do auxílio N 642/2009 emanavam das autoridades nacionais e não da Comissão.

22

Em seguida, no mesmo número do despacho recorrido, o Tribunal Geral concluíu erradamente pela falta de interesse em agir das recorrentes com o fundamento de que não era certo que a Comissão tivesse aprovado o regime de auxílios noutras condições.

23

Por último, nestas circunstâncias, foi erradamente que o Tribunal Geral não acolheu a alegação das recorrentes assente na violação dos seus direitos processuais, pois não puderam invocar o estatuto de parte interessada.

24

A Comissão salienta que, sendo o auxílio N 642/2009 um regime novo, as recorrentes não podem invocar uma situação hipotética anterior à adoção da decisão controvertida que lhes seria mais favorável.

25

Por conseguinte, haveria que julgar improcedente esse fundamento.

Apreciação do Tribunal de Justiça

26

Quanto ao primeiro argumento das recorrentes, impõe‑se constatar que o Tribunal Geral não relacionou o interesse em agir destas últimas contra a decisão controvertida, na parte em que respeita ao auxílio N 642/2009, com a questão de saber em que medida as condições de aplicação desse auxílio tinham sido estabelecidas pela própria Comissão ou pelas autoridades neerlandesas.

27

Em contrapartida, na medida em que a referida decisão visava um novo auxílio notificado, o Tribunal Geral justificou a falta do interesse em agir limitando‑se a indicar, no n.o 58 do despacho recorrido, que as recorrentes não podiam, para esse efeito, invocar uma situação anterior no quadro da qual o auxílio seria obtido em condições mais favoráveis do que as que figuram na decisão controvertida.

28

Quanto ao segundo argumento, impõe‑se constatar que está dirigido contra um fundamento superabundante, que consta do n.o 59 do despacho recorrido, cuja refutação não permitiria reconhecer o interesse em agir das recorrentes.

29

Em todo o caso, como salientou o advogado‑geral no n.o 36 das suas conclusões, as recorrentes procedem a uma leitura manifestamente errada desse número do despacho recorrido. Com efeito, não resulta deste último que as recorrentes não dispusessem de interesse em agir por não ser certo que a Comissão teria aprovado o regime de auxílios noutras condições. O Tribunal Geral entendeu simplesmente confirmar que as recorrentes não podiam, nas circunstâncias do caso em apreço, invocar uma situação anterior à adoção da decisão controvertida que lhes tivesse sido mais favorável, na medida em que não podiam invocar qualquer direito adquirido quanto à obtenção do auxílio visado.

30

Quanto ao terceiro argumento, o Tribunal de Justiça já declarou que, quando um recorrente pede a anulação da decisão da Comissão de não suscitar objeções, em razão da violação dos seus direitos processuais, cabe‑lhe demonstrar que, na fase preliminar de análise da medida notificada, a Comissão devia ter suscitado dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado comum (v., neste sentido, acórdão de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex, C-83/09 P, Colet., p. I-4441, n.o 59).

31

No caso em apreço, a decisão controvertida levou a uma declaração de compatibilidade do novo auxílio com o mercado interno no termo do exame preliminar. Uma vez que as recorrentes são suas potenciais beneficiárias, não podem alegar que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito relativo à violação dos seus direitos processuais.

32

Por conseguinte, há que julgar improcedente o terceiro fundamento.

Quanto ao primeiro e segundo fundamentos

Argumentos das partes

33

Em primeiro lugar, as recorrentes alegam que, tendo sido beneficiárias do auxílio E 2/2005 antes da sua alteração pela decisão controvertida, foi erradamente que o Tribunal Geral se baseou, nos n.os 44 e 45 do despacho recorrido, na sua qualidade de beneficiárias potenciais do regime de auxílios alterado para negar a sua qualidade de partes a quem essa decisão diz individualmente respeito. Com efeito, a sua situação anterior é amplamente posta em causa pelas novas condições de atribuição dos auxílios em razão das alterações introduzidas pela decisão controvertida.

34

Por um lado, os empréstimos existentes concedidos com base no regime antigo e que cheguem a seu termo após a adoção da decisão controvertida, caso devam ser refinanciados, só podem ser garantidos se a woco satisfizer as condições presentemente definidas no quadro do auxílio E 2/2005.

35

Por outro lado, se os empréstimos se reportavam a investimentos anteriormente elegíveis e que, após a adoção da decisão controvertida, deixaram de poder ser objeto de financiamento garantido pelo fundo, esses investimentos devem, no termo do prazo dos referidos empréstimos, ser financiados por fundos externos e sem garantia.

36

Daqui decorre que a situação de facto das recorrentes é diferente da situação das wocos que não tinham sido reconhecidas antes da adoção da decisão controvertida.

37

Em segundo lugar, o Tribunal Geral apoiou‑se numa definição demasiado estrita do conceito de «círculo fechado».

38

Assim, foi erradamente que o Tribunal Geral rejeitou, no n.o 46 do despacho recorrido, qualificando‑a de conjetura, a circunstância de que não haverá no futuro uma nova instituição reconhecida como woco nos Países Baixos.

39

Além disso, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito quando exigiu, no n.o 51 do despacho recorrido, que as recorrentes se distinguissem das outras wocos que existiam antes da adoção da decisão controvertida.

40

A Comissão alega que os compromissos assumidos pelas autoridades neerlandesas se referem apenas ao período após a adoção da decisão controvertida. Por conseguinte, a situação inicial das recorrentes não é afetada por essa decisão. Além disso, a Comissão não reclamou o reembolso dos montantes pagos ao abrigo do regime de auxílio inicial.

41

A Comissão salienta que a legislação neerlandesa prevê o reconhecimento de novas instituições com base em critérios objetivos. Por conseguinte, as recorrentes pertencem necessariamente a um círculo de operadores económicos suscetível de ser ampliado.

Apreciação do Tribunal de Justiça

42

A título preliminar, há que sublinhar que a decisão controvertida foi adotada em 15 de dezembro de 2009, ou seja, após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que alterou o Tratado CE.

43

Entre outras alterações, o Tratado de Lisboa, nos termos do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, flexibilizou os requisitos de admissibilidade dos recursos de anulação interpostos por pessoas singulares e coletivas contra os atos da União, acrescentando‑lhe um terceiro membro de frase. Com efeito, esse membro de frase, que não sujeita a admissibilidade dos recursos de anulação interpostos por pessoas singulares e coletivas ao requisito de o ato lhes dizer individualmente respeito, abre também essa via de recurso relativamente aos atos regulamentares que não careçam de medidas de execução e digam diretamente respeito ao recorrente (v., neste sentido, acórdão de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, C‑583/11 P, n.o 57).

44

O artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE prevê, portanto, dois casos concretos nos quais é reconhecida legitimidade a uma pessoa singular ou coletiva para interpor recurso de um ato do qual não é destinatária. Por um lado, esse recurso pode ser interposto na condição de esse ato lhe dizer direta e individualmente respeito. Por outro lado, essa pessoa pode interpor recurso de um ato regulamentar que não necessite de medidas de execução se o mesmo lhe disser diretamente respeito (acórdão de 19 de dezembro de 2013, Telefónica/Comissão, C‑274/12 P, n.o 19).

45

Neste contexto, cumpre recordar que o critério que sujeita a admissibilidade de um recurso interposto por uma pessoa singular ou coletiva de uma decisão de que não é a destinatária às condições de admissibilidade fixadas no artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE constitui um motivo de inadmissibilidade de ordem pública que os órgãos jurisdicionais da União podem a todo o tempo examinar, mesmo oficiosamente (v., neste sentido, acórdão de 23 de abril de 2009, Sahlstedt e o./Comissão, C-362/06 P, Colet., p. I-2903, n.o 22).

46

Ora, para julgar o seu recurso inadmissível, o Tribunal Geral limitou‑se, no despacho recorrido, a examinar o requisito de o ato dizer individualmente respeito às recorrentes, na aceção do segundo membro de frase do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, tendo‑se abstido de proceder ao exame da admissibilidade do referido recurso à luz dos outros requisitos, menos estritos, que estão previstos no terceiro membro de frase do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, e cujo exame não era minimamente prejudicado pela constatação de que o ato não lhes dizia individualmente respeito.

47

Tendo‑o feito, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito.

48

Porém, esse erro seria inoperante caso se concluísse que o recurso das recorrentes não satisfazia os requisitos de admissibilidade enunciados no artigo 263.o, quarto parágrafo, terceiro membro de frase, TFUE.

49

Em virtude da disposição acima mencionada, a via de recurso de anulação é possível, designadamente, a respeito de atos regulamentares que não comportam medidas de execução e digam diretamente respeito a um recorrente.

50

A este propósito, o Tribunal de Justiça já declarou que, para apreciar se um ato regulamentar necessita de medidas de execução, há que considerar a posição da pessoa que invoca o direito de recurso nos termos do último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.o TFUE (acórdão Telefónica/Comissão, já referido, n.o 30).

51

Além disso, para verificar se o ato recorrido necessita de medidas de execução, importa atender exclusivamente ao objeto do recurso (acórdão Telefónica/Comissão, já referido, n.o 31).

52

No presente caso, por um lado, as recorrentes pretendem com o seu recurso a anulação da decisão controvertida, pela qual a Comissão confirma a compatibilidade do auxílio E 2/2005 com o mercado comum, na sequência dos compromissos assumidos pelas autoridades neerlandesas que alteraram o regime de auxílios de que as recorrentes beneficiavam. Resulta do considerando 41 da decisão controvertida que esses compromissos serão aplicados através de um novo decreto ministerial e de uma nova lei sobre a habitação.

53

Por outro lado, a decisão controvertida não define as consequências específicas e concretas, para as atividades das recorrentes, que resultam da aplicação dos compromissos das autoridades neerlandesas no quadro do auxílio E 2/2005. Essas consequências materializam‑se nos atos de execução do decreto ministerial e da nova lei sobre a habitação, que constituem, enquanto tais, medidas de execução de que a decisão controvertida necessita, na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, terceiro membro de frase, TFUE.

54

Por essa razão, independentemente da questão de saber se a decisão controvertida é um «ato regulamentar», na aceção da disposição já referida, não satisfazendo o recurso das recorrentes os requisitos de admissibilidade previstos no artigo 263.o, quarto parágrafo, terceiro membro de frase, TFUE, é inoperante o erro de direito que o Tribunal Geral cometeu no despacho recorrido quando não examinou a admissibilidade do recurso também à luz desses outros requisitos.

55

Feito este esclarecimento, há agora que examinar o primeiro e segundo fundamentos invocados pelas recorrentes em apoio do seu recurso.

56

A este respeito, é pacífico que a decisão controvertida tem como único destinatário o Reino dos Países Baixos.

57

Como recordou o Tribunal Geral no n.o 28 do despacho recorrido, os terceiros que não sejam destinatários de uma decisão só podem alegar que esta lhes diz individualmente respeito se lhes for aplicável devido a certas qualidades que lhes são próprias ou a uma situação de facto que os caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e, assim, os individualiza de modo análogo ao destinatário (acórdãos de 15 de julho de 1963, Plaumann/Comissão, 25/62, Colet. 1962-1964, pp. 279, 284; de 29 de abril de 2004, Itália/Comissão, C-298/00 P, Colet., p. I-4087, n.o 36; Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referido, n.o 72; e Telefónica/Comissão, já referido, n.o 46).

58

A este propósito, é verdade que, como realçou o Tribunal Geral no n.o 47 do despacho recorrido, a simples possibilidade de determinar, com maior ou menor precisão, o número ou mesmo a identidade dos sujeitos jurídicos a quem se aplica uma medida de modo algum implica que se deva considerar que essa medida lhes diz individualmente respeito, a partir do momento em que se verifique que essa aplicação se fica a dever a uma situação objetiva de direito ou de facto que é definida pelo ato em causa (v. acórdão Telefónica/Comissão, já referido, n.o 47).

59

Resulta, porém, de jurisprudência constante que, quando a decisão diz respeito a um grupo de pessoas que estavam identificadas ou eram identificáveis no momento em que esse ato foi adotado, em função de critérios próprios aos membros do grupo, esse ato pode dizer individualmente respeito a essas pessoas, na medida em que fazem parte de um círculo restrito de operadores económicos, e que tal pode ser o caso, designadamente, quando a decisão altere os direitos adquiridos pelo particular antes da sua adoção (v., neste sentido, acórdão de 13 de março de 2008, Comissão/Infront WM, C-125/06 P, Colet., p. I-1451, n.os 71, 72 e jurisprudência referida).

60

No presente caso, importa salientar que, como constatou o Tribunal Geral no n.o 31 do despacho recorrido, sendo a qualidade das wocos atribuída por um sistema de reconhecimento mediante decreto real, o seu número e identidade estavam exatamente determinados no momento da adoção da decisão controvertida.

61

Além disso, não é contestado que a decisão controvertida teve por efeito alterar, a partir de 1 de janeiro de 2011, data da entrada em vigor da nova lei sobre a habitação, o regime de auxílios de que até então tinham beneficiado as wocos reconhecidas, tornando as condições do exercício das suas atividades menos favoráveis do que eram anteriormente, atendendo a que, nomeadamente como foi salientado pelas recorrentes na audiência, no âmbito do regime alterado, é reduzida a possibilidade de escolha dos locatários elegíveis a respeito das habitações geridas pelas wocos e desaparece o fundo de garantia dos empréstimos de que as mesmas beneficiavam.

62

Nestas circunstâncias, há que concluir que as recorrentes pertencem a um círculo fechado de operadores, o que as individualiza relativamente a essa decisão, na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005.

63

Assim, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito quando concluiu que a decisão controvertida, na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005, não dizia individualmente respeito às recorrentes.

64

Decorre das considerações precedentes que o despacho recorrido deve ser anulado, na medida em que foi decidido que a decisão controvertida, na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005, não diz individualmente respeito às recorrentes.

Quanto à admissibilidade do recurso de primeira instância

65

Em conformidade com o disposto no artigo 61.o, primeiro parágrafo, segundo período, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, caso este Tribunal anule a decisão do Tribunal Geral, pode decidir definitivamente o litígio, se estiver em condições de ser julgado.

66

Embora o Tribunal de Justiça não esteja, na presente fase do processo, em condições de poder decidir do mérito do recurso interposto no Tribunal Geral, dispõe, em contrapartida, dos elementos necessários para decidir definitivamente quanto à admissibilidade do referido recurso da decisão controvertida, na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005.

67

A este respeito, importa recordar, em primeiro lugar, que um recurso de anulação interposto por uma pessoa singular ou coletiva só é admissível se essa pessoa tiver interesse na anulação do ato recorrido. Esse interesse pressupõe que a anulação desse ato possa, por si só, produzir consequências jurídicas e que, assim, o resultado do recurso possa proporcionar um benefício à parte que o interpôs (v., neste sentido, acórdão de 17 de setembro de 2009, Comissão/Koninklijke FrieslandCampina, C-519/07 P, Colet., p. I-8495, n.o 63).

68

Em segundo lugar, nos termos do artigo 263.o, quarto parágrafo, segundo membro de frase, TFUE, o ato recorrido deve dizer respeito às recorrentes, não só individualmente, mas também diretamente, no sentido de que deve produzir diretamente efeitos na situação jurídica dessas partes e não deixar nenhum poder de apreciação às autoridades encarregadas da sua aplicação, tendo esta aplicação caráter puramente automático e decorrendo apenas do direito da União, sem aplicação de outras normas intermédias (v., neste sentido, acórdão Comissão/Koninklijke FrieslandCampina, já referido, n.os 48 e 49).

69

No caso em apreço, por um lado, na medida em que resulta do n.o 66 do presente acórdão que as alterações do regime de auxílios E 2/2005 tornam as condições do exercício das atividades das wocos menos favoráveis do que eram anteriormente, a anulação da decisão controvertida, na parte respeitante ao referido regime de auxílios, teria por efeito a manutenção das condições anteriores mais favoráveis às wocos reconhecidas.

70

Por conseguinte, importa constatar que as recorrentes dispõem de um interesse legítimo em que seja anulada a decisão controvertida na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005.

71

Por outro lado, há que recordar que a decisão controvertida foi adotada pela Comissão, como resulta do considerando 74 da mesma decisão, nos termos do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 659/1999.

72

Ora, como recordou o advogado‑geral nos n.os 43 a 45 das suas conclusões, no quadro do processo regido pelo artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 659/1999, é a decisão da Comissão que regista as propostas apresentadas pelo Estado‑Membro que torna as referidas propostas vinculativas.

73

A este respeito, a circunstância de as alterações registadas pela decisão controvertida terem sido retomadas pela legislação neerlandesa não permite pôr em causa essa constatação. Com efeito, como foi igualmente referido pelo advogado‑geral nos n.os 94 e 98 das suas conclusões, o Reino dos Países Baixos não dispõe de um poder de apreciação a respeito da aplicação da decisão controvertida.

74

Por conseguinte, há que concluir que a decisão controvertida, na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005, produz diretamente efeitos na situação jurídica das recorrentes.

75

Resulta do conjunto das considerações precedentes que o recurso de anulação interposto pelas recorrentes no Tribunal Geral deve ser julgado admissível, na medida em que estas dispõem, por um lado, de um interesse em agir para impugnar a decisão controvertida na parte em que se refere ao auxílio E 2/2005 e em que, por outro, a decisão controvertida lhes diz direta e individualmente respeito na parte relativa ao auxílio E 2/2005.

Quanto às despesas

76

Sendo o processo remetido ao Tribunal Geral, há que reservar para final a decisão quanto às despesas do presente recurso.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) decide:

 

1)

O despacho do Tribunal Geral da União Europeia de 16 de dezembro de 2011, Stichting Woonpunt e o./Comissão (T‑203/10), é anulado na parte em que julgou inadmissível o recurso de anulação interposto pela Stichting Woonpunt, Stichting Havensteder, Woningstichting Haag Wonen e Stichting Woonbedrijf SWS.Hhvl da Decisão C(2009) 9963 final da Comissão, de 15 de dezembro de 2009, relativa aos auxílios de Estado E 2/2005 e N 642/2009 — Países Baixos — Auxílio existente e auxílio especial por projeto a sociedades promotoras de habitação social, na parte em que essa decisão se refere ao regime de auxílios E 2/2005.

 

2)

É negado provimento ao recurso quanto ao restante.

 

3)

O recurso de anulação visado no n.o 1 do presente dispositivo é admissível.

 

4)

O processo é remetido ao Tribunal Geral da União Europeia para que conheça do mérito do recurso de anulação visado no n.o 1 do presente dispositivo.

 

5)

Reserva‑se para final a decisão quanto às despesas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.