ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

6 de setembro de 2012 ( *1 )

«Incumprimento de Estado — Diretiva 1999/37/CE — Documentos de matrícula dos veículos — Veículos anteriormente matriculados noutro Estado-Membro — Mudança de proprietário — Obrigação de controlo técnico — Pedido de apresentação do certificado de conformidade — Controlo técnico efetuado noutro Estado-Membro — Não reconhecimento — Ausência de justificações»

No processo C-150/11,

que tem por objeto uma ação por incumprimento nos termos do artigo 258.o TFUE, entrada em 28 de março de 2011,

Comissão Europeia, representada por O. Beynet e A. Marghelis, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

Reino da Bélgica, representado por T. Materne e J.-C. Halleux, na qualidade de agentes, assistidos por F. Libert e S. Rodrigues, advogados,

demandado,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues, presidente de secção, U. Lõhmus (relator), A. Ó Caoimh, A. Arabadjiev e C. G. Fernlund, juízes,

advogado-geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos e após a audiência de 29 de março de 2012,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Na sua petição, a Comissão Europeia pede que o Tribunal de Justiça declare que, ao exigir, além da apresentação do certificado de matrícula, a apresentação do certificado de conformidade de um veículo, para o controlo técnico prévio à matrícula de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro, e ao sujeitar esses veículos a um controlo técnico previamente à sua matrícula, sem tomar em conta os resultados do controlo técnico efetuado noutro Estado-Membro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Diretiva 1999/37/CE do Conselho, de 29 de abril de 1999, relativa aos documentos de matrícula dos veículos (JO L 138, p. 57), conforme alterada pela Diretiva 2006/103/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006 (JO L 363, p. 344, a seguir «Diretiva 1999/37»), e do artigo 34.o TFUE.

Quadro jurídico

Regulamentação da União

Diretiva 1999/37

2

A Diretiva 1999/37 enuncia, nos seus considerandos 1, 3, 5, 6 e 9:

«(1)

[...] a Comunidade adotou um certo número de medidas destinadas a estabelecer um mercado interno que compreende um espaço sem fronteiras no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada de acordo com as disposições do Tratado;

(3)

[...] a harmonização da apresentação e do conteúdo do certificado de matrícula facilita a sua compreensão, contribuindo, deste modo, no que diz respeito aos veículos matriculados num determinado Estado-Membro, para a livre circulação rodoviária no território dos outros Estados-Membros;

[...]

(5)

[...] todos os Estados-Membros exigem nomeadamente, como condição necessária para matricular um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro, um certificado que comprove esta matrícula e as características técnicas do veículo;

(6)

[...] a harmonização do certificado de matrícula facilita a reintrodução da circulação dos veículos anteriormente matriculados noutro Estado-Membro e contribui para o bom funcionamento do mercado interno;

[...]

(9)

[...] a fim de facilitar os controlos destinados nomeadamente a lutar contra a fraude e o comércio ilícito de veículos roubados, há que instituir uma cooperação estreita entre os Estados-Membros, baseada num sistema eficaz de troca de informações;»

3

O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«A presente diretiva aplica-se aos documentos emitidos pelos Estados-Membros no ato de matrícula dos veículos.

A presente diretiva não prejudica o direito dos Estados-Membros de utilizarem, para a matrícula temporária de veículos, documentos que eventualmente não satisfaçam em todos os pontos os requisitos da presente diretiva.»

4

O artigo 4.o da mesma diretiva prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, o certificado de matrícula emitido por um Estado-Membro deve ser reconhecido pelos demais Estados-Membros quer para identificação do veículo em circulação internacional quer para nova matrícula noutro Estado-Membro.»

Diretiva 2009/40/CE

5

A Diretiva 2009/40/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009, relativa ao controlo técnico dos veículos a motor e seus reboques (JO L 141, p. 12), que entrou em vigor em 26 de junho de 2009, substituiu a Diretiva 96/96/CE do Conselho, de 20 de dezembro de 1996, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao controlo técnico dos veículos a motor e seus reboques (JO L 46, p. 1), para a qual a Comissão remeteu no decurso da fase pré-contenciosa do processo. Tendo em conta a data do termo do prazo indicado no parecer fundamentado, ou seja, 9 de dezembro de 2009, é a Diretiva 2009/40 que se aplica à presente ação. A este respeito, como é referido no considerando 1 da Diretiva 2009/40, esta diretiva procedeu, por razões de clareza, à reformulação da Diretiva 96/96, não tendo sido alteradas as disposições relevantes para o presente processo.

6

Os considerandos 2, 5, 10 a 12 e 26 da Diretiva 2009/40 enunciam:

«(2)

No âmbito da política comum de transportes, a circulação de determinados veículos no espaço comunitário deve efetuar-se nas melhores condições, tanto no plano da segurança como no da concorrência entre transportadores dos vários Estados-Membros.

[...]

(5)

Deverão, portanto, ser definidos normas e métodos comunitários mínimos para controlo dos pontos enumerados na presente diretiva, mediante diretivas específicas.

[...]

(10)

No que diz respeito aos sistemas de travagem, a presente diretiva deverá abranger os veículos objeto de homologação por tipo de componente, nos termos da Diretiva 71/320/CEE do Conselho, de 26 de julho de 1971, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à travagem de certas categorias de veículos a motor e seus reboques [JO L 202, p. 37; EE 13 F2 p. 53]. No entanto, certos tipos de veículos foram objeto de homologação por tipo de componente nos termos de normas nacionais que podem não se coadunar com a referida diretiva.

(11)

Os Estados-Membros podem estender o controlo do sistema de travagem a categorias de veículos ou a pontos não abrangidos pela presente diretiva.

(12)

Os Estados-Membros podem prever controlos mais severos ou mais frequentes para os sistemas de travagem.

[...]

(26)

Atendendo a que os objetivos da ação encarada, a saber, harmonizar as regras relativas ao controlo técnico, impedir a distorção da concorrência entre os transportadores e garantir que os veículos sejam corretamente controlados e mantidos, não podem ser suficientemente realizados pelos Estados-Membros e podem, pois, devido à dimensão da ação, ser melhor alcançados ao nível comunitário, a Comunidade pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado. [...]»

7

Nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2009/40:

«1.   Os Estados-Membros tomam as medidas que considerarem necessárias para que se possa provar que o veículo foi aprovado num controlo técnico respeitando, pelo menos, o disposto na presente diretiva.

Essas medidas são comunicadas aos outros Estados-Membros e à Comissão.

2.   Cada Estado-Membro reconhece a prova emitida noutro Estado-Membro, segundo a qual um veículo a motor, matriculado no território deste último, bem como o seu reboque ou semirreboque, foram aprovados num controlo técnico que respeite, pelo menos, as disposições da presente diretiva, como se ele próprio tivesse emitido essa prova.

3.   Os Estados-Membros aplicam os procedimentos adequados para garantir, na medida do possível, que o comportamento funcional da travagem dos veículos registados nos respetivos territórios preenche os requisitos da presente diretiva.»

8

O artigo 5.o da Diretiva 2009/40 precisa:

«Não obstante o disposto nos anexos I e II, os Estados-Membros podem:

a)

Antecipar a data do primeiro controlo técnico obrigatório e, se necessário, exigir que o veículo seja sujeito a um controlo prévio ao seu registo;

[...]

d)

Aumentar o número de pontos a controlar;

[...]

f)

Prescrever controlos especiais adicionais;

g)

Exigir valores mínimos de eficiência da travagem mais severos que os especificados no anexo II [...] em relação aos veículos registados no seu território […]»

9

O anexo II da referida diretiva descreve os pontos de controlo obrigatórios, designadamente no que se refere aos dispositivos de travagem.

Regulamentação belga

10

O artigo 23.o, § 1, primeiro parágrafo, § 2 e § 7, do Decreto real de 15 de março de 1968 relativo ao regulamento geral sobre as condições técnicas a que devem obedecer os veículos automóveis e seus reboques, os seus elementos e os acessórios de segurança (Moniteur belge de 28 de março de 1968, retificado no Moniteur belge de 23 de abril de 1968), na versão alterada pelo Decreto real de 20 de maio de 2009 (Moniteur belge de 5 de junho de 2009, p. 40090, a seguir «decreto real»), dispõe:

«§ 1. Os veículos postos em circulação estão sujeitos a controlos destinados a verificar a sua conformidade com as disposições regulamentares que lhes são aplicáveis.

[...]

§ 2. Controlos a efetuar:

A.

Os controlos compreendem os controlos enunciados no anexo 15 e os controlos complementares previstos por disposições regulamentares específicas.

[...]

§ 7. Quando dos referidos controlos e na medida em que o veículo deva dispor dos documentos em causa, quem apresenta o veículo ao controlo deve apresentar o último certificado de controlo e o selo de controlo ao organismo aprovado e apresentar os seguintes documentos:

o certificado de matrícula;

o certificado de conformidade ou o certificado de conformidade europeu;

o relatório de identificação ou a ficha técnica.»

11

O artigo 23.obis do decreto real prevê:

«§ 1. Os controlos previstos no artigo 23.o dividem-se em:

controlos completos;

controlos parciais.

Os controlos completos consistem em verificar:

a)

a identificação do veículo, na qual é verificado o número de chassi, o certificado de matrícula e o certificado de conformidade ou o certificado de conformidade europeu do veículo;

b)

o estado técnico do veículo, a fim de verificar se satisfaz as normas em vigor em matéria de segurança e de ambiente.

Os controlos parciais dividem-se em:

a)

controlos administrativos limitados à verificação do certificado de matrícula e do certificado de conformidade ou do certificado de conformidade europeu com vista à validação de um pedido de matrícula de um veículo usado;

b)

controlos administrativos adicionais limitados à verificação do número de chassi, da placa de identificação e dos documentos, ou sem que o veículo seja apresentado, à apresentação dos documentos;

c)

revisões técnicas, designadamente todos os restantes controlos parciais.

§ 2. Consoante a regularidade com que forem efetuados, os controlos completos dividem-se em:

controlos periódicos referidos no artigo 23.oter;

controlos não periódicos que têm lugar em circunstâncias precisas determinadas no artigo 23.osexies.

[…]»

12

Nos termos do artigo 23.osexies, § 1 e § 4, do decreto real:

«§ 1. Independentemente das regras relativas aos controlos periódicos, são obrigatórios controlos não periódicos:

[...]

3° antes da matrícula dos veículos [a motor concebidos e construídos para transporte de passageiros, com pelo menos quatro rodas, que disponham, além do assento do condutor, de oito lugares sentados, no máximo], incluindo veículos de campismo [...], e [...] incluindo viaturas fúnebres em nome de outro titular.

[...]

§ 4. Quando do controlo não periódico referido no § 1, n.o 3, do presente artigo, o veículo deve ser apresentado com o último certificado de matrícula emitido para o mesmo, bem como com a matrícula correspondente ou com uma placa comercial e o certificado de matrícula correspondente.

Para efeitos deste controlo, além do controlo completo do veículo, será realizado um controlo adicional nos termos do anexo 22.

Contudo, se for apresentado um relatório de um centro de diagnóstico aprovado, emitido menos de dois meses antes do momento em que o veículo é apresentado para o referido controlo não periódico, e que diga respeito pelo menos aos pontos visados no anexo 22, o referido controlo consistirá exclusivamente no controlo completo do veículo.

O resultado desse controlo será descrito detalhadamente no relatório de veículo usado, emitido ao mesmo tempo que o certificado de inspeção.

A validação do pedido de matrícula terá lugar na condição de o certificado de inspeção emitido estar em conformidade com o artigo 23.odecies, n.o 1, e de ter tido lugar um controlo suplementar nos termos do anexo 22, caso seja exigido.»

13

O anexo 15 do decreto real retoma os pontos a controlar e as causas de deficiência enunciadas no anexo II da Diretiva 2009/40.

14

O anexo 22 do decreto real prevê diversos pontos sobre os quais incide o «controlo suplementar» no que respeita ao controlo não periódico a que se refere o artigo 23.odecies, § 1, 3o, do referido decreto. Nos termos da redação do referido anexo, o controlo suplementar abrange, pelo menos, o estado geral do veículo (por exemplo, a corrosão que não influencia a segurança, o estado do interior), os «On Board Diagnostics» (designadamente, os elementos de segurança ativos e passivos), os elementos mecânicos (entre outros, a embraiagem, o motor, a transmissão), os elementos de guarnição (por exemplo, os para-choques, o capot, o guarda-lamas), os faróis e os equipamentos (designadamente, a climatização, o comando dos vidros).

Processo pré-contencioso

15

Considerando que determinadas disposições da legislação belga relativa ao procedimento de matrícula dos veículos não estavam em conformidade com o direito da União, a Comissão, por ofício de 1 de dezembro de 2008, notificou o Reino da Bélgica para apresentar as suas observações.

16

Na resposta de 30 de janeiro de 2009, o Reino da Bélgica contestou qualquer violação alegada. Não satisfeita com esta resposta, a Comissão emitiu, em 8 de outubro de 2009, um parecer fundamentado, convidando o Reino da Bélgica a adotar as medidas necessárias para lhe dar cumprimento no prazo de dois meses a contar da respetiva receção. O Reino da Bélgica respondeu por ofício de 15 de dezembro de 2009, manifestando a sua intenção de dar cumprimento ao referido parecer fundamentado. Contudo, por ofício de 11 de fevereiro de 2010, defendeu a regulamentação belga existente.

17

A 7 de junho de 2010, foi enviado a este Estado-Membro um parecer circunstanciado que lhe concedia o prazo de quatro semanas para propor uma solução que permitisse evitar o recurso ao Tribunal de Justiça. Por correspondência de 30 de junho de 2010, o Reino da Bélgica comprometeu-se a alterar a legislação controvertida, embora manifestando a sua intenção de manter o controlo técnico prévio à matrícula de um veículo em nome de outro proprietário, limitado apenas ao controlo dos pontos a que se refere o novo anexo 42 (controlo essencialmente visual), caso estejam preenchidas determinadas condições. Com esta alteração prevista, a apresentação do certificado de conformidade deixaria de ser necessária em condições determinadas. Foi transmitido à Comissão um projeto de decreto real neste sentido, com o compromisso de o diploma ser adotado no final de 2010.

18

Contudo, a Comissão entendeu que as medidas propostas não eram suscetíveis de pôr termo à infração. Após troca de correspondência, foi transmitido um novo projeto de decreto real, em 11 de janeiro de 2011, que foi objeto de debate, em 26 de janeiro de 2011, entre os serviços da Comissão e as autoridades belgas.

19

Considerando que o Reino da Bélgica não deu cumprimento ao parecer fundamentado, a Comissão decidiu propor a presente ação.

Quanto à ação

20

Em apoio da sua ação, a Comissão formula duas alegações. Na primeira, a Comissão afirma que, ao sujeitar os veículos anteriormente matriculados noutro Estado-Membro a um controlo técnico prévio à sua matrícula, sem tomar em conta os resultados do controlo técnico realizado noutro Estado-Membro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 34.o TFUE. Na segunda alegação, a Comissão afirma que, ao exigir, além da apresentação do certificado de matrícula, a apresentação do certificado de conformidade, com vista ao controlo técnico prévio à matrícula de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Diretiva 1999/37.

Quanto à admissibilidade da segunda alegação

Argumentos das partes

21

O Reino da Bélgica afirma que a segunda alegação da ação da Comissão, na medida em que visa obter a declaração de que este Estado-Membro não cumpriu a totalidade das obrigações que lhe incumbem por força da Diretiva 1999/37, é inadmissível, uma vez que, na notificação para cumprir, no parecer fundamentado e na exposição do quadro jurídico e dos fundamentos da sua petição, a Comissão limitou as suas observações a um incumprimento do artigo 4.o desta diretiva.

22

No entender deste Estado-Membro, a inadmissibilidade da referida alegação não pode ser parcial, uma vez que as conclusões da petição que se lhe referem não visam nenhum artigo da Diretiva 1999/37, ao contrário das que figuram no processo em que foi proferido o acórdão de 16 de julho de 2009, Comissão/Polónia (C-165/08, Colet., p. I-6843, n.os 45 a 48). Acresce que o facto de o Reino da Bélgica ter entendido que a alegação se refere apenas ao artigo 4.o da Diretiva 1999/37, concentrando a sua defesa no que toca a este artigo, não pode exonerar a Comissão do seu dever de formular conclusões precisas e não é suscetível de as tornar admissíveis a posteriori.

23

A Comissão entende que a segunda alegação é admissível. Era claro para este Estado-Membro que a alegação se referia ao artigo 4.o da diretiva, pelo que os direitos de defesa do referido Estado-Membro não foram violados. Contudo, na réplica, a Comissão reformulou a alegação em causa, limitando o incumprimento alegado a esse artigo.

Apreciação do Tribunal de Justiça

24

Há que recordar, a título preliminar, que, no âmbito de uma ação por incumprimento, a fase pré-contenciosa do processo tem por finalidade dar ao Estado-Membro em questão a oportunidade, por um lado, de cumprir as suas obrigações decorrentes do direito da União e, por outro, de invocar utilmente os seus meios de defesa contra as acusações formuladas pela Comissão (acórdãos de 14 de outubro de 2004, Comissão/França, C-340/02, Colet., p. I-9845, n.o 25, e de 26 de abril de 2012, Comissão/Países Baixos, C-508/10, n.o 33).

25

O objeto de uma ação intentada ao abrigo do artigo 258.o TFUE está, consequentemente, circunscrito pelo procedimento pré-contencioso previsto nessa disposição. A regularidade desse procedimento constitui uma garantia essencial pretendida pelo Tratado FUE, não apenas para a proteção dos direitos do Estado-Membro em causa mas igualmente para assegurar que o eventual processo contencioso tenha por objeto um litígio claramente definido (v. acórdãos de 13 de dezembro de 2001, Comissão/França, C-1/00, Colet., p. I-9989, n.o 53, de 29 de abril de 2010, Comissão/Alemanha, C-160/08, Colet., p. I-3713, n.o 42, e acórdão Comissão/Países Baixos, já referido, n.o 34).

26

Por força do artigo 21.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e do artigo 38.o, n.o 1, alínea c), do seu Regulamento de Processo, incumbe à Comissão, nas petições apresentadas nos termos do artigo 258.o TFUE, indicar as acusações exatas sobre as quais o Tribunal de Justiça se deve pronunciar, bem como, de forma pelo menos sumária, os elementos de direito e de facto em que essas acusações se baseiam (v., designadamente, acórdãos de 13 de dezembro de 1990, Comissão/Grécia, C-347/88, Colet., p. I-4747, n.o 28, de 16 de junho de 2005, Comissão/Itália, C-456/03, Colet., p. I-5335, n.o 23, e acórdão Comissão/Países Baixos, já referido, n.o 35).

27

Daqui resulta que a ação da Comissão deve conter uma exposição coerente e pormenorizada das razões que a conduziram à convicção de que o Estado-Membro em causa não cumpriu uma das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados (acórdão Comissão/Países Baixos, já referido, n.o 36).

28

No quadro da presente ação, há que notar que a mesma contém uma exposição clara dos elementos de facto e de direito em que se baseia. É pacífico que, nas conclusões da sua petição, a Comissão não especifica nenhum artigo em particular da Diretiva 1999/37. Contudo, resulta tanto do procedimento pré-contencioso, e designadamente do parecer fundamentado enviado pela Comissão ao Reino da Bélgica, como da exposição do quadro jurídico e dos fundamentos da petição que esta instituição alega um incumprimento do artigo 4.o da referida diretiva.

29

É igualmente de observar que, no presente processo, o Reino da Bélgica pôde invocar utilmente os seus meios de defesa contra as alegações formuladas pela Comissão.

30

Resulta do que antecede que a segunda alegação de incumprimento formulada pela Comissão deve ser julgada admissível.

Quanto ao mérito

Quanto à primeira alegação, relativa ao controlo técnico obrigatório prévio à matrícula do veículo

— Argumentos das partes

31

Segundo a Comissão, os artigos 23.°, § 1 e § 7, 23.°bis, § 1, e 23.°sexies, § 1 e § 4, do decreto real impõem, de modo geral e sistemático, um controlo prévio à matrícula dos veículos usados, anteriormente matriculados nos outros Estados-Membros, sem terem em conta os controlos já ali realizados. Considera que resulta dos acórdãos de 20 de setembro de 2007, Comissão/Países Baixos (C-297/05, Colet., p. I-7467, n.os 67 a 71), e de 5 de junho de 2008, Comissão/Polónia (C-170/07, n.os 36 a 41), que, uma vez que a Diretiva 96/96 não realizou uma harmonização exaustiva, uma regulamentação que não integre o princípio do reconhecimento dos documentos emitidos pelos outros Estados-Membros, conforme previsto no artigo 3.o, n.o 2, desta diretiva, não pode ser validada com fundamento na mesma, mas deve ser apreciada à luz do artigo 34.o TFUE.

32

A Comissão salienta que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a regulamentação nacional controvertida constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, pois desincentiva determinados interessados de importar esses veículos para a Bélgica (acórdãos de 16 de novembro de 2000, Comissão/Bélgica, C-217/99, Colet., p. I-10251, n.o 18, e de 7 de junho de 2007, Comissão/Bélgica, C-254/05, Colet., p. I-4269, n.o 30). Embora possa ser justificada por razões de segurança rodoviária e de proteção do ambiente e do consumidor, esta regulamentação não é proporcionada. Com efeito, o mesmo resultado podia ser alcançado através de medidas menos restritivas, como o reconhecimento dos documentos que certificam a aprovação no controlo técnico, emitidos noutro Estado-Membro, conjugado com a cooperação da Administração Aduaneira ou com a possibilidade de as autoridades belgas aplicarem uma ressalva, quando da matrícula na Bélgica de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro, informando o consumidor de que o seu veículo foi matriculado com base no certificado de controlo técnico de outro Estado-Membro e deve eventualmente ser objeto de controlos suplementares ulteriores.

33

O Reino da Bélgica considera, a título principal, que a regulamentação controvertida não constitui um entrave à livre circulação de mercadorias e não é discriminatória.

34

Para este efeito, alega que um controlo técnico prévio à matrícula é permitido nos termos do artigo 5.o, alínea a), da Diretiva 2009/40, que confere às autoridades nacionais uma margem de apreciação para a determinação dos requisitos a satisfazer para a aprovação no controlo técnico e das regras da sua aplicação. Além disso, este controlo não periódico respeita apenas à hipótese de o veículo mudar de proprietário e incide sem discriminação sobre todos os veículos, quer tenham anteriormente sido matriculados na Bélgica quer noutro Estado-Membro, e qualquer que seja a data de validade do certificado de inspeção emitido quando do controlo periódico.

35

Este Estado-Membro afirma em seguida que o projeto de decreto real, que foi referido durante o processo pré-contencioso e cuja entrada em vigor estava prevista para o mês de agosto de 2011, prevê que serão tidos em conta os resultados dos controlos técnicos periódicos efetuados há menos de dois meses na Bélgica ou noutro Estado-Membro, de modo a que o controlo não periódico antes da matrícula em nome de outro proprietário se limite a um teste de travagem e a uma inspeção visual do estado técnico do veículo e incida sobre os pontos de controlo previstos no anexo II da Diretiva 2009/40 e no anexo 22 do decreto real. Assim, evita-se qualquer duplicação dos testes utilizados na Bélgica ou noutro Estado-Membro.

36

A título subsidiário, o Reino da Bélgica afirma que a medida nacional é justificada pelos objetivos da segurança rodoviária, da proteção do consumidor ao limitar a fraude na quilometragem, bem como da proteção do ambiente, contribuindo para a redução do impacto ambiental do veículo posto em circulação. A medida é igualmente proporcionada.

37

No que respeita, designadamente, à segurança rodoviária, o controlo do sistema de travagem é, em particular, o único método eficaz para avaliar o estado de desgaste das peças e para garantir que o desempenho dos travões satisfaz as normas em vigor. A manutenção, no novo decreto real, adotado em 1 de junho de 2011, deste teste, com o equipamento apropriado, é justificada uma vez que um defeito deste sistema pode aparecer pouco depois do último controlo. Por outro lado, mesmo que outras medidas, como as propostas pela Comissão, permitissem realizar o objetivo da segurança rodoviária nas mesmas condições, um Estado-Membro deve ter a possibilidade, no quadro da sua margem de apreciação, de realizar este objetivo através de uma medida nacional que considere apropriada.

38

Este Estado-Membro salienta igualmente que, na falta de uma harmonização completa em matéria de controlo técnico, compete aos Estados-Membros decidir sobre o nível a que pretendem garantir a segurança rodoviária, tendo sempre em conta as exigências da livre circulação de mercadorias (acórdão de 27 de março de 1984, Comissão/Itália, 50/83, Recueil, p. 1633, n.o 12, e, por analogia, acórdão de 13 de julho de 1994, Comissão/Alemanha, C-131/93, Colet., p. I-3303, n.o 16).

39

Na réplica, a Comissão afirma que o Reino da Bélgica, ao insistir no caráter necessário da manutenção do teste de travagem no novo decreto real, admite implicitamente que a duplicação da totalidade do controlo técnico não é necessária nem proporcionada.

40

No que respeita às alterações à regulamentação controvertida, propostas pelo Estado-Membro demandado, que consistem essencialmente na manutenção de um controlo reduzido e que, de qualquer forma, não são suficientes para pôr termo à infração imputada, a Comissão remete para a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça segundo a qual não podem ser tidas em conta medidas adotadas pelo Estado-Membro em causa, para dar cumprimento às suas obrigações, posteriormente à propositura da ação por incumprimento (acórdãos de 1 de outubro de 1998, Comissão/Espanha, C-71/97, Colet., p. I-5991, n.o 18, e de 8 de março de 2001, Comissão/Portugal, C-276/98, Colet., p. I-1699, n.o 20).

41

Por outro lado, mesmo os argumentos relativos à necessidade e à proporcionalidade da duplicação do controlo de travagem não podem proceder, no entender da Comissão. Com efeito, por um lado, se o veículo provier de outro Estado-Membro, o teste de travagem terá sido efetuado em conformidade com o anexo II da Diretiva 2009/40 e a validade deste teste deve ser reconhecida nos outros Estados-Membros. Se, porém, o Reino da Bélgica tiver ainda dúvidas sobre se os testes de travagem realizados noutro Estado-Membro correspondem ao nível de segurança existente na Bélgica, será suficiente uma avaliação, caso a caso, de eventuais diferenças de desempenho de travagem e de testes de eficácia entre o Reino da Bélgica e o Estado-Membro em causa, em vez de um controlo sistemático e geral.

42

Por outro lado, o referido teste não se mostra necessário para evitar os eventuais defeitos recentes do sistema de travagem, uma vez que estes se podem também verificar em veículos importados que não mudem de proprietário, para os quais não está previsto este controlo. O mesmo sucede com os veículos matriculados na Bélgica que não mudem de proprietário, que representam a maior parte dos veículos que circulam nas estradas belgas.

— Apreciação do Tribunal de Justiça

43

A título liminar, há que recordar que, segundo jurisprudência assente, a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado-Membro, tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado (v., designadamente, acórdão de20 de setembro de 2007, Comissão/Países Baixos, já referido, n.o 64 e jurisprudência referida). As alterações posteriormente ocorridas não podem ser tomadas em consideração pelo Tribunal de Justiça (v., designadamente, acórdãos de 18 de novembro de 2004, Comissão/Irlanda, C-482/03, n.o 11, e de 4 de fevereiro de 2010, Comissão/Suécia, C-185/09, n.o 9).

44

Uma vez que o parecer fundamentado da Comissão, com data de 8 de outubro de 2009, foi recebido pelo Reino da Bélgica em 9 de outubro seguinte e que o prazo fixado a este Estado-Membro foi de dois meses a contar da receção do referido parecer, há que atender à data de 9 de dezembro de 2009, para apreciar a existência ou não do incumprimento imputado. Consequentemente, o decreto real adotado posteriormente a essa data não deve ser tomado em consideração no presente processo.

45

Por outro lado, é de referir que, apesar da ausência de referência expressa na fase escrita do processo, a Comissão, tanto na sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça como na audiência, delimitou a primeira alegação da sua ação apenas aos veículos matriculados nos outros Estados-Membros que mudem de proprietário quando da sua nova matrícula na Bélgica.

46

No presente processo, a Comissão acusa o Reino da Bélgica de não cumprir as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 34.o TFUE, na medida em que impõe um controlo técnico a um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro, antes da sua matrícula na Bélgica, sem tomar em conta os resultados do controlo técnico realizado nesse outro Estado-Membro.

47

A conformidade do referido controlo técnico com o direito da União deve, em primeiro lugar, ser analisada à luz das obrigações dos Estados-Membros decorrentes da Diretiva 2009/40, antes de o ser à luz do artigo 34.o TFUE.

48

No que respeita à Diretiva 2009/40, os objetivos desta, enunciados no seu considerando 26, são os de harmonizar a regulamentação em matéria de controlo técnico, impedir qualquer distorção da concorrência entre os transportadores e garantir que os veículos sejam corretamente controlados e mantidos.

49

Não obstante a margem de apreciação dos Estados-Membros ao abrigo do artigo 5.o desta diretiva, uma regulamentação que não integre o princípio do reconhecimento dos documentos emitidos pelos outros Estados-Membros, que certifiquem a aprovação num controlo técnico, conforme previsto no artigo 3.o, n.o 2, da referida diretiva, não pode ser validada com fundamento na mesma diretiva e deve, por isso, ser apreciada à luz do artigo 34.o TFUE (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, de 20 de setembro de 2007, Comissão/Países Baixos, n.os 67 a 71, e de 5 de junho de 2008, Comissão/Polónia, n.os 36 a 42).

50

A este respeito, é de recordar que, segundo jurisprudência assente, a proibição de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação, prevista no artigo 34.o TFUE, visa toda e qualquer medida dos Estados-Membros suscetível de entravar direta ou indiretamente, atual ou potencialmente, o comércio intracomunitário (v., designadamente, acórdãos de 16 de novembro de 2000, Comissão/Bélgica, já referido, n.o 16; de 26 de outubro de 2006, Comissão/Grécia, C-65/05, Colet., p. I-10341, n.o 27; de 15 de março de 2007, Comissão/Finlândia, C-54/05, Colet., p. I-2473, n.o 30; de 24 de abril de 2008, Comissão/Luxemburgo, C-286/07, n.o 27; e de 6 de outubro de 2011, Bonnarde, C-443/10, Colet., p. I-9327, n.o 26).

51

No presente processo, ao impor o controlo técnico obrigatório dos veículos, previamente à matrícula dos mesmos por outro proprietário, as autoridades belgas sujeitam a este controlo, de modo geral e sistemático, todos os veículos usados que mudem de proprietário, anteriormente matriculados noutros Estados-Membros, e isto sem terem minimamente em conta os eventuais controlos já realizados por estes últimos. Consequentemente, este controlo não periódico, na medida em que acresce aos controlos técnicos recentemente efetuados noutros Estados-Membros, sem reconhecimento do seu resultado, pode desincentivar determinados interessados de adquirirem esses veículos provenientes de outros Estados-Membros (v., por analogia, acórdãos, já referidos, de 20 de setembro de 2007, Comissão/Países Baixos, n.o 73, e de 5 de junho de 2008, Comissão/Polónia, n.o 44).

52

Daqui resulta que a exigência desse controlo técnico não periódico de um veículo, antes da sua matrícula em nome de outro proprietário na Bélgica, constitui uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação, proibida pelo artigo 34.o TFUE, a não ser que possa ser objetivamente justificada.

53

A este respeito, resulta de jurisprudência assente que uma legislação nacional que constitua uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas pode ser justificada por uma das razões de interesse geral enumeradas no artigo 36.o TFUE, ou por exigências imperativas. Em ambos os casos, a disposição nacional deve ser adequada para garantir a realização do objetivo prosseguido e não ultrapassar o necessário para atingir esse objetivo (v., designadamente, acórdãos, já referidos, de 20 de setembro de 2007, Comissão/Países Baixos, n.o 75, e de 5 de junho de 2008, Comissão/Polónia, n.o 46; e acórdão de 10 de fevereiro de 2009, Comissão/Itália, C-100/05, Colet., p. I-519, n.o 59).

54

Também segundo jurisprudência assente, incumbe às autoridades nacionais competentes demonstrar que a sua regulamentação obedece aos critérios lembrados no número anterior (v., neste sentido, acórdãos de 10 de abril de 2008, Comissão/Portugal, C-265/06, Colet., p. I-2245, n.o 39; de 20 de setembro de 2007, Comissão/Países Baixos, já referido, n.o 76; e Comissão/Luxemburgo, já referido, n.o 37). Esta prova apenas pode ser feita em concreto, com referência às circunstâncias do caso em apreciação (acórdão de 8 de maio de 2003, ATRAL, C-14/02, Colet., p. I-4431, n.o 67).

55

A este respeito, as justificações invocadas pelo Reino da Bélgica referem-se à necessidade de assegurar tanto os objetivos de proteção do consumidor e do ambiente como o da segurança rodoviária, que constituem, segundo a jurisprudência, razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de justificar um entrave à livre circulação de mercadorias (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, de 20 de setembro de 2007, Comissão/Países Baixos, n.o 77; de 10 de abril de 2008, Comissão/Portugal, n.o 38; de 5 de junho de 2008, Comissão/Polónia, n.o 49; e de 10 de fevereiro de 2009, Comissão/Itália, n.o 60).

56

Quanto à proteção dos consumidores e do ambiente, o Reino da Bélgica afirma que determinados exames do controlo técnico permitem limitar os riscos de fraude na quilometragem e o impacto ambiental do veículo posto em circulação. Contudo, não esclarece quais os exames em causa nem em que medida os mesmos servem para assegurar esses objetivos.

57

É, assim, forçoso concluir que o Reino da Bélgica não demonstrou em concreto o caráter adequado do controlo técnico nem a sua necessidade para garantir a proteção dos consumidores e do ambiente. Com efeito, a simples invocação desses objetivos em abstrato não basta para justificar uma medida como o controlo técnico controvertido.

58

No que se refere ao caráter adequado do objetivo de assegurar a segurança rodoviária, há que notar que o Reino da Bélgica alude, na sua contestação, a esse objetivo em relação à manutenção do controlo do sistema de travagem previsto pelo novo decreto real adotado em 1 de junho de 2011, o qual, como se referiu no n.o 44 do presente acórdão, não pode ser tido em conta para efeitos da presente ação. Na tréplica, o Reino da Bélgica invoca a proteção da segurança rodoviária em relação ao controlo técnico, ou seja, à totalidade dos pontos de controlo além do teste de travagem, mesmo que, em particular, mencione apenas o controlo do estado geral do veículo e a verificação de elementos mecânicos. O Reino da Bélgica afirma que a circulação de um veículo cujas características técnicas sejam defeituosas representa um perigo para a segurança rodoviária.

59

É certo que, segundo jurisprudência assente, na ausência de disposições de harmonização completa a nível da União, compete aos Estados-Membros decidir do nível a que pretendem garantir a segurança rodoviária no seu território, sem deixarem de ter em conta as exigências da livre circulação de mercadorias no interior da União Europeia (v., neste sentido, acórdão de 27 de março de 1984, Comissão/Itália, já referido, n.o 12, e, por analogia, acórdãos, já referidos, de 13 de julho de 1994, Comissão/Alemanha, n.o 16, e de 10 de fevereiro de 2009, Comissão/Itália, n.o 61).

60

Contudo, como foi lembrado no n.o 54 do presente acórdão, cabe às autoridades nacionais competentes demonstrar que a sua regulamentação é adequada para garantir a realização do objetivo prosseguido e não vai além do que é necessário para que este seja alcançado.

61

No caso concreto, embora a aptidão para realizar o objetivo da segurança rodoviária não tenha sido posta em causa, há que notar que o Reino da Bélgica não demonstra concretamente a necessidade, em relação ao objetivo prosseguido, do controlo técnico dos veículos provenientes de outros Estados-Membros, quando da sua nova matrícula na Bélgica. É de observar, designadamente, que o perigo, para a segurança rodoviária, que pressupõe a circulação de um veículo cujas características técnicas sejam defeituosas pode igualmente ocorrer nos veículos de importação que não mudem de proprietário, para os quais não está previsto esse controlo. O mesmo sucede com os veículos matriculados na Bélgica que não mudem de proprietário, que representam a maior parte dos veículos que circulam nas estradas belgas.

62

Tendo em conta estes elementos, há que concluir que, ao sujeitar os veículos anteriormente matriculados noutro Estado-Membro a um controlo técnico prévio à sua matrícula em nome de outro proprietário, sem tomar em conta os resultados do controlo técnico realizado noutro Estado-Membro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 34.o TFUE.

Quanto à segunda alegação, relativa à obrigação de apresentação do certificado de conformidade para o controlo técnico prévio à matrícula de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro

— Argumentos das partes

63

No entender da Comissão, a regulamentação belga que, além do certificado de matrícula, exige a apresentação do certificado de conformidade de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro em conformidade com as regras da União, para que esse veículo possa ser sujeito ao controlo técnico prévio à sua nova matrícula, é contrária ao artigo 4.o da Diretiva 1999/37 e esvazia de conteúdo o princípio do reconhecimento dos certificados de matrícula harmonizados, emitidos por outros Estados-Membros.

64

A regulamentação nacional tem um efeito restritivo sobre a importação de veículos usados para a Bélgica, uma vez que, na maior parte dos Estados-Membros, o certificado de conformidade não acompanha o veículo. A Comissão considera que esta medida não pode ser justificada por razões como a necessidade de conhecer as características técnicas do veículo para levar a cabo uma política de segurança rodoviária ou pela proteção dos consumidores, designadamente contra a fraude ou o furto de veículos. De todo o modo, a referida medida é desproporcionada em relação a esses objetivos, tendo em conta os numerosos instrumentos criados a nível europeu que prosseguem os mesmos objetivos.

65

A este respeito, a Comissão lembrou, na réplica e na audiência no Tribunal de Justiça, que a autoridade de cada Estado-Membro que emite um certificado de conformidade deve enviar aos seus homólogos dos outros Estados-Membros um exemplar da ficha de receção, por tipo, contendo as características técnicas de cada veículo, nos termos do artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 70/156/CEE do Conselho, de 6 de fevereiro de 1970, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à receção dos veículos a motor e seus reboques (JO L 42, p. 1; EE 13 F1 p. 174), cujo conteúdo foi retomado no artigo 8.o, n.o 5, da Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (diretiva-quadro) (JO L 263, p. 1).

66

Por outro lado, na medida em que a solução proposta pelo Reino da Bélgica, que consiste na criação de uma base de dados informatizada contendo todos os dados técnicos dos veículos, que faz com que a apresentação do certificado de conformidade seja desnecessária, não pode ser implementada antes do final de 2012, este Estado-Membro não adoptou a sua legislação dentro do prazo fixado e não pode invocar situações internas para justificar o incumprimento das obrigações e dos prazos resultantes das normas da União.

67

O Reino da Bélgica considera que, no caso de esta alegação ser admissível, a regulamentação nacional visada está em conformidade com o artigo 4.o da Diretiva 1999/37 e é justificada e proporcionada. No entender deste Estado-Membro, a problemática da apresentação do certificado de conformidade ultrapassa a simples matrícula dos veículos, na medida em que nem todas as características técnicas constantes do certificado de conformidade são mencionadas nos documentos de matrícula já existentes.

68

O Reino da Bélgica adianta como justificação os mesmos três objetivos invocados em resposta à primeira alegação, ou seja, a proteção do ambiente, a proteção dos consumidores e a segurança rodoviária.

69

O Reino da Bélgica contesta que as medidas a que a Comissão se refere na petição inicial sejam menos restritivas e mais adequadas aos objetivos prosseguidos com a apresentação do certificado de conformidade do que a regulamentação controvertida. Referindo-se às dúvidas quanto à eficácia do sistema atual de troca de informações que a própria Comissão manifestou durante uma consulta pública de março de 2011 sobre a matrícula dos veículos, sistema que foi proposto pela Comissão como alternativa válida às medidas controvertidas, e na falta de uma base de dados funcional e acessível a todos os serviços competentes, este Estado-Membro considera que a apresentação do certificado de conformidade é a única, a mais pragmática e a menos onerosa das soluções para levar a bom termo as políticas em matéria de ambiente e de segurança rodoviária.

70

Na réplica, a Comissão considera que o Reino da Bélgica, tanto na sua carta de 26 de janeiro de 2010 como ao ampliar a sua defesa para invocar igualmente o artigo 36.o TFUE, admitiu que a exigência do certificado de conformidade pode suscitar inconvenientes para determinados consumidores e constitui um obstáculo à livre circulação, contrário ao artigo 34.o TFUE. Contudo, e contrariamente ao que o Estado-Membro demandado afirma ao deduzir do artigo 1.o da Diretiva 1999/37 uma possibilidade de derrogação e, por isso, uma harmonização incompleta, esta medida nacional, no entender da Comissão, deve ser apreciada unicamente à luz do artigo 4.o da mesma diretiva, a qual foi objeto de harmonização completa. Não admitindo também nenhuma derrogação a título da proteção do ambiente, a Comissão considera que os argumentos avançados pelas autoridades belgas a este respeito são inoperantes.

71

A título subsidiário, a Comissão entende que a argumentação do Estado-Membro demandado, relativa à justificação da restrição, não é convincente. Com efeito, o facto de um veículo já ter sido matriculado noutro Estado-Membro implica que as autoridades competentes desse Estado tenham considerado que o veículo satisfazia os requisitos técnicos aplicáveis nos termos do direito da União. Dado que, por força da troca de informações entre as autoridades competentes, o Reino da Bélgica deve estar ao corrente das características técnicas de cada veículo, uma medida genérica de exigência do certificado de conformidade não é necessária nem proporcionada. Além disso, o argumento do Reino da Bélgica assente na dúvida quanto à eficácia do sistema atual de troca de informações não é relevante, uma vez que isso não exonera os Estados-Membros do cumprimento das disposições em vigor.

72

Na tréplica, o Reino da Bélgica lembra que a Diretiva 1999/37 prevê uma possibilidade de derrogação e observa que resulta do seu artigo 1.o que a diretiva se aplica aos documentos emitidos pelos Estados-Membros quando da matrícula dos veículos e que ela em nada prejudica o direito dos Estados-Membros de utilizarem, para a matrícula temporária dos veículos, documentos que, eventualmente, não correspondam ponto por ponto às exigências da referida diretiva.

— Apreciação do Tribunal de Justiça

73

Há que observar que resulta da própria redação do artigo 4.o da Diretiva 1999/37, que prevê que um certificado de matrícula emitido por um Estado-Membro em conformidade com o modelo constante do anexo da mesma diretiva deve ser reconhecido, pelos outros Estados-Membros, para nova matrícula do veículo nestes Estados, que esta disposição não deixa nenhuma margem de apreciação aos Estados-Membros, no que se refere ao respeito do princípio do reconhecimento dos certificados de matrícula dos veículos.

74

Com efeito, como decorre dos considerandos 3, 5 e 6 da Diretiva 1999/37, esta diretiva visa contribuir para a livre circulação rodoviária no território dos outros Estados-Membros, prevendo como condição necessária para matricular um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro um certificado que comprove essa matrícula e as características técnicas do veículo, com o objetivo de facilitar a recolocação em circulação dos referidos veículos noutro Estado-Membro e de contribuir assim para o bom funcionamento do mercado interno.

75

Ora, o Tribunal de Justiça já decidiu que as características técnicas dos veículos usados anteriormente, matriculados noutros Estados-Membros, podem ser determinadas com base nos documentos de matrícula já existentes (acórdão de 5 de junho de 2008, Comissão/Polónia, já referido, n.o 28).

76

O Reino da Bélgica não pode, por isso, justificar a exigência sistemática da apresentação do certificado de conformidade pela necessidade de verificar as características técnicas dos veículos que dispõem de um certificado de matrícula.

77

Como a Comissão corretamente afirmou, essa exigência equivale a esvaziar de conteúdo o princípio do reconhecimento dos certificados de matrícula emitidos por outros Estados-Membros, conforme previsto no artigo 4.o da Diretiva 1999/37.

78

Como resulta do artigo 1.o, segundo parágrafo, da Diretiva 1999/37, só no caso de matrícula temporária é que os Estados-Membros têm o direito de utilizar documentos que não correspondam ao certificado de matrícula previsto por esta diretiva.

79

No presente caso, o Reino da Bélgica não pode invocar uma das razões de interesse geral definidas no artigo 36.o TFUE ou uma das exigências imperativas consagradas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma vez que resulta do que antecede que, a não ser no caso de matrícula temporária, a Diretiva 1999/37 não permite que os Estados-Membros exijam um documento diferente do certificado de matrícula, quando da matrícula de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro. Com efeito, quando uma questão está regulamentada de modo harmonizado ao nível da União, toda e qualquer medida nacional que lhe diga respeito deve ser apreciada à luz das disposições dessa medida de harmonização, e não das de direito primário (v., neste sentido, acórdãos de 12 de outubro de 1993, Vanacker e Lesage, C-37/92, Colet., p. I-4947, n.o 9; de 13 de dezembro de 2001, DaimlerChrysler, C-324/99, Colet., p. I-9897, n.o 32; e de 30 de abril de 2009, Lidl Magyarország, C-132/08, Colet., p. I-3841, n.o 42).

80

Tendo em conta as considerações que precedem, há que concluir que, ao exigir, de modo sistemático, para o controlo técnico obrigatório de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro antes da sua matrícula na Bélgica, além da apresentação do certificado de matrícula harmonizado, a apresentação do certificado de conformidade do veículo, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.o da Diretiva 1999/37.

81

Nestas condições, a ação proposta pela Comissão deve ser julgada procedente.

Quanto às despesas

82

Nos termos do artigo 69.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Reino da Bélgica e tendo este sido vencido, há que condená-lo nas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

 

1)

Ao exigir, de modo sistemático, além da apresentação do certificado de matrícula, a apresentação do certificado de conformidade de um veículo, para o controlo técnico prévio à matrícula de um veículo anteriormente matriculado noutro Estado-Membro, e ao sujeitar esses veículos, que mudam de proprietário, a um controlo técnico prévio à sua matrícula, sem tomar em conta os resultados do controlo técnico realizado noutro Estado-Membro, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 4.o da Diretiva 1999/37/CE do Conselho, de 29 de abril de 1999, relativa aos documentos de matrícula dos veículos, conforme alterada pela Diretiva 2006/103/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006, e do artigo 34.o TFUE.

 

2)

O Reino da Bélgica é condenado nas despesas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.