CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 27 de fevereiro de 2014 ( 1 )

Processo C‑574/12

Centro Hospitalar de Setúbal, EPE

Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH)

contra

Eurest Portugal — Sociedade Europeia de Restaurantes, L.da

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal)]

«Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Inexistência de uma obrigação de organizar um processo de adjudicação segundo as normas do direito da União (adjudicação denominada ‘in house’) — Requisito do ‘controlo análogo’ — Adjudicatário juridicamente distinto da entidade adjudicante e que tem a forma de uma associação sem fins lucrativos — Participação de interesses privados no adjudicatário — Requisito do desenvolvimento da parte mais importante da atividade com as entidades adjudicantes que exercem o ‘controlo análogo’»

1. 

Com as seis questões prejudiciais submetidas pelo Supremo Tribunal Administrativo português no presente processo, o Tribunal de Justiça é novamente chamado a precisar o alcance dos requisitos exigidos para que uma entidade adjudicante possa invocar a exceção das chamadas adjudicações «in house». Por força dessa exceção, estabelecida pelo Tribunal de Justiça no acórdão Teckal ( 2 ), que já foi objeto de uma vasta jurisprudência, uma entidade adjudicante está dispensada de lançar um processo de concurso público se estiverem preenchidos dois requisitos: a entidade adjudicante exercer sobre o adjudicatário um «controlo análogo» ao que exerce sobre os seus próprios serviços e o adjudicatário realizar a parte mais importante da sua atividade com as entidades adjudicantes que o controlam ( 3 ).

2. 

O presente processo suscita algumas questões inéditas que permitirão ao Tribunal esclarecer a partir de agora o âmbito de aplicação da exceção «in house». Por um lado, o Tribunal é chamado a definir o alcance da sua jurisprudência segundo a qual a presença de interesses privados no capital do adjudicatário exclui a possibilidade de a entidade adjudicante exercer um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços ( 4 ). Mais especificamente, o Tribunal deve esclarecer se a abordagem restritiva adotada nessa jurisprudência no que respeita às participações privadas no capital de sociedades adjudicatárias também deve ser seguida no caso de o adjudicatário ser uma associação sem fins lucrativos que tem igualmente como associados, além das entidades adjudicantes, associações que prosseguem fins caritativos e de beneficência.

3. 

Por outro lado, no presente processo, o Tribunal é chamado a precisar os limites do segundo «requisito Teckal», ou seja, o requisito nos termos do qual o adjudicatário deve realizar a parte mais importante da sua atividade com a entidade ou as entidades adjudicantes que o controlam.

I – Quadro jurídico

A – Direito da União

4.

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE ( 5 ) estabelece que os «‘[c]ontratos públicos’ são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na aceção da presente diretiva».

B – Legislação nacional

5.

Nos termos do artigo 5.o, n.o 2, do Código dos Contratos Públicos português ( 6 ), que transpôs a Diretiva 2004/18 para o ordenamento jurídico português, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, as regras em matéria de contratação pública do código «[não são aplicáveis] à formação dos contratos, independentemente do seu objeto, a celebrar por entidades adjudicantes com uma outra entidade, desde que:

a)

A entidade adjudicante exerça sobre a atividade desta, isoladamente ou em conjunto com outras entidades adjudicantes, um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços; e

b)

Esta entidade desenvolva o essencial da sua atividade em benefício de uma ou de várias entidades adjudicantes que exerçam sobre ela o controlo análogo referido na alínea anterior».

II – Factos, tramitação do processo principal e questões prejudiciais

6.

O Centro Hospitalar de Setúbal (a seguir «CHS»), primeiro recorrente no processo principal, é um hospital público português.

7.

O Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (a seguir «SUCH»), segundo recorrente no processo principal, é uma associação sem fins lucrativos instituída pelo Decreto‑Lei n.o 46.668, de 24 de novembro de 1965, e dotada dos seus próprios estatutos ( 7 ). Nos termos do artigo 2.o dos mesmos estatutos, o SUCH tem por finalidade a realização de uma missão de serviço público; constitui um instrumento de autossatisfação das necessidades dos seus associados e tem por objetivo a sua eficácia. Contribui, além disso, para a concretização da política da saúde, concorrendo significativamente para a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde.

8.

Nos termos do artigo 7.o, n.o 1, dos estatutos do SUCH, apenas podem ser associados as entidades pertencentes ao setor público e social que desenvolvam atividades relacionadas com a promoção e a proteção da saúde. Nos termos do n.o 2 do mesmo artigo, o SUCH deve, todavia, assegurar que a maioria dos direitos de voto na assembleia‑geral pertença a associados que integrem e estejam sujeitos aos poderes de direção, superintendência e tutela do membro do governo responsável pela área da saúde. No momento dos factos pertinentes do presente processo, o SUCH tinha 88 membros, entre os quais o CHS, e ainda 23 instituições privadas de solidariedade social, todas sem fins lucrativos, das quais 20 instituições caritativas (Misericórdias).

9.

Nos termos do artigo 3.o dos seus estatutos, o SUCH está sujeito aos poderes de direção, superintendência e tutela do membro do governo responsável pela área da saúde, ao qual compete nomear o presidente e o vice‑presidente do conselho de administração, bem como homologar as deliberações da assembleia‑geral que impliquem um nível de endividamento líquido igual ou superior a 75% dos capitais próprios apurados no exercício do ano transato, as alterações dos estatutos e a dissolução do SUCH.

10.

Nos termos do artigo 5.o, n.o 3, dos seus estatutos, o SUCH pode, em regime de concorrência e de mercado, prestar serviços a entidades públicas não associadas ou entidades privadas nacionais ou estrangeiras, desde que não resulte qualquer prejuízo para os associados e seja vantajoso para o SUCH e para os seus associados, quer no plano económico quer no plano da valorização tecnológica. O n.o 4 do mesmo artigo precisa que o SUCH deve assegurar que, no mínimo, 80% da sua atividade seja desenvolvida em benefício dos seus associados.

11.

Em 27 de julho de 2011, o CHS celebrou com o SUCH um acordo tendo por objeto o fornecimento por parte deste último de refeições aos doentes e ao pessoal do CHS. O acordo foi celebrado por um período de cinco anos renováveis e prevê o pagamento de um preço anual de 1295289 euros, ou seja, para os cinco anos de duração do acordo, 6476445 euros. A prestação de serviços objeto do acordo foi ajustada diretamente pelo CHS ao SUCH sem recurso aos processos de adjudicação previstos na Diretiva 2004/18, uma vez que, na opinião dos contratantes, esse acordo se inseria no âmbito das relações «in house» existentes entre o SUCH e os hospitais associados, entre os quais o CHS.

12.

Considerando que o ajuste direto ao SUCH da prestação dos serviços objeto do acordo celebrado com o CHS era ilegal na medida em que foi efetuado sem processo de adjudicação pública e, portanto, em violação da legislação nacional e europeia em matéria de concursos públicos, a Eurest (Portugal) ‐ Sociedade Europeia de Restaurantes, L.da (a seguir «Eurest»), sociedade que presta serviços como os objeto do acordo, que era parte num contrato com o CHS para o fornecimento de refeições que foi rescindido a seguir à celebração do acordo entre o CHS e o SUCH, intentou uma ação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada. Nessa ação, a Eurest pedia, por um lado, a anulação do despacho do conselho de administração do CHS que previa a resolução do seu contrato com esse hospital e, por outro, a anulação do acordo entre o CHS e o SUCH.

13.

Por sentença de 30 de janeiro de 2012, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada julgou a ação procedente e declarou nulo o acordo entre o CHS e o SUCH. O referido tribunal considerou que não tinha ficado demonstrada a existência dos requisitos para a aplicação das exceções previstas no artigo 5.o, n.o 2, do Código dos Contratos Públicos e que, portanto, a adjudicação dos serviços previstos no acordo devia ser objeto de um procedimento de contratação pública. O CHS e o SUCH recorreram da sentença de primeira instância para o Tribunal Central Administrativo do Sul, que, por acórdão de 26 de abril de 2012, negou provimento aos seus recursos. O SUCH e o CHS interpuseram recurso de revista desse acórdão para o Supremo Tribunal Administrativo, ou seja, o órgão jurisdicional de reenvio.

14.

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que não é contestado que um hospital como o CHS, enquanto pessoa coletiva de direito público, constitui uma entidade adjudicante. Também não está em discussão que o acordo celebrado pelo CHS com o SUCH, uma entidade distinta, constitui um contrato público de prestação de serviços. O órgão jurisdicional de reenvio observa igualmente que, para que tal contrato possa ser objeto de um ajuste direto «in house», é necessário estarem reunidos os dois requisitos previstos no artigo 5.o, n.o 2, do Código dos Contratos Públicos, acima referidos no n.o 5, que codifica a jurisprudência Teckal.

15.

No que respeita, em especial, ao primeiro requisito, ou seja, a existência do «controlo análogo», o órgão jurisdicional de reenvio observa que a natureza peculiar do SUCH, que tem também como associados instituições privadas de solidariedade social, suscita questões novas à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual a participação, ainda que minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade exclui em qualquer caso a existência desse tipo de controlo ( 8 ), sobretudo tendo em conta que, em direito da União, não é necessário que a entidade em questão tenha fins lucrativos para constituir uma empresa. Além disso, fazendo referência a um acórdão em que o Tribunal de Contas português negou o visto ao acordo em causa e cuja fundamentação foi reproduzida no acórdão nele impugnado, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o requisito do controlo análogo está preenchido no caso vertente, tendo em conta o número dos associados não públicos do SUCH, a sua ampla autonomia e a sua independência em relação aos poderes públicos, a sua dinâmica concreta de funcionamento e, em especial, o funcionamento do seu conselho de administração, bem como a sua dimensão e a sua complexidade.

16.

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se se o segundo requisito necessário para a aplicação das exceções relativas às adjudicações «in house» pode ser preenchido quando, em conformidade com as disposições dos estatutos do SUCH, este pode realizar 20% do seu volume de negócios através da prestação de serviços em regime de concorrência a entidades terceiras diferentes dos seus associados.

17.

À luz destas considerações, o órgão jurisdicional de reenvio, por despacho de 6 de novembro de 2012, considerou necessário suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

É compatível com a doutrina comunitária da contratação [‘in house’], que um hospital público adjudique, com dispensa do procedimento de formação previsto na lei para o respetivo contrato, a uma associação sem fins lucrativos, de que é associado e que tem por finalidade a realização de uma missão de serviço público na área da saúde, com vista à maior eficácia e eficiência dos seus associados, as prestações relativas à alimentação hospitalar de sua competência, assim transferindo para esta a responsabilidade das suas funções nesta área, se, nos termos estatutários, podem ser associados dessa associação não só entidades pertencentes ao setor público, mas também ao sector social, sendo que à data da adjudicação, as entidades do setor social eram 23 instituições particulares de solidariedade social (IPSS), todas sem fins lucrativos e entre elas misericórdias, num universo de 88 associados?

2)

Pode considerar‑se que a entidade adjudicatária se encontra numa posição de sujeição decisória relativamente aos associados públicos, em termos de estes exercerem, isoladamente ou em conjunto, um controlo análogo ao que exercem sobre os seus próprios serviços se, nos termos estatutários, a entidade adjudicatária dever assegurar que a maioria dos direitos de voto pertença a associados que integrem e estejam sujeitos aos poderes de direção, superintendência e tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde, sendo que o seu Conselho de Administração é também maioritariamente composto por associados públicos?

3)

Poder‑se‑á considerar verificado o requisito do ‘controlo análogo’ à luz da doutrina comunitária da contratação [‘in house’] se[,] nos termos estatutários, a entidade adjudicatária estiver sujeita aos poderes de tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde, a quem compete nomear o Presidente e o Vice‑Presidente do Conselho de Administração, homologar as deliberações da Assembleia Geral sobre a contração de empréstimos que impliquem um nível de endividamento líquido igual ou superior a 75% dos capitais próprios apurados no exercício do ano transato, homologar as deliberações sobre as alterações dos Estatutos, homologar as deliberações da AG sobre a dissolução da entidade adjudicatária, bem como determinar o destino a dar aos seus bens, em caso de dissolução?

4)

O facto de a entidade adjudicatária ser uma organização de grande dimensão e complexa, que atua em todo o território português e tem como associados a generalidade dos serviços e instituições do Serviço Nacional de Saúde, incluindo as maiores unidades hospitalares do País, com um volume de negócios de vendas previsto na ordem de 90 milhões de euros, com um negócio que envolve variadas e complexas áreas de atividade, com indicadores de atividade muito impressivos, com mais de 3300 trabalhadores, participando em dois agrupamentos complementares de empresas e em duas sociedades comerciais, permite a qualificação das relações entre ela e os seus associados públicos, como mera contratação interna ou [‘in house’]?

5)

O facto de a entidade adjudicatária poder, nos termos dos Estatutos[,] prestar serviços, em regime de concorrência, a entidades públicas não associadas ou entidades privadas, nacionais ou estrangeiras (i) desde que não resulte daí qualquer prejuízo para os associados e seja vantajoso para estes e para a entidade adjudicatária, quer no plano económico, quer em matéria de enriquecimento e valorização tecnológica e (ii) desde que a prestação desses serviços não represente um volume de faturação superior a 20% do seu volume global anual de negócios apurados no exercício económico anterior[…] permite considerar verificado o requisito da contratação [‘in house’], designadamente no que respeita ao requisito do ‘destino essencial da atividade’ exigido pelo artigo 5.o, n.o 2, b), do CCP?

6)

Caso a resposta a qualquer das anteriores questões não seja, só por si, suficiente para se concluir pela verificação ou inverificação dos requisitos previstos no artigo 5.o, n.o 2, do CCP, à luz da doutrina comunitária da contratação [‘in house’], a apreciação conjunta dessas respostas permite concluir pela existência desse tipo de contratação?»

III – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

18.

O despacho de reenvio deu entrada na Secretaria em 7 de dezembro de 2012. Apresentaram observações escritas o CHS, o SUCH, a Eurest, os Governos português e espanhol, bem como a Comissão, tendo todos participado na audiência, que decorreu em 21 de novembro de 2013.

IV – Análise jurídica

19.

Em primeiro lugar, há que observar que decorre do despacho de reenvio que não é contestado que o contrato celebrado entre o CHS e o SUCH constitui um contrato público, e que está enquanto tal sujeito, em princípio, à regulamentação europeia em matéria de contratos públicos, em especial às disposições da Diretiva 2004/18 ( 9 ).

20.

Ao invés, o problema controvertido no processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio, a que se referem todas as questões prejudiciais submetidas por esse órgão jurisdicional ao Tribunal de Justiça, diz respeito à aplicabilidade a esse contrato da exceção relativa às denominadas adjudicações «in house».

A – Quanto à primeira questão prejudicial

21.

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se a exceção à aplicabilidade das disposições da Diretiva 2004/18 decorrente da sua jurisprudência em matéria de adjudicações «in house» também pode ser aplicada quando o adjudicatário seja uma associação sem fins lucrativos que tem por objeto a realização de uma missão de serviço público e cujos estatutos permitem que podem ser seus associados entidades pertencentes não só ao setor público mas também ao setor social e também quando, à data da adjudicação do contrato, uma parte, mesmo minoritária, dos associados dessa associação não pertence ao setor público, mas é constituída por instituições pertencentes ao setor social que exercem atividades sem fins lucrativos, em particular atividades de beneficência.

22.

Esta questão diz respeito ao primeiro dos dois requisitos Teckal, ou seja, ao exercício por parte de uma entidade adjudicante sobre um adjudicatário de um «controlo análogo» ao que exerce sobre os seus próprios serviços ( 10 ). Portanto, é oportuno recordar de forma breve, a título preliminar, o alcance do requisito do «controlo análogo» como foi definido na jurisprudência.

23.

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que existe um controlo análogo quando o adjudicatário em questão é sujeito a um controlo que permite à entidade adjudicante influenciar as suas decisões. Deve tratar‑se de uma possibilidade de influência determinante, tanto sobre os objetivos estratégicos como sobre as decisões importantes da entidade submetida ao controlo. Por outras palavras, a entidade adjudicante deve estar em condições de exercer sobre o adjudicatário um controlo estrutural e funcional. Por outro lado, o Tribunal exige igualmente que esse controlo seja efetivo ( 11 ).

24.

Além disso, segundo a jurisprudência, caso se recorra a uma entidade detida em comum por várias autoridades públicas, o «controlo análogo» pode ser exercido conjuntamente por essas autoridades, não sendo indispensável que seja exercido individualmente por cada uma delas ( 12 ).

25.

Todavia, segundo jurisprudência constante, a participação, mesmo minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade na qual participa também a entidade adjudicante em questão exclui, em qualquer caso, que essa entidade adjudicante possa exercer sobre a referida sociedade um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços ( 13 ).

26.

Dito isto, no que respeita especificamente à questão prejudicial submetida ao Tribunal de Justiça, importa antes de mais observar que a circunstância de o adjudicatário ser constituído sob uma forma que tem uma natureza jurídica de direito privado não exclui de modo algum a aplicação da exceção «in house» ( 14 ). Com efeito, o Tribunal já reconheceu várias vezes a aplicabilidade desta exceção no caso de um adjudicatário constituído sob uma forma típica de direito privado, como, por exemplo, uma sociedade por ações ( 15 ).

27.

A circunstância de o adjudicatário do ajuste direto não ter fins lucrativos não é relevante para efeitos da aplicação da exceção «in house». De facto, a aplicação desta exceção tem fundamento na relação interna existente entre a entidade adjudicante e o adjudicatário, o que significa que não existe um confronto de duas vontades autónomas representativas de interesses jurídicos diferentes ( 16 ). Essa relação é, portanto, independente não só da natureza jurídica do adjudicatário mas também da circunstância de este ter ou não fins lucrativos. De resto, decorre da jurisprudência que o facto de uma entidade, em especial uma associação, não ter fins lucrativos não exclui de modo nenhum que esta exerça uma atividade económica e não é portanto, suficiente, em si mesma, para excluir essa entidade da aplicação das disposições do direito da União em matéria de contratos públicos ( 17 ).

28.

Em seguida, no que respeita à presença, entre os associados que fazem parte do adjudicatário, de entidades que pertencem não só ao setor público mas também ao setor social, há que recordar que, como foi acima mencionado nos n.os 2 e 25, o Tribunal, em jurisprudência agora constante, declarou que a participação, mesmo minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade na qual participa a entidade adjudicante que pretende efetuar a adjudicação «in house» exclui que essa entidade adjudicante possa exercer sobre tal sociedade o necessário controlo análogo.

29.

Ora, como foi de resto salientado pelo próprio órgão jurisdicional de reenvio, nos termos dessa jurisprudência, a possibilidade do exercício de um controlo análogo por parte da entidade adjudicante sobre o adjudicatário é excluída no caso de existirem interesses privados neste último, sob a forma de uma participação de uma empresa no capital social de uma sociedade.

30.

O caso do SUCH distingue‑se todavia de uma situação deste tipo, na medida em que, por um lado, não foi constituído sob a forma de uma sociedade e não dispõe, portanto, de capital social e, por outro, as entidades de direito privado para a promoção social que são suas associadas e não têm natureza pública não são necessariamente empresas em sentido estrito.

31.

O problema central que se coloca na primeira questão prejudicial é, portanto, precisamente este: deve ser aplicada a uma situação como a do SUCH o princípio desenvolvido na jurisprudência segundo o qual a presença de interesses privados no adjudicatário exclui a possibilidade de a entidade adjudicante exercer sobre ele um controlo análogo, com a consequente exclusão da possibilidade de efetuar ajustes diretos a favor de tal entidade em aplicação da exceção «in house»?

32.

A este respeito, recordo, a título preliminar, que o Tribunal já declarou em várias ocasiões que o objetivo principal das normas da União em matéria de contratos públicos é a livre circulação das mercadorias e dos serviços e a abertura à concorrência na medida mais ampla possível em todos os Estados‑Membros ( 18 ). Tal objetivo implica a obrigação, para qualquer entidade adjudicante, de aplicar as normas da União em matéria de contratos públicos quando se verifiquem os pressupostos estabelecidos por essas normas, com a consequência de que qualquer derrogação à aplicação de tal obrigação deve ser objeto de interpretação estrita ( 19 ).

33.

Nesta perspetiva, saliento que, segundo a jurisprudência, a exclusão da existência de uma relação «in house» que justifique um ajuste direto no caso de haver interesses privados no capital do adjudicatário tem duas razões. Como foi salientado pelo Tribunal, com efeito, por um lado, a relação entre uma autoridade pública, entidade adjudicante, e os seus próprios serviços obedece a considerações e exigências específicas da prossecução de objetivos de interesse público, ao passo que qualquer investimento de capital privado numa empresa obedece a considerações inerentes aos interesses privados e prossegue objetivos de natureza diferente ( 20 ).

34.

Por outro lado, o Tribunal já salientou que a adjudicação de um contrato público a uma empresa de economia mista sem concurso colide com o objetivo de uma concorrência livre e não falseada e com o princípio da igualdade de tratamento dos interessados, em especial na medida em que esse procedimento oferece a uma empresa privada com capital nessa empresa uma vantagem relativamente aos seus concorrentes ( 21 ).

35.

Ora, considero que ambas as considerações expostas pelo Tribunal sobre a participação de uma empresa privada no capital social de uma sociedade podem ser aplicadas a uma situação como a do SUCH, com base nos elementos que figuram nos autos.

36.

Com efeito, por um lado, a análise segundo a qual a prossecução de interesses privados obedece a considerações diferentes das inerentes à prossecução de interesses públicos não se limita, em meu entender, ao caso da existência de investimentos privados numa sociedade. Na verdade, é indubitável que a participação num adjudicatário de entidades como as entidades privadas para a promoção da solidariedade social responde a lógicas e a interesses de natureza privada, como, por exemplo, interesses caritativos ou de beneficência que têm objetivos que, mesmo sendo louváveis, não coincidem necessariamente com o interesse público. Tais objetivos, efetivamente, embora possam ser nalguns casos qualificáveis, em abstrato, de interesse geral, têm todavia elementos inerentes ao interesse privado, como, por exemplo, a conotação religiosa ( 22 ) ou associativa, que, podendo ser complementares do interesse público, lhe são todavia alheios.

37.

Por outro lado, na medida em que não está excluído que associações sem fins lucrativos, como as associações caritativas associadas do SUCH, possam exercer uma atividade económica em concorrência com outros operadores e possam participar em concursos públicos ( 23 ), o ajuste direto de um contrato público ao abrigo da exceção «in house» é suscetível de oferecer a esses operadores, como no caso das sociedades, uma vantagem em relação aos seus concorrentes.

38.

As considerações expostas levam, em meu entender, a excluir, pelo menos no estado atual do direito ( 24 ), a possibilidade de admitir que uma entidade adjudicante possa exercer um controlo análogo ao que exerce sobre os seus serviços relativamente a uma associação sem fins lucrativos que conta entre os seus associados, ainda que minoritariamente, entidades não públicas de direito privado e titulares de interesses privados, como associações sem fins lucrativos que prosseguem interesses caritativos ou de solidariedade. Daqui decorre que, em meu entender, deve ser excluído o ajuste direto de um contrato público por uma entidade adjudicante a uma entidade desse tipo com fundamento na exceção «in house». Incumbirá, evidentemente, ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar as necessárias verificações a este respeito.

39.

Assim, considero todavia necessário fazer ainda algumas considerações.

40.

Em primeiro lugar, o facto de a participação, mesmo minoritária, num adjudicatário de sujeitos que representam interesses privados, mesmo que não prossigam fins lucrativos, impedir, no estado atual do direito, que possa haver uma relação do tipo «in house» entre uma ou mais entidades adjudicantes e o referido adjudicatário não significa de modo algum que a natureza e as finalidades dos organismos de solidariedade, de voluntariado ou de beneficência não possam ser tomadas em consideração no âmbito do direito dos contratos públicos. A este respeito, não posso, efetivamente, deixar de observar, por um lado, que a solidariedade é expressamente reconhecida no artigo 2.o TUE como um dos valores que caracterizam o modelo de sociedade europeu e que, portanto, as entidades que prosseguem tais valores contribuem ativamente para a construção de uma sociedade europeia conforme com o espírito dos Tratados ( 25 ). Por outro lado, e em consonância com esta observação, há que reconhecer que as considerações de tipo social e de solidariedade não são alheias à regulamentação em matéria de contratos públicos, como demonstra, por exemplo, o artigo 26.o da Diretiva 2004/18, que prevê que as condições de execução do contrato podem visar considerações de índole social ( 26 ).

41.

Em segundo lugar, há que observar que o mero facto de os estatutos da associação sem fins lucrativos adjudicatária do contrato preverem que dela podem fazer parte entidades pertencentes não só ao setor público mas também ao setor social não é, por si só, suscetível de excluir a possibilidade de uma relação «in house», no caso de, no momento da adjudicação do contrato, apenas as autoridades públicas fazerem efetivamente parte dessa associação. Com efeito, não seria conforme com o princípio da segurança jurídica admitir que a simples possibilidade, prevista pelos estatutos, de pessoas privadas participarem numa associação possa suspender indefinidamente a avaliação relativa ao caráter totalmente público ou não da referida associação. Daqui decorre que, no caso de, no momento em que o contrato em causa é adjudicado, os associados da associação em questão serem exclusivamente autoridades públicas, a abertura da participação nesta última a pessoas privadas só pode entrar em linha de conta quando, nesse momento, existir uma perspetiva concreta a curto prazo dessa abertura. A mera possibilidade de os privados participarem numa associação não é, portanto, suficiente para concluir que o requisito relativo ao controlo análogo por parte da autoridade pública não está preenchido ( 27 ).

42.

Ao invés, no caso de um contrato ser adjudicado sem abertura de concurso a uma associação cujos associados são todos autoridades públicas, o facto de, durante o período de validade desse contrato, os privados serem admitidos como associados de tal associação constitui uma alteração de uma condição fundamental do contrato que imporia a abertura de um concurso ( 28 ).

43.

Resulta de todas as considerações expostas que, em minha opinião, há que responder à primeira questão prejudicial suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio que a exceção à aplicabilidade das normas da União em matéria de contratos públicos prevista para as adjudicações «in house» não pode aplicar‑se quando o adjudicatário com o qual a entidade adjudicante pretende ajustar diretamente o contrato sem concurso público seja uma entidade de direito privado que conta entre os seus associados, ainda que minoritariamente, entidades titulares de interesses privados.

B – Quanto à segunda e terceira questões prejudiciais

44.

Com a segunda e terceira questões prejudiciais, que podem, em meu entender, ser abordadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se pode existir «controlo análogo» sobre um adjudicatário quando algumas disposições dos estatutos deste conferem poderes especiais nos seus órgãos estatutários aos associados que têm natureza pública ou ao membro competente do governo.

45.

Mais concretamente, com a segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal, em substância, se há um «controlo análogo», individual ou conjunto, sobre um adjudicatário por parte dos seus associados públicos quando, em conformidade com os estatutos desse adjudicatário, este deve assegurar que a maioria dos direitos de voto na assembleia‑geral seja detida pelos associados que atuam sob a autoridade do membro do governo responsável pela área da saúde e estão sujeitos aos poderes de direção, superintendência e tutela deste, e quando a maioria dos membros do seu conselho de administração são associados públicos.

46.

Com a terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se há um «controlo análogo» quando o adjudicatário, em conformidade com os seus estatutos, está sujeito ao poder de tutela do membro do governo responsável pelo setor da saúde, que é competente para nomear o presidente e o vice‑presidente do conselho de administração e para homologar certas deliberações especiais da assembleia‑geral, como as previstas no artigo 3.o dos estatutos do SUCH ( 29 ).

47.

Ora, decorre da resposta à primeira questão prejudicial que está excluído que uma entidade adjudicante possa exercer sobre um adjudicatário um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços no caso de titulares de interesses privados deterem no adjudicatário uma participação, ainda que minoritária. Em meu entender, esta conclusão, que é a expressão de uma interpretação restritiva da exceção, em conformidade com a jurisprudência mencionada no n.o 32, tem como consequência lógica que a participação no adjudicatário de entidades titulares de interesses privados não pode ser corrigida através de eventuais disposições dos estatutos do adjudicatário que atribuam poderes especiais de controlo e de tutela aos seus restantes associados públicos ou ao membro competente do governo. Daqui resulta, em minha opinião, que se deve responder negativamente à segunda e terceira questões prejudiciais.

48.

Além disso, observo incidentalmente que o facto de o adjudicatário estar sujeito à tutela direta ( 30 ) ou indireta ( 31 ) do membro competente do governo não significa necessariamente que as entidades adjudicantes exerçam sobre esse adjudicatário, individual ou conjuntamente, um controlo análogo ao que exercem sobre os seus próprios serviços.

49.

Com efeito, é verdade que o poder de controlo sobre os órgãos de decisão do adjudicatário pode, em função das circunstâncias próprias de cada caso concreto, ser considerado um dos elementos que permitem às entidades adjudicantes exercer sobre esse adjudicatário um controlo análogo ao que exercem sobre os seus próprios serviços ( 32 ). Em abstrato, também é verdade que não é de excluir que, em determinadas circunstâncias especiais de um caso concreto ( 33 ), os poderes de controlo e de tutela atribuídos às autoridades públicas que controlam as entidades adjudicantes que, por seu turno, exercem um controlo sobre o adjudicatário possam contribuir para limitar a autonomia da vontade deste último de um modo tal que se possa reconhecer a existência de um controlo análogo por parte da referida entidade adjudicante sobre o adjudicatário.

50.

Todavia, não obstante tais considerações, a existência do controlo análogo deve ser apurada especificamente em relação às entidades adjudicantes que devem exercê‑lo sobre a entidade à qual pretendem ajustar diretamente o contrato, e não em relação ao Estado enquanto tal por intermédio do membro competente do governo.

51.

À luz das considerações precedentes, entendo que se deve responder à segunda e terceira questões prejudiciais que, em caso de participação no adjudicatário, ainda que minoritária, de entidades titulares de interesses privados, disposições dos estatutos dessa entidade que atribuam poderes especiais de controlo ou de tutela aos seus restantes associados públicos ou ao membro competente do governo não permitem concluir pela existência de um controlo análogo sobre o adjudicatário de molde a justificar a aplicação da exceção «in house».

C – Quanto à quarta questão prejudicial

52.

Com a quarta questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal, em substância, se a circunstância de o adjudicatário ser uma organização complexa e de grandes dimensões, que opera em todo o território nacional, permite qualificar a relação entre esse adjudicatário e os seus associados públicos de «in house», de molde a justificar o ajuste direto de um contrato.

53.

Também esta questão prejudicial, como as três anteriores, diz respeito ao primeiro «requisito Teckal», ou seja, à existência de um «controlo análogo». No n.o 23, recordei o alcance deste requisito como foi definido pela jurisprudência, ou seja, como uma forma de controlo estrutural, funcional e efetivo. Ao invés, no n.o 27, recordei que, segundo a jurisprudência, o fundamento da exceção «in house» é a falta de autonomia do adjudicatário.

54.

Ora, resulta destas premissas que a grande dimensão e a estrutura complexa de uma entidade não constituem, por si sós, elementos que permitam concluir que uma administração exerce efetivamente um controlo estrutural e funcional sobre um adjudicatário e qualificar a relação existente entre eles de «controlo análogo» na aceção da jurisprudência.

55.

Todavia, isto não significa que tais elementos sejam totalmente irrelevantes para a análise destinada a determinar a existência de um controlo análogo. Com efeito, a grande dimensão e a estrutura complexa de uma entidade podem, em meu entender, constituir indícios suscetíveis de, no âmbito de uma avaliação complexa de todas as circunstâncias do caso concreto, levar a concluir que essa entidade goza de uma margem de autonomia tal que exclui a existência do controlo análogo. É, portanto, neste sentido que considero que se deve responder à quarta questão prejudicial.

D – Quanto à quinta questão prejudicial

56.

Com a quinta questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal, em substância, se é possível aplicar a exceção «in house» quando um adjudicatário pode, em conformidade com os seus estatutos, prestar serviços em regime de concorrência a entidades públicas não associadas ou a entidades privadas, na condição, em primeiro lugar, de que isso não cause um prejuízo aos seus associados e seja vantajoso para estes e para o adjudicatário e, em segundo lugar, de que a prestação desses serviços não represente um volume superior a 20% da sua faturação global anual apurada no exercício do ano anterior.

57.

Enquanto as quatro primeiras questões diziam todas respeito ao primeiro requisito Teckal, ou seja, à existência do «controlo análogo», a quinta questão é relativa, em contrapartida, ao segundo requisito necessário para a aplicação da exceção «in house», ou seja, ao requisito nos termos do qual o adjudicatário deve realizar a parte mais importante da sua própria atividade com a entidade ou as entidades adjudicantes que o controlam.

58.

A este respeito, há que recordar que o Tribunal já declarou que esse segundo requisito tem por objetivo, em especial, garantir que a regulamentação relativa aos contratos públicos continua a ser aplicável no caso de uma empresa controlada por uma ou mais entidades operar no mercado e, portanto, poder entrar em concorrência com outras empresas. Com efeito, o Tribunal assinalou que uma empresa não fica necessariamente privada da sua liberdade de ação pelo simples facto de as decisões que lhe dizem respeito serem tomadas pela entidade pública que a detém, se, apesar disso, puder exercer uma parte importante da sua atividade económica com outros operadores ( 34 ).

59.

O Tribunal também precisou que o adjudicatário em questão só realiza a parte mais importante da sua atividade com a entidade adjudicante ou as entidades adjudicantes que a detêm se a sua atividade for substancialmente e principalmente destinada, em exclusivo, à entidade adjudicante (ou às entidades adjudicantes) e se, portanto, qualquer outra atividade tiver apenas caráter marginal ( 35 ). No caso de várias entidades adjudicantes exercerem o controlo análogo sobre o adjudicatário, a atividade a tomar em consideração é a realizada pelo adjudicatário com todas as entidades adjudicantes ( 36 ).

60.

Além disso, no acórdão Asociación Nacional de Empresas Forestales ( 37 ), o Tribunal considerou que, salvo as necessárias verificações de facto que incumbem ao órgão jurisdicional de reenvio, essa condição estava preenchida no caso de o adjudicatário realizar, com as entidades e os organismos públicos que o detinham, em média cerca de 90% da sua atividade ( 38 ).

61.

Assim, no que respeita, em primeiro lugar, à disposição estatutária nos termos da qual o adjudicatário em causa apenas pode prestar serviços em regime de concorrência a terceiros na condição de não causar prejuízo aos seus associados e de isso ser vantajoso para estes últimos, considero que, na medida em que esta disposição representa um limite ao exercício pelo adjudicatário de atividades em livre concorrência, não pode constituir um obstáculo à aplicação do segundo requisito Teckal.

62.

Em contrapartida, afigura‑se mais relevante a questão destinada a determinar se esse requisito é preenchido quando o adjudicatário realiza 20% da sua faturação global anual com entidades públicas não associadas e com entidades privadas, ou seja, com terceiros. A este respeito, considero que se deve adotar, como exige a jurisprudência mencionada no n.o 32, uma abordagem restritiva na interpretação da exceção em questão. Nesta perspetiva, numa situação em que o adjudicatário realiza em livre concorrência, e não para as administrações que o controlam, 20% da sua atividade, sou de opinião de que não se pode considerar que, como exige a jurisprudência mencionada no n.o 59, esse adjudicatário exerce a sua atividade substancialmente e principalmente de modo exclusivo a favor das administrações que o controlam e que, portanto, qualquer outra atividade tem caráter meramente marginal. Com efeito, uma atividade que representa um quinto da atividade total não pode, em meu entender, ser definida, mesmo do ponto de vista quantitativo, como uma atividade marginal.

63.

Considero, portanto, que, no estado atual do direito ( 39 ), há que responder à quinta questão que a exceção «in house» não pode ser aplicada quando um adjudicatário possa, em conformidade com os seus estatutos, prestar serviços em regime de concorrência a entidades públicas não associadas e a entidades privadas até 20% da sua faturação anual global apurada no ano anterior.

E – Quanto à sexta questão prejudicial

64.

À sexta questão prejudicial apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio só há que responder, em conformidade com o declarado por este último, se nenhuma das respostas às anteriores questões, considerada individualmente, for suficiente para determinar se se verificam ou não os requisitos previstos para a aplicação da exceção «in house». O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, nesse caso, se a apreciação conjunta dessas respostas permite concluir que a exceção deve ser aplicada no caso que lhe foi submetido.

65.

Ora, à luz das respostas dadas às cinco primeiras questões prejudiciais, considero que, se o Tribunal seguir a tese que proponho, pode não responder a tal questão. Com efeito, resulta dessas respostas, em especial das relativas à primeira e quinta questões prejudiciais, que, num caso como o pendente perante o órgão jurisdicional de reenvio, essa exceção, no estado atual do direito ( 40 ), não pode ser aplicável, independentemente de uma eventual apreciação conjunta de tais respostas. Proponho, portanto, ao Tribunal que não responda a esta questão prejudicial.

V – Conclusão

66.

Com base nas considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Supremo Tribunal Administrativo da seguinte forma:

«A exceção à aplicabilidade das normas da União em matéria de contratos públicos prevista para as adjudicações ‘in house’ não pode aplicar‑se quando o adjudicatário com o qual a entidade adjudicante pretende ajustar diretamente o contrato sem concurso público seja uma entidade de direito privado que conta entre os seus associados, ainda que minoritariamente, entidades titulares de interesses privados. Nesse caso, a existência de disposições nos estatutos do adjudicatário que atribuam determinados poderes especiais de controlo ou de tutela aos seus restantes associados públicos ou ao membro competente do governo não permite concluir pela existência de um controlo análogo sobre esse adjudicatário de molde a justificar a aplicação da exceção ‘in house’.

A grande dimensão e a estrutura complexa de uma entidade podem constituir indícios suscetíveis de, no âmbito de uma avaliação global de todas as circunstâncias do caso concreto, levar a concluir que essa entidade goza de uma margem de autonomia tal que exclui a existência do controlo análogo.

A exceção ‘in house’ não pode ser aplicada quando um adjudicatário possa, em conformidade com os seus estatutos, prestar serviços em regime de concorrência a entidades públicas não associadas e a entidades privadas até 20% da sua faturação global anual apurada no ano anterior.»


( 1 ) Língua original: italiano.

( 2 ) Acórdão de 18 de novembro de 1999, Teckal (C-107/98, Colet., p. I-8121).

( 3 ) V., entre outros, acórdãos de 11 de janeiro de 2005, Stadt Halle e RPL Lochau (C-26/03, Colet., p. I-1, n.o 49); de 13 de outubro de 2005, Parking Brixen (C-458/03, Colet., p. I-8585, n.o 62); de 11 de maio de 2006, Carbotermo e Consorzio Alisei (C-340/04, Colet., p. I-4137, n.o 33); de 19 de abril de 2007, Asociación Nacional de Empresas Forestales (C-295/05, Colet., p. I-2999, n.o 55); de 13 de novembro de 2008, Coditel Brabant (C-324/07, Colet., p. I-8457, n.o 27); de 10 de setembro de 2009, Sea (C-573/07, Colet., p. I-8127, n.o 40); de 29 de novembro de 2012, Econord (C‑182/11 e C‑183/11, n.o 25); e de 19 de dezembro de 2012, Ordine degli Ingegneri della Provincia di Lecce e o. (C‑159/11, n.o 32). V., também, as minhas recentes conclusões no processo Datenlotsen Informationssysteme (C‑15/13).

( 4 ) V., infra, n.os 25 e 28.

( 5 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114).

( 6 ) Adotado pelo Decreto‑Lei n.o 18/2008, de 29 de janeiro de 2008.

( 7 ) Os estatutos do SUCH foram alterados várias vezes. A versão em vigor no momento dos factos pertinentes no processo foi homologada em outubro de 2010.

( 8 ) V. acórdão Stadt Halle e RPL Lochau, já referido, n.os 49 e 50.

( 9 ) Com efeito, não é contestado que o valor do contrato que está em causa no órgão jurisdicional de reenvio, como é referido no n.o 11, supra, ultrapassa claramente o limiar estabelecido no artigo 7.o, alínea b), da diretiva, conforme alterada.

( 10 ) V. n.o 1, supra.

( 11 ) V. acórdão Econord, já referido, n.o 27 e jurisprudência referida.

( 12 ) Ibidem, n.o 28 e jurisprudência referida.

( 13 ) V. acórdãos Stadt Halle e RPL Lochau, já referido, n.o 49; de 10 de novembro de 2005, Comissão/Áustria (C-29/04, Colet., p. I-9706, n.o 46); de 6 de abril de 2006, ANAV (C-410/04, Colet., p. I-3303, n.o 31); de 8 de abril de 2008, Comissão/Itália (C-337/05, Colet., p. I-2173, n.o 38); Coditel Brabant, já referido, n.o 30; Sea, já referido, n.o 46; de 15 de outubro de 2009, Acoset (C-196/08, Colet., p. I-9913, n.o 53); e de 22 de dezembro de 2010, Mehiläinen e Terveystalo Healthcare (C-215/09, Colet., p. I-13749, n.o 32).

( 14 ) V., neste sentido, acórdão Sea, já referido, n.o 41. V., também, n.o 63 das conclusões da advogada‑geral C. Stix‑Hackl no processo Stadt Halle e RPL Lochau, já referido.

( 15 ) Além do acórdão Sea, referido na nota anterior, v., entre outros, também, acórdãos, já referidos, ANAV (por exemplo, n.o 33) e Econord (por exemplo, n.os 29 e 32).

( 16 ) A este respeito, v., mais pormenorizadamente, as minhas recentes conclusões no processo Datenlotsen Informationssysteme, já referido, n.o 41, e as numerosas referências jurisprudenciais.

( 17 ) V. acórdãos de 29 de novembro de 2007, Comissão/Itália (C‑119/06, n.os 37 e 41), e de 23 de dezembro de 2009, CoNISMa (C-305/08, Colet., p. I-12129, n.o 45).

( 18 ) V., neste sentido, acórdãos, já referidos, CoNISMa, n.o 37 e jurisprudência referida, e Carbotermo e Consorzio Alisei, n.o 58.

( 19 ) V., entre outros, acórdãos, já referidos, Stadt Halle e RPL Lochau, n.os 44 e 46; Parking Brixen, n.o 63; e ANAV, n.o 26. A este respeito, v., também, n.o 38 das minhas recentes conclusões no processo Datenlotsen Informationssysteme, já referido.

( 20 ) V. acórdãos, já referidos, Stadt Halle e RPL Lochau, n.o 50, e Comissão/Áustria, n.o 47.

( 21 ) V. acórdão Stadt Halle e RPL Lochau, já referido, n.o 51.

( 22 ) O que, salvaguardadas as necessárias verificações que incumbem ao órgão jurisdicional de reenvio, parece ser o caso das «Misericórdias» associadas ao SUCH.

( 23 ) Acórdãos, já referidos, Comissão/Itália, C‑119/06, n.os 37 e 41, e CoNISMa, n.o 45.

( 24 ) A este respeito, importa, com efeito, salientar que a última versão da Proposta de diretiva do Parlamento e do Conselho relativa aos contratos públicos (documento do Conselho n.o 11745/13), atualmente em discussão no Conselho e à qual se referiu a Comissão na audiência, prevê como condição para as adjudicações «in house» a não participação privada direta no capital da pessoa coletiva sobre a qual a entidade adjudicante exerce o controlo análogo, com exceção das participações sem possibilidade de controlo e de bloqueio previstas pelas disposições legais nacionais que não permitem o exercício de uma influência decisiva em tal pessoa coletiva. Não se exclui que, no caso de se manter na versão final da nova diretiva, essa disposição, nalguns casos específicos, possa conduzir a uma interpretação diferente da resultante do estado atual do direito.

( 25 ) Nesta perspetiva, pode salientar‑se, por exemplo, que o Tribunal reconheceu uma margem de discricionariedade aos Estados‑Membros no que diz precisamente respeito à organização dos respetivos sistemas de segurança social, reconhecendo‑lhes a faculdade de admitir operadores privados nesse sistema na condição de estes não prosseguirem fins lucrativos. V. acórdão de 17 de julho de 1997, Sodemare e o. (C-70/95, Colet., p. I-3395, n.o 32).

( 26 ) V., também, a este respeito, considerando 46 da mesma diretiva.

( 27 ) V., neste sentido, acórdão Sea, já referido, n.os 49 a 51.

( 28 ) Ibidem, n.o 53.

( 29 ) V. n.o 9, supra.

( 30 ) Como no caso da disposição estatutária em causa na terceira questão prejudicial, ou seja, o artigo 3.o dos estatutos do SUCH.

( 31 ) Como no caso da disposição estatutária em causa na segunda questão prejudicial, ou seja, o artigo 7.o, n.o 2, dos estatutos do SUCH.

( 32 ) V. acórdão Sea, já referido, n.o 89; v., neste sentido, também, acórdão Coditel Brabant, já referido, n.o 34; e, também, acórdão Parking Brixen, já referido, n.o 69.

( 33 ) No qual não haja, porém, participação de privados no adjudicatário.

( 34 ) V. acórdão Carbotermo e Consorzio Alisei, já referido, n.os 60 e 61.

( 35 ) I, n.os 62 e 63 (o sublinhado é meu).

( 36 ) Ibidem, n.os 70 e 71.

( 37 ) Já referido.

( 38 ) Ibidem, n.o 63.

( 39 ) Com efeito, há que salientar que, na última versão da Proposta de diretiva do Parlamento e do Conselho relativa aos contratos públicos, referida na nota 24, supra, está expressamente previsto que a exceção «in house» pode ser aplicada na condição de o adjudicatário em causa realizar mais de 80% da sua atividade com a entidade ou entidades adjudicantes que o controlam [v. artigo 11.o, n.o 1, alínea b)]. É evidente que, no caso de esse limiar ser confirmado nessa diretiva, isso refletiria uma opção do legislador que alteraria o estado do direito no futuro. Todavia, em meu entender, não desempenha um papel na interpretação do direito atualmente em vigor.

( 40 ) V. notas 24 e 38, supra.