ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

26 de setembro de 2013 ( *1 )

«Artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Saúde pública — Óticos — Legislação regional que subordina a instalação de novos estabelecimentos de ótica a uma autorização — Limitações demográficas e geográficas — Justificação — Aptidão para atingir o objetivo prosseguido — Coerência — Proporcionalidade»

No processo C‑539/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Giustizia Amministrativa per la Regione Siciliana (Itália), por decisão de 13 de julho de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 21 de outubro de 2011, no processo

Ottica New Line di Accardi Vincenzo

contra

Comune di Campobello di Mazara,

na presença de

Fotottica Media Visione di Luppino Natale Fabrizio e C. s.n.c.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, J. Malenovský (relator), U. Lõhmus, M. Safjan e A. Prechal, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo checo, por M. Smolek e T. Müller, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por S. Martínez‑Lage Sobredo, na qualidade de agente,

em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e J. Langer, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por I. Rogalski e D. Recchia, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de janeiro de 2013,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Ottica New Line di Accardi Vincenzo (a seguir «Ottica New Line») ao Comune di Campobello di Mazara (Itália), a respeito da decisão deste último que autorizou a Fotottica Media Vision di Luppino Natale Fabrizio e C. s.n.c. (a seguir «Fotottica») a exercer a título permanente a atividade de «ottico» no território deste município.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do considerando 22 da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO L 376, p. 36):

«A exclusão dos cuidados de saúde do âmbito de aplicação da presente diretiva deverá abranger os serviços de prestação de cuidados de saúde e os serviços farmacêuticos prestados por profissionais da saúde a doentes com o objetivo de avaliar, manter ou restabelecer o seu estado de saúde nos casos em que essas atividades estejam reservadas a uma profissão de saúde regulamentada no Estado‑Membro em que os serviços são prestados.»

4

O artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva dispõe:

«A presente diretiva estabelece disposições gerais que facilitam o exercício da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços, mantendo simultaneamente um elevado nível de qualidade dos serviços.»

5

O artigo 2.o, n.o 2, alínea f), da referida diretiva prevê:

«A presente diretiva não se aplica às seguintes atividades:

[...]

f)

Serviços de cuidados de saúde, prestados ou não no âmbito de uma estrutura de saúde, e independentemente do seu modo de organização e financiamento a nível nacional e do seu caráter público ou privado.»

6

Do capítulo III da mesma diretiva, relativo à liberdade de estabelecimento dos prestadores, consta o artigo 15.o, n.o 2, segundo o qual os Estados‑Membros devem verificar se os respetivos sistemas jurídicos condicionam o acesso a uma atividade de serviços ou o seu exercício ao cumprimento de restrições quantitativas ou territoriais, nomeadamente sob a forma de limites fixados em função da população ou de uma distância geográfica mínima entre prestadores. De acordo com o n.o 3 do mesmo artigo, os Estados‑Membros devem verificar se tais requisitos observam as condições de não discriminação, de necessidade e de proporcionalidade.

Direito italiano

7

Nos termos do artigo 1.o da Lei Regional n.o 12 «Regulação do exercício da atividade de ‘ottico’ e alteração da Lei Regional n.o 28 de 22 de fevereiro de 1999» (legge regionale n.o 12 «Disciplina dell’esercizio dell’attività di ottico e modifica alla legge regionale 22 febbraio 1999, n.o 28»), de 9 de julho de 2004 (Gazzetta ufficiale della Regione Siciliana n.o 30, de 16 de julho de 2004, a seguir «Lei Regional n.o 12/2004»):

«1.   Para efeitos da emissão da autorização para o exercício da atividade de ‘ottico’ por parte da autoridade municipal competente, para além da inscrição no Registo especial previsto no artigo 71.o da Lei Regional n.o 25, de 1 de setembro de 1993, ter‑se‑á em conta a relação entre o número de residentes e o número de estabelecimentos de ótica, a fim de assegurar uma repartição racional da oferta no território. Essa relação é fixada em um estabelecimento de ótica por cada 8000 residentes. A distância entre dois estabelecimentos não deve ser inferior a 300 metros. Os limites acima referidos não se aplicam aos estabelecimentos que se transferiram de um local arrendado para um local de que sejam proprietários nem aos estabelecimentos que sejam obrigados a transferir‑se por motivo de despejo ou por outras causas de força maior. Permanecem válidas as autorizações emitidas antes da data de entrada em vigor da presente lei.

2.   Nos casos em que fique comprovada a existência de necessidades territoriais, a autoridade municipal competente procede à emissão da respetiva autorização ou à transferência de uma autorização existente, em derrogação ao disposto no n.o 1, depois de ter obtido o parecer obrigatório da Comissão Provincial junto da Câmara de Comércio a que se refere o artigo 8.o do Regulamento de execução do artigo 71.o da Lei Regional n.o 25, de 1 de setembro de 1993, aprovado pelo Decreto Presidencial n.o 64, de 1 de junho de 1995.

3.   Nos municípios em que a população residente não ultrapassa os 8000 habitantes, a autoridade municipal competente pode, não obstante, emitir até um máximo de duas autorizações sem o parecer da Comissão a que se refere o n.o 2. Ficam ressalvados os pedidos instruídos antes da data de entrada em vigor da presente lei.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8

Por decisão de 18 de dezembro de 2009, o Comune di Campobello di Mazara autorizou a Fotottica a instalar um estabelecimento de ótica no seu território.

9

É facto assente que esta decisão viola o artigo 1.o, n.o 1, da Lei Regional n.o 12/2004, por a instalação do referido estabelecimento não respeitar os limites referentes à densidade demográfica e à distância mínima que deve ser respeitada entre os estabelecimentos de ótica, previstas na referida disposição.

10

A referida decisão foi impugnada pela Ottica New Line no Tribunale amministrativo regionale per la Sicilia. Por decisão de 18 de março de 2010, este órgão jurisdicional negou provimento ao recurso após ter afastado a aplicação do artigo 1.o, n.o 1, da Lei Regional n.o 12/2004, por considerar que este é incompatível com o direito da União.

11

A Ottica New Line recorreu da decisão do Tribunale amministrativo regionale per la Sicilia para o órgão jurisdicional de reenvio. Este interroga‑se sobre a possibilidade de aplicar à instalação de estabelecimentos de ótica os princípios que o Tribunal de Justiça consagrou no seu acórdão de 1 de junho de 2010, Blanco Pérez e Chao Gómez (C-570/07 e C-571/07, Colet., p. I-4629). Com efeito, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que o direito da União não se opõe, em princípio, a uma legislação nacional que subordina a instalação de novas farmácias a limites relativos à densidade demográfica e à distância entre farmácias, por estes limites serem suscetíveis de repartir as farmácias de forma equilibrada no território nacional, de garantir a toda a população um acesso apropriado ao serviço farmacêutico e, consequentemente, de aumentar a segurança e a qualidade do fornecimento de medicamentos à população.

12

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é incontestável que a profissão de «ottico», mais ainda do que a de farmacêutico, é dominada por considerações comerciais. Por outro lado, não será de excluir, na sua opinião, que a introdução e a manutenção de um regime especial de repartição territorial dos estabelecimentos de ótica têm um interesse análogo em matéria de proteção da saúde pública. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que é de temer que, caso não haja regulamentação, os estabelecimentos de ótica acabem por se concentrar nas localidades consideradas as mais vantajosas do ponto de vista comercial, em detrimento das localidades menos atrativas no plano comercial, que, desse modo, a médio prazo, ficariam com um número insuficiente de óticos.

13

Nestas condições, o Consiglio di Giustizia Amministrativa per la Regione Siciliana decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o direito da União […] em matéria de liberdade de estabelecimento e de livre prestação de serviços ser interpretado no sentido de que corresponde a uma razão imperiosa de interesse geral, relacionada com a exigência de proteger a saúde humana, uma norma interna — no presente caso, o artigo 1.o da [Lei Regional n.o 12/2004] — que subordina a instalação dos estabelecimentos de ótica no território de um Estado‑Membro (no presente caso, numa parte do referido território) a limites de densidade demográfica e de distância entre os estabelecimentos, limites esses que, em abstrato, configuram uma violação das liberdades fundamentais acima referidas?

2)

Em caso de resposta afirmativa à questão precedente, de acordo com o direito da União […], o limite de densidade demográfica (um estabelecimento por cada [8000] residentes) e o limite da distância ([300] metros entre um estabelecimento e outro), fixados na [Lei Regional n.o 12/2004], para a instalação de estabelecimentos de ótica no território regional, devem ser considerados adequados à realização do objetivo correspondente à razão imperiosa de interesse geral acima indicada?

3)

Em caso de resposta afirmativa à questão n.o 1), de acordo com o direito da União […], o limite de densidade demográfica (um estabelecimento por cada [8000] residentes) e o limite da distância ([300] metros entre um estabelecimento e outro), fixados na [Lei Regional n.o 12/2004], para a instalação de estabelecimentos de ótica no território regional, são proporcionados, ou seja, não excessivos relativamente à realização do objetivo correspondente à razão imperiosa de interesse geral acima indicada?»

Quanto às questões prejudiciais

14

Com as suas questões, que importa analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o direito da União se opõe a uma legislação regional, como a que está em causa no processo principal, que impõe limites à emissão de autorizações de instalação de novos estabelecimentos de ótica, ao prever que:

em cada zona geográfica, só pode existir, em princípio, um estabelecimento de ótica por cada 8000 residentes, e

cada novo estabelecimento de ótica deve, em princípio, respeitar uma distância mínima de 300 metros em relação aos estabelecimentos de ótica já existentes.

Observações preliminares

15

Em primeiro lugar, há que salientar que, embora o órgão jurisdicional de reenvio faça referência, nas questões submetidas, quer às normas de direito da União em matéria de livre prestação de serviços quer às normas relativas à liberdade de estabelecimento, a legislação em causa deve ser apreciada apenas à luz das normas relativas à liberdade de estabelecimento.

16

Com efeito, a legislação em questão no processo principal regula apenas as condições de instalação dos «ottici» numa parte do território italiano, na perspetiva de uma participação estável e contínua destes profissionais na vida económica deste Estado‑Membro. Nestas condições, as disposições relativas à livre prestação de serviços, que só são aplicáveis se as disposições relativas à liberdade de estabelecimento o não forem, não são pertinentes (v., por analogia, acórdão de 11 de março de 2010, Attanasio Group, C-384/08, Colet., p. I-2055, n.o 39 e jurisprudência referida).

17

Em segundo lugar, há que salientar que a Diretiva 2006/123, embora regule a liberdade de estabelecimento dos prestadores de outros Estados‑Membros e o órgão jurisdicional de reenvio a ela se refira, não é aplicável ao caso vertente.

18

Com efeito, resulta do artigo 2.o, n.o 2, alínea f), da Diretiva 2006/123, interpretado à luz do seu considerando 22, que esta diretiva não se aplica aos serviços de cuidados de saúde prestados por profissionais da saúde a doentes com o objetivo de avaliar, manter ou restabelecer o seu estado de saúde nos casos em que essas atividades estejam reservadas a uma profissão de saúde regulamentada no Estado‑Membro em que os serviços são prestados.

19

Ora, por um lado, o Tribunal de Justiça já declarou que a intervenção de um ótico é suscetível de limitar certos riscos para a saúde e, desse modo, assegurar a proteção da saúde pública (v., neste sentido, acórdão de 2 de dezembro de 2010, Ker‑Optika, C-108/09, Colet., p. I-12213, n.o 64).

20

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio indica que os óticos em questão no processo principal não só fornecem, controlam e adaptam os meios de correção de deficiências visuais como também podem tratar eles próprios os defeitos de visão, utilizando meios óticos de correção, ou desenvolver uma atividade de prevenção dos problemas visuais. Ora, como salientou o advogado‑geral no n.os 20 e 21 das suas conclusões, quando um ótico está autorizado a realizar exames de visão, a medir a acuidade visual, a definir e a controlar a correção ocular necessária, a detetar os problemas de visão e a tratar as deficiências visuais através de meios de correção óticos, a aconselhar os clientes a este respeito e a orientá‑los para um especialista em oftalmologia, o ótico exerce uma atividade que responde a preocupações relacionadas com a saúde pública. Em contrapartida, quando um ótico exerce atividades de ordem técnica, como a montagem da armação ou a reparação dos óculos, e vende produtos que não se inserem propriamente no tratamento de problemas de visão, como a venda de óculos de sol sem lentes de correção ou de produtos de manutenção, exerce uma atividade comercial que não está relacionada com a proteção da saúde pública.

21

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, em Itália, a atividade de «ottico» é uma profissão regulamentada.

22

Nestas condições, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 2, alínea f), da Diretiva 2006/123, as atividades dos óticos em questão no processo principal encontram‑se excluídas do seu âmbito de aplicação.

23

Daqui decorre que as restrições em questão no processo principal devem ser analisadas apenas em relação à sua compatibilidade com o Tratado FUE e, mais precisamente, com o seu artigo 49.o

24

Em terceiro lugar, há que recordar que, em conformidade com o artigo 168.o, n.o 7, TFUE, conforme interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, o direito da União não afeta a competência dos Estados‑Membros para adotarem disposições destinadas a organizar os serviços de saúde. Contudo, no exercício desta competência, os Estados‑Membros devem respeitar o direito da União, designadamente as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento que proíbem os Estados‑Membros de introduzirem ou de manterem restrições injustificadas ao exercício dessa liberdade no domínio dos cuidados de saúde (v., neste sentido, acórdãos de 19 de maio de 2009, Apothekerkammer des Saarlandes e o., C-171/07 e C-172/07, Colet., p. I-4171, n.o 18, e Blanco Pérez e Chao Gómez, já referido, n.o 43).

Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

25

Segundo jurisprudência constante, constitui uma restrição na aceção do artigo 49.o TFUE qualquer medida nacional que, embora aplicável sem discriminação em razão da nacionalidade, seja suscetível de afetar ou de tornar menos atrativo o exercício, pelos nacionais da União, da liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado (acórdãos de 21 de abril de 2005, Comissão/Grécia, C-140/03, Colet., p. I-3177, n.o 27, e Blanco Pérez e Chao Gómez, já referido, n.o 53).

26

Pertence especialmente a esta categoria uma legislação nacional que subordina o estabelecimento de um prestador de outro Estado‑Membro à concessão de uma autorização prévia, uma vez que esta é suscetível de perturbar o exercício, por esse prestador, da liberdade de estabelecimento, impedindo‑o de exercer livremente as suas atividades por intermédio de um estabelecimento estável. Com efeito, o referido prestador corre o risco, por um lado, de suportar os encargos administrativos e financeiros suplementares que cada emissão de tal autorização implica. Por outro lado, o sistema de autorização prévia exclui do exercício de uma atividade por conta própria os operadores económicos que não cumprem certas exigências antecipadamente determinadas, cuja observância condiciona a concessão dessa autorização (acórdãos de 10 de março de 2009, Hartlauer, C-169/07, Colet., p. I-1721, n.os 34 e 35, e Blanco Pérez e Chao Gómez, já referido, n.o 54).

27

Por outro lado, uma legislação nacional constitui uma restrição quando subordina o exercício de uma atividade a uma condição atinente às necessidades económicas ou sociais que essa atividade tem de satisfazer, uma vez que tem o efeito de limitar o número de prestadores de serviços (acórdãos, já referidos, Hartlauer, n.o 36, e Blanco Pérez e Chao Gómez, n.o 55).

28

No que respeita ao litígio no processo principal, há que salientar, em primeiro lugar, que a Lei Regional n.o 12/2004 subordina a instalação de um novo estabelecimento de ótica à emissão de uma autorização administrativa prévia.

29

Em segundo lugar, esta legislação tem em conta a relação entre a densidade populacional e o número de estabelecimentos de ótica, a fim de assegurar uma repartição racional da oferta no território em causa. Ao autorizar apenas a instalação de um número limitado de estabelecimentos de ótica em tal território, a referida legislação restringe, por conseguinte, o acesso dos óticos ao exercício da sua atividade económica nesse mesmo território.

30

Em terceiro lugar, a legislação em causa no processo principal é suscetível de impedir os óticos de escolherem livremente o local em que exercerão a sua atividade independente, na medida em que os candidatos à instalação de um estabelecimento de ótica são obrigados a respeitar uma distância mínima de 300 metros relativamente aos estabelecimentos já existentes.

31

Assim, semelhantes regras têm por efeito perturbar e tornar menos atrativo o exercício, por óticos de outros Estados‑Membros, das suas atividades no território italiano por intermédio de um estabelecimento estável.

32

Consequentemente, uma regulamentação regional como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento na aceção do artigo 49.o TFUE.

Quanto à justificação da restrição à liberdade de estabelecimento

33

Segundo jurisprudência constante, as restrições à liberdade de estabelecimento, aplicáveis sem discriminação em razão da nacionalidade, podem ser justificadas por razões imperiosas de interesse geral, desde que sejam adequadas para garantir a realização do objetivo prosseguido e não excedam o necessário para alcançar esse objetivo (acórdãos, já referidos, Hartlauer, n.o 44, e Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.o 25).

34

A este respeito, resulta do artigo 52.o, n.o 1, TFUE que o objetivo geral de proteção da saúde pública pode justificar restrições à liberdade de estabelecimento (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Hartlauer, n.o 46, e Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.o 27).

35

Por outro lado, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que este objetivo geral pode pretender, mais concretamente, assegurar uma repartição equilibrada de prestadores de cuidados de saúde no território nacional (v., neste sentido, acórdão Blanco Pérez e Chao Gómez, já referido, n.os 64, 70 e 78).

36

Para atingir esse objetivo, a instalação destes prestadores, como sucede com as farmácias, pode ser objeto de planificação. Esta pode, designadamente, revestir a forma de uma autorização prévia para a instalação de uma farmácia, quando esta planificação se revele indispensável para colmatar eventuais lacunas no acesso às prestações de cuidados de saúde e para evitar a abertura de estruturas em duplicado, de modo a assegurar uma assistência sanitária que se adapte às necessidades da população, que cubra todo o território e que tenha em conta as regiões geograficamente isoladas ou que de outra forma se encontrem numa situação desfavorecida (v., neste sentido, acórdão Blanco Pérez e Chao Gómez, já referido, n.o 70).

37

Estes princípios parecem ser transponíveis para a instalação de estabelecimentos de ótica, na medida em que, como se sublinhou no n.o 20 do presente acórdão, os óticos em questão no processo principal prestam serviços de avaliação, manutenção e restabelecimento do estado de saúde dos pacientes, pelo que estes serviços se inserem no âmbito da proteção da saúde pública.

38

A regulamentação em causa no processo principal introduz medidas de planificação relativamente à instalação de estabelecimentos de ótica em todo o território da Região da Sicília. Inclui duas regras principais, a saber, a regra segundo a qual só é autorizado um estabelecimento de ótica por cada 8000 mil residentes e a regra que impõe uma distância mínima de 300 metros entre esses estabelecimentos.

39

Desde logo, é facto assente que a Lei Regional n.o 12/2004 se aplica sem discriminação em razão da nacionalidade.

40

Em seguida, no que se refere à regra nos termos da qual só é autorizada a instalação de um estabelecimento de ótica por cada 8000 mil residentes, o Tribunal de Justiça já declarou que as autoridades nacionais podem tomar medidas para evitar o risco de os prestadores de cuidados de saúde se concentrarem nas localidades consideradas atrativas do território em questão. Assim, atendendo a este risco, as autoridades nacionais podem aprovar uma regulamentação que preveja que, em função de um determinado número de residentes, só um prestador de cuidados de saúde se pode estabelecer, uma vez que tal regra tem por objetivo estimular a implementação desses prestadores em partes do território nacional em que ainda existem lacunas no acesso aos cuidados de saúde (v., neste sentido, acórdão Blanco Pérez e Chao Gómez, n.os 72 à 77).

41

Nestas condições, a regra segundo a qual a instalação de um estabelecimento de ótica depende de um determinado número de residentes pode contribuir para facilitar a repartição equilibrada destes estabelecimentos no território em questão e assegurar, deste modo, a toda a população um acesso apropriado aos serviços prestados pelos óticos.

42

Por fim, quanto à regra que impõe uma distância mínima entre dois estabelecimentos de ótica, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, em combinação com a regra referida no número anterior, esta condição reforça a certeza dos pacientes de que disporão de um prestador de serviços de saúde nas proximidades e, por conseguinte, contribui também para uma melhor proteção da saúde pública no território em causa (v., neste sentido, acórdão Blanco Pérez e Chao Gómez, n.os 81 e 82).

43

Contudo, há que esclarecer que, regra geral, não é indispensável que os clientes obtenham de forma rápida, e ainda menos imediata, um produto de ótica. Daqui decorre que a necessidade de um acesso rápido a estes produtos é inferior à que é inerente ao fornecimento de vários medicamentos, pelo que o interesse relativo à proximidade dos estabelecimentos de ótica não tem uma intensidade comparável ao interesse que se impõe em matéria de distribuição de medicamentos.

44

Assim sendo, há que recordar que compete aos Estados‑Membros decidir o nível a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública e o modo como esse nível deve ser alcançado. Dado que esse nível pode variar de um Estado‑Membro para outro, há que reconhecer aos Estados‑Membros uma margem de apreciação (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.o 19, e Blanco Pérez e Chao Gómez, n.o 44).

45

Ora, no âmbito da execução desta margem de apreciação, os Estados‑Membros podem estabelecer uma planificação dos estabelecimentos de ótica comparável à prevista para a repartição das farmácias, não obstante as diferenças entre os dois tipos de prestação de serviços de saúde.

46

Nestas condições, há que entender que uma regulamentação como a que está em causa no processo principal é, em princípio, adequada para atingir o objetivo geral de proteção da saúde pública e, em particular, os objetivos que visam assegurar uma repartição equilibrada dos estabelecimentos de ótica no território nacional e garantir um acesso rápido a esses estabelecimentos.

47

Assim sendo, é ainda necessário que a forma como a Lei Regional n.o 12/2004 prossegue estes objetivos não seja incoerente. Com efeito, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a legislação nacional no seu todo, bem como as diferentes regras pertinentes, só são adequadas para garantir a realização do objetivo visado se responderem verdadeiramente à intenção de o alcançar de forma coerente e sistemática (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Hartlauer, n.o 55, e Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.o 42).

48

A este propósito, cabe, em última instância, ao órgão jurisdicional nacional, que é o único competente para apreciar a matéria de facto do litígio no processo principal e para interpretar a legislação nacional, determinar se, e em que medida, a Lei Regional n.o 12/2004 respeita essas exigências (v., neste sentido, acórdãos de 13 de julho de 1989, Rinner‑Kühn, 171/88, Colet., p. 2743, n.o 15, e de 23 de outubro de 2003, Schönheit e Becker, C-4/02 e C-5/02, Colet., p. I-12575, n.os 82 e 83).

49

No entanto, o Tribunal de Justiça, chamado a dar uma resposta útil ao juiz nacional, tem competência para lhe fornecer indicações retiradas dos autos do processo principal e das observações escritas e orais que lhe foram apresentadas, suscetíveis de permitir que o órgão jurisdicional nacional se pronuncie (acórdãos de 20 de março de 2003, Kutz‑Bauer, C-187/00, Colet., p. I-2741, n.o 52, e Schönheit e Becker, já referido, n.o 83).

50

Para tal, é necessário salientar desde logo que o artigo 1.o, n.os 1 a 3, da Lei Regional n.o 12/2004 fixa condições que diferem, por um lado, para os municípios em que a população residente não ultrapassa os 8000 habitantes e, por outro, para os que ultrapassam esse número. Com efeito, não se exclui que os municípios que pertencem à primeira categoria tenham mais liberdade para autorizar a instalação de dois estabelecimentos de ótica no seu território, ao passo que os que pertencem à segunda categoria só podem atribuir essa autorização nos casos em que seja «comprovada a existência de necessidades territoriais» e se esses municípios tiverem obtido a autorização prévia e obrigatória de uma comissão.

51

Ora, corre‑se o risco de esta regulamentação se traduzir num acesso desigual à instalação de estabelecimentos de ótica nas diferentes zonas da região em questão. Em particular, como sublinhou o advogado‑geral no n.o 82 das suas conclusões, nos municípios — numerosos, segundo o órgão jurisdicional de reenvio — em que a população oscila entre os 8000 e os 16000 residentes, essa legislação pode ter por efeito limitar, de forma excessiva, o acesso a esse serviço.

52

O risco de um acesso desigual à instalação de estabelecimentos de ótica é ainda acentuado pela circunstância referida na decisão de reenvio, segundo a qual as autoridades municipais dispõem de um importante poder discricionário, uma vez que a condição relativa à «comprovada existência de necessidades territoriais» não é delimitada por critérios regulamentares mais precisos.

53

Além disso, as autoridades competentes só podem autorizar a instalação de um estabelecimento de ótica suplementar depois de obtido o parecer obrigatório de uma comissão da Câmara de Comércio, que, segundo os elementos apresentados ao Tribunal de Justiça, é composta por óticos ativos neste mercado, ou seja, concorrentes diretos dos óticos candidatos à instalação de um estabelecimento.

54

Nestas condições, a Lei Regional n.o 12/2004 pode, uma vez implementada, não assegurar uma repartição equilibrada dos estabelecimentos de ótica em todo o território em questão e, portanto, um nível equivalente da proteção da saúde pública em todo esse território.

55

Esta lei regional suscita ainda uma dúvida semelhante no que diz respeito aos municípios cuja população residente não ultrapassa os 8000 habitantes. Com efeito, não é de excluir que, nestes municípios, as autoridades competentes dispõem de um poder discricionário quase ilimitado para atribuir — ou recusar — a instalação de um segundo estabelecimento de ótica. Não há, pois, neste contexto, nenhuma garantia de que a instalação de um segundo estabelecimento de ótica venha a ser autorizada, ainda que, nesse caso, as exigências de proteção da saúde pública o exijam.

56

Como tal, uma vez que o Tribunal de Justiça não pode presumir nem excluir a priori a ocorrência dos riscos acima referidos, relacionados com a implementação da Lei Regional de n.o 12/2004, cabe ao órgão jurisdicional nacional analisar, com a ajuda de dados estatísticos, de dados limitados a certos pontos ou de outros meios, se as autoridades competentes usam de forma adequada, respeitando critérios transparentes e objetivos, as possibilidades conferidas por esta lei para assegurar, de forma coerente e sistemática, os objetivos prosseguidos relativos à proteção da saúde pública em todo o território em questão.

57

Atendendo ao exposto, há que responder às questões submetidas que o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação regional, como a que está em causa no processo principal, que impõe limites à emissão de autorizações para a instalação de novos estabelecimentos de ótica, ao prever que:

em cada zona geográfica, só pode existir, em princípio, um estabelecimento de ótica por cada 8000 residentes, e

cada novo estabelecimento de ótica deve, em princípio, respeitar uma distância mínima de 300 metros em relação aos estabelecimentos de ótica já existentes,

desde que as autoridades competentes usem de forma adequada, respeitando critérios transparentes e objetivos, as possibilidades conferidas pela regulamentação em causa para assegurar, de forma coerente e sistemática, os objetivos prosseguidos por esta, relativos à proteção da saúde pública em todo o território em questão, facto que incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar.

Quanto às despesas

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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

O artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação regional, como a que está em causa no processo principal, que impõe limites à emissão de autorizações para a instalação de novos estabelecimentos de ótica, ao prever que:

 

em cada zona geográfica, só pode existir, em princípio, um estabelecimento de ótica por cada 8000 residentes, e

 

cada novo estabelecimento de ótica deve, em princípio, respeitar uma distância mínima de 300 metros em relação aos estabelecimentos de ótica já existentes,

 

desde que as autoridades competentes usem de forma adequada, respeitando critérios transparentes e objetivos, as possibilidades conferidas pela regulamentação em causa para assegurar, de forma coerente e sistemática, os objetivos prosseguidos por esta, relativos à proteção da saúde pública em todo o território em questão, facto que incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.