ELEANOR SHARPSTON
apresentadas em 13 de setembro de 2012 ( 1 )
Processo C-364/11
Mostafa Abed El Karem El Kott
Chadi Amin A Radi
Hazem Kamel Ismail
contra
Bevándorlási és Állampolgársági Hivatal
[pedido de decisão prejudicial do Fővárosi Bíróság (Hungria)]
«Diretiva 2004/83/CE — Condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas que reclamam o estatuto de refugiado — Apátridas de origem palestiniana que beneficiaram de assistência da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) — Significado de ‘quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão’ e de ‘terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva’»
1. |
É pedido novamente ao Tribunal de Justiça que interprete o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83/CE ( 2 ) (a qual, na realidade, transpõe para o direito da União Europeia a secção D do artigo 1.o da Convenção de Genebra, de 28 de julho de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados ( 3 )) no que se refere ao significado de «beneficiar do disposto na presente diretiva» em relação aos refugiados palestinianos que têm vindo a receber proteção ou assistência da UNRWA ( 4 ) quando «essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão». |
2. |
Foram levantadas questões pela primeira vez quanto à interpretação de ambas as expressões — em termos praticamente idênticos — no processo Bolbol ( 5 ). Nesse processo, porém, o requerente não tinha recebido proteção ou assistência da UNRWA antes de ter deixado a faixa de Gaza para pedir asilo na Hungria (o seu pedido baseava-se no direito à proteção ou assistência). O Tribunal de Justiça entendeu assim desnecessário pronunciar-se sobre as condições em que se podia considerar que a proteção ou a assistência tinham cessado por qualquer razão ou sobre a natureza dos benefícios da diretiva aos quais essa cessação confere direito. |
3. |
Nas minhas conclusões no processo Bolbol abordei todavia essas questões. O enquadramento histórico e legislativo relevante encontra-se estabelecido, em larga medida, nessas conclusões e no acórdão proferido nesse processo. Limitar-me-ei a repetir aqui as disposições-chave. Remeto também para a minha análise no processo Bolbol relativa às duas questões novamente submetidas ao Tribunal de Justiça. Mais uma vez, apenas repetirei o que se afigurar necessário. |
Disposições-chave
4. |
O artigo 1.o, secção A, n.o 2, primeiro parágrafo, da Convenção, define «refugiado» como qualquer pessoa que «receando, com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, pertença a certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país onde tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar». |
5. |
O artigo 1.o, secção D, da Convenção, dispõe: «Esta Convenção não será aplicável às pessoas que atualmente beneficiem de proteção ou assistência por parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas diferente do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados ( 6 ). Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão, sem que a situação dessas pessoas tenha sido definitivamente resolvida, em conformidade com as resoluções respetivas aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, essas pessoas beneficiarão de pleno direito do regime desta Convenção.» |
6. |
Note-se que, em francês, a outra língua da Convenção que faz fé, a última frase do segundo período refere «ces personnes bénéficieront de plein droit du régime de cette convention» («essas pessoas beneficiarão de pleno direito do regime desta Convenção»). |
7. |
Parafraseando a Convenção, o artigo 2.o, alínea c), da diretiva, define «refugiado» como o «nacional de um país terceiro que, receando com razão ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país, ou o apátrida que, estando fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões que as acima mencionadas, não possa ou, em virtude do referido receio, a ele não queira voltar, e aos quais não se aplique o artigo 12.o». |
8. |
O artigo 12.o, n.o 1, da diretiva, que figura no capítulo III (Condições para o reconhecimento como refugiado), reflete o artigo 1.o, secção D, da Convenção, estabelece: «O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se:
[…]» |
9. |
Também pode ser útil ter em conta as seguintes disposições, que nos dão o contexto em que opera o artigo 12.o, n.o 1, alínea a). |
10. |
De acordo com o artigo 13.o da diretiva, que faz parte do capítulo IV (Estatuto de refugiado), o estatuto de refugiado deve ser concedido ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida que preencha as condições para ser considerado refugiado nos termos dos capítulos II (Apreciação do pedido de proteção internacional) e III (Condições para o reconhecimento como refugiado). No que respeita à apreciação do pedido, o artigo 4.o impõe uma apreciação dos pedidos de forma individual, tendo em conta um conjunto vasto de factos relevantes, cuja prova incumbe ao requerente. |
11. |
O capítulo V refere-se à qualificação para a proteção subsidiária e o capítulo VI ao estatuto de proteção subsidiária. O artigo 18.o prevê a concessão desse estatuto ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida elegível para essa proteção nos termos dos capítulos II e V. A definição de pessoa elegível para proteção subsidiária, prevista no artigo 2.o, alínea e), é semelhante à de refugiado, divergindo essencialmente no facto de que o critério da existência de um receio fundado de perseguição (como membro de um grupo) é substituído pela existência de um risco real de sofrimento de ofensa grave (como indivíduo). |
12. |
O capítulo VII da diretiva (artigos 20.° a 34.°) estabelece o conteúdo da proteção internacional (tanto para o estatuto de refugiado como para o de proteção subsidiária), sem prejuízo dos direitos estabelecidos na Convenção (artigo 20.o, n.os 1 e 2). O artigo 21.o, n.o 1, impõe aos Estados-Membros o respeito pelo princípio da não-repulsão de acordo com as suas obrigações internacionais. Em termos gerais, o conteúdo da proteção é o mesmo tanto para o estatuto de refugiado como para o de proteção subsidiária. As principais diferenças residem na emissão de autorizações de residência e de documentos de viagem, em que o estatuto de refugiado confere direitos mais amplos ( 8 ). |
Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais
13. |
O processo principal respeita a três apátridas de origem palestiniana que chegaram à Hungria em busca do estatuto de refugiado após terem fugido do Líbano, onde tinham vivido em campos de refugiados onde a UNRWA prestava assistência, tal como educação, saúde, auxílio e serviços sociais. |
14. |
Segundo o pedido de decisão prejudicial, Mostafa Abed El Karem El Kott vivia no campo de Ein el-Hilweh. Trabalhava fora do campo, mas, dado que o que ganhava era insuficiente para sustentar a sua família, começou a vender álcool dentro do campo. Por esse motivo, os militantes do grupo Jund el-Sham atearam fogo à sua casa e ameaçaram-no. Abandonou o campo e fugiu do Líbano, onde seguramente o encontrariam. Na Hungria, a Bevándorlási és Állampolgársági Hivatal (Serviço da Imigração e da Nacionalidade, a seguir «BAH») não o reconheceu como refugiado, mas emitiu uma ordem de não-repulsão, evitando assim o seu regresso. |
15. |
Chadi Amin A Radi perdeu a sua casa no campo de Nahr el Bared quando foi destruída em confrontos entre o exército libanês e o grupo islâmico Fatah. Também perdeu a sua casa de família e a sua empresa. Como não havia lugar no campo vizinho de Baddawi, ele, os seus pais e os seus irmãos refugiaram-se em casa de um conhecido em Tripoli. No entanto, os soldados libaneses insultaram-nos e maltrataram-nos, prenderam-nos arbitrariamente, torturaram-nos e humilharam-nos. Considerando que, como palestinianos, não tinham direitos, A Radi deixou o Líbano com o seu pai. Mais uma vez, o BAH não o reconheceu como refugiado, mas emitiu uma ordem de não-repulsão. |
16. |
Hazem Kamel Ismail vivia com a sua família no campo de Ein el-Hilweh. Durante confrontos armados entre a Fatah e a Jund el-Sham, os extremistas queriam utilizar o telhado da sua casa. Quando recusou, foi ameaçado e considerado suspeito de ser um agente inimigo. Impossibilitado de recorrer a uma organização que o protegesse, fugiu para Beirute com a sua família. Não se sentindo aí seguros, fugiram para a Hungria. Apresentou um certificado da Comissão do Povo da Palestina para demonstrar que tiveram de abandonar o campo de Ein el-Hilweh por razões de segurança e por causa de ameaças dos radicais islâmicos, juntamente com fotografias da sua casa vandalizada. O BAH não reconheceu Kamel Ismail como refugiado, mas concedeu à sua família o estatuto de proteção subsidiária. |
17. |
Foi confirmado na audiência que, em relação aos seus pedidos de proteção internacional, o BAH considerou Abed El Karem El Kott, A Radi e Kamel Ismail como requerentes comuns do estatuto de refugiado, analisou os seus pedidos em conformidade com a Diretiva 2005/85 ( 9 ) e chegou à conclusão de que os mesmos não preenchiam os critérios estabelecidos no artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2004/83. Portanto, considerou que estes estavam abrangidos pelo âmbito de aplicação subjetivo da diretiva, mas não tinham direito ao estatuto de refugiado pelo simples facto de anteriormente terem recebido, embora já não recebessem, assistência da UNRWA. |
18. |
Os três intentaram ações no Fővárosi Bíróság (Tribunal Judicial de Budapeste), da decisão de recusa do BAH em reconhecê-los como refugiados. O ENSZ Menekültügyi Főbiztosság (Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a seguir «ACNUR») interveio no processo principal. |
19. |
O Fővárosi Bíróság submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais: «Para os efeitos do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho:
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20. |
A primeira dessas questões é literalmente idêntica à terceira questão prejudicial submetida pelo mesmo tribunal no processo Bolbol; a segunda é substancialmente idêntica à segunda questão colocada nesse processo. |
21. |
Apresentaram observações escritas Kamel Ismail, o ACNUR, os Governos da Bélgica, da Alemanha, da França, da Hungria, da Roménia e do Reino Unido, e a Comissão, tendo estado todos eles representados na audiência de 15 de maio de 2012. As observações escritas em representação de Abed el Karem el Kott e de A Radi foram recebidas 18 dias após o decurso do prazo de dois meses previsto no segundo parágrafo do artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, tendo, por isso, sido devolvidas. O seu advogado não respondeu ao convite para comparecer na audiência. |
Apreciação
Introdução
22. |
Nas minhas conclusões apresentadas no processo Bolbol, abordei as questões submetidas atendendo, em primeiro lugar, à interpretação da Convenção, tendo depois transposto os resultados dessa interpretação para a diretiva com vista a responder às questões prejudiciais em causa ( 10 ). |
23. |
Comecei por retirar um conjunto de princípios orientadores da Convenção. Resumidamente:
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24. |
A partir desses princípios, cheguei a determinadas conclusões:
A questão de saber se tem direito aos benefícios da Convenção depende da razão pela qual já não pode obter essa assistência: ¾ se é devido a circunstâncias que não pode controlar, tem direito automático ao estatuto de refugiado (tratamento e atenção especiais);
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25. |
Transpondo essas conclusões para a interpretação da diretiva, considerei, no que se refere à segunda e terceira questões prejudiciais, que:
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26. |
Na sequência da instauração do presente processo, o Tribunal de Justiça tem à sua disposição um conjunto mais completo de observações, que desenvolvem ainda mais as apresentadas no processo Bolbol e que têm em conta o acórdão proferido nesse processo. Após um exame cuidado das novas observações, as minhas conclusões não diferem no essencial daquelas a que cheguei no processo Bolbol. Por conseguinte, remeto o Tribunal de Justiça para a minha análise detalhada nesse processo. Contudo, que se refere a um aspeto, a minha posição alterou-se em certa medida ( 14 ), embora não se trate de um aspeto que afete diretamente as respostas a dar às questões prejudiciais submetidas. |
27. |
Antes de analisar novamente essas respostas e ainda no âmbito desta parte introdutória, considero útil examinar esse aspeto, e desenvolver um conjunto de outras considerações cuja relevância se tornou mais patente no caso em apreço e que podem clarificar o contexto em que as minhas posições devem ser entendidas. Considerarei, por isso: (i) os textos que o Tribunal de Justiça deve ter em conta na interpretação do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva; (ii) a sugestão de que essa disposição pode identificar uma categoria específica de refugiados por comparação com a categoria identificada na alínea c) do artigo 2.o; (iii) as diferentes situações em que uma pessoa se pode encontrar em relação ao artigo 12.o, n.o 1, alínea a); (iv) o âmbito pessoal e temporal da exclusão da qualidade de refugiado previsto nessa disposição (é neste aspeto que alterei a minha opinião); e (v) a natureza interligada das questões submetidas. Começarei, então, por traçar em linhas gerais as várias respostas que proponho dar a estas questões antes de as abordar propriamente, uma a uma. |
O texto legal relevante
28. |
É pedido ao Tribunal de Justiça que interprete o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, em especial as expressões «terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva» e «quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão». Essa disposição existe em 22 versões linguísticas, todas elas fazendo fé, as quais, infelizmente, em especial no que se refere à primeira expressão referida não são literalmente idênticas. |
29. |
Segundo jurisprudência assente, a formulação utilizada numa versão linguística de uma disposição de direito da União não pode servir de base única para a interpretação ou, a esse respeito, sobrepor-se às outras versões linguísticas. Pelo contrário, as diferentes versões devem ser interpretadas de modo uniforme; em caso de divergência, a disposição deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento ( 15 ). |
30. |
No presente processo, o primeiro período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o da diretiva, refere-se ao (primeiro parágrafo do) artigo 1.o, secção D, da Convenção, ao passo que o segundo período repete em grande parte o segundo parágrafo dessa norma. A Convenção fornece o contexto — contribuindo assim para indicar a finalidade e a sistemática — da diretiva, a qual remete frequentemente para a Convenção. Esta Convenção existe apenas em duas versões linguísticas que fazem fé, o inglês e o francês. No entanto, mais uma vez, as duas versões do artigo 1.o, secção D, não têm a mesma formulação literal ( 16 ). |
31. |
A Comissão considerou que onde a diretiva vise repetir disposições da Convenção, o seu texto procurou refletir a versão inglesa desta última ( 17 ). |
32. |
Entendo por isso, dado que é solicitada ao Tribunal de Justiça uma interpretação do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, que este, ao proceder a essa interpretação, deve reportar-se ao artigo 1.o, secção D, da Convenção. Para isso, deve ter em conta, em primeiro lugar, a versão inglesa desta disposição, que constituiu a base da disposição correspondente da diretiva. Contudo, como as versões inglesa e francesa da Convenção fazem ambas fé, é necessário assegurar que a interpretação é também coerente com a versão francesa do artigo 1.o, secção D. |
Categorias de refugiados
33. |
Na audiência, o ACNUR sustentou que o artigo 1.o da Convenção previa, na realidade, três categorias de pessoas às quais deve ser concedido o estatuto de refugiado. Nos termos do artigo 1.o, secção A, os refugiados anteriormente reconhecidos como tal de acordo com diversos atos normativos anteriores à Segunda Guerra Mundial (refugiados «históricos») e os que preenchessem o critério do «receio fundado de perseguição» deviam ter direito a que lhes fosse reconhecido de imediato o estatuto de refugiado. A terceira categoria, nomeadamente os refugiados palestinianos que beneficiam de assistência da UNRWA, estava prevista no artigo 1.o, secção D. O direito a esse estatuto, embora real, seria diferido até à ocorrência de um determinado evento. Em consequência, na sua opinião, o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, deveria também ser interpretado no sentido de que define uma categoria de pessoas com direito a um estatuto de refugiado diferido. |
34. |
Para apreciar esse argumento, deve-se examinar o artigo 1.o da Convenção como um todo, tendo em conta que o segundo parágrafo da secção D, do artigo 1.o, foi uma alteração posterior visando explicitar o âmbito do primeiro período ( 18 ). O teor do artigo 1.o da Convenção encontra-se refletido, na medida em que ainda é relevante para pedidos de estatuto de refugiado nos Estados-Membros da União Europeia, nos artigos 2.°, alínea c), 11.° e 12.° da diretiva. Não há razão para supor que a alteração visou de alguma forma modificar a relação estrutural que se depreende do artigo 1.o da Convenção. |
35. |
O artigo 1.o, secção A, prevê efetivamente duas categorias de refugiados: os refugiados históricos e os que preenchem o critério do «receio fundado de perseguição» ( 19 ). (O artigo 1.o, secção B, que é atualmente apenas de relevância marginal em qualquer lado, e de nenhuma na União Europeia, prevê certas nuances na definição da segunda categoria.) O artigo 1.o, secção C, estabelece depois um conjunto de circunstâncias em que a Convenção deixa de ser aplicável a qualquer pessoa abrangida pela secção A do artigo 1.o ( 20 ). As três últimas secções do artigo 1.o — D, E e F ( 21 ) — definem categorias de pessoas às quais a Convenção «não será aplicável». Os artigos 2.° a 34.° da Convenção ( 22 ) definem o estatuto, os direitos e os deveres dos refugiados. |
36. |
Esta estrutura é coerente e clara. Existem refugiados, definidos no artigo 1.o, secção A, a quem a Convenção (em especial os artigos 2.° a 34.°) se aplica; existem aqueles a quem, por motivo de uma alteração de circunstâncias, esta deixa de aplicar-se (artigo 1.o, secção C); e existem aqueles a quem, em virtude de circunstâncias preexistentes, não se aplica. Destes últimos, existem três categorias: duas (artigo 1.o, secções D e E) estão excluídas devido às suas circunstâncias atuais (benefício de proteção ou assistência, ou reconhecimento de um estatuto equivalente ao de um nacional do Estado de residência), a terceira (artigo 1.o, secção F) devido a circunstâncias anteriores (prática de determinados atos criminosos). |
37. |
Não existe fundamento para supor que uma disposição como o artigo 1.o, secção D, que começa pelas palavras «Esta Convenção não será aplicável às […]», esteja na realidade a definir uma categoria de pessoas às quais a Convenção é aplicável. O segundo parágrafo dessa disposição visa claramente determinar as circunstâncias em que a exclusão por receber proteção ou assistência cessa, e o estatuto daqueles que a viram cessar. |
38. |
Por isso, não posso concordar que o artigo 1.o, secção D, da Convenção — ou, também, o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, o que começa pelas palavras «O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se […]» — defina uma categoria de refugiados. No entanto, isso não significa que o segundo parágrafo não possa conferir posteriormente o direito ao estatuto de refugiado àqueles a quem se aplica. |
Possíveis implicações do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva
39. |
É útil na apreciação das questões prejudiciais ter uma noção clara das diferentes situações em que uma pessoa se pode encontrar em relação ao artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, e o que estas podem implicar para a pessoa em causa. Parecem-me existir três dessas situações possíveis. |
40. |
Em primeiro lugar, dado que o artigo 12.o, n.o 1, começa com as palavras «O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se […]», a situação de uma pessoa em relação ao artigo 12.o, n.o 1, alínea a), pode traduzir-se em ser «excluído da qualidade de refugiado» quando a condição subsequente se encontrar preenchida. |
41. |
Se uma pessoa é «excluída da qualidade de refugiado», na aceção da diretiva, não a pode invocar para obter o direito ao reconhecimento como refugiado e ao estatuto que daí decorre. Qualquer pedido que efetue deve ser considerado inadmissível, independentemente de a pessoa poder ou não ajustar-se à definição do artigo 2.o, alínea c), da diretiva. |
42. |
No entanto, importa salientar que essa exclusão apenas se estende ao direito do indivíduo de reclamar o estatuto de refugiado nos termos do direito da União Europeia e não afeta o direito do Estado de conceder esse estatuto. O artigo 3.o da diretiva permite especificamente aos Estados-Membros «aprovar ou manter normas mais favoráveis relativas à determinação das pessoas que preenchem as condições para beneficiar do estatuto de refugiado». O direito da União Europeia não impede, de forma alguma, um Estado-Membro de conceder o estatuto de refugiado a qualquer indivíduo, quaisquer que sejam as circunstâncias. |
43. |
Na mesma linha, deve-se ter em conta que a diretiva regula não apenas o estatuto de refugiado nos Estados-Membros mas também a proteção subsidiária, para pessoas que correm um risco real de sofrer uma ofensa grave. Essa ofensa inclui, nos termos do artigo 15.o, alínea c), a «ameaça grave e individual contra a vida ou a integridade física de um civil, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno» — definição que atualmente, pode ser de particular relevância para os refugiados palestinianos na Síria. O artigo 12.o, n.o 1, alínea a), refere-se apenas ao estatuto de refugiado. Não exclui ninguém de proteção subsidiária; nem as disposições que estabelecem a exclusão da proteção subsidiária (no artigo 17.o da diretiva) se referem de forma alguma à obtenção de proteção ou assistência por parte de qualquer órgão ou agência das Nações Unidas. Consequentemente, qualquer direito ou concessão de proteção subsidiária não é de todo afetado pelo artigo 12.o, n.o 1, alínea a). |
44. |
Por último, independentemente da exclusão do estatuto de refugiado, os Estados-Membros devem respeitar o princípio da não-repulsão, de acordo com as suas obrigações internacionais (artigo 21.o da Diretiva). |
45. |
A segunda situação possível é, obviamente, a de que uma pessoa não seja «excluída da qualidade de refugiado» pelo artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva, não estar «atualmente a beneficiar de proteção ou assistência por parte de órgãos ou agências das Nações Unidas, que não sejam o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados», no sentido do artigo 1.o, secção D, da Convenção. |
46. |
Sendo este o caso — e sem mais — é evidente que a pessoa em causa não tem um direito imediato e automático ao estatuto de refugiado, mas tão só direito a que o seu pedido desse estatuto seja apreciado segundo os procedimentos adequados ( 23 ): já não é inadmissível. Só tem direito ao estatuto de refugiado se, no decurso desses procedimentos, se puder demonstrar que essa pessoa se enquadra na definição de refugiado constante do artigo 2.o, alínea c), da diretiva. Era essa a situação do recorrente no processo principal no processo Bolbol, que nunca tinha beneficiado de assistência da UNRWA. |
47. |
Na ausência da segunda frase do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva (e do segundo parágrafo da secção D, do artigo 1.o da Convenção), seria lógico inferir que uma pessoa que tivesse deixado de receber essa proteção ou assistência estaria também na mesma posição. |
48. |
No entanto, essa disposição faz uma asserção específica em relação à cessação da proteção ou assistência: «[q]uando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a situação da pessoa em causa tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas, essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva». |
49. |
A frase «terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva [Convenção]» (ou, em francês, «bénéficieront de plein droit du régime de cette Convention») pode assim sugerir uma terceira possibilidade, nomeadamente a de que uma pessoa em relação à qual a assistência da UNRWA «tiver cessado por qualquer razão» deve ser reconhecida como refugiado, independentemente de se enquadrar ou não na definição prevista no artigo 2.o, alínea c), da diretiva. A primeira questão submetida pelo tribunal nacional versa, em especial, sobre esta possibilidade. |
Âmbito de aplicação pessoal e temporal da exclusão da qualidade de refugiado
50. |
Resulta claramente do acórdão proferido no processo Bolbol que uma pessoa não é «excluída da qualidade de refugiado» pela primeira frase do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, se não tiver beneficiado de assistência da UNRWA. Também resulta claramente da segunda frase dessa disposição que — independentemente do direito posterior que possa ou não também vir a ser concedido — uma pessoa não é excluída da qualidade de refugiado quando «essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a situação da pessoa em causa tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas». Em contrapartida, os que «atualmente beneficiem» de assistência da UNRWA estão excluídos. |
51. |
Pelo menos dois Estados-Membros — a França e o Reino Unido — alegaram (e isso estava implícito nas minhas conclusões apresentadas no processo Bolbol) que portanto a exclusão só se aplica enquanto a pessoa em causa estiver fisicamente presente na zona de operações da UNRWA (nomeadamente Líbia, Síria, Jordânia, Cisjordânia e Faixa de Gaza). Assim que a pessoa deixa essa zona, já não pode estar «atualmente [a] beneficiar» de assistência da UNRWA e não pode por isso continuar a ser excluída da qualidade de refugiado. A conclusão por mim retirada quanto à exata situação dessa pessoa — contrariamente à retirada pelo Reino Unido — diferenciava entre os efeitos da partida voluntária e involuntária, mas concordei com o seu ponto de vista relativamente ao fim da exclusão. |
52. |
Já não considero defensável esse ponto de vista, especialmente no quadro da diretiva. Para obter o estatuto de refugiado num Estado-Membro da União Europeia é necessário estar fisicamente presente nesse Estado e assim fisicamente ausente da zona de operações da UNRWA. Em consequência, se a mera ausência da zona de operações da UNRWA fosse suficiente para fazer cessar a exclusão prevista no primeiro período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o da diretiva, nenhuma pessoa que requeresse o estatuto de refugiado nos termos da diretiva podia alguma vez vir a ser excluída e a exclusão seria irrelevante ( 24 ). |
53. |
Por conseguinte, dado que se deve presumir que a exclusão deve ter algum efeito real, esta não pode cessar meramente com a partida da zona de operações da UNRWA, independentemente da razão dessa partida. Tem de haver um elemento causal adicional. Claramente, esse elemento existe quando a assistência cessou no sentido do segundo período do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva. No entanto, continua por determinar se os «benefícios» da diretiva referidos nesse período se limitam à cessação da exclusão ou envolvem a efetiva concessão do estatuto de refugiado, e também se pode equacionar se outros acontecimentos poderão conduzir ao fim da exclusão ( 25 ). |
54. |
Vistos estes aspetos preliminares, debruço-me agora mais em particular sobre as questões prejudiciais. |
Questões prejudiciais
Natureza interligada das questões
55. |
As duas questões colocadas estão interligadas e, além disso, referem-se às duas orações interdependentes de uma única frase. A primeira questão pretende saber o que se entende por benefícios da diretiva, a segunda que acontecimento determina o direito a esses benefícios. As respostas que se propõem para a primeira questão oscilam entre o mero direito de requerer o estatuto de refugiado ou de proteção subsidiária e o direito de reconhecimento imediato e automático do estatuto de refugiado, com todos os benefícios inerentes. As respostas que se propõem para a segunda questão oscilam entre qualquer acontecimento, independentemente da sua natureza, que leve a pessoa em causa a sair da zona de operações da UNRWA até, inclusivamente, à extinção da UNRWA ou, pelo menos, a algum acontecimento que a impeça de prestar assistência. Importa referir que vários dos Estados-Membros que apresentaram observações demonstram uma tendência para compensar uma resposta «mais generosa» a uma questão com uma resposta «menos generosa» à outra. Isso sugere, pelo menos, que encaram as respostas como exercendo uma influência recíproca. |
Resumo das respostas que se propõem
56. |
Em termos muito gerais, os que apresentaram observações propuseram cinco soluções:
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57. |
O próprio tribunal nacional sugere mais uma variante: pode entender-se por direito aos benefícios da diretiva o reconhecimento automático do estatuto de refugiado ou de proteção subsidiária, de acordo com uma opção efetuada pelo Estado-Membro em questão. |
Primeira questão — Os benefícios da diretiva
58. |
Resulta das minhas considerações preliminares que o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), não se refere de forma alguma à proteção subsidiária ( 26 ). As respostas que se propõem no que respeita a «beneficiar do disposto na presente diretiva» a que a pessoa em causa «terá direito ipso facto» podem pois reduzir-se a
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59. |
Mantenho a opinião, expressa nos n.os 85 a 89 e 103 a 109 das minhas conclusões apresentadas no processo Bolbol, que o direito em questão é relativo aos benefícios substanciais do estatuto de refugiado, os quais só podem ser gozados se esse estatuto for concedido. Por conseguinte, aqueles a quem se aplica o segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o da diretiva, têm direito à concessão efetiva do estatuto de refugiado, independentemente de se enquadrarem ou não na definição do artigo 2.o, alínea c), tal como é exigido aos outros requerentes. Acrescentaria as seguintes considerações às que já expressei. |
60. |
Em primeiro lugar, o artigo 1.o, secção D, da Convenção, utiliza os termos «ipso facto» em inglês e «de plein droit» em francês ( 27 ). A utilização claramente deliberada dessa formulação não pode ser ignorada. Independentemente de quaisquer nuances que possam existir quanto ao significado, essas expressões tornam claro que a cessação da proteção ou assistência, por si só e sem ser necessário preencher quaisquer outras condições, dá origem ao direito em questão. Dado que para requerer o estatuto de refugiado não é necessário preencher quaisquer condições (até as pessoas consideradas indignas podem apresentar um pedido, o qual será recusado a não ser que o requerente se enquadre na definição de refugiado e não seja excluído por qualquer outra disposição), o direito que surge com a cessação da assistência da UNRWA deve ser algo mais do que o mero direito de requerer esse estatuto. Caso contrário, seria algo que exigiria o preenchimento de determinadas condições. |
61. |
Em segundo lugar, gostaria de chamar a atenção para a formulação completa do segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o da diretiva: «Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a situação da pessoa em causa tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas, essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva». A condição que escrevi em itálico não deve ser ignorada. Se a proteção ou assistência cessa quando a situação daqueles que a estavam anteriormente a receber foi definitivamente resolvida dessa forma, parece-me que estes não podem simplesmente continuar a ser excluídos da qualidade de refugiado. Nesse caso, devem poder reclamar o estatuto de refugiado se, por algum motivo, se enquadrarem na definição do artigo 2.o, alínea c). A contrario, portanto, quando a sua situação não foi assim resolvida (mas ainda assim a assistência cessou por qualquer motivo), o seu estatuto face à diretiva deve ser diferente — mais uma vez, a expressão «beneficiar do disposto na presente diretiva» deve significar mais do que simplesmente não estar excluído da possibilidade de serem reconhecidos como refugiados, caso preencham o artigo 2.o, alínea c). |
62. |
É inconcebível, contudo, como bem assinalam os Governos alemão e húngaro, que o mero facto da cessação da proteção ou assistência deva automaticamente dar origem ao reconhecimento totalmente incondicional do estatuto de refugiado. Não é apenas o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), que prevê a exclusão desse estatuto. De forma mais importante, o artigo 12.o, n.os 2 e 3, exclui (tal como o artigo 1.o, secção F, da Convenção) os que praticaram, instigaram ou participaram de outra forma na prática de um conjunto de crimes especialmente graves. Além disso, nos termos do artigo 11.o ou do artigo 12.o, n.o 1, alínea b), conforme o caso, uma alteração de circunstâncias que implique, em termos gerais, uma nova ou antiga ligação de uma pessoa a um país em que goza de direitos satisfatórios e seguros, significa que esta não pode, ou já não pode, beneficiar da proteção como refugiado ( 28 ). |
63. |
Também é claro — contrariamente aos receios do Governo romeno — que nunca pode haver um reconhecimento automático do estatuto de refugiado, ou seja, um reconhecimento sem qualquer tipo de procedimento que vise determinar que as condições necessárias se verificam ( 29 ). |
64. |
Em consequência, as condições dispensadas pelo simples facto de ter cessado a assistência da UNRWA apenas podem ser as exigidas para o reconhecimento como refugiado em conformidade com a definição prevista no artigo 2.o, alínea c), da diretiva, e o direito apenas pode consistir no reconhecimento da qualidade de refugiado sem a necessidade específica de demonstrar o preenchimento dessas condições. Portanto, os benefícios da diretiva a que se refere o segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o da diretiva, são os que decorrem da concessão do estatuto de refugiado. |
65. |
No entanto, a concessão desse estatuto deve continuar sujeita à condição de que a pessoa em causa não esteja excluída do mesmo por qualquer outra disposição da diretiva. E será ainda necessário que o beneficiário demonstre, em conformidade com o acórdão Bolbol, que na realidade recebeu assistência da UNRWA e que, de acordo com o segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o da diretiva, essa assistência cessou. |
66. |
Acrescentaria que a dispensa da exigência de demonstrar o preenchimento das condições do artigo 2.o, alínea c), da diretiva, não é tão livre como pode parecer à primeira vista em relação aos que estão abrangidos pelo artigo 12.o, n.o 1, alínea a). O artigo 2.o, alínea c), e o segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o, sobrepõem-se de uma certa forma, na medida em que ambos preveem como condição a ausência de proteção do indivíduo em causa. E, como tive oportunidade de assinalar ( 30 ), a UNRWA não foi criada para prestar, nem nunca prestou, «proteção» aos refugiados palestinianos. Apenas está em condições de prestar «assistência». Além disso, os factos apresentados pelo tribunal nacional em relação aos três recorrentes no processo principal sugerem a existência de uma proteção reduzida por parte das autoridades libanesas e parece altamente improvável que as autoridades sírias estejam atualmente em condições de proteger quaisquer refugiados no seu território. Em resumo, muitos dos que estão abrangidos pelo segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o, podem já enquadrar-se em larga medida na definição de «refugiado» prevista no artigo 2.o, alínea c), dado que não podem beneficiar da proteção do país (da sua nacionalidade) ou da sua residência habitual. |
67. |
Essas considerações confirmam a opinião que já expressei quanto à resposta à primeira questão prejudicial no caso em apreço. No entanto, tenho de responder também a uma objeção pertinente em relação a essa opinião, apresentada por vários Estados-Membros. Estes consideram que permitir que uma determinada categoria de requerentes adquira o estatuto de refugiado sem ter de demonstrar o preenchimento das condições estabelecidas na definição do artigo 2.o, alínea c), da diretiva, quando exigem que outros o façam, dá origem a uma discriminação injustificada, proibida pelo princípio da igualdade de tratamento. |
68. |
O princípio da igualdade de tratamento, consagrado no artigo 20.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas da mesma maneira a não ser que esse tratamento seja objetivamente justificado. |
69. |
No caso em apreço, a interpretação que proponho significa que duas categorias de requerentes do estatuto de refugiado — os que beneficiaram de assistência da UNRWA e os que, por qualquer razão, não beneficiaram — têm direito ao reconhecimento desse estatuto (obtendo os mesmos benefícios nos termos da diretiva) em condições diferentes. Os do primeiro grupo, que é um subgrupo dos que têm direito à assistência da UNRWA, devem simplesmente demonstrar que receberam essa proteção ou assistência e que esta cessou. Os do segundo grupo, que inclui a parte restante dos que têm direito à assistência da UNRWA, em conjunto com todos os outros requerentes, devem demonstrar que preenchem a definição do artigo 2.o, alínea c), da diretiva. |
70. |
Contudo, a situação de facto das duas categorias não é comparável. |
71. |
Os que têm que demonstrar que se enquadram na definição de refugiado do artigo 2.o, alínea c), da diretiva, tiveram anteriormente uma vida relativamente normal não dependente de assistência externa. Porém, as circunstâncias evoluíram depois de tal modo que tiveram de fugir do país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual. Os acontecimentos que tiveram lugar podem ter sido tão graves que os colocaram numa situação em que «receiam com razão ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social». Sendo esse o caso e se eles «não podem ou, em virtude daquele receio, não querem» voltar, têm direito ao estatuto de refugiado. |
72. |
Os que anteriormente receberam assistência externa da UNRWA não estão numa posição análoga. Longe de viverem uma vida normal, recebiam o apoio específico considerado necessário (de forma contínua) da comunidade internacional. Neste sentido, estavam a cuidar deles. Já estavam numa situação de proteção. Ocorre então um acontecimento externo que implica que a assistência que estavam a receber da UNWA «cesse», sem que isso lhes seja imputável. Porém, não existe nenhuma razão em especial para supor que esse acontecimento provocará necessariamente e em simultâneo um «receio fundado de ser perseguido» de forma a ficarem abrangidos pela formulação do artigo 2.o, alínea c), da diretiva. Todavia, já não podem contar com a anterior assistência da UNRWA (e, assim, beneficiar do apoio material que justificava anteriormente a sua exclusão do âmbito de aplicação da Convenção). |
73. |
Por conseguinte, na medida em que as situações em questão não são comparáveis, o princípio da igualdade de tratamento não exige que não devam ser tratadas de maneira diferente. |
74. |
Pode alegar-se que, na medida em que as duas categorias estão em situações de facto diferentes, o requerente «comum» do estatuto de refugiado está frequentemente numa situação pior do que o palestiniano cuja assistência da UNRWA cessou subitamente. Porque deve então este último ter acesso preferencial aos benefícios do estatuto de refugiado? |
75. |
Saber se um palestiniano que subitamente já não pode receber assistência da UNRWA merece mais ou menos do que uma outra categoria de potenciais refugiados é uma questão subjetiva. Pessoalmente, diria que, em abstrato, todos os refugiados potenciais genuínos são merecedores da mesma compaixão e apoio. Se o artigo 1.o, secção D, da Convenção, contivesse apenas o seu primeiro período, teria tido pouca dificuldade em chegar à conclusão de que, assim que tivesse cessado a assistência da UNRWA, um palestiniano que a estivesse a receber deveria voltar a estar abrangido pelo âmbito de aplicação da Convenção e ser tratado como qualquer outro requerente do estatuto de refugiado. Mas o facto é que o artigo 1.o, secção D, compreende não um, mas sim dois períodos. Da leitura integral do diploma, deduzo que a comunidade internacional optou de forma deliberada por dar um tratamento especial aos palestinianos deslocados — tratamento esse que nalguns aspetos é negativo (artigo 1.o, secção D, primeiro período), e noutros preferencial (artigo 1.o, secção D, segundo período). Considerando as diferenças quanto à situação de facto que acima identifiquei, essa opção (que a diretiva reflete fielmente) não viola o princípio da igualdade de tratamento. |
Segunda questão — Cessação da proteção ou assistência
76. |
Resulta das minhas considerações preliminares que uma pessoa que beneficiou da assistência da UNRWA não pode «ter direito aos benefícios» da diretiva — de facto, em princípio, fica «excluíd[a] da qualidade de refugiado» — até que essa assistência, em relação à mesma, tenha «cessado por qualquer razão», no sentido do artigo 12.o, n.o 1, alínea a) ( 31 ). As respostas que se propõem no que respeita ao acontecimento que determina esse direito podem pois reduzir-se a:
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77. |
Nas minhas conclusões apresentadas no processo Bolbol (n.os 77 a 84 e 100 a 102), cheguei à conclusão de que a última interpretação era correta, e ainda sou dessa opinião — embora, obviamente, a primeira interpretação seja subsumida na segunda, a qual incluirá qualquer acontecimento que impeça a UNRWA de prestar assistência. |
78. |
Em apoio desta opinião, julgo não ser necessário aduzir mais argumentos. Assinalaria apenas que parece a mais coerente com a linguagem utilizada — a qual, neste aspeto, não difere de forma significativa nas versões inglesa e francesa. «Quando essa proteção ou assistência tiver cessado» significa que é a proteção ou assistência que deve cessar; a desistência do próprio indivíduo não é contemplada. Esta parte da frase, vista isoladamente, poderia favorecer o entendimento de que o acontecimento deve dizer respeito à própria UNRWA. No entanto, «por qualquer razão» parece ampliar o sentido da primeira parte da frase até ao seu máximo. Ainda assim, isso não pode ir ao ponto de incluir decisões individuais com base na conveniência pessoal, o que esvaziaria a exclusão de qualquer conteúdo ( 32 ). Considero, por isso, que a frase apenas pode ampliar o conceito de cessação no sentido de que o motivo deve necessariamente dizer respeito à própria UNRWA. |
79. |
Devo, porém, fazer duas observações em relação aos que, por sua própria vontade, deixam a zona fora da qual ficam materialmente impossibilitados de receber a assistência da UNRWA. |
80. |
Em primeiro lugar, como já referi, o simples facto de deixar a zona de operações da UNRWA não pode por si só fazer cessar a exclusão da «qualidade de refugiado» ( 33 ). A par da minha conclusão de que o direito aos benefícios da diretiva apenas pode surgir como resultado de um acontecimento que escapa ao controlo ou é independente da vontade do beneficiário da assistência da UNRWA, em virtude do qual este deixa de poder continuar a receber essa assistência, isso pode parecer significar que alguém que tenha alguma vez beneficiado da assistência da UNRWA nunca pode requerer o estatuto de refugiado num Estado-Membro com fundamento no artigo 2.o, alínea c), da diretiva, ou no segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o |
81. |
Essa conclusão deve ser clarificada. Na minha opinião, a exclusão da qualidade de refugiado por ter beneficiado da assistência da UNRWA logicamente só se pode estender à exclusão da possibilidade de requerer o estatuto de refugiado como palestiniano com direito a essa assistência. Não existe nenhuma razão para que essa exclusão continue indefinidamente se surgirem outros fundamentos que permitam requerer o estatuto de refugiado — por exemplo, se um refugiado palestiniano se mudasse voluntariamente para um país fora da zona de operações da UNRWA, talvez adquirindo a nacionalidade desse país, e se se encontrasse em circunstâncias que o enquadrassem na definição do artigo 2.o, alínea c), da diretiva. A esse respeito, o artigo 5.o da diretiva prevê que o receio fundado de ser perseguido pode ter por base acontecimentos ocorridos ou, conforme o caso, atividades exercidas pelo requerente, desde que deixou o país de origem — pelo menos enquanto essas atividades constituírem a expressão e continuação de convicções ou orientações manifestadas no país de origem e o risco de perseguição não tenha por base circunstâncias criadas pelo requerente, por decisão própria, desde que deixou esse país. |
82. |
Em segundo lugar, é perfeitamente concebível, como realçado ao Tribunal de Justiça, que uma pessoa que esteja a receber assistência da UNRWA possa voluntariamente deixar a zona de operações da UNRWA de forma temporária — por exemplo, para visitar um familiar noutro lugar — pretendendo realmente voltar e acreditando genuinamente que poderá fazê-lo, mas constata que, afinal, a sua reentrada no território onde estava a receber assistência está bloqueada. Na minha opinião, deve considerar-se que essa pessoa não pode receber assistência da UNRWA por uma razão que escapa ao seu controlo ou é independente da sua vontade. |
83. |
Em relação a ambas as circunstâncias referidas, e na verdade em relação a quaisquer circunstâncias em que se tenha de demonstrar que «a proteção ou assistência cessou por qualquer razão», haverá problemas de prova, como referi no n.o 102 das minhas conclusões apresentadas no processo Bolbol. Qualquer desses problemas deve ser resolvido em conformidade com o artigo 4.o da diretiva, intitulado «Apreciação dos factos e circunstâncias», que fornece um quadro dos tipos de prova ou indícios que os Estados-Membros podem ou não exigir. Embora seja legítimo, em termos gerais, solicitar a um requerente que documente o seu pedido, em vez de ter por base meramente as suas declarações, o artigo 4.o, n.o 5, estabelece um conjunto de circunstâncias em que os Estados-Membros não podem pretender a confirmação documental de todos os elementos do pedido. |
Conclusão
84. |
À luz de todas as considerações anteriores, entendo que o Tribunal de Justiça deve responder às questões submetidas pelo Fővárosi Bíróság do seguinte modo: No segundo período do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida:
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( 1 ) Língua original: inglês.
( 2 ) Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO 2004 L 304, p. 12), a seguir «Diretiva 2004/83» ou «diretiva». Foi agora substituída pela Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9), que não altera as principais disposições relevantes para o presente processo.
( 3 ) United Nations Treaty Series, Vol. 189, n.o 2545 (1954), p. 150 (a seguir «Convenção»).
( 4 ) United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente). O mandato da UNRWA foi recentemente prolongado até 30 de junho de 2014, pela Resolução n.o 65/98 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 2010.
( 5 ) Acórdão de 17 de junho de 2010 (C-31/09, Colet., p. I-5539).
( 6 ) É entendimento comum que a frase «organismo ou instituição das Nações Unidas diferente do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados» se refere, com efeito, desde 1958 apenas à UNRWA. O único outro organismo ou instituição que alguma vez prestou proteção ou assistência a refugiados (a Agência das Nações Unidas para a Reconstrução da Coreia) cessou operações nesse ano. Portanto, salvo onde se disponha de forma diferente, tratarei «organismo ou instituição das Nações Unidas diferente do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados» e a «UNRWA» como sinónimos. Também é ponto assente que a UNRWA não foi criada para conferir «proteção», nem nunca o fez, aos refugiados palestinianos. Apenas pode prestar «assistência». Por esse motivo, referir-me-ei apenas à «assistência da UNRWA» e não à «proteção ou assistência da UNRWA».
( 7 ) Embora na versão inglesa a última frase do segundo período reproduza literalmente a redação da Convenção (substituindo apenas a palavra «Convenção» por «Diretiva»), o texto francês utiliza uma formulação diferente: «ces personnes pourront ipso facto se prévaloir de la présente directive» («essas pessoas terão direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva»). Na audiência, o representante da Comissão explicou que a intenção tinha sido redigir todas as versões linguísticas da Diretiva com base na versão inglesa da Convenção — e, de facto, a versão francesa está mais próxima do inglês no segundo período da alínea a), do n.o 1, do artigo 12.o, do que no segundo parágrafo da secção D, do artigo 1.o, da Convenção.
( 8 ) Outras diferenças relativas ao acesso ao emprego, à saúde e a programas de integração foram agora eliminadas pela Diretiva 2011/95, referida na nota 2.
( 9 ) Diretiva do Conselho 2005/85/CE, de 1 de dezembro de 2005, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados-Membros (JO 2005 L 326, p. 13).
( 10 ) O Tribunal de Justiça abordou apenas a interpretação da diretiva, mas de forma a que os princípios da Convenção, dos outros tratados pertinentes referidos no artigo 78.o, n.o 1, do TFUE, e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, fossem respeitados (v. n.os 36 a 38 e jurisprudência referida). O artigo 78.o, n.o 1, do TFUE, exige que a política comum em matéria de asilo esteja em conformidade com a Convenção, o seu Protocolo de 1967, e os «outros tratados pertinentes» (não especificados).
( 11 ) V. n.os 48 a 56 das conclusões.
( 12 ) V. n.o 90 das conclusões.
( 13 ) V. n.o 111 das conclusões. Mais especificamente, em relação às pessoas abrangidas pelo artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, os «benefícios» em questão significam o reconhecimento como refugiado, tendo como consequência o facto de essas pessoas passarem a ter o direito de, sem mais, lhes ser concedido o estatuto de refugiado.
( 14 ) V. n.os 52 e segs., infra.
( 15 ) V., muito recentemente, acórdão de 28 de junho de 2012, Geltl (C-19/11, n.o 43 e jurisprudência aí referida).
( 16 ) V. n.o 6, supra.
( 17 ) V. nota 7, supra.
( 18 ) V. Commentary on the 1951 Convention relating to the status of refugees and its 1967 protocol (Comentário à Convenção de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e ao seu Protocolo de 1967), ed. Zimmerman, Oxford 2011, p. 543-4.
( 19 ) V. n.o 4, supra, refletido no artigo 2.o, alínea c), da diretiva. A diretiva, porém, não inclui a primeira categoria — presumivelmente porque em 2004 já não haveria refugiados «históricos» que pudessem requerer o estatuto de refugiado num Estado-Membro.
( 20 ) As mesmas circunstâncias estão previstas no artigo 11.o da diretiva.
( 21 ) Estas categorias estão previstas, respetivamente, no artigo 12.o, n.o 1, alíneas a) e b), e n.o 2, da diretiva.
( 22 ) Correspondem, no essencial, aos artigos 20.° a 34.° da diretiva.
( 23 ) Ou seja, segundo o capítulo II da Diretiva 2004/83 (atualmente Diretiva 2011/95) e segundo a Diretiva 2005/85, referida na nota 9, supra.
( 24 ) Muitos tribunais e autoridades por toda a União Europeia se debateram com a interpretação da cláusula de exclusão prevista no primeiro parágrafo da secção D, do artigo 1.o, da Convenção. Se a interpretação aqui avançada pela França e pelo Reino Unido fosse correta, esses tribunais e autoridades tinham perdido o seu tempo com a interpretação de uma disposição que era inaplicável aos processos que lhes eram submetidos.
( 25 ) V. também n.os 80 e 81, infra.
( 26 ) V. n.o 43, supra.
( 27 ) V. n.o 32, supra.
( 28 ) Essas disposições refletem, respetivamente, o artigo 1.o, secções C e E, da Convenção.
( 29 ) V. as minhas conclusões apresentadas no processo Bolbol, referido na nota 5, supra, n.os 94 e segs., e n.o 52 do acórdão.
( 30 ) V. nota 6, supra, e http://www.unrwa.org/etemplate.php?id=87: «A UNRWA […] não é responsável pela segurança ou pelo cumprimento da lei e ordem nos campos e não é dotada de qualquer força policial ou serviço de informação. Esta responsabilidade ficou sempre a cargo da autoridade competente de acolhimento em questão e de outras autoridades.»
( 31 ) V. n.os 52, e segs. supra.
( 32 ) V. n.os 50 a 53, supra.
( 33 ) V. n.os 50 a 53, supra.