CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MELCHIOR WATHELET

apresentadas em 15 de janeiro de 2014 ( 1 )

Processos C‑533/12 P e C‑536/12 P

Société nationale maritime Corse‑Méditerranée (SNCM) SA,

República Francesa

contra

Corsica Ferries France SAS

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílio à reestruturação — Teste do investidor privado em economia de mercado — Margem de apreciação da Comissão — Alcance da fiscalização jurisdicional do Tribunal Geral — Imagem de marca do Estado — Exigência de uma análise sectorial e geográfica — Prática suficientemente assente — Pagamento de indemnizações complementares por despedimento»

1. 

O presente processo tem por objeto os recursos interpostos pela Société nationale maritime Corse‑Méditerranée (SNCM) SA (a seguir «SNCM») e pela República Francesa contra o acórdão do Tribunal Geral da União Europeia Corsica Ferries France/Comissão (a seguir «acórdão recorrido») ( 2 ), na medida em que anulou o artigo 1.o, segundo e terceiro parágrafos, da Decisão 2009/611/UE da Comissão, de 8 de julho de 2008, relativa às medidas C 58/02 (ex N 118/02) executadas pela França em favor da SNCM (a seguir «decisão controvertida») ( 3 ). Por decisão de 24 de janeiro de 2013, o Presidente do Tribunal de Justiça ordenou a apensação dos processos C‑533/12 P e C‑536/12 P.

2. 

Por decisão de 24 de janeiro de 2013, o presidente do Tribunal de Justiça ordenou a apensação dos processos C‑533/12 P e C‑536/12 P.

I – Antecedentes do litígio

3.

A SNCM é uma companhia marítima que assegura ligações regulares, a partir da França continental (Marselha, Toulon e Nice), para a Córsega, para o Norte de África (Argélia e Tunísia) e para a Sardenha.

4.

Em 2002, 20% da SNCM eram detidos pela Société nationale des chemins de fer e 80% pela Compagnie générale maritime et financière (a seguir «CGMF»), ambas detidas pelo Estado Francês a 100%. Com a abertura do seu capital em 2006, dois cessionários, a Butler Capital Partners (a seguir «BCP») e a Veolia Transport (a seguir «VT»), tomaram o controlo, respetivamente, de 38% e 28% do capital, enquanto a CGMF se manteve presente com 25%, e 9% do capital continuava reservado aos trabalhadores. A BCP veio posteriormente a ceder a sua participação à VT.

5.

A Corsica Ferries France SAS (a seguir «Corsica Ferries») é uma companhia marítima que oferece ligações marítimas regulares para a Córsega, a partir da França continental (Marselha, Toulon e Nice) e de Itália. É um dos concorrentes importantes da SNCM. À data da adoção da decisão controvertida, a Corsica Ferries era o operador dominante nas ligações marítimas entre o continente e a Córsega, e a sua quota de mercado continuava a aumentar ( 4 ).

6.

Por carta de 18 de fevereiro de 2002, a República Francesa notificou à Comissão um projeto de auxílio à reestruturação a favor da SNCM, no valor de 76 milhões de euros (a seguir «plano de 2002»).

7.

Com a sua Decisão 2004/166/CE, de 9 de julho de 2003, relativa ao auxílio à reestruturação que a França tenciona conceder a favor da Société nationale maritime Corse‑Méditerranée (SNCM) (a seguir «decisão de 2003») ( 5 ), a Comissão aprovou, sob condições, duas parcelas de auxílio à reestruturação da SNCM, no montante total de 76 milhões de euros, uma de 66 milhões de euros, pagável de imediato, e outra, no montante máximo de 10 milhões de euros, em função do resultado líquido das cessões, nomeadamente, dos navios da SNCM. O único elemento do plano de 2002 que está em causa é o saldo da reestruturação, num montante final de 15,81 milhões de euros ( 6 ).

8.

Com a sua Decisão 2005/36/CE, de 8 de setembro de 2004, que altera a decisão de 2003 ( 7 ), a Comissão alterou uma das condições impostas pelo artigo 2.o da decisão de 2003. Estas alterações não têm qualquer incidência sobre os presentes recursos.

9.

Em 13 de outubro de 2003, a Corsica Ferries interpôs recurso de anulação da decisão de 2003 para o Tribunal Geral.

10.

Por decisão de 16 de março de 2005, a Comissão aprovou, com base na decisão de 2003, o pagamento parcial da segunda parcela do auxílio à reestruturação referida no n.o 7 das presentes conclusões, no montante de 3327400 euros.

11.

Por acórdão de 15 de junho de 2005 ( 8 ), o Tribunal Geral anulou a decisão de 2003, com fundamento numa apreciação errada do caráter mínimo do auxílio, devida principalmente a erros de cálculo do produto líquido das cessões, tendo julgado improcedentes todos os outros fundamentos relativos a falta de fundamentação e à violação do artigo 87.o, n.o 3, alínea c), CE [atual artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE] ( 9 ) e das Orientações comunitárias dos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas em dificuldade ( 10 ).

12.

Por carta de 7 de abril de 2006, as autoridades francesas convidaram a Comissão a considerar que, devido à sua natureza de compensação de serviço público, uma parte do auxílio à reestruturação concedido no âmbito do plano de 2002, no montante de 53,48 milhões de euros, devia ser qualificada não como «uma medida tomada no quadro de um plano de reestruturação, mas sim como não sendo um auxílio estatal, à luz da jurisprudência Altmark (acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg, C-280/00, Colet., p. I-7747), ou como uma medida autónoma e independente do plano de reestruturação, a título do n.o 2 do artigo 86.o do Tratado CE» ( 11 ).

13.

Em 21 de abril de 2006, o projeto de concentração que consistia na aquisição de um controlo conjunto da SNCM pela BCP e pela VT foi notificado à Comissão nos termos do artigo 4.o do Regulamento (CE) n.o 139/2004 do Conselho, de 20 de janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas ( 12 ). A Comissão autorizou a operação de concentração em 29 de maio de 2006, com base no artigo 6.o, n.o 1, alínea b), desse mesmo regulamento.

14.

Em 16 de maio de 2006, a BCP, a VT e a CGMF assinaram um protocolo de acordo, nos termos do qual 75% do capital da SNCM era cedido a adquirentes privados. Esse protocolo contém três medidas estatais que estiveram no centro do processo perante o Tribunal Geral e estão em discussão no presente processo:

a cessão da SNCM por um preço negativo de 158 milhões de euros (injeção de capital de 142,5 milhões de euros e assunção das despesas com as mútuas no montante de 15,5 milhões de euros);

o adiantamento em conta corrente pela CGMF, no montante de 38,5 milhões de euros, a favor dos membros do pessoal despedidos da SNCM, e

o aumento de capital de 8,75 milhões de euros subscrito pela CGMF, conjunta e concomitantemente com o montante de 26,25 milhões de euros injetados pela VT e pela BCP.

15.

Em 13 de setembro de 2006, na sequência das informações relativas às operações financeiras efetuadas por ocasião da privatização da SNCM, fornecidas pelas autoridades francesas, a Comissão decidiu iniciar o procedimento previsto no artigo 88.o, n.o 2, CE e examinar, nesse quadro, as novas medidas aplicadas a favor da SNCM, integrando nelas o plano de 2002 ( 13 ).

16.

Na decisão controvertida, a Comissão entendeu que a injeção de capital, no montante de 53,48 milhões de euros, prevista no plano de 2002, a título de compensação de serviço público, constituía um auxílio estatal ilegal na aceção do artigo 88.o, n.o 3, CE, mas compatível com o mercado comum à luz do artigo 86.o, n.o 2, CE e do artigo 87.o, n.o 3, alínea c), CE, e que as medidas do plano de privatização de 2006 não constituíam auxílios de Estado na aceção do artigo 87.o, n.o 1, CE.

II – Recurso perante o Tribunal Geral e acórdão recorrido

17.

Por recurso interposto no Tribunal Geral, a Corsica Ferries pediu a anulação da decisão controvertida.

18.

Pelo acórdão recorrido, o Tribunal Geral deu provimento parcial a esse recurso. No que diz respeito às três medidas que acompanham o protocolo de acordo de 16 de maio de 2006 e ao saldo da reestruturação constante do plano de 2002, o mesmo declarou que:

a Comissão tinha cometido um erro de direito e um erro manifesto de apreciação ao considerar que a aprovação da cessão da SNCM por um preço negativo de 158 milhões de euros não constituía um auxílio na aceção do artigo 87.o, n.o 1, CE;

a Comissão tinha cometido um erro manifesto de apreciação ao considerar que a injeção de capital, pela CGMF, de 8,75 milhões de euros não constituía um auxílio na aceção do artigo 87.o, n.o 1, CE;

a Comissão tinha cometido um erro manifesto de apreciação ao considerar que o adiantamento feito à SNCM pela CGMF, num montante de 38,5 milhões de euros, não constituía um auxílio na aceção do artigo 87.o, n.o 1, CE;

a Comissão não tinha fundamentado validamente a sua análise do saldo de reestruturação, no montante final de 15,81 milhões de euros, e, por conseguinte, tinha cometido um erro manifesto de apreciação ao aprovar esse saldo nos termos do artigo 87.o, n.o 1, CE.

19.

Com base nestas conclusões, o Tribunal Geral anulou o artigo 1.o, segundo e terceiro parágrafos, da decisão controvertida.

III – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

20.

Pelo seu recurso da decisão do Tribunal Geral, interposto no Tribunal de Justiça em 22 de novembro de 2012, a SNCM pediu a anulação parcial do acórdão recorrido. Pelo seu recurso da decisão do Tribunal Geral, interposto no Tribunal de Justiça em 26 de novembro de 2012, a República Francesa pediu a anulação do acórdão recorrido. Em 28 de fevereiro de 2013, a Corsica Ferries apresentou a sua resposta. Em 6 de novembro de 2013, realizou‑se uma audiência, na qual a SNCM, a República Francesa e a Corsica Ferries apresentaram observações orais.

21.

Há que salientar que a Comissão, cuja decisão foi parcialmente anulada pelo Tribunal Geral, não impugnou o acórdão do Tribunal Geral, quer interpondo recurso, ou apoiando a SNCM e a República Francesa, ou participando na audiência perante o Tribunal de Justiça.

IV – Recurso da decisão do Tribunal Geral

22.

A SNCM e a República Francesa invocam quatro fundamentos, relativos a cada uma das quatro medidas referidas no n.o 18 das presentes conclusões.

A – Quanto ao primeiro fundamento, relativo à cessão da SNCM a um preço negativo

1. Decisão controvertida

23.

Nos considerandos 259 a 348 da decisão controvertida, a Comissão considerou que, para determinar se a privatização da SNCM por um preço de venda negativo de 158 milhões de euros contém elementos de auxílio estatal, havia que apreciar se, em circunstâncias similares, um investidor privado poderia ter sido levado a efetuar entradas de capitais dessa importância no quadro da venda da SNCM ou se, pelo contrário, teria optado pela sua liquidação.

24.

Segundo a Comissão, atualmente, quando procedem ao encerramento de unidades ou à liquidação de filiais, os grandes grupos de empresas não podem alhear‑se das consequências sociais que tais encerramentos ou liquidações implicam. A mesma acrescenta que, na maioria dos casos, os referidos grupos aplicam planos sociais que podem incluir indemnizações por despedimento que vão além do que a lei e as convenções coletivas impõem.

25.

Por conseguinte, a Comissão considerou que, na hipótese de uma liquidação da SNCM, teriam sido tomadas medidas dessa natureza, além das decorrentes das obrigações legais, com o objetivo de não manchar a imagem de marca da holding e do seu acionista, ou seja o Estado francês.

26.

Em seguida, a Comissão examinou se o custo das indemnizações por despedimento que vão além do que a lei e as convenções coletivas impõem excedia o preço negativo da venda, e concluiu que não era o caso. Com base nisto, a Comissão aceitou que a decisão de ceder a SNCM a um preço negativo de 158 milhões de euros não constituía um auxílio estatal, na medida em que era conforme com a decisão que teria tomado um grupo privado que operasse em economia de mercado, e isto tendo em conta os custos sociais que a liquidação da empresa implicaria.

2. Acórdão recorrido

27.

No seu exame da aplicação do critério do investidor privado, o Tribunal Geral admitiu que, para definir o comportamento do investidor privado avisado, era necessário tomar em consideração também as responsabilidades que o mesmo deve assumir, numa economia social de mercado, para com todas as partes interessadas da empresa, bem como a evolução do contexto social, económico e ambiental em que o mesmo explora a sua empresa ( 14 ).

28.

A este respeito, o Tribunal Geral aceitou que o pagamento, por um investidor privado, de indemnizações complementares por despedimento possa constituir uma prática legítima e oportuna com o objetivo de favorecer um diálogo social tranquilo e de manter a imagem de marca de uma sociedade ou de um grupo de sociedades ( 15 ). Contudo, segundo o Tribunal Geral, na falta, mesmo a longo prazo, de qualquer racionalidade económica, assumir custos para além das estritas obrigações legais e convencionais deve ser considerado um auxílio de Estado ( 16 ).

29.

A este respeito, o Tribunal Geral censura à Comissão não ter definido as atividades económicas do Estado francês relativamente às quais pudesse eventualmente existir uma necessidade de proteção da imagem de marca e se devesse apreciar a racionalidade económica da cessão por um preço negativo acordada no caso em apreço ( 17 ).

30.

Na falta dessa definição, o Tribunal Geral considerou que lhe era impossível fiscalizar a racionalidade económica, a longo prazo, do preço de cessão negativo que o Estado francês aceitou para evitar o pagamento de indemnizações complementares por despedimento em caso de liquidação. Portanto, daí concluiu que a Comissão tinha cometido um erro de direito ( 18 ).

31.

Além disso, o Tribunal Geral considerou que a Comissão não tinha apresentado suficientes elementos objetivos e verificáveis para demonstrar que o pagamento de indemnizações complementares por despedimento era prática assente entre os empresários privados, e que a mesma tinha descurado apresentar elementos suscetíveis de demonstrar a existência de uma probabilidade razoável de realização dos custos sociais que justificasse o pagamento dessas indemnizações ( 19 ).

32.

Antes de julgar procedente o fundamento invocado pela Corsica Ferries, relativo ao facto de a Comissão ter cometido um erro manifesto de apreciação ao considerar que a aprovação da cessão da SNCM por um preço negativo não constituía um auxílio de Estado ( 20 ), o Tribunal Geral concluiu, nos seguintes termos, que «[a]ssim, a Comissão não apresentou elementos que permitam demonstrar suficientemente de que forma a inclusão do custo considerável das indemnizações complementares por despedimento, que, de resto, podiam atingir até dez vezes o montante só das obrigações legais e convencionais, como resulta do considerando 277 da decisão recorrida, teria sido fundamentada, no caso, por uma probabilidade razoável de o Estado francês dela retirar um ganho material indireto, mesmo a longo prazo. Embora seja impossível eliminar o risco de certas consequências sociais noutras empresas públicas no caso de liquidação da SNCM sem pagamento de indemnizações complementares por despedimento, a amplitude dos custos sociais indiretos em causa, bem como a probabilidade da sua exposição, de nenhum modo fo[ram] analisada[s] pela Comissão, mesmo nas suas respostas escritas ao Tribunal Geral. Assim, há que considerar que não foi feita prova bastante da racionalidade económica, a longo prazo, do comportamento do Estado francês» ( 21 ).

3. Análise

a) Quanto à primeira parte do primeiro fundamento da SNCM

33.

A SNCM censura ao Tribunal Geral não ter tido em conta a margem de apreciação de que goza a Comissão para efeitos da aplicação do critério do investidor privado em economia de mercado.

34.

Nos n.os 86 e 87 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral lembrou que, no contexto do teste do investidor privado, cabe à Comissão definir as atividades económicas do Estado, nomeadamente a nível geográfico e setorial, face às quais se deve apreciar a racionalidade económica, a longo prazo, do comportamento do Estado. Segundo o Tribunal Geral, esta análise é indispensável para determinar a existência, com base em elementos objetivos e verificáveis, de uma prática suficientemente assente entre os investidores privados de referência previamente definidos e para demonstrar a existência de uma probabilidade razoável e suficientemente fundamentada de o Estado‑Membro retirar do comportamento em causa um ganho material indireto.

35.

A SNCM considera que estas observações do Tribunal Geral vão muito além da análise do eventual erro manifesto de apreciação por parte da Comissão e põem em causa a sua apreciação económica dos factos que lhe foram submetidos, bem como a qualidade do trabalho do perito independente nomeado pela Comissão. Segundo a SNCM, o acórdão recorrido vai contra o equilíbrio institucional, no sentido em que o Tribunal Geral se arvorou em perito de relações económicas e sociais da empresa.

36.

Proponho que o Tribunal de Justiça rejeite a primeira parte do primeiro fundamento da SNCM, pelas razões que se seguem.

37.

É verdade que se deve recordar que não compete ao juiz da União substituir a apreciação da Comissão pela sua própria apreciação económica ( 22 ). Com efeito, como o Tribunal de Justiça já declarou, «a fiscalização que os órgãos jurisdicionais da União exercem sobre as apreciações económicas complexas feitas pela Comissão é uma fiscalização restrita, que se limita necessariamente à verificação do respeito das regras processuais e de fundamentação, da exatidão material dos factos, bem como da inexistência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder» ( 23 ).

38.

No entanto, ao contrário do que a SNCM afirma, o Tribunal Geral não substituiu a apreciação da Comissão pela sua, mas salientou no raciocínio desta, sobretudo na forma como o mesmo foi fundamentado, falhas que puseram em causa a boa aplicação do artigo 87.o CE pela Comissão.

39.

Também não partilho da crítica segundo a qual o Tribunal Geral não teve em conta o facto de a Comissão ter nomeado um perito independente e ter fundamentado a sua decisão nas conclusões deste, pondo, assim, em dúvida o conteúdo do trabalho do perito. Como salienta a Corsica Ferries, o Tribunal Geral não contestou as conclusões do perito, mas, novamente, não fez mais do que censurar à Comissão não ter fundamentado suficientemente o seu próprio raciocínio ou apresentado, em apoio da sua conclusão, suficientes elementos objetivos e verificáveis, que tivessem sido postos à sua disposição pelo trabalho do perito.

b) Quanto à segunda e quarta partes do primeiro fundamento da SNCM e à segunda parte do primeiro fundamento da República Francesa

40.

O primeiro fundamento da República Francesa e, mais em especial, a primeira parte deste fundamento coloca a questão da tomada em consideração da imagem de marca do Estado como ator económico global numa economia de mercado, a fim de excluir do conceito de auxílio de Estado o pagamento de indemnizações complementares por despedimento. Como esta questão apenas pode ser colocada se as indemnizações em causa ultrapassarem os montantes impostos pelas obrigações legais e convencionais e se não tiver sido possível demonstrar que este tipo de pagamento constituía uma prática assente na economia em causa, afigura‑se‑me mais lógico tratar primeiro a segunda parte do primeiro fundamento invocado pela República Francesa, segundo a qual o Tribunal Geral tinha cometido um erro de direito ao exigir que a Comissão fizesse prova de que o pagamento de indemnizações complementares por despedimento constituía uma prática suficientemente assente, até mesmo constante, entre os empresários privados.

41.

A SNCM vai no mesmo sentido, censurando ao Tribunal Geral ter instaurado, nos n.os 86 e 87 do acórdão recorrido, para efeitos da interpretação e da aplicação do critério do investidor privado, um «teste inteiramente jurisprudencial», que exigia que a Comissão aplicasse uma análise sectorial ou geográfica (i), demonstrasse uma prática suficientemente assente (ii) e satisfizesse um nível de prova muito elevado para demonstrar a existência da probabilidade de um ganho material indireto (iii).

i) Quanto à exigência da aplicação de uma análise geográfica ou sectorial

42.

No n.o 86 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral declarou que, «no contexto do teste do investidor privado, cabe à Comissão, no âmbito da sua ampla margem de apreciação, definir as atividades económicas do Estado, nomeadamente a nível geográfico e setorial, face às quais se deve apreciar a racionalidade económica, a longo prazo, do comportamento desse Estado» ( 24 ).

43.

Por conseguinte, o Tribunal Geral censura à Comissão não ter fornecido os dados necessários para avaliar a racionalidade económica do pagamento de indemnizações complementares por despedimento.

44.

Como a Corsica Ferries salienta, a utilização do advérbio «nomeadamente» demonstra que o Tribunal Geral deixou em aberto a possibilidade de tomar em consideração outras circunstâncias, sem circunscrever a aplicação do teste do investidor privado a uma análise geográfica ou sectorial.

45.

De resto, não há nada na jurisprudência que impeça o Tribunal Geral de observar que uma análise geográfica ou sectorial pode ser pertinente para avaliar a racionalidade económica, a longo prazo, do comportamento do Estado. Além disso, esta análise pode concluir que as atividades económicas do Estado em causa abrangem uma área muito extensa e múltiplos setores. A referida análise também pode ser útil, na medida em que os salários e as indemnizações por despedimento variam consideravelmente em função dos mercados ou dos setores em causa.

46.

A SNCM invoca o acórdão Itália e SIM 2 Multimedia/Comissão, no qual o Tribunal de Justiça declarou que «há que apreciar se, em circunstâncias similares, um investidor privado de dimensão comparável à dos organismos que gerem o setor público poderia ter sido levado a proceder a entradas de capitais da mesma importância» ( 25 ).

47.

Na minha opinião, esta definição visa precisamente identificar, em termos de dimensão, o tipo de investidor privado que seria comparável ao Estado, o que uma análise, «nomeadamente a nível geográfico e setorial» das atividades económicas do Estado, como a que o Tribunal Geral sugere, pode contribuir para determinar.

48.

A segunda parte do primeiro fundamento da SNCM também deve ser rejeitada, na medida em que invoca uma violação do artigo 295.o CE, segundo o qual «O presente Tratado em nada prejudica o regime da propriedade nos Estados‑Membros». A SNCM entende que a análise geográfica e sectorial referida pelo Tribunal Geral no n.o 86 do acórdão recorrido ignora o facto de existirem holdings privadas grandemente diversificadas e cujas atividades não estão limitadas a um setor ou a uma zona geográfica determinada. Não vejo como semelhante análise geográfica e sectorial das atividades económicas do Estado, bem como o facto de algumas holdings privadas não estarem limitadas a um setor ou zona geográfica, poderia ter incidência sobra a proteção concedida ao regime da propriedade existente nos Estados‑Membros.

ii) Quanto à demonstração da existência de uma prática suficientemente assente

49.

Nos n.os 95 e 96 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral declarou que a Comissão não tinha «[apresentado] suficientes elementos objetivos e verificáveis, capazes de demonstrar que o pagamento de indemnizações complementares por despedimento, em circunstâncias semelhantes, seria uma prática assente entre os empresários privados» e «[se tinha limitado] a afirmar que o pagamento de indemnizações complementares por despedimento [...] se tinha tornado uma prática corrente entre os grandes grupos de empresas […]». O Tribunal Geral censurou‑lhe não ter apresentado a menor prova desta afirmação.

50.

A SNCM considera que, com esta crítica ao raciocínio da Comissão, o Tribunal Geral introduz uma exigência nova, que vai além do que é necessário para a boa aplicação do teste do investidor privado e não respeita o artigo 345.o TFUE. A República Francesa, bem como a SNCM, consideram que, para cumprir as exigências do critério do investidor privado, bastaria demonstrar que, em circunstâncias semelhantes, apenas uma única empresa privada pagou indemnizações complementares por despedimento.

51.

Não partilho desta crítica ao acórdão recorrido.

52.

Recordo que o pagamento de indemnizações complementares por despedimento deve ser analisado no quadro do teste do investidor privado, a fim de determinar se o custo de liquidação da SNCM excederia o da cessão por um preço negativo de 158 milhões de euros ou, dito de outra forma, se um investidor privado, no lugar do Estado, teria procedido a esta cessão.

53.

Por conseguinte, é necessário determinar se o custo de liquidação incluiria as indemnizações complementares em causa. Seria este o caso se se tratasse de indemnizações previstas por lei ou pelas convenções coletivas. Como, no presente caso, as indemnizações complementares por despedimento ultrapassam largamente estas exigências, a única razão pela qual, à luz do critério do investidor privado, as mesmas deveriam ser tidas em conta no cálculo do custo de liquidação apenas pode residir no facto de se tratar de uma prática suficientemente assente.

54.

A SNCM e a República Francesa consideram que a possibilidade, ou o facto, de um único investidor privado decidir pagar, ou ter pago, indemnizações complementares por despedimento semelhantes bastaria para as incluir no cálculo do custo de liquidação.

55.

Isto parece‑me amplamente insuficiente, sobretudo quando essa única possibilidade de um investidor privado tomar a referida decisão, ou essa única ocasião em que a tomou, foi descoberta entre muitos exemplos de investidores privados que não o fizeram, dado que tal demonstraria que, salvo em casos realmente excecionais, o pagamento de indemnizações complementares por despedimento não tem qualquer racionalidade económica.

56.

Como a Corsica Ferries salientou na audiência, a prova da existência de uma prática assente, corrente ou constante no mercado não constitui, neste contexto, uma exigência nova ou extraordinária. A própria Comissão referiu, numa das suas comunicações em matéria de auxílios de Estado, que os recursos estatais constituem auxílios se «‘não podem ser considerad[o]s como verdadeiras dotações de capital de risco de acordo com a prática normal de investimento numa economia de mercado’» ( 26 ). Em meu entender, a diferença de terminologia («prática normal», «prática assente» ( 27 ), «prática suficientemente assente» ( 28 ), «prática corrente» ( 29 ) ou «prática constante» ( 30 )) não revela o aparecimento, no acórdão do Tribunal Geral, de uma nova exigência de prova.

57.

Além disso, no considerando 268 da decisão controvertida, a Comissão afirma que os grandes grupos de empresas «aplicam geralmente planos sociais [...] que vão além do que a lei e as convenções coletivas impõem». O termo «geralmente» apenas deveria poder fazer referência a uma prática assente, cuja existência, evidentemente, deve ser demonstrada.

58.

Dito isto, salvo para verificação do respeito das regras processuais e de fundamentação, da exatidão material dos factos, bem como da inexistência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder ( 31 ), a identificação de uma prática suficientemente assente compete, não ao juiz da União, mas à Comissão, que, além disso, se incumbiu implicitamente da tarefa de demonstrar, ainda que por simples afirmações, que neste caso se tratava de uma prática assente no mercado ( 32 ).

59.

Ora, o Tribunal Geral declarou que, na nota 135 da decisão controvertida, a Comissão tinha apresentado apenas um exemplo, que datava do ano de 1991 mas no qual a questão do pagamento de indemnizações comparáveis às que estão em causa no presente processo não se colocava, bem como dez outros casos de planos sociais que, como a Comissão reconheceu na audiência perante o Tribunal Geral, se referiam a operações de reestruturação, e não de liquidação, realizadas, além disso, em setores que nada têm a ver com o transporte marítimo ( 33 ).

60.

Portanto, foi dentro destes limites que o Tribunal Geral considerou que, ao limitar‑se a afirmar, «sem, contudo, apresentar a menor prova» ( 34 ), que o pagamento de indemnizações complementares por despedimento era uma prática assente entre os investidores privados, a Comissão não tinha fundamentado suficientemente a sua decisão.

61.

Nesta fase, posso igualmente rejeitar a quarta parte do primeiro fundamento da SNCM, pela qual a SNCM censura ao Tribunal Geral não ter cumprido o seu dever de fundamentação ao não definir os conceitos de «prática suficientemente assente» e de «prática constante».

62.

Para além de estas expressões serem bastante claras e fazerem referência a uma apreciação de factos, o Tribunal Geral não tinha de as definir, ainda menos porque não é necessária uma longa fundamentação para compreender que um único ou alguns exemplos, de resto não convincentes, não podem constituir «uma prática constante» ou «suficientemente assente».

63.

Por conseguinte, em meu entender, o Tribunal Geral teve razão ao decidir que a Comissão não tinha demonstrado de modo suficiente que o pagamento de indemnizações complementares por despedimento era uma prática suficientemente assente entre os investidores privados.

iii) Quanto à prova da existência de um comportamento motivado por uma probabilidade razoável de retirar daí um ganho material indireto

64.

No n.o 101 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral declarou que, na falta de uma prática assente de pagamento de indemnizações complementares por despedimento, a Comissão também não tinha demonstrado que o pagamento em causa teria sido motivado, para a República Francesa, por uma probabilidade razoável de retirar daí um ganho material indireto, mesmo a longo prazo.

65.

A SNCM alega que, ao decidir deste modo, o Tribunal Geral impôs à Comissão um ónus de prova excessivo, dado que esta teria tido de quantificar precisamente o prejuízo sofrido em caso de degradação da imagem de marca do Estado, quando essa quantificação deveria, por natureza, assentar em elementos dificilmente previsíveis.

66.

Esta leitura do acórdão recorrido não é correta. No n.o 102 do referido acórdão, o Tribunal Geral declarou que «[a] Comissão não apresentou [...], na decisão recorrida, nenhum elemento capaz de explicar a natureza concreta do prejuízo sofrido e, nomeadamente, de precisar face a que partes interessadas (utentes, clientes, fornecedores ou ainda pessoal) a imagem de marca da CGMF e do Estado francês seria afetada. Além disso, a decisão recorrida não contém nenhum elemento que possa mostrar que a Comissão tentou quantificar o prejuízo sofrido, prejuízo que, no entanto, deve necessariamente ser comparado com o custo estimado das indemnizações complementares por despedimento dos quais constitui a justificação».

67.

Sem se referir a «quantificação precisa», o Tribunal Geral declarou que, «[n]os considerandos 270 e 271 da decisão [controvertida], a Comissão [se tinha limitado] a afirmar que as tensões sociais na empresa, demonstradas, em seu entender, pelo conflito social ocorrido em 2004, levariam, no caso de liquidação da SNCM, a perturbações sociais capazes de alterar a imagem de marca da sua sociedade‑mãe e do seu acionista último» ( 35 ).

68.

Acresce que, na audiência no Tribunal Geral, a Comissão reconheceu que não tinha estudado minimamente a probabilidade razoável de realização de custos sociais (por exemplo, greves) que justificasse o pagamento de indemnizações complementares por despedimento ( 36 ). Por conseguinte, parece‑me que o Tribunal Geral não impôs, de modo algum, qualquer ónus de prova excessivo e não fez mais do que declarar a insuficiência de fundamentação da decisão da Comissão quanto a este ponto.

c) Quanto à primeira parte do primeiro fundamento da República Francesa

69.

Como já referi no n.o 40 das presentes conclusões, com o seu primeiro fundamento, a República Francesa censura ao Tribunal Geral ter violado o artigo 87.o, n.o 1, CE ao considerar que a Comissão não podia ter em conta, no âmbito do teste do investidor privado avisado, o risco de uma ofensa à imagem de marca do Estado enquanto ator económico global numa economia de mercado.

70.

Mais precisamente, na primeira parte deste fundamento, a República Francesa alega que, nos n.os 90, 93 e 94 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral, na realidade, negou a possibilidade de um Estado‑Membro ter em conta o risco de uma ofensa à sua imagem de marca, enquanto ator económico global, possibilidade esta que, contudo, lhe parecia ter reconhecido no n.o 85 do seu acórdão.

71.

A República Francesa é de opinião que a Comissão tinha o direito de tomar em consideração esse risco para determinar se o pagamento de indemnizações complementares por despedimento correspondia a perspetivas de rentabilidade a longo prazo e se, em circunstâncias semelhantes, um investidor privado avisado teria igualmente sido levado a pagar tais indemnizações a fim de proteger a sua imagem de marca.

72.

A República Francesa considera também que o pagamento das indemnizações complementares por despedimento é necessária para proteger a imagem de marca do Estado. Em apoio da sua tese, faz referência ao risco de greves solidárias, que se propagariam a todo o setor público e teriam como efeito paralisar a atividade económica das empresas desse setor.

73.

Neste contexto, a República Francesa alega que uma epidemia de greves teria como consequência graves perdas económicas para o Estado. Refere‑se à rutura brutal das relações contratuais entre as empresas em greve e os seus fornecedores e clientes e às dificuldades de pagamento e de aprovisionamento que obrigariam os clientes não profissionais das empresas públicas a dirigir‑se a empresas privadas concorrentes.

74.

Portanto, a República Francesa considera que evitar estas consequências económicas nefastas representa o ganho material indireto que o Estado pretendia retirar do pagamento de indemnizações complementares por despedimento.

75.

Não partilho desta análise.

76.

Antes de mais, há que recordar que, no n.o 83 do seu acórdão, o Tribunal Geral reconheceu que «a faculdade de pagar indemnizações complementares por despedimento [estava] também aberta aos Estados‑Membros em caso de liquidação de uma empresa pública, muito embora as suas obrigações não possam, a priori, exceder o estrito mínimo legal e convencional».

77.

Todavia, no n.o 84 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que, na falta de qualquer racionalidade económica, um pagamento deste tipo, que vai além das estritas obrigações legais e convencionais, deve ser considerado um auxílio de Estado na aceção do artigo 87.o, n.o 1, CE, acrescentando, no n.o 85 do mesmo acórdão, que não poderia bastar uma referência sumária à imagem de marca de um Estado, enquanto ator global, para escapar à qualificação de auxílio de Estado.

78.

No mesmo n.o 85, o Tribunal Geral considerou que, fora de circunstâncias particulares e sem uma fundamentação particularmente convincente, a proteção da imagem de marca do Estado como investidor global na economia não pode constituir uma justificação suficiente para demonstrar a racionalidade económica, a longo prazo, do facto de se assumirem custos adicionais como indemnizações complementares por despedimento.

79.

Por conseguinte, ao contrário do que a República Francesa sustenta, embora o Tribunal Geral exija a presença, no caso de «circunstâncias particulares» e de «uma fundamentação particularmente convincente» ( 37 ), o mesmo não excluiu, por princípio, a tomada em consideração da imagem de marca do Estado como investidor global na economia num contexto factual e jurídico como o que está em causa no presente processo. Parece‑me que esta posição do Tribunal Geral é compatível com a jurisprudência do Tribunal de Justiça.

80.

Em primeiro lugar, cabe observar que existe pouca jurisprudência sobre a imagem de marca do Estado enquanto ator económico. O primeiro acórdão sobre esta questão, aliás referido pela Comissão na decisão controvertida ( 38 ), foi o acórdão Itália/Comissão, no qual o Tribunal de Justiça admitiu que a decisão de suportar prejuízos «[pode] ser [motivada] não somente pela probabilidade de tirar disso um proveito material indireto mas também por outras preocupações, como a de manter a imagem de marca do grupo ou de reorientar as suas atividades» ( 39 ).

81.

No entanto, o Tribunal de Justiça fez esta declaração em relação a um investidor privado que pretenda «assegurar a sobrevivência de uma empresa que conhece dificuldades passageiras» ou «permitir a cessação da atividade [de uma filial] nas melhores condições» ( 40 ).

82.

Com base nesta análise, o Tribunal de Justiça concluiu que, «quando as contribuições de capital [...] não têm em conta qualquer perspetiva de rentabilidade, mesmo a longo prazo, essas contribuições devem ser consideradas auxílios [de Estado]» ( 41 ). Na realidade, segundo o Tribunal de Justiça, naquele processo, «a compensação dos prejuízos foi feita em condições que teriam sido inaceitáveis para um investidor privado trabalhando nas condições normais do mercado e que nenhum investidor privado, nem mesmo uma holding industrial, teria tomado em conta as preocupações a que fazem referência os Governos italiano e espanhol» ( 42 ), ou seja, considerações de ordem social ou regional ( 43 ), da mesma natureza que as invocadas pela República Francesa no presente processo.

83.

A imagem de marca do Estado foi invocada, uma segunda vez, no contexto do critério do investidor privado, pelo Governo espanhol no acórdão Espanha/Comissão ( 44 ). O Governo espanhol tinha tentado justificar uma injeção de capital na sociedade estatal Hytasa, detida por intermédio do Patrimonio del Estado, explicando que «o cuidado de manter a imagem de marca do grupo constituía uma preocupação legítima. A imagem do Patrimonio del Estado sofreria um grave prejuízo se fechasse uma das suas empresas numa zona de carência social e com elevada percentagem de desemprego. Uma empresa privada na mesma situação que o Patrimonio del Estado seria também sensível à pressão sindical ou política» ( 45 ).

84.

Naquele processo, em resposta ao argumento do Governo espanhol segundo o qual o seu comportamento era o de um investidor privado, uma vez que a alternativa, ou seja, a liquidação de Hytasa, teria sido mais onerosa para o Estado, o advogado‑geral F. G. Jacobs sublinhou que «[devia] estabelecer‑se uma distinção entre as obrigações que o Patrimonio del Estado [devia] assumir como proprietário do capital social de Hytasa e as obrigações que [incumbiam] ao Estado espanhol como garante das prestações de segurança social e dos subsídios de desemprego» ( 46 ). Segundo o advogado‑geral, «[e]ste último tipo de obrigação não [podia] tomar‑se em consideração para efeitos da aplicação do critério do investidor privado» ( 47 ).

85.

Por conseguinte, o advogado‑geral considerou desprovido de qualquer relevância o argumento segundo o qual injeção de capital na Hytasa se justificava para proteger a imagem de marca do Patrimonio del Estado. Com base nisto, o mesmo concluiu que «[era] difícil aceitar que uma ‘holding’ do Estado se [preocupasse] tanto com o prejuízo que sofreria a sua imagem global como consequência do fracasso de uma das suas empresas que oferecesse, apenas por essa razão, enormes quantias a uma empresa privada como incentivo para que a mesma fosse adquirida» ( 48 ).

86.

O Tribunal de Justiça chegou à mesma conclusão que o advogado‑geral F. G. Jacobs, duvidando, como este, da racionalidade económica de tal comportamento do Estado ( 49 ).

87.

O conceito de imagem de marca do Estado reapareceu na jurisprudência do Tribunal de Justiça aquando de um pedido de suspensão de execução de uma decisão da Comissão, relativa a um auxílio estatal do Land da Baviera a uma empresa alemã detida a 45% pelo Estado ( 50 ). O Land da Baviera tinha‑lhe concedido empréstimos que só eram reembolsáveis se a empresa tivesse registado lucros no ano precedente ( 51 ). O Governo alemão tentou justificar este comportamento afirmando que «[a] liquidação da empresa teria com efeito gerado custos suplementares para o Land, teria igualmente causado um prejuízo importante à sua imagem de marca como empresário e teria impedido os efeitos de sinergia que deviam resultar da reorientação do conjunto do grupo» ( 52 ).

88.

No seu despacho, o presidente do Tribunal de Justiça rejeitou o pedido de medidas provisórias formulado pela República Federal da Alemanha, declarando, entre outras coisas, que «dentro dos limites de uma primeira análise, as considerações gerais adiantadas, relativas nomeadamente à preservação da imagem de marca do Land ou à reorganização das suas atividades, não bastam para demonstrar um erro manifesto por parte da Comissão» ( 53 ). Previamente, o Tribunal de Justiça tinha salientado, a respeito da análise do critério do investidor privado feita pela Comissão, que não se afigurava que «a requerente e a interveniente [tivessem] adiantado elementos concretos suficientemente significativos em apoio da afirmação segundo a qual o Land da Baviera podia acertadamente esperar que os empréstimos fossem reembolsados» ( 54 ).

89.

No processo perante o Tribunal Geral, o Governo alemão tinha reiterado o seu argumento baseado na imagem de marca do Estado ( 55 ). O Tribunal Geral julgou que as recorrentes não tinham demonstrado «em que é que consiste a imagem de marca do Land da Baviera como empresário privado no setor [industrial em causa, nesse caso, o setor] siderúrgico, nem de que modo a falência [da empresa em causa] poderia deteriorar a referida imagem» ( 56 ). Por conseguinte, concluiu que «não [era] aceitável que o Land da Baviera tenha sido obrigado a pagar um significativo montante em dinheiro a uma sociedade privada [...] para a incentivar a adquirir a [empresa em causa] a fim de evitar que a falência desta prejudicasse gravemente a imagem de marca do Land» ( 57 ).

90.

O recurso interposto contra esse acórdão do Tribunal Geral foi rejeitado por despacho do Tribunal de Justiça, sem que este se pronunciasse sobre a pertinência da imagem de marca do Estado ( 58 ).

91.

Em função das considerações precedentes, o Tribunal Geral não cometeu qualquer erro de direito ao concluir que «a proteção da imagem de marca de um Estado‑Membro como investidor global na economia de mercado não pode constituir, fora de circunstâncias particulares e sem uma fundamentação particularmente convincente, uma justificação suficiente para demonstrar a racionalidade económica, a longo prazo, do facto de se assumirem custos adicionais como indemnizações complementares por despedimento» ( 59 ) e que, de qualquer forma, este argumento relativo à imagem de marca do Estado não dizia respeito à sociedade líder CGMF, que não tinha outros ativos no setor do transporte marítimo ( 60 ).

92.

Sem afastar, por princípio, a possibilidade da demonstração exigida pelo Tribunal Geral, saliento que me parece altamente improvável que as considerações desenvolvidas, até ao momento, pelos Estados a respeito da sua imagem de marca, enquanto investidores globais numa economia de mercado, possam alguma vez fazer escapar as suas decisões à qualificação de auxílios de Estado à luz do critério do investidor privado.

93.

Este critério impõe, no mínimo, mesmo a longo prazo, perspetivas de rentabilidade das medidas de recapitalização e de reembolso das quantias emprestadas. Como o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 26 do seu acórdão Espanha/Comissão, já referido, «um investidor privado que desenvolva uma política estrutural, global ou sectorial, orientada por perspetivas de rentabilidade a longo prazo, após anos de perdas contínuas, não pode razoavelmente permitir‑se proceder a um aumento de capital que, em termos económicos, se revele não apenas mais oneroso do que a liquidação do ativo, mas, além disso, se prenda com a venda da empresa, o que, mesmo a prazo, lhe retira qualquer perspetiva de lucro». O que implica que, «quando as contribuições de capital de um investidor público não têm em conta qualquer perspetiva de rentabilidade, mesmo a longo prazo, essas contribuições devem ser consideradas auxílios» ( 61 ).

94.

Ora, as preocupações invocadas pelos Estados‑Membros a respeito da sua imagem de marca como investidores globais numa economia de mercado, por mais nobres que sejam sob outros pontos de vista, estão muito distantes das de um investidor privado, e isto independentemente de se tratar de «custos políticos» (juntamente com os custos económicos e sociais) do encerramento de uma empresa ( 62 ), de «pressão sindical ou política» ( 63 ), da presença da empresa em dificuldades «numa zona socialmente em crise» ( 64 ), ou, no presente processo, do risco de greves solidárias que se propagariam em todo o setor público ( 65 ). Nestas considerações está ausente qualquer perspetiva de rentabilidade, mesmo a longo prazo, da empresa beneficiária da medida estatal.

95.

Além disso, estou perfeitamente de acordo com o Tribunal Geral quando declarou que «[o] efeito útil das regras [da União] em matéria de auxílios de Estado seria fortemente reduzido se se seguisse a argumentação [...] nos termos da qual qualquer participação do Estado numa empresa permite, em atenção à imagem do órgão público em questão e às suas outras participações, efetuar contribuições financeiras ilimitadas a partir de fundos públicos sem que estas sejam consideradas auxílios» ( 66 ).

96.

Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça rejeite a primeira parte do primeiro fundamento da República Francesa.

d) Quanto à terceira parte do primeiro fundamento da SNCM

97.

A SNCM censura ao Tribunal Geral ter desvirtuado a decisão controvertida ao considerar, no n.o 93 do seu acórdão, que a Comissão não tinha definido de forma suficiente as atividades económicas do Estado relativamente às quais se devia apreciar a racionalidade económica da cessão por um preço negativo.

98.

Não surpreende que a SNCM apresente este argumento, uma vez que, para ela, a referência à imagem de marca do Estado, entendida no sentido de que inclui todas as atividades económicas do Estado, basta para fundamentar a decisão controvertida.

99.

Na minha resposta à primeira parte do primeiro fundamento, indiquei que não era esse o caso. Portanto, não existe qualquer desvirtuação da decisão controvertida por parte do Tribunal Geral quando este conclui que afirmações e generalizações sem elementos de prova não podem ser consideradas uma fundamentação suficiente.

B – Quanto ao segundo fundamento, relativo à injeção de capital no montante de 8,75 milhões de euros, pela CGMF

1. Decisão controvertida

100.

Nos considerandos 355 a 360 da decisão controvertida, a Comissão entendeu que, visto a injeção dos cessionários privados, no montante de 26,25 milhões de euros, ser significativa e concomitante, o caráter de auxílio podia ser automaticamente afastado no que diz respeito à injeção de capital da CGMF. Nos considerandos 361 a 365 da decisão controvertida, a Comissão declarou também que a taxa de rentabilidade fixa, de 10%, constituía uma remuneração adequada dos capitais investidos, e que a existência de uma cláusula resolutiva da cessão ( 67 ) não era de molde a pôr em causa a igualdade de tratamento. Por conseguinte, concluiu que a injeção de capital da CGMF, no montante de 8,75 milhões de euros, não constituía um auxílio na aceção do artigo n.o 1 do artigo 87.o do Tratado CE.

101.

No que diz respeito à taxa de rentabilidade fixa de 10%, a Comissão examinou a questão de saber se o rendimento da participação da CGMF teria sido aceitável para um investidor privado hipotético. Considerou que, na medida em que o rendimento fixo isentava a CGMF de qualquer risco na execução do plano de negócios, essa rentabilidade dos capitais investidos era adequada a longo prazo. Além disso, o perito da Comissão concluiu que, em termos de perfil de risco, a referida injeção de capital se assemelhava mais a uma obrigação de taxa fixa da que a um investimento em ações.

102.

Quanto à cláusula resolutiva constante do contrato de cessão da SNCM, a Comissão admitiu que a existência dessa cláusula não era de molde a pôr em causa o princípio da igualdade de tratamento dos investidores. Segundo a Comissão, a referida cláusula dizia respeito à cessão total da SNCM aos adquirentes privados e não ao investimento concomitante dos cessionários e do Estado na SNCM privatizada.

2. Acórdão recorrido

103.

O Tribunal Geral observou, antes de mais, que a Comissão tinha reconhecido, em resposta a uma das suas questões, que a concomitância de investimentos públicos e privados não pode, só por si, mesmo em presença de investimentos privados significativos, ser suficiente para concluir pela inexistência de auxílio na aceção do Tratado, sem se tomar em consideração os outros elementos relevantes de facto ou de direito.

104.

Em seguida, o Tribunal Geral examinou se a Comissão tinha tido em conta todos os elementos relevantes, mais particularmente a questão dos rendimentos e a da incidência da cláusula resolutiva, na sua apreciação do caráter comparável das condições de investimento das injeções de capital concomitantes. Concluiu pela negativa ( 68 ).

105.

No n.o 124 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que a Comissão não podia evitar fazer uma análise aprofundada da incidência das diferenças de rendimento das participações da CGMF e das participações dos cessionários privados, no âmbito do exame da igualdade de tratamento.

106.

Quanto à cláusula resolutiva, o Tribunal Geral declarou, no n.o 130 do acórdão recorrido, que a mesma era, pelo menos, suscetível de anular qualquer aleatoriedade para os cessionários privados em caso de ocorrência de um dos seus elementos desencadeadores, e que essa cláusula tinha, consequentemente, um valor financeiro real. A referida cláusula era suscetível de modificar os perfis de risco das injeções de capital dos cessionários privados e da CGMF, e de pôr em causa o caráter comparável das condições de investimento. Nestas circunstâncias, em seu entender, a Comissão também não podia abster‑se de proceder a uma análise aprofundada do impacto económico da cláusula resolutiva de cessão.

3. Análise

107.

A SNCM considera que, ao concluir que a Comissão não teve em conta todos os elementos pertinentes, o Tribunal Geral desvirtuou a decisão controvertida. Segundo a SNCM, a Comissão considerou que, para um investidor privado, o rendimento fixo de 10% do investimento em capital do Estado na SNCM constituía uma rentabilidade dos capitais investidos que era adequada a longo prazo. Por conseguinte, a SNCM considera que para este tipo de investimento é assegurado um rendimento fixo de um nível especialmente elevado, o que demonstra que a taxa de remuneração de 10% teria sido aceitável para um investidor privado hipotético. Em caso de aplicação da cláusula resolutiva, o que extinguiria retroativamente o contrato de cessão, o investimento do Estado seria anulado e, por isso, o seu rendimento seria nulo, o que, segundo a SNCM, demonstra que o impacto da cláusula resolutiva teria sido neutro e não necessitava de uma análise aprofundada por parte da Comissão.

108.

Quanto à existência da própria cláusula resolutiva, a SNCM e a República Francesa consideram que, no momento da aquisição da SNCM, os cessionários privados compraram a garantia de poder recuperar a sua injeção de capital, caso se viesse a verificar um dos factos que permitiam a aplicação dessa cláusula resolutiva. Para eles, a cláusula resolutiva não põe em causa o equilíbrio das condições de investimento das injeções de capital posteriores dos cessionários privados e do Estado francês.

109.

Em meu entender, o Tribunal Geral não podia concluir, no n.o 131 do acórdão recorrido, que a Comissão não tinha tido em conta todos os elementos relevantes, nomeadamente os rendimentos, na sua apreciação do caráter comparável das condições de investimento das injeções concomitantes de capital, privados e públicos, nem, a fortiori, qualificar esta omissão como erro de apreciação.

110.

Todavia, a sua decisão de julgar procedente a alegação que punha em causa o bem‑fundado da análise da Comissão que conclui pelo respeito do princípio da igualdade de tratamento entre os cessionários privados e a CGMF continua fundada por outras razões jurídicas ( 69 ).

111.

Com efeito, embora, na sua decisão, a Comissão tenha abordado a questão do rendimento fixo e a questão relativa à incidência da cláusula resolutiva de cessão, a fundamentação das suas conclusões quanto a estes dois pontos não permitia que fossem consideradas suficientemente demonstradas.

112.

Quanto à questão dos rendimentos, a Comissão afirmou, nos considerandos 361 a 363 da decisão controvertida, que a taxa de remuneração fixa era tão elevada que um investidor privado teria aceitado participar na injeção de capital a favor da SNCM nessas condições. Segundo a Comissão, o facto de a cláusula resolutiva só poder ser invocada pelos cessionários privados não viola o princípio da igualdade de tratamento entre o investidor público e os investidores privados.

113.

Esta conclusão pôde ser posta em dúvida, por falta de fundamentação suficiente, pelo Tribunal Geral, que observou que, ao contrário do que ocorria no caso do Estado francês, a rentabilidade da injeção de capital dos cessionários privados não era fixada pelo protocolo de acordo e que «[a] taxa de remuneração fixa [do Estado francês] não [estava] garantida, na medida em que, no caso de exercício da cláusula resolutiva de cessão [...], o rendimento fixo deixará de ser pago» ( 70 ). O Tribunal Geral também assinalou a existência de uma desproporção entre a injeção de capital dos cessionários privados, cuja contrapartida consiste, segundo o mesmo, em «grandes compromissos, sob diversas formas, do Estado francês» ( 71 ).

114.

Quanto à questão da cláusula resolutiva, o Tribunal Geral salienta a falta de fundamentação da decisão controvertida, que «[se] limita a considerar que não pode pôr em causa a igualdade de tratamento entre os investidores concomitantes, mas não contém nenhuma análise de natureza económica» ( 72 ). O raciocínio da Comissão está condensado em quatro linhas no considerando 364 da decisão controvertida, em que a Comissão observa, sem mais, que a cláusula em questão «incide, com efeito, na cessão total da SNCM aos cessionários privados e não no investimento (35 milhões de euros) concomitante dos cessionários (26,25 milhões de euros) e do Estado (8,75 milhões de euros) na SNCM privatizada».

115.

Por conseguinte, concluo que o acolhimento da alegação em causa pelo Tribunal Geral está justificado por falta de fundamentação, dado que a Comissão não alicerçou, ou não alicerçou suficientemente, a sua decisão quanto à igualdade de tratamento dos investimentos públicos e privados na SNCM.

C – Quanto ao terceiro fundamento, relativo ao adiantamento em conta corrente feito pela CGMF, no montante de 38,5 milhões de euros, a favor dos membros do pessoal despedidos da SNCM

1. Decisão controvertida

116.

Nos considerandos 366 a 379 da decisão controvertida, a Comissão concluiu que as medidas de auxílio social, que vão além das indemnizações previstas pela legislação social e pelas convenções coletivas aplicáveis, no valor de 38,5 milhões de euros, depositados numa conta bloqueada, seriam executadas no caso de os cessionários privados decidirem um novo plano de redução dos efetivos, e que não podiam corresponder à execução da redução dos efetivos prevista no plano de 2002.

117.

Segundo a Comissão, esses auxílios só podem ser pagos a pessoas cujo contrato de trabalho com a SNCM tenha sido previamente rescindido. Essas medidas não constituem, portanto, encargos decorrentes da aplicação normal da legislação social aplicável no âmbito da rutura do contrato de trabalho. A Comissão concluiu que esses auxílios sociais, concedidos pelo Estado enquanto poder público, e não pelo Estado acionista, se integravam na política social dos Estados‑Membros e não constituíam, assim, um auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

2. Acórdão recorrido

118.

Nos n.os 142 a 147 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que a decisão controvertida estava viciada por um erro manifesto de apreciação, na medida em que a Comissão não tinha determinado corretamente a natureza e os efeitos da existência da conta bloqueada.

119.

Em primeiro lugar, o Tribunal Geral considerou que o facto de a medida em causa não decorrer das estritas obrigações legais e convencionais não era suscetível, por si só, de excluir a natureza de auxílio de Estado dessa medida. Em segundo lugar, o mesmo considerou que a existência da conta bloqueada era suscetível de incentivar os trabalhadores da SNCM a abandonarem a empresa sem negociar os termos da sua saída, nomeadamente a eventual concessão de indemnizações complementares por despedimento, o que, segundo o Tribunal Geral, constituía uma vantagem económica indireta para a SNCM.

3. Análise

120.

A SNCM censura ao Tribunal Geral ter desvirtuado a decisão controvertida ao considerar que a Comissão tinha afirmado que o facto de a medida em causa não decorrer das estritas obrigações legais e convencionais era, por natureza, suscetível de excluir o seu caráter de auxílio de Estado. A SNCM também considera que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao invadir a margem de que a Comissão dispõe na apreciação de situações económicas complexas. Por último, a SNCM e a República Francesa censuram ao Tribunal Geral não ter fundamentado o seu acórdão ao qualificar a medida em causa de auxílio de Estado, sem verificar, a título subsidiário, se essa medida satisfazia, ou não, o teste do investidor privado avisado, como, no entanto, já sustentava a Comissão, no considerando 378 da decisão controvertida.

121.

Proponho que o Tribunal de Justiça julgue improcedente o terceiro fundamento, pelas razões que se seguem.

a) Quanto à primeira parte do terceiro fundamento da SNCM

122.

No que diz respeito ao argumento da SNCM, relativo a uma alegada desvirtuação da decisão da Comissão, considero que, no n.o 143 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral entendeu corretamente a posição da Comissão, segundo a qual, para excluir a natureza de auxílio da medida em causa, devia verificar «se a medida não desagrava a SNCM de encargos decorrentes da sua gestão corrente, isto é, no caso vertente, encargos decorrentes da normal aplicação da legislação social em caso de cessação de contratos de trabalho» ( 73 ).

123.

O raciocínio da Comissão, como foi exposto nos considerandos 371 a 377 da decisão controvertida, visa demonstrar que a medida em causa decorre de obrigações que vão além das indemnizações previstas pela legislação social e as convenções coletivas aplicáveis. Deste modo, é evidente, sobretudo tendo em conta o considerando 377 da decisão controvertida da Comissão, que esta entendia que o facto de a medida em causa não decorrer das estritas obrigações legais e convencionais era suscetível de excluir a natureza de auxílio de Estado.

124.

Por conseguinte, entendo que o Tribunal Geral não desvirtuou, de modo algum, a decisão da Comissão no sentido sugerido no terceiro fundamento.

b) Quanto à segunda parte do terceiro fundamento da SNCM

125.

A SNCM alega que, no n.o 144 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito, ao invadir a margem de que a Comissão dispõe na apreciação de situações económicas complexas.

126.

No referido número, o Tribunal Geral observa que «a existência da conta bloqueada é suscetível de criar um incentivo para os trabalhadores da SNCM abandonarem a empresa ou, pelo menos, a abandonarem sem negociar a sua saída, em particular quanto à eventual concessão de indemnizações complementares por despedimento [...], tudo isto factos geradores de uma vantagem económica indireta para a SNCM».

127.

A questão de saber se a conta bloqueada é suscetível de incentivar os trabalhadores da SNCM a saírem da empresa sem negociar a sua saída e se a mesma gera uma vantagem económica indireta para a SNCM é, evidentemente, uma questão de apreciação de factos, que não é da competência do Tribunal de Justiça no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral.

128.

Por conseguinte, a segunda parte do terceiro fundamento da SNCM é inadmissível e deve ser rejeitada.

c) Quanto à terceira parte do terceiro fundamento da SNCM e ao terceiro fundamento da República Francesa

129.

Segundo a SNCM e a República Francesa, o Tribunal Geral não fundamentou a sua decisão, ao qualificar a medida em causa de auxílio de Estado sem verificar, a título subsidiário, se essa medida satisfazia, ou não, o teste do investidor privado avisado.

130.

A substância deste argumento consiste em afirmar que, mesmo que a existência da conta bloqueada tivesse o efeito de desagravar os encargos que incumbem à SNCM, esta medida poderia ser exonerada pela aplicação do critério do investidor privado.

131.

A SNCM e a República Francesa consideram (como a Comissão, no considerando 378 da decisão controvertida) que, se o valor da conta bloqueada, ou seja, 38,5 milhões de euros, fosse somado ao preço negativo da cessão, ou seja, 158 milhões de euros, o preço total da cessão, ou seja, 196,5 milhões de euros, seria sempre inferior ao custo de liquidação. Isto demonstrava que um investidor privado teria, igualmente, tomado esta medida, que, portanto, não constituía um auxílio de Estado.

132.

Ora, resulta claramente do considerando 70 e da nota 66 da decisão, que a conta bloqueada foi criada para pagar indemnizações complementares por despedimento. Na minha análise do primeiro fundamento, já me pronunciei sobre a aplicação do critério do investidor privado a este tipo de indemnizações.

133.

Pelas razões expostas nos n.os 51 a 63, e 79 a 96 das presentes conclusões, considero que a Comissão não fundamentou suficientemente a sua posição de que, em circunstâncias comparáveis, um investidor privado teria pago indemnizações complementares por despedimento semelhantes, nem, a fortiori, que teria acrescentado o valor da conta bloqueada ao preço da cessão.

134.

A SNCM salienta, também, que o Tribunal Geral não apoiou ou fundamentou, de forma alguma, a sua análise da conta bloqueada, resumida no n.o 144 do acórdão recorrido. Em meu entender, as razões pelas quais o Tribunal Geral considerou que a conta bloqueada conferia uma vantagem económica indireta à SNCM resultam claramente do seu raciocínio.

135.

Como a Corsica Ferries aponta, no n.o 137 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral adotou a mesma posição que a Comissão, ou seja, que «o conceito de auxílio não implica necessariamente que uma obrigação legal seja suportada, mas antes que sejam aligeirados os encargos que, normalmente, oneram o orçamento de uma empresa». Seria este o caso em relação à SNCM, na hipótese de nova redução de efetivos.

136.

Isto resulta ainda mais claramente dos considerandos 374 e 375 da decisão controvertida, nos quais a Comissão reconheceu que a criação da conta bloqueada fazia com que o Estado suportasse o custo das indemnizações complementares por despedimento dos trabalhadores que seriam despedidos, uma vez a SNCM vendida aos cessionários privados.

137.

Por conseguinte, considero que o Tribunal Geral fundamentou de forma suficiente a sua decisão a este respeito e concluo que a terceira parte do terceiro fundamento da SNCM, bem como o terceiro fundamento da República Francesa, devem ser julgados improcedentes.

D – Quanto ao quarto fundamento, relativo ao saldo de reestruturação, no montante de 15,81 milhões de euros

1. Decisão controvertida

138.

No considerando 434 da decisão controvertida, a Comissão afirmou que o auxílio estatal na forma de injeção de capital no montante de 15,81 milhões de euros ( 74 ) era compatível com o mercado comum, à luz do n.o 3, alínea c), do artigo 87.o do Tratado CE.

2. Acórdão recorrido

139.

No n.o 149 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral declarou que a análise desse saldo de reestruturação pela Comissão se baseava na premissa de que o plano de privatização de 2006 não continha elementos de auxílio de Estado. Nos n.os 152 e 153 do referido acórdão, o Tribunal Geral concluiu que, na medida em que a Comissão tinha cometido um erro de direito e erros manifestos de apreciação capazes de pôr em causa essa premissa, a análise da Comissão relativa ao saldo de reestruturação não estava verdadeiramente sustentada.

3. Análise

140.

A SNCM e a República Francesa reconhecem que o êxito do seu quarto fundamento depende da decisão do Tribunal de Justiça de julgar procedentes, ou não, os outros fundamentos invocados nos presentes recursos.

141.

Atendendo à minha análise anterior e à proposta que fiz no sentido de o Tribunal de Justiça julgar improcedentes os três primeiros fundamentos da SNCM e da República Francesa, considero correto que o Tribunal Geral teve razão ao dar provimento ao recurso da Corsica Ferries, que visava a anulação da decisão controvertida.

142.

Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça julgue improcedente o quarto fundamento da SNCM e da República Francesa.

V – Conclusão

143.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça:

negue provimento aos recursos;

condene a Société nationale maritime Corse‑Méditerranée (SNCM) SA e a República Francesa a suportar as suas próprias despesas, bem como as despesas efetuadas pela Corsica Ferries France SAS, em partes iguais.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Acórdão de 11 de setembro de 2012 (T‑565/08).

( 3 ) JO L 225, p. 180.

( 4 ) V. considerando 40 da decisão controvertida.

( 5 ) JO L 61, p. 13.

( 6 ) Este montante constitui a diferença entre as necessidades líquidas de tesouraria da SNCM, a saber, 19,75 milhões de euros, e o produto líquido das cessões de ativos resultantes da decisão de 2003, a saber, 3,94 milhões de euros, correspondentes à venda de um navio e das participações em três sociedades. V. nota 201 da decisão controvertida.

( 7 ) JO L 19, p. 70.

( 8 ) Acórdão Corsica Ferries France/Comissão (T-349/03, Colet., p. II-2197).

( 9 ) Nas presentes conclusões, farei referência aos artigos do Tratado CE em vigor à época da decisão controvertida.

( 10 ) JO 1999, C 288, p. 2.

( 11 ) V. considerando 17 da decisão controvertida.

( 12 ) JO L 24, p. 1.

( 13 ) JO 2006, C 303, p. 53.

( 14 ) V. n.o 82 do acórdão recorrido.

( 15 ) Ibidem (n.o 83).

( 16 ) Ibidem (n.o 84).

( 17 ) Ibidem (n.os 90 a 93).

( 18 ) Ibidem (n.os 93 e 94).

( 19 ) Ibidem (n.os 95 a 108).

( 20 ) Ibidem (n.o 109).

( 21 ) Ibidem (n.o 108).

( 22 ) V. acórdãos de 22 de novembro de 2007, Espanha/Comissão (C-525/04 P, Colet., p. I-9947, n.o 57), e de 2 de setembro de 2010, Comissão/Scott (C-290/07 P, Colet., p. I-7763, n.o 66).

( 23 ) Acórdão Comissão/Scott, já referido, n.o 66. V., também, acórdão de 6 de outubro de 2009, GlaxoSmithKline Services e o./Comissão e o. (C-501/06 P, C-513/06 P, C-515/06 P e C-519/06 P, Colet., p. I-9291, n.o 163).

( 24 ) O sublinhado é meu.

( 25 ) Acórdão de 8 de maio de 2003 (C-328/99 e C-399/00, Colet., p. I-4035, n.o 38).

( 26 ) Comunicação da Comissão aos Estados‑Membros ‑ Aplicação dos artigos 92.° e 93.° do Tratado CE e do artigo 5.o da Diretiva 80/723/CEE da Comissão às empresas públicas do setor produtivo (JO 1993, C 307, p. 3, n.o 14).

( 27 ) N.o 101 do acórdão recorrido.

( 28 ) Ibidem (n.o 87).

( 29 ) Ibidem (n.o 96).

( 30 ) Idem.

( 31 ) V. acórdão Comissão/Scott, já referido (n.o 66).

( 32 ) V. considerandos 267 a 268 e 272 da decisão controvertida.

( 33 ) Ibidem (n.o 97).

( 34 ) V. n.o 96 do acórdão recorrido.

( 35 ) Ibidem (n.o 102).

( 36 ) Ibidem (n.o 105).

( 37 ) V. n.o 85 do acórdão recorrido.

( 38 ) V. nota 137 da decisão controvertida.

( 39 ) Acórdão de 21 de março de 1991 (C-303/88, Colet., p. I-1433, n.o 21).

( 40 ) Idem.

( 41 ) Ibidem (n.o 22).

( 42 ) Ibidem (n.o 24).

( 43 ) Ibidem (n.o 18).

( 44 ) Acórdão de 14 de setembro de 1994 (C-278/92 a C-280/92, Colet., p. I-4103).

( 45 ) N.o 24 das conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo em que foi proferido o acórdão Espanha/Comissão, já referido.

( 46 ) Ibidem (n.o 29).

( 47 ) Idem.

( 48 ) Ibidem (n.o 30).

( 49 ) Acórdão Espanha/Comissão, já referido (n.os 25 e 26).

( 50 ) V., neste sentido, despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 3 de maio de 1996, Alemanha/Comissão (C-399/95 R, Colet., p. I-2441).

( 51 ) Ibidem (n.o 14).

( 52 ) Ibidem (n.o 32).

( 53 ) Ibidem (n.o 70).

( 54 ) Ibidem (n.o 66).

( 55 ) V. acórdão de 21 de janeiro de 1999, Neue Maxhütte Stahlwerke e Lech‑Stahlwerke/Comissão (T-129/95, T-2/96 e T-97/96, Colet., p. II-17, n.o 122).

( 56 ) Ibidem (n.o 126).

( 57 ) Ibidem (n.o 127).

( 58 ) V. despacho de 25 de janeiro de 2001, Lech‑Stahlwerke/Comissão (C-111/99 P, Colet., p. I-727).

( 59 ) N.o 85 do acórdão recorrido.

( 60 ) Ibidem (n.o 91).

( 61 ) Acórdão Itália/Comissão, já referido (n.o 22).

( 62 ) Acórdão Espanha/Comissão, já referido (n.o 24).

( 63 ) N.o 24 das conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo em que foi proferido o acórdão Espanha/Comissão, já referido.

( 64 ) Acórdão Neue Maxhütte Stahlwerke e Lech‑Stahlwerke/Comissão, já referido (n.o 122).

( 65 ) V. n.os 58 a 61 do recurso da República Francesa.

( 66 ) Acórdão Neue Maxhütte Stahlwerke e Lech‑Stahlwerke/Comissão, já referido (n.o 125). V., no mesmo sentido, n.o 85, in fine, do acórdão recorrido.

( 67 ) A secção III.5 do protocolo de acordo de 16 de maio de 2006 é relativa à cláusula resolutiva da cessão, que pode ser exercida concomitantemente pelos cessionários nas situações descritas a seguir: i) não adjudicação do contrato de delegação de serviço público para os serviços marítimos destinados à Córsega no período que se inicia em 1 de janeiro de 2007 ou ii) notificação ao Governo francês de uma decisão da Comissão que declarasse todas ou parte das quantias injetadas na SNCM pelo Estado francês como auxílio de Estado contrário ao direito da União.

( 68 ) N.os 120 a 131 do acórdão recorrido.

( 69 ) V. acórdãos de 9 de junho de 1992, Lestelle/Comissão (C-30/91 P, Colet., p. I-3755, n.o 28); de 15 de dezembro de 1994, Finsider/Comissão (C-320/92 P, Colet., p. I-5697, n.o 37); de 12 de novembro de 1996, Ojha/Comissão (C-294/95 P, Colet., p. I-5863, n.o 52); e de 13 de julho de 2000, Salzgitter/Comissão (C-210/98 P, Colet., p. I-5843, n.o 58).

( 70 ) N.o 124 do acórdão recorrido.

( 71 ) Ibidem (n.o 125).

( 72 ) Ibidem (n.o 127).

( 73 ) Considerando 371 da decisão controvertida.

( 74 ) V. nota 6 das presentes conclusões.