CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

JÁN MAZÁK

apresentadas em 4 de outubro de 2012 ( 1 )

Processos apensos C-197/11 e C-203/11

Eric Libert

Christian Van Eycken

Max Bleeckx

Syndicat national des propriétaires et copropriétaires (ASBL)

Olivier de Clippele

contra

Gouvernement flamand (C-197/11),

e

All Projects & Developments NV

Bouw- en Coördinatiekantoor Andries NV

Belgische Gronden Reserve NV

Bouwonderneming Ooms NV

Bouwwerken Taelman NV

Brummo NV

Cordeel Zetel Temse NV

DMI Vastgoed NV

Dumobil NV

Durabrik NV

Eijssen NV

Elbeko NV

Entro NV

Extensa NV

Flanders Immo JB NV

Green Corner NV

Huysman Bouw NV

Imano BVBA

Immpact Ontwikkeling NV

Invest Group Dewaele NV

Invimmo NV

Kwadraat NV

Liburni NV

Lotinvest NV

Matexi NV

Novus NV

Plan & Bouw NV

7Senses Real Estate NV

Sibomat NV

Tradiplan NV

Uma Invest NV

Versluys Bouwgroep BVBA

Villabouw Francis Bostoen NV

Willemen General Contractor NV

Wilma Project Development NV

Woningbureau Paul Huyzentruyt NV

contra

Gouvernement flamand (C-203/11)

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pela Cour constitutionnelle (Bélgica)]

«Regulamentação regional que subordina a transmissão dos terrenos e construções situados em determinados municípios à existência de uma conexão suficiente do adquirente ou do tomador com o município-alvo — Encargo social imposto aos loteadores e construtores — Incentivos fiscais e mecanismos de subvenção — Restrição das liberdades fundamentais — Justificação — Princípio da proporcionalidade — Auxílios de Estado — Conceito de ‘contrato de empreitada de obras públicas’»

I — Introdução

1.

Nos presentes processos, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar-se sobre a interpretação de vários artigos do direito primário e sobre várias disposições do direito derivado da União. No que respeita ao direito primário, trata-se dos artigos 21.° TFUE, 45.° TFUE, 49.° TFUE, 56.° TFUE, 63.° TFUE, 107.° TFUE e 108.° TFUE. Quanto ao direito derivado, as questões suscitadas dizem respeito à Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços ( 2 ), à Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE ( 3 ), à Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno ( 4 ), e à Decisão 2005/842/CE da Comissão, de 28 de novembro de 2005, relativa à aplicação do n.o 2 do artigo 86.o do Tratado CE aos auxílios estatais sob a forma de compensação de serviço público concedidos a certas empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral ( 5 ).

2.

A resposta do Tribunal de Justiça deve auxiliar a Cour constitutionnelle (Bélgica), que submeteu as questões prejudiciais, a pronunciar-se sobre os recursos de anulação de várias disposições do Decreto da Região da Flandres, de 27 de março de 2009, relativo à política fundiária e imobiliária (a seguir «decreto relativo à política fundiária e imobiliária»).

3.

Os recorrentes no processo principal C-197/11 chamam a atenção para as disposições do decreto relativo à política fundiária e imobiliária que associam a transmissão de terrenos e de imóveis neles edificados em certos municípios da Flandres à condição da existência de uma conexão suficiente do candidato adquirente ou tomador com o município em questão, o que limita a possibilidade de dispor livremente da propriedade imobiliária.

4.

Segundo os recorrentes no processo principal C-203/11 constitui razão de anulação do decreto relativo à política fundiária e imobiliária não só a condição da existência de uma conexão suficiente do candidato adquirente ou tomador com o município em questão, mas também o encargo social imposto aos loteadores e construtores e os incentivos fiscais e mecanismos de subvenção que compensam, em parte, o referido encargo social.

II — Quadro jurídico

A — Direito da União

1. Diretiva 2004/18

5.

O artigo 1.o da Diretiva 2004/18, intitulado «Definições», prevê:

«1.   Para efeitos do disposto na presente diretiva, aplicam-se as definições dos n.os 2 a 15.

a)

‘Contratos públicos’ são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na aceção da presente diretiva.

b)

‘Contratos de empreitada de obras públicas’ são contratos públicos que têm por objeto quer a execução, quer conjuntamente a conceção e a execução, quer ainda a realização, por qualquer meio, de trabalhos relacionados com uma das atividades na aceção do anexo I ou de uma obra que satisfaça as necessidades especificadas pela entidade adjudicante. Por ‘obra’ entende-se o resultado de um conjunto de trabalhos de construção ou de engenharia civil destinado a desempenhar, por si só, uma função económica ou técnica.

[…]»

2. Diretiva 2004/38

6.

O artigo 22.o da Diretiva 2004/38, intitulado «Âmbito territorial», tem a seguinte redação:

«O direito de residência e o direito de residência permanente abrangem a totalidade do território do Estado-Membro de acolhimento. Os Estados-Membros só podem estabelecer restrições territoriais ao direito de residência e ao direito de residência permanente nos casos em que tais restrições se aplicam também aos seus próprios nacionais.»

7.

O artigo 24.o da referida diretiva, intitulado «Igualdade de tratamento», no n.o 1, prevê:

«Sob reserva das disposições específicas previstas expressamente no Tratado e no direito secundário, todos os cidadãos da União que, nos termos da presente diretiva, residam no território do Estado-Membro de acolhimento beneficiam de igualdade de tratamento em relação aos nacionais desse Estado-Membro, no âmbito de aplicação do Tratado. O benefício desse direito é extensível aos membros da família que não tenham a nacionalidade de um Estado-Membro e tenham direito de residência ou direito de residência permanente.»

3. Decisão 2005/842

8.

O artigo 1.o da Decisão 2008/842, intitulado «Objeto», dispõe:

«A presente decisão estabelece as condições em que os auxílios estatais sob a forma de compensações de serviço público concedidos a certas empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral devem ser considerados compatíveis com o mercado comum e isentos da obrigação de notificação prevista no n.o 3 do artigo 88.o do Tratado.»

9.

O artigo 2.o desta decisão, intitulado «Âmbito de aplicação», prevê, no n.o 1:

«A presente decisão é aplicável aos auxílios estatais sob a forma de compensação de serviço público concedidos a empresas relativamente a serviços de interesse económico geral, tal como referidos no n.o 2 do artigo 86.o do Tratado, que se enquadram numa das seguintes categorias:

[…]

b)

As compensações de serviço público concedidas a hospitais e a empresas de habitação social que realizam atividades qualificadas como serviços de interesse económico geral pelo Estado-Membro em causa;

[…]»

10.

Nos termos do artigo 3.o da referida decisão, intitulado «Compatibilidade e isenção de notificação»:

«Os auxílios estatais sob a forma de compensação de serviço público que preenchem as condições fixadas na presente decisão são compatíveis com o mercado comum e estão isentos da obrigação de notificação prévia prevista no n.o 3 do artigo 88.o do Tratado, sem prejuízo da aplicação de disposições mais restritivas relativas às obrigações de serviço público incluídas em atos legislativos comunitários setoriais.»

B — Direito belga

11.

O Livro 4 do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, que visa as medidas respeitantes à habitação a preços acessíveis, contém, no capítulo 3, intitulado «Encargos sociais», o artigo 4.1.16., que dispõe:

«§ 1   Quando a um projeto de loteamento ou projeto de construção for aplicável uma disposição como a prevista no capítulo 2, secção 2, é automaticamente associado um encargo social a uma licença de loteamento, respetivamente a licença de urbanização.

Um encargo social […] obriga o loteador ou o construtor a adotar medidas que garantam a existência de uma oferta de habitações sociais conforme à percentagem aplicável ao projeto de loteamento ou ao projeto de construção.»

12.

O artigo 4.1.17. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária dispõe:

«O loteador ou o construtor pode cumprir um encargo social através de um dos seguintes modos, à sua escolha:

1)

em espécie, nos termos do disposto nos artigos 4.1.20. a 4.1.24.;

2)

através da venda a um organismo de habitação social dos terrenos necessários à oferta de habitações sociais fixada, nos termos do disposto no artigo 4.1.25.;

3)

através do arrendamento de habitações construídas no âmbito de um loteamento ou de um projeto de construção a uma agência de arrendamento de habitação social, nos termos do disposto no artigo 4.1.26.;

4)

através de uma conjugação do disposto nos números 1, 2 e/ou 3.»

13.

Nos termos do artigo 4.1.19. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária:

«O loteador ou o construtor pode cumprir, total ou parcialmente, um encargo social através do pagamento de uma contribuição social ao município onde o projeto de loteamento ou o projeto de construção é desenvolvido. A contribuição social é calculada multiplicando o número de habitações sociais ou de lotes sociais a realizar, em princípio, pela quantia de 50000 euros, e indexando este montante ao índice ABEX, considerando-se como índice de base o de dezembro de 2008.

[…]»

14.

O decreto relativo à política fundiária e imobiliária prevê, a favor das empresas privadas que cumpram o «encargo social» em espécie, os seguintes incentivos fiscais e mecanismos de subvenção: aplicação de uma taxa reduzida de imposto sobre o valor acrescentado e de uma taxa reduzida de direitos de registo (artigo 4.1.2., § 3, segundo parágrafo); subvenções relativas às infraestruturas (artigo 4.1.23), e garantia de aquisição para as habitações construídas (artigo 4.1.21).

15.

Além disso, o Livro 3 do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, intitulado «Ativação de terrenos e de imóveis», estabelece subvenções atribuídas independentemente do cumprimento de qualquer «encargo social». Trata-se, especificamente, de subvenções a «projetos de ativação» (artigo 3.1.2. do referido decreto), redução do imposto sobre as pessoas singulares obtida no âmbito da celebração de contratos de renovação (artigos 3.1.3. e seguintes do referido decreto) e redução fixa da base tributável dos direitos de registo (artigo 3.1.10 do referido decreto).

16.

O artigo 5.1.1. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, que faz parte do Livro 5 deste decreto, intitulado «Viver na sua própria região», dispõe:

«O Governo da Flandres fixa, de três em três anos, e, pela primeira vez, no mês de entrada em vigor do presente decreto, uma lista dos municípios que preenchem as duas características a seguir indicadas com base nas estatísticas mais recentes:

o município faz parte dos 40% de municípios da Flandres em que o preço médio dos terrenos por metro quadrado é mais elevado;

o município faz parte:

a)

dos 25% de municípios da Flandres com maior intensidade de migração interna; ou

b)

dos 10% de municípios da Flandres com maior intensidade de migração externa.

A lista prevista no primeiro parágrafo é publicada no Moniteur belge.

[…]»

17.

O artigo 5.2.1. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, que também faz parte do seu Livro 5, prevê:

«§ 1   Está subordinada a uma condição específica a transmissão de terrenos e de construções neles edificadas que cumpram as duas condições seguintes:

1o

estejam situados em ‘zonas de expansão habitacional’, previstas no Decreto real de 28 de dezembro de 1975, relativo à execução dos projetos de planos e de planos setoriais, na data de entrada em vigor deste decreto;

2o

no momento da assinatura do documento particular de transmissão, estejam situados nos municípios-alvo constantes da lista mais recente publicada no Moniteur Belge, prevista no artigo 5.1.1., considerando-se o documento particular de transmissão assinado seis meses antes da obtenção de uma data fixa para a aplicação desta disposição, se tiverem decorrido mais de seis meses entre a data de assinatura e a data da obtenção de uma data fixa.

O requisito de transmissão particular implica que os terrenos e as construções neles edificadas podem apenas ser transmitidos para pessoas que, de acordo com o parecer de uma comissão de avaliação regional, tenham uma conexão suficiente com o município. Por ‘transmissão’ entende-se a venda, a locação por um período superior a nove anos ou a constituição de um direito de enfiteuse ou de superfície.

[…]

O requisito específico de transmissão cessa, de forma definitiva e sem que possa ser renovado, vinte anos a contar do momento em que tenha sido atribuída uma data fixa à transmissão inicial sujeita ao requisito.

[…]

§ 2.   Para efeitos da aplicação do segundo parágrafo do § 1, uma pessoa tem uma conexão suficiente com o município se preencher, pelo menos, uma das seguintes condições:

1)

ter residido durante, pelo menos, seis anos seguidos no município ou num município confinante, desde que este último também conste da lista prevista no artigo 5.1.1;

2)

na data da transmissão, exercer atividades no município, desde que, em média, o tempo dedicado a estas atividades não seja inferior a metade da semana de trabalho;

3)

ter estabelecido com o município uma conexão profissional, familiar, social ou económica fundada numa circunstância séria e duradoura.

[…]»

18.

De acordo com o artigo 5.1.1. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, uma decisão do Governo da Flandres, de 19 de junho de 2009, estabelece a lista de 69 municípios a que é aplicável o requisito específico de transmissão de propriedade na aceção do artigo 5.2.1. do referido decreto (a seguir «municípios-alvo»).

III — Questões prejudiciais

19.

A única questão apresentada no processo C-197/11 tem a seguinte redação:

«Os artigos 21.° [TFUE], 45.° [TFUE], 49.° [TFUE], 56.° [TFUE] e 63.° [TFUE] e os artigos 22.° e 24.° da Diretiva [2004/38] devem ser interpretados no sentido de que se opõem ao regime estabelecido pelo Livro 5 do [decreto relativo à política fundiária e imobiliária], intitulado ‘Viver na sua própria região’, que, em determinados municípios, denominados ‘municípios-alvo’, subordina a [transmissão] dos terrenos e das construções neles edificadas à prova, pelo adquirente ou pelo tomador, de uma conexão suficiente com estes municípios na aceção do artigo 5.2.1., § 2, do decreto?»

20.

As questões apresentadas no processo C-203/11 são as seguintes:

«1)

Os artigos 107.° [TFUE] e 108.° [TFUE], eventualmente em conjugação com a Decisão [2005/842], devem ser interpretados no sentido de que impõem a comunicação à Comissão Europeia das medidas previstas nos artigos 3.1.3, 3.1.10, 4.1.20, § 3, segundo parágrafo, 4.1.21 e 4.1.23 do [decreto relativo à política fundiária e imobiliária], antes da aprovação ou da entrada em vigor das referidas disposições?

2)

[Um regime] que impõe automaticamente aos agentes privados, cujo loteamento ou projeto de construção tenha uma determinada dimensão mínima, um ‘encargo social’ correspondente a uma percentagem mínima de 10% e máxima de 20% desse loteamento ou desse projeto de construção, [o qual] poderá ser [cumprido] em espécie ou mediante o pagamento da quantia de 50000 euros por cada lote ou construção não realizada, deve ser apreciad[o] à luz da liberdade de estabelecimento, da livre prestação de serviços ou da livre circulação de capitais, ou deve ser [qualificado] como [um regime complexo] que deverá ser apreciad[o] à luz de cada uma dessas liberdades?

3)

Tendo em conta o seu artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e j), a Diretiva [2006/123] é aplicável [à obrigação de contribuição] dos agentes privados para a construção de casas e apartamentos sociais que lhes é automaticamente imposta [como] ‘encargo social’ associado a cada licença de construção ou de loteamento de um projeto com uma dimensão mínima prevista na lei, [em] que as habitações sociais construídas são adquiridas por empresas de habitação social, a preços [limitados] previamente fixados, para serem arrendadas a uma ampla categoria de particulares, ou vendidas pelas empresas de habitação social, em regime de substituição, a particulares pertencentes à mesma categoria?

4)

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão prejudicial, o conceito [de] ‘requisito sujeito a avaliação’ previsto no artigo 15.o da Diretiva [2006/123] deve ser interpretado no sentido de que abrange a obrigação imposta a agentes privados, para além ou como parte da sua atividade habitual, de contribuírem para a construção de habitação social e de transmitirem as habitações construídas a preços [limitados previamente fixados] a autoridades semipúblicas ou através de autoridades semipúblicas, em regime de substituição, embora esses agentes privados não tenham qualquer direito de iniciativa no mercado da habitação social?

5)

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão prejudicial, [deve] o órgão jurisdicional nacional [punir] e, em caso afirmativo, com que sanção [...]:

a)

[quando constate que um] novo requisito sujeito a avaliação nos termos do artigo 15.o da Diretiva [2006/123] não foi especificamente avaliado nos termos do artigo 15.o, n.o 6, da referida diretiva;

b)

[quando constate que esse] novo requisito não foi notificado nos termos do artigo 15.o, n.o 7, da referida diretiva?

6)

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão prejudicial, o conceito [de] ‘requisito proibido’ previsto no artigo 14.o da Diretiva [2006/123] deve ser interpretado no sentido de que [...] não só se opõe, nas hipóteses descritas nesse artigo, a uma legislação nacional que condicione o acesso a uma atividade de serviços ou o seu exercício ao cumprimento de um requisito, mas também a uma legislação que se limite a prever que o não cumprimento desse requisito tem como consequência a perda da compensação financeira pela prestação de um serviço imposto por lei e o não reembolso da garantia financeira constituída para a execução desse serviço?

7)

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão prejudicial, o conceito de ‘operador económico concorrente’ previsto no artigo 14.o, n.o 6, da Diretiva [2006/123] deve ser interpretado no sentido de que também é aplicável a um organismo público cuja atividade possa interferir parcialmente com a dos prestadores de serviços, se este [organismo] tomar as decisões referidas no artigo 14.o, n.o 6, da referida diretiva e também estiver obrigado, como última etapa do sistema de cascata, a adquirir as habitações sociais construídas por um prestador em execução do ‘encargo social’ que lhe foi imposto?

a)

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão prejudicial, o conceito de ‘regime de autorização’ previsto no artigo 4.o, n.o 6, da Diretiva [2006/123] deve ser interpretado no sentido de que é aplicável aos atestados emitidos por um organismo público depois de já ter sido emitida a licença inicial de construção ou de loteamento, que são necessários para poder beneficiar de algumas das compensações [atribuídas em razão do cumprimento] do ‘encargo social’ automaticamente associado [a essa] licença inicial e ainda para obter o reembolso da garantia financeira imposta ao prestador a favor desse organismo público?

b)

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão prejudicial, o conceito de ‘regime de autorização’ previsto no artigo 4.o, n.o 6, da Diretiva [2006/123] deve ser interpretado no sentido de que é aplicável ao contrato que um agente privado está obrigado a celebrar com um organismo público, por força de uma norma legal, para efeitos da sua substituição por esse organismo público para a venda de uma habitação social construída por esse agente privado [a fim de cumprir] em espécie [o] ‘encargo social’ automaticamente associado a uma licença de construção ou de loteamento, tendo em conta o facto de a celebração desse contrato constituir uma condição para a exequibilidade da referida licença?

9)

Os artigos 49.° [TFUE] e 56 [TFUE] devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação que tem como consequência [associar automaticamente] à emissão de uma licença de construção ou de loteamento relativa a um projeto [com] uma determinada dimensão mínima um ‘encargo social’ que consiste na construção, correspondente a uma determinada percentagem do projeto, de habitações sociais que devem posteriormente ser vendidas, a preços [limitados], a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição?

10)

O artigo 63.o [TFUE] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação que tem como consequência [associar automaticamente] à emissão [com] uma licença de construção ou de loteamento relativa a um projeto de uma determinada dimensão mínima um ‘encargo social’ que consiste na construção, correspondente a uma percentagem do projeto, de habitações sociais que devem ser posteriormente vendidas, a preços [limitados], a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição?

11)

O conceito de ‘contrato de empreitada de obras públicas’ previsto no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva [2004/18] deve ser interpretado no sentido de que é aplicável a uma legislação que tem como consequência [associar automaticamente] à emissão de uma licença de construção ou de loteamento relativa a um projeto [com] uma determinada dimensão mínima um ‘encargo social’ que consiste na construção, correspondente a uma percentagem do projeto, de habitações sociais que devem posteriormente ser vendidas, a preços [limitados], a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição?

12)

Os artigos 21.° [TFUE], 45.° [TFUE], 49.° [TFUE], 56.° [TFUE] e 63.° [TFUE] e os artigos 22.° e 24.° da Diretiva [2004/38] devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação introduzida pelo [L]ivro 5 do [decreto relativo à política fundiária e imobiliária], intitulado ‘Viver na própria região’, nos termos da qual, nos denominados municípios-alvo, a transmissão dos terrenos e das construções [neles edificadas está] condicionada à demonstração, pelo comprador ou pelo arrendatário, da posse de uma [conexão] suficiente com esses municípios, nos termos do artigo 5.2.1, § 2, do decreto?»

IV — Análise

A — Quanto à única questão no processo C-197/22 e à décima segunda questão no processo C-203/11

21.

A única questão no processo C-197/22 é idêntica à décima segunda questão no processo C-203/11 e pergunta se as disposições do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia das quais resulta uma proibição das restrições às liberdades fundamentais, bem como os artigos 22.° e 24.° da Diretiva 2004/38, se opõem a uma legislação de um Estado-Membro que subordina a transmissão de bens imobiliários em municípios-alvo, isto é, em municípios onde o preço médio dos terrenos é o mais elevado por metro quadrado e onde a intensidade migratória interna ou externa é a mais elevada, à condição da existência de uma conexão suficiente do candidato adquirente ou tomador com o município em causa.

22.

No que respeita a esta questão, o Governo da Flandres chama a atenção para o facto de os litígios perante o órgão jurisdicional de reenvio dizerem respeito a uma situação puramente interna, tendo em conta que todos os recorrentes no processo principal estão estabelecidos ou domiciliados na Bélgica.

23.

A este propósito, cumpre reconhecer que os litígios no processo principal não incluem elementos transfronteiriços. No entanto, há que não esquecer que as questões prejudiciais foram suscitadas no âmbito do processo específico perante o órgão jurisdicional de reenvio. Trata-se de um recurso de anulação de um ato legislativo do direito nacional que é aplicável tanto aos nacionais belgas como aos nacionais dos outros Estados-Membros. É evidente que a decisão do órgão jurisdicional de reenvio no âmbito desse processo terá efeitos erga omnes, incluindo sobre os nacionais de outros Estados-Membros.

24.

Os recorrentes no processo principal invocam o direito da União e o Tribunal de Justiça não está em condições de apreciar se, no âmbito de um recurso de anulação, o órgão jurisdicional de reenvio pode fiscalizar o ato legislativo do direito nacional em causa não só em relação ao direito nacional mas igualmente em relação ao direito da União. Nos presentes processos, em minha opinião, o Tribunal de Justiça deve confiar no órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que a decisão prejudicial é necessária para que este último possa proferir a sua decisão ( 6 ) e, consequentemente, proceder à interpretação solicitada das disposições do Tratado relativas às liberdades fundamentais do mercado interno ( 7 ).

25.

O órgão jurisdicional de reenvio considera a condição da existência de uma conexão suficiente com o município-alvo como uma restrição às liberdades fundamentais.

26.

Partilho deste ponto de vista. Na aceção da jurisprudência, o acesso à habitação e a outros bens imobiliários é uma condição do exercício das liberdades fundamentais ( 8 ). A exigência de uma conexão suficiente com o município-alvo significa, na realidade, a proibição imposta a certas pessoas, a saber, as que não preenchem a referida condição, de comprarem ou arrendarem, por um período superior a nove anos, terrenos e imóveis neles edificados. Não há nenhuma dúvida quanto ao facto de que esta condição é suscetível de dissuadir os cidadãos da União de exercerem as suas liberdades fundamentais consagradas pelo Tratado.

27.

Considero que a circunstância de a exigência de uma conexão suficiente com o município-alvo ser unicamente aplicável nos municípios, que atualmente são 69, bem como o facto de a sua aplicação estar limitada a certas partes destes municípios não tem qualquer incidência sobre a questão de saber se a referida condição representa ou não uma restrição às liberdades fundamentais. O âmbito de aplicação limitado da condição da existência de uma conexão suficiente com o município-alvo pode ser tomado em consideração no quadro de uma avaliação da justificação desta restrição às liberdades fundamentais.

28.

Segundo jurisprudência assente, as medidas nacionais suscetíveis de criar obstáculos ou de tornar menos atrativo o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado podem, todavia, ser admitidas se prosseguirem um objetivo de interesse geral, se forem adequadas a garantir a sua realização e se não ultrapassarem o necessário para o atingir ( 9 ).

29.

Importa, assim, analisar, por um lado, se o decreto relativo à política fundiária e imobiliária, que estabelece a condição da existência de uma conexão suficiente com o município-alvo, prossegue um objetivo de interesse geral e, por outro, se a condição da existência de uma conexão suficiente com o município-alvo é adequada a garantir a realização do objetivo identificado e se esta medida não ultrapassa o necessário para atingir este objetivo.

30.

Quanto ao objetivo prosseguido pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária, o órgão jurisdicional de reenvio, baseando-se nos trabalhos preparatórios relativos ao mesmo decreto, refere o objetivo de ir ao encontro das necessidades imobiliárias da população autóctone. Ele próprio questiona se o referido objetivo pode ser qualificado como razão imperiosa de interesse geral para justificar uma restrição às liberdades fundamentais.

31.

A fim de melhor compreender o decreto relativo à política fundiária e imobiliária, o órgão jurisdicional de reenvio cita os respetivos trabalhos preparatórios, que explicam que «o elevado preço dos terrenos gera uma ‘gentrificação’. Esta conclusão significa que os grupos populacionais com menores capacidades financeiras são excluídos do mercado pela entrada de grupos populacionais financeiramente mais fortes de outros municípios. Os grupos populacionais com menores capacidades financeiras não são apenas os socialmente mais fracos, mas também, muitas vezes, as jovens famílias ou as pessoas sós que têm muitas despesas mas ainda não estão em condições de acumular um capital suficiente».

32.

O Governo da Flandres precisa que a regulamentação nacional em causa visa essencialmente incentivar a habitação dos autóctones nas zonas de expansão habitacional, que o legislador do decreto considerou necessário para poder garantir o direito a uma habitação adequada e, por extensão, a coesão social, promovendo o ordenamento do território e não deixando que o tecido social e económico se desagregue.

33.

Considero que o decreto relativo à política fundiária e imobiliária tivesse realmente por objetivo incentivar a habitação da população autóctone com menores capacidades financeiras nos municípios-alvo esse objetivo poderia ser qualificado como objetivo social inerente à política de ordenamento do território. O Tribunal de Justiça já considerou que esse tipo de objetivo constitui uma razão imperiosa de interesse geral ( 10 ).

34.

Ora, importa ter presente que existem igualmente outras opiniões sobre o objetivo visado pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária. Neste sentido, o Governo da Comunidade Francesa alega que o objetivo real do referido decreto é não limitar os efeitos da gentrificação, mas preservar o caráter flamengo da população dos municípios-alvo. É evidente que esse objetivo não pode ser qualificado como uma razão imperiosa de interesse geral. A este respeito, recorde-se que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar o objetivo exato do decreto relativo à política fundiária e imobiliária.

35.

Examinarei agora se a condição da existência de uma conexão suficiente com o município-alvo é adequada para garantir a realização do objetivo de satisfazer as necessidades imobiliárias da população autóctone com menores capacidades financeiras e se esta medida não ultrapassa o necessário para atingir o referido objetivo.

36.

O artigo 5.2.1., n.o 2, do decreto relativo à política fundiária e imobiliária estabelece três critérios alternativos para que o requisito da existência de uma conexão suficiente com o município-alvo seja preenchido. O primeiro critério consiste na exigência de domicílio da pessoa a favor da qual o bem imobiliário deve ser transmitido no município-alvo durante, pelo menos, seis anos antes da transmissão. De acordo com o segundo critério, o candidato adquirente ou tomador deve realizar atividades no município em causa na data da transmissão. O terceiro critério prevê uma conexão profissional, familiar, social ou económica do candidato adquirente ou tomador com o município em causa em razão de uma circunstância séria e duradoura. É a comissão de avaliação regional que aprecia se o candidato adquirente ou tomador do bem imobiliário preenche um ou vários dos critérios indicados.

37.

É possível verificar que nenhum destes critérios reflete os aspetos socioeconómicos correspondentes ao objetivo de proteção da população autóctone com menores capacidades financeiras no mercado do imobiliário. Os referidos critérios impostos pelo legislador nacional beneficiam não só a população autóctone com menores capacidades financeiras mas também uma parte da população autóctone que dispõe de meios suficientes e, consequentemente, não tem nenhuma necessidade de proteção no mercado do imobiliário.

38.

Como já referi, a condição de uma conexão suficiente com o município-alvo significa, na realidade, a proibição imposta a certas pessoas, a saber, aquelas que não cumprem a referida condição, de adquirir ou arrendar por mais de nove anos os terrenos e imóveis neles edificados. Partilho da opinião apresentada pelo representante dos recorrentes no processo principal C-197/11, nas observações escritas, a saber, que existem outras medidas suscetíveis de ir ao encontro do objetivo prosseguido pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária sem conduzir necessariamente a uma proibição de aquisição ou de locação por outras pessoas. Refiram-se, por exemplo, subsídios à aquisição, uma regulação dos preços nos municípios-alvo ou medidas de acompanhamento adotadas pelas autoridades para a população autóctone protegida.

39.

Resulta do que precede que a condição de existência de uma conexão suficiente por parte do candidato adquirente ou tomador do bem imobiliário com o município-alvo que prevê o domicílio do candidato adquirente ou tomador no município-alvo durante, pelo menos, seis anos antes da transferência, ou a realização de atividades por parte do candidato adquirente ou tomador no município, ou ainda uma conexão profissional, familiar, social ou económica do candidato adquirente ou tomador em razão de uma circunstância séria e duradoura não constitui uma medida adequada para garantir a realização do objetivo de satisfazer as necessidades imobiliárias da população autóctone com menores capacidades financeiras. Mesmo que se admita que a condição da existência de uma conexão suficiente por parte do candidato adquirente ou tomador do bem imobiliário pode ser adequada para assegurar a realização do objetivo prosseguido pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária, esta medida excede o necessário para atingir o referido objetivo.

40.

No que respeita aos artigos 22.° e 24.° da Diretiva 2004/38, que visam facilitar o exercício do direito fundamental e individual de livre circulação e residência no território dos Estados-Membros atribuído diretamente aos cidadãos da União pelo Tratado e tem designadamente por objeto reforçar o referido direito ( 11 ), tenho dúvidas quanto à necessidade de analisar a legislação nacional em causa à luz das referidas disposições, tendo em conta o facto de as mesmas não conterem novas razões específicas que justifiquem uma restrição ao direito de livre circulação e residência no território dos Estados-Membros. Quanto ao artigo 24.o da Diretiva 2004/38, o mesmo constitui uma expressão específica da proibição geral de discriminação prevista pelo artigo 18.o TFUE.

41.

No que respeita ao artigo 22.o da Diretiva 2004/38, este define o âmbito de aplicação territorial do direito de livre circulação e residência no território dos Estados-Membros. A este propósito, pode haver algumas dúvidas associadas ao segundo período do referido artigo, segundo o qual «[o]s Estados-Membros só podem estabelecer restrições territoriais ao direito de residência e ao direito de residência permanente nos casos em que tais restrições se aplicam também aos seus próprios nacionais». No entanto, não é possível deduzir daí que as limitações territoriais são, em geral, admissíveis desde que se apliquem também aos nacionais do Estado-Membro de acolhimento e que, consequentemente, a referida disposição estabelece um novo motivo que justifique uma restrição do direito atribuído aos nacionais da União pelo Tratado. Com efeito, como justamente alega a Comissão, o segundo período do artigo 22.o da Diretiva 2004/38 contém uma condição complementar para que uma restrição ao direito de residência e ao direito de residência permanente possa ser justificada por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública, na aceção do artigo 27.o da mesma diretiva.

42.

À luz das observações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda que os artigos 21.° TFUE, 45.° TFUE, 56.° TFUE e 63.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que subordina, em determinados municípios, a transmissão dos terrenos e das construções neles edificadas à demonstração, pelo adquirente ou pelo tomador, de uma conexão suficiente com esses municípios, se a existência da referida conexão for avaliada de acordo com os seguintes critérios alternativos:

a exigência de residência há, pelo menos, seis anos, no município em causa, da pessoa a favor da qual o bem imobiliário deve ser transmitido;

a obrigação de o candidato adquirente ou tomador exercer atividades no município na data da transmissão; e

a existência de uma conexão profissional, familiar, social ou económica fundada numa circunstância séria e duradoura.

B — Quanto à primeira questão no processo C-203/11

43.

Esta questão diz respeito aos incentivos fiscais e aos mecanismos de subvenção previstos pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária. As medidas em causa podem ser divididas em dois grupos com objetivos diferentes. As medidas que fazem parte do primeiro grupo têm por objetivo reativar certos terrenos e imóveis. Trata-se da redução de imposto atribuída a um mutuante que celebre um contrato de renovação, previsto no artigo 3.1.3. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, e na redução da base tributável do direito de registo, prevista no artigo 3.1.10 do mesmo decreto ( 12 ). As medidas que fazem parte do segundo grupo compensam o encargo social imposto aos loteadores e aos construtores. Pertencem a este grupo a taxa reduzida do imposto sobre o valor acrescentado aplicável à venda de uma habitação e a taxa reduzida dos direitos de registo para a compra de um terreno destinado a construção, referidas no artigo 4.1.20, n.o 3, segundo parágrafo, do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, as subvenções relativas à infraestrutura referidas no artigo 4.1.23. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, bem como a garantia de aquisição, por um organismo de habitação social, da habitação social construída, referida no artigo 4.1.21 do decreto relativo à política fundiária e imobiliária.

44.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se as medidas em causa devem ser qualificadas como auxílios de Estado na aceção do artigo 107.o TFUE e, em caso de resposta afirmativa, em que momento devem ser notificadas à Comissão ou se, eventualmente, as referidas medidas estão isentas da obrigação de notificação dos auxílios de Estado nos termos da Decisão 2005/842.

1. Qualificação das medidas

45.

No que respeita à qualificação das medidas em causa como auxílios de Estado, o órgão jurisdicional de reenvio refere, adequadamente, a jurisprudência do Tribunal de Justiça que define o conceito de auxílio de Estado à luz das condições a seguir referidas. Em primeiro lugar, deve tratar-se de uma intervenção do Estado ou por meio de recursos estatais. Em segundo lugar, essa intervenção deve ser suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados-Membros. Em terceiro lugar, deve conceder uma vantagem ao seu beneficiário. Em quarto lugar, deve falsear ou ameaçar falsear a concorrência ( 13 ).

46.

Resulta da fundamentação da decisão de reenvio que o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à segunda condição, relativa à incidência sobre as trocas comerciais intracomunitárias, e quanto à terceira condição, relativa ao caráter vantajoso das medidas em causa.

47.

No que respeita à incidência das medidas em questão sobre as trocas comerciais intracomunitárias, recorde-se que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, tomando em consideração um conjunto de elementos de direito ou de facto pertinentes no caso em apreço, se as medidas concretas são suscetíveis de afetar as trocas comerciais intracomunitárias. Em minha opinião, a jurisprudência existente proporciona uma base suficiente para que o órgão jurisdicional de reenvio possa fazê-lo ( 14 ).

48.

Na aceção dessa jurisprudência, o órgão jurisdicional de reenvio deve analisar se as medidas em causa reforçam a posição das empresas beneficiárias relativamente a outras empresas concorrentes nas trocas comerciais intracomunitárias ( 15 ). No entanto, não é necessário que as próprias empresas beneficiárias participem nas trocas comerciais intracomunitárias. De facto, quando um Estado-Membro concede um auxílio a uma empresa, a produção interna pode ser mantida ou aumentada, resultando daí que as hipóteses de as empresas estabelecidas noutros Estados-Membros penetrarem no mercado deste Estado-Membro são diminuídas ( 16 ). Os auxílios de importância relativamente pequena podem também ser suscetíveis de afetar as trocas comerciais entre os Estados-Membros, sobretudo quando o setor em causa se caracteriza por uma forte concorrência ( 17 ). Finalmente, importa não esquecer que não é necessário demonstrar uma incidência real das medidas em causa sobre as trocas comerciais entre Estados-Membros e uma distorção efetiva da concorrência, bastando examinar se as referidas medidas são suscetíveis de fazê-lo ( 18 ).

49.

No que respeita ao caráter vantajoso das medidas em causa, entendo que esta parte da questão prejudicial visa, no essencial, obter a clarificação da jurisprudência ( 19 ) segundo a qual, quando uma intervenção estatal deva ser considerada uma compensação que representa a contrapartida das prestações efetuadas pelas empresas beneficiárias para cumprir obrigações de serviço público, de forma que estas empresas não beneficiam, na realidade, de uma vantagem financeira e que, portanto, a referida intervenção não tem por efeito colocar essas empresas numa posição concorrencial mais favorável em relação às empresas concorrentes, essa intervenção não constitui um auxílio de Estado na aceção do direito da União ( 20 ). No entanto, para que as medidas concretas possam escapar à qualificação de auxílios de Estado, devem estar reunidos quatro requisitos, denominados «requisitos do acórdão Altmark».

50.

Antes de analisar estes requisitos, importa salientar que a jurisprudência referida só pode ser aplicada em relação às medidas que compensam o encargo social imposto aos loteadores e construtores. O próprio Vlaamse Regering (Governo da Flandres) referiu, nas suas observações escritas, que o encargo social imposto aos loteadores e construtores constitui, além disso, um preço equitativo que eles devem pagar para poderem utilizar a autorização e para beneficiar das significativas vantagens económicas dela decorrentes.

51.

De acordo com o primeiro requisito do acórdão Altmark, a empresa beneficiária deve efetivamente ser incumbida do cumprimento de obrigações de serviço público e essas obrigações devem estar claramente definidas ( 21 ). Decorre daí que cumpre analisar se o encargo social imposto aos loteadores e construtores pode ser considerado uma obrigação de serviço público.

52.

Como explicou o Governo da Flandres nas suas observações escritas, o encargo social é imposto aos construtores e aos loteadores no âmbito de uma política que tem por objetivo poder proporcionar um acesso mais igualitário à habitação social aos grupos com menores capacidades financeiras e aos grupos socialmente desfavorecidos através de uma repartição territorial, assente nas necessidades reais, que não depende exclusivamente da iniciativa voluntária e da boa vontade dos atores. Nesta perspetiva, nada impede que o encargo social definido pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária seja considerado uma obrigação de serviço público. O facto de o referido encargo social não beneficiar diretamente os particulares, que procuram a habitação social, mas as sociedades de habitação social (que são a personificação do poder público), é irrelevante a este propósito. Como salientou o Governo alemão nas suas observações escritas, para que algo possa ser disponibilizado, há que criar necessariamente a respetiva base material. As sociedades de habitação social apenas intervêm como pontos de passagem administrativos e técnicos.

53.

De acordo com o segundo requisito do acórdão Altmark, os parâmetros com base nos quais é calculada a compensação devem ser previamente estabelecidos de forma objetiva e transparente ( 22 ). Este requisito parece ser problemático, sobretudo no que toca às subvenções relativas às infraestruturas e à garantia de aquisição das habitações sociais. Embora permita identificar os beneficiários destas medidas, em contrapartida, a regulamentação nacional mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio não permite identificar os parâmetros com base nos quais é calculado o referido tipo de compensação. No entanto, o Governo da Flandres descreve, nas suas observações escritas, o modo de cálculo desse tipo de compensação. Cabe, pois, ao órgão jurisdicional nacional apreciar se os parâmetros que servem para calcular as compensações referidas pelo Governo da Flandres cumprem o segundo requisito do acórdão Altmark.

54.

De acordo com o terceiro requisito do acórdão Altmark, a compensação não pode ultrapassar o necessário para cobrir total ou parcialmente os custos decorrentes do cumprimento das obrigações de serviço público ( 23 ). Ora, no caso em apreço, as medidas que compensam o encargo social não são calculadas em função do custo real da execução deste encargo. Por esta razão, parece-me possível que o custo final da conjugação das diferentes medidas que compensam o encargo social ultrapasse o montante dos custos relacionados com o cumprimento do referido encargo.

55.

De acordo com o quarto requisito do acórdão Altmark, quando a escolha da empresa que será encarregada do cumprimento de obrigações de serviço público, num caso concreto, não seja efetuada através de um processo de concurso público que permita selecionar o candidato capaz de fornecer esses serviços ao menor custo para a coletividade, o nível da compensação necessária deve ser determinado com base numa análise dos custos que uma empresa média, bem gerida e adequadamente equipada em meios de transporte para poder satisfazer as exigências de serviço público requeridas teria suportado para cumprir estas obrigações, tendo em conta as respetivas receitas assim como um lucro razoável relativo à execução destas obrigações ( 24 ). No caso em apreço, é evidente que os beneficiários das medidas compensatórias dos encargos sociais não foram designados no âmbito de um processo de concurso público. No entanto, não me parece resultar dos autos que tenha sido efetuada uma análise na aceção deste quarto requisito e que as medidas em causa sejam fixadas em função dos custos que uma empresa média corretamente gerida teria suportado no âmbito do cumprimento do encargo social.

2. Momento da notificação de um auxílio de Estado à Comissão

56.

Segundo o artigo 108.o, n.o 3, TFUE, para que possa apresentar as suas observações, a Comissão deve ser informada atempadamente dos projetos relativos à instituição ou alteração de quaisquer auxílios. Se esta última considerar que determinado projeto de auxílio não é compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107.o TFUE, deve sem demora dar início ao procedimento previsto no número anterior. O Estado-Membro em causa não pode pôr em execução as medidas projetadas antes de tal procedimento haver sido objeto de uma decisão final.

57.

Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a obrigação de notificação dos auxílios de Estado novos constitui um dos elementos fundamentais do sistema de controlo instituído pelo Tratado no domínio dos auxílios de Estado. No âmbito deste sistema, os Estados-Membros têm a obrigação, por um lado, de notificar a Comissão de cada medida destinada a instituir ou a alterar um auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, e, por outro, de não pôr em execução tal medida, nos termos do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, enquanto a referida instituição não tiver adotado uma decisão final sobre a mesma ( 25 ). O objeto da disposição introduzida pelo artigo 108.o, n.o 3, TFUE não é uma simples obrigação de notificação mas uma obrigação de notificação prévia que, como tal, comporta e implica o efeito suspensivo consagrado pela última frase deste n.o 3 ( 26 ).

58.

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se é o artigo 4.1.23. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, que prevê os subsídios relativos às infraestruturas, ou antes a decisão de execução do Governo da Flandres, que define as condições em que os referidos subsídios podem ser atribuídos, que deveria ter sido notificado à Comissão, na medida em que os referidos subsídios relativos às infraestruturas sejam qualificados como auxílios de Estado.

59.

Considero que a resposta é muito clara. A medida em causa já estava prevista pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária, apesar de os pormenores terem sido especificados pela decisão de execução. Por esta razão, para cumprir uma das obrigações decorrentes do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, o projeto de decreto relativo à política fundiária e imobiliária devia ter sido notificado à Comissão.

3. Isenção da obrigação de notificar à Comissão os auxílios de Estado novos

60.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se as medidas que compensam o encargo social imposto aos loteadores e construtores, presumindo que as referidas medidas devam ser qualificadas como auxílios de Estado, podem ser dispensadas da obrigação de notificação à Comissão na aceção da Decisão 2005/842.

61.

O artigo 3.o da Decisão 2005/842 declara que os auxílios de Estado sob a forma de compensações de serviço público que preencham os requisitos fixados pelos artigos 4.° a 6.° da mesma decisão são compatíveis com o mercado comum e estão isentos da obrigação de notificação. Partilho da opinião do órgão jurisdicional de reenvio segundo a qual estes requisitos parecem inspirar-se nos três primeiros requisitos do acórdão Altmark.

62.

Como já foi alegado, considero que, mais especialmente, o terceiro requisito do acórdão Altmark não está preenchido no presente caso. Este requisito, de acordo com o qual a compensação não pode ir além do necessário para cobrir total ou parcialmente os custos decorrentes do cumprimento das obrigações de serviço público, figura igualmente no artigo 5.o da Decisão 2005/842. Resulta daí que as medidas que compensam o encargo social não podem beneficiar da exceção da obrigação de notificação à Comissão na aceção da Decisão 2005/842, uma vez que devem ser qualificadas como auxílio de Estado por não preencherem o terceiro requisito do acórdão Altmark.

63.

À luz das observações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça que responda que os artigos 107.° TFUE e 108.° TFUE, em conjugação com a Decisão 2005/842, devem ser interpretados no sentido de que impõem a comunicação à Comissão Europeia das medidas previstas nos artigos 3.1.3, 3.1.10, 4.1.20, § 3, n.o 2, 4.1.21 e 4.1.23 do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, antes da adoção das referidas disposições, desde que se verifique que as referidas medidas são suscetíveis de afetar as trocas comerciais intracomunitárias e não preenchem os requisitos estabelecidos no acórdão Altmark.

C — Quanto à segunda, nona e décima questões apresentadas no processo C-203/11

64.

Este conjunto de questões incide sobre um encargo social que, na aceção do artigo 4.1.16. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, obriga os loteadores ou os construtores a atuarem para que haja uma oferta de habitações sociais.

65.

O órgão jurisdicional de reenvio não tem nenhuma dúvida quanto à qualificação de um encargo social como sendo uma restrição às liberdades fundamentais não discriminatória. As suas dúvidas prendem-se com a questão de saber, primeiro, a liberdade fundamental à luz da qual o referido encargo social deve ser controlado e, segundo, se um encargo social enquanto restrição das liberdades fundamentais pode ser justificado por uma razão imperiosa de interesse geral.

66.

A título preliminar, cumpre referir que, à semelhança da única questão no processo C-197/11 e da segunda questão no processo C-203/11, o Governo da Flandres chama a atenção para o facto de os litígios perante o órgão jurisdicional de reenvio terem por objeto uma situação puramente interna. A este respeito, remeto para as minhas observações anteriores ( 27 ).

67.

Quanto à liberdade em relação à qual importa controlar o regime de um encargo social, é verdade que se pode identificar a influência de um encargo social tanto sobre a liberdade de estabelecimento como sobre a livre prestação dos serviços e sobre a livre circulação dos capitais.

68.

No entanto, partilho da opinião da Comissão segundo a qual, no caso de um encargo social, a livre circulação dos capitais prevalece, tendo em conta que a restrição da liberdade de estabelecimento e da livre circulação de serviços não é senão uma consequência inevitável da restrição da livre circulação dos capitais.

69.

A regulamentação nacional prevê que o encargo social pode ser cumprido quer em espécie, ou seja, pela construção de uma habitação social, quer através da venda de terrenos a um organismo de habitação social, quer através da locação de habitações construídas a uma agência de arrendamento social, ou, por último, através do pagamento de uma contribuição social. Há que admitir, como indicou o órgão jurisdicional de reenvio, que essa regulamentação tem condições para dissuadir os nacionais de um Estado-Membro de investirem noutro Estado-Membro no setor imobiliário, atendendo a que não podem utilizar livremente os terrenos para os fins para os quais pretendem adquiri-los. Segundo jurisprudência constante, os movimentos de capitais compreendem as operações mediante as quais os não residentes efetuam investimentos imobiliários no território de um Estado-Membro. Por outras palavras, o direito de adquirir, explorar e alienar bens imóveis no território de outro Estado-Membro gera, quando exercido, movimentos de capitais ( 28 ).

70.

Mesmo que constitua uma restrição à livre circulação de capitais, um encargo social pode ser justificado por razões imperiosas de interesse geral, desde que seja adequado para garantir a realização do objetivo que prossegue e não ultrapasse o necessário para atingir esse objetivo ( 29 ).

71.

Assim sendo, há que determinar o objetivo da regulamentação em causa e apreciar se o mesmo pode ser qualificado como uma razão imperiosa de interesse geral.

72.

Segundo o Governo da Flandres, a regulamentação que impõe um encargo social aos loteadores e aos construtores responde a um problema real, mais precisamente a uma escassez gritante de habitação a preços acessíveis. Parece, assim, tratar-se de um encargo social relacionado com a política de habitação social de um Estado-Membro e com o respetivo financiamento, o que o Tribunal de Justiça já reconheceu como sendo uma razão imperiosa de interesse geral ( 30 ). No entanto, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar o objetivo exato da regulamentação em causa.

73.

Incumbe também ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se um encargo social respeita o princípio de proporcionalidade ou, por outras palavras, se é adequado para garantir um crescimento da oferta de habitação social e se o objetivo determinado não pode ser prosseguido por medidas menos restritivas na perspetiva da livre circulação dos capitais.

74.

Com vista a esta apreciação, as estatísticas das administrações da Flandres invocadas na audiência pelo representante dos recorrentes no processo principal no processo C-230/11 podem ser úteis. De facto, decorre destas estatísticas que o decreto relativo à política fundiária e imobiliária que impõe o encargo social aos loteadores e aos construtores tem, na realidade, um impacto negativo no setor da habitação social.

75.

À luz das observações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda que o artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação que tem como consequência associar automaticamente à emissão de uma licença de construção ou de loteamento relativa a um projeto com uma determinada dimensão mínima um «encargo social» que consiste na construção, correspondente a uma determinada percentagem do projeto, de habitações sociais que devem ser posteriormente vendidas, a preços limitados, a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição, sempre que se verifique que esta legislação não satisfaz o princípio de proporcionalidade.

D — Quanto à terceira, quarta, quinta, sexta, sétima e oitava questões apresentadas no processo C-203/11

76.

Com este conjunto de questões, o órgão jurisdicional de reenvio pede que sejam interpretadas certas disposições da Diretiva 2006/123.

77.

No entanto, nos termos do nono considerando da Diretiva 2006/123, esta diretiva não é aplicável nem à regulamentação em matéria de ordenamento do território, nem à regulamentação matéria de ordenamento urbano e rural. Além disso, o artigo 2.o, n.o 2, alínea j), da Diretiva 2006/123 indica expressamente que a mesma não é aplicável aos serviços sociais no setor da habitação.

78.

Em minha opinião, o decreto relativo à política fundiária e imobiliária constitui a legislação em matéria de ordenamento ou desenvolvimento do território bem como a legislação em matéria de ordenamento urbano e rural.

79.

Por esta razão, considero que não há que responder às questões relativas à Diretiva 2006/123.

E — Quanto à décima primeira questão no processo C-203/11

80.

Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que interprete o conceito de «contrato de empreitada de obras públicas» estabelecido no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2004/18. Mais exatamente, pretende saber se há um contrato de empreitada de obras públicas no caso de uma legislação que subordina a emissão de uma licença de construção ou de loteamento a um encargo social que consiste na construção de habitações sociais que devem posteriormente ser vendidas, a preços limitados, a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição.

81.

O decreto relativo à política fundiária e imobiliária considera um encargo social como condição da emissão de uma licença de construção ou de loteamento. Embora o artigo 4.1.17. do referido decreto estabeleça várias possibilidades para o cumprimento do referido encargo, a décima primeira questão tem apenas por objeto o encargo social executado em espécie, isto é, sob a forma de construção de habitações sociais.

82.

Importa recordar que a definição de um contrato de empreitada de obras públicas recai no âmbito do direito da União ( 31 ). Na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2004/18, são requeridas quatro características para que se possa falar de contrato de empreitada de obras públicas. Em primeiro lugar, deve ser demonstrada a existência de um contrato celebrado por escrito. Em segundo lugar, deve tratar-se de um contrato a título oneroso. Em terceiro lugar, as partes contratantes devem ser um ou mais operadores económicos, por um lado, e uma ou mais entidades adjudicantes, por outro. Em quarto lugar, o objeto de um contrato deve ser quer a execução, quer conjuntamente a conceção e a execução, de trabalhos relacionados com uma das atividades mencionadas no anexo I ou com uma obra, quer ainda a realização, por qualquer meio, de uma obra que satisfaça as necessidades especificadas pela entidade adjudicante.

83.

Considero que, no presente caso, a primeira das características referidas, a saber, a existência de um contrato celebrado por escrito, se mostra problemática, devido ao facto de o encargo social ser imposto aos loteadores e aos donos de obra pelo decreto relativo à política fundiária e imobiliária. Como indicou o órgão jurisdicional de reenvio, a legislação nacional prevê um acordo de administração celebrado entre o construtor ou o loteador e a sociedade de habitação social. No entanto, a referida legislação indica, ao mesmo tempo, que este acordo de administração apenas diz respeito à comercialização das habitações sociais já construídas, e não à construção de habitações sociais.

84.

Embora incumba ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, no presente caso, existiu um contrato celebrado por escrito, posso referir alguns elementos resultantes da jurisprudência do Tribunal de Justiça que lhe podem ser úteis.

85.

Antes de mais, quero chamar a atenção para o acórdão Ordine degli Architetti e o. ( 32 ). Nele, o Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido de que o facto de os poderes públicos não terem possibilidade de escolher a sua parte contratante não pode, por si só, justificar a não aplicação da Diretiva 2004/18, porque isso conduziria a excluir da concorrência comunitária a realização de uma obra a que, de outro modo, esta diretiva se aplicaria ( 33 ).

86.

No caso em apreço, trata-se de uma situação similar, tendo em conta que o encargo social que consiste na construção de habitações sociais está legalmente associado a uma licença de loteamento ou a uma licença de urbanização. No entanto, importa não esquecer que, no processo que deu lugar ao acórdão Ordine degli Architetti e o., o Tribunal de Justiça salientou o facto de que, em qualquer caso, deve ser celebrado um acordo de loteamento entre a administração municipal e o operador económico. No presente caso, entendemos a legislação nacional no sentido de que não prevê a celebração de um contrato para o cumprimento do encargo social. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio analisar se é realmente isso que se passa.

87.

Em minha opinião, importa ainda evocar uma observação constante do acórdão Ordine degli Architetti e o. Nele, o Tribunal de Justiça refere que «o objetivo primordial da diretiva […] é […] a abertura dos mercados de empreitadas de obras públicas a uma concorrência efetiva. Com efeito, é a abertura à concorrência comunitária segundo os procedimentos previstos pela diretiva que garante a ausência de risco de favoritismo por parte dos poderes públicos» ( 34 ). A este respeito, tenho algumas dúvidas quanto à questão de saber como o encargo social pode favorecer os loteadores e os construtores. A petição no processo principal C-203/11 revela que mesmo os operadores económicos aos quais é aplicável o encargo social consideram que o referido encargo prejudica a sua situação. Do mesmo modo, o próprio órgão jurisdicional de reenvio referiu no reenvio prejudicial que um encargo social cumprido em espécie implica sempre um prejuízo em relação aos loteadores e aos construtores.

88.

Seguidamente, o segundo acórdão para o qual gostaria de chamar a atenção é o acórdão proferido no processo Asociación Profesional de Empresas de Reparto y Manipulado de Correspondencia ( 35 ). Nele, o Tribunal de Justiça declarou que, para concluir que não existe um contrato na aceção da legislação relativa à contratação pública, o órgão jurisdicional de reenvio deve, designadamente, examinar se o operador económico dispõe de capacidade para negociar com a entidade adjudicante o conteúdo concreto das prestações a fornecer, bem como as tarifas que lhes são aplicáveis, e se este operador tem, no que toca aos serviços não reservados, a faculdade de se libertar das obrigações decorrentes do acordo de colaboração através do cumprimento do pré-aviso nele previsto ( 36 ).

89.

À semelhança do processo que deu lugar ao acórdão Ordine degli Architetti e o, já referido, e, em minha opinião, contrariamente ao presente caso, no processo que deu lugar ao acórdão Asociación Profesional de Empresas de Reparto y Manipulado de Correspondencia, já referido, foi celebrado um certo tipo de contrato entre a administração pública e o operador privado. Mais especificamente, tratava-se de um acordo de colaboração. Coloca-se a questão de saber se esse acordo constitui efetivamente um contrato na aceção da regulamentação relativa à contratação pública, tendo em conta que o operador económico não teve nenhuma possibilidade de recusar celebrar tal acordo.

90.

Resulta do acórdão Asociación Profesional de Empresas de Reparto y Manipulado de Correspondencia que, no presente caso, se o órgão jurisdicional de reenvio concluísse, em relação ao encargo social, pela existência de uma certa relação contratual entre um sujeito suscetível de ser qualificado de poder adjudicante e um loteador ou um construtor o referido órgão jurisdicional devia analisar se a liberdade contratual de um loteador ou de um construtor não foi limitada no sentido de que não tinha capacidade para negociar o conteúdo concreto das suas prestações e os preços que lhes são aplicáveis.

91.

Com base na interpretação que pode ser dada à legislação nacional em causa, considero que a capacidade de negociar o preço a aplicar às obras executadas é limitada. No caso vertente, o preço das obras executadas consiste no preço de venda de uma habitação social a uma sociedade de habitação social. O referido preço é limitado pela legislação nacional e não corresponde ao preço de mercado.

92.

Tendo em conta o que precede, considero que cabe responder à décima primeira questão que o conceito de «contrato público» referido no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2004/18, deve ser interpretado no sentido de que é aplicável a uma legislação que tenha por efeito associar automaticamente a uma licença de urbanização ou de loteamento relativa a um projeto com uma determinada dimensão mínima um encargo social que consiste na construção de habitações sociais que, em seguida, devem ser vendidas, a preços limitados, a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição, na condição de, primeiro, a referida legislação prever a existência de um contrato celebrado entre um poder adjudicante e um operador económico e, segundo, o operador económico dispor da possibilidade real de negociar com o poder adjudicante o conteúdo do referido contrato e o preço a aplicar às obras realizadas.

V — Conclusão

93.

Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões apresentadas pela Cour constitutionnelle:

«1)

Os artigos 21.° TFUE, 45.° TFUE, 56.° TFUE e 63.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que subordina, em determinados municípios, a transmissão dos terrenos e das construções neles edificadas à demonstração, pelo adquirente ou pelo tomador, de uma conexão suficiente com esses municípios, se a existência da referida conexão for avaliada de acordo com os seguintes critérios alternativos:

a exigência de residência há, pelo menos, seis anos, no município em causa, da pessoa a favor da qual o bem imobiliário deve ser transmitido;

a obrigação de o candidato adquirente ou tomador exercer atividades no município na data da transmissão; e

a existência de uma conexão profissional, familiar, social ou económica fundada numa circunstância séria e duradoura.

2)

Os artigos 107.° TFUE e 108.° TFUE, em conjugação com a Decisão 2005/842/CE da Comissão, de 28 de novembro de 2005, relativa à aplicação do n.o 2 do artigo 86.o do Tratado CE aos auxílios estatais sob a forma de compensação de serviço público concedidos a certas empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral, devem ser interpretados no sentido de que impõem a comunicação à Comissão Europeia das medidas previstas nos artigos 3.1.3, 3.1.10, 4.1.20, § 3, segundo parágrafo, 4.1.21 e 4.1.23 do decreto relativo à política fundiária e imobiliária, antes da adoção das referidas disposições, sempre que se verifique que as referidas medidas são suscetíveis de afetar as trocas comerciais intracomunitárias e não preenchem os requisitos estabelecidos no acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C-280/00, Colet., p. I-7747).

3)

O artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação que tem como consequência associar automaticamente à emissão de uma licença de construção ou de loteamento relativa a um projeto com uma determinada dimensão mínima um ‘encargo social’ que consiste na construção, correspondente a uma determinada percentagem do projeto, de habitações sociais que, em seguida, devem ser vendidas, a preços limitados, a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição, sempre que se verifique que esta legislação não satisfaz o princípio de proporcionalidade.

4)

O conceito de ‘contrato público’ referido no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretado no sentido de que é aplicável a uma legislação que tenha por efeito associar automaticamente a uma licença de urbanização ou de loteamento relativa a um projeto com uma determinada dimensão mínima um encargo social que consiste na construção de habitações sociais que, em seguida, devem ser vendidas, a preços limitados, a um organismo público ou por um organismo público em regime de substituição, na condição de, primeiro, a referida legislação prever a existência de um contrato celebrado entre um poder adjudicante e um operador económico e, segundo, o operador económico dispor da possibilidade real de negociar com o poder adjudicante o conteúdo do referido contrato e o preço a aplicar às obras realizadas.»


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO L 134, p. 114.

( 3 ) JO L 158, p. 77.

( 4 ) JO L 376, p. 36.

( 5 ) JO L 312, p. 67.

( 6 ) A este respeito, importa salientar que, na audiência, o representante do Governo da Comunidade Francesa salientou que o órgão jurisdicional de reenvio tinha decidido diversas vezes que um recorrente que demonstrasse o seu interesse num recurso não tinha o dever de, além disso, provar o seu interesse específico num fundamento suscitado nesse mesmo recurso.

( 7 ) V., neste sentido, acórdão de 19 de julho de 2012, Garkalns (C-470/11, n.o 17 e jurisprudência referida).

( 8 ) V., neste sentido, acórdãos de 14 de janeiro de 1988, Comissão/Itália (63/86, Colet., p. 29, n.o 15), e de 1 de dezembro de 2011, Comissão/Hungria (C-253/09, Colet., p. I-12391, n.o 67).

( 9 ) V. acórdão de 1 de dezembro de 2011, Comissão/Hungria, já referido na nota 8 (n.o 69).

( 10 ) V., neste sentido, acórdãos de 5 de março de2002, Reisch e o. (C-515/99, C-519/99 a C-524/99 e C-526/99 a C-540/99, Colet., p. I-2157, n.o 34); de 23 de setembro de 2003, Ospelt e Schlössle Weissenberg (C-452/01, Colet., p. I-9743, n.os 38 e 39); de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius (C-567/07, Colet., p. I-9021, n.o 30); e de 24 de março de 2011, Comissão/Espanha (C-400/08, Colet., p. I-1915, n.o 74).

( 11 ) V. acórdão de 15 de novembro de 2011, Dereci e o. (C-256/11, Colet., p. I-11315, n.o 50 e jurisprudência referida).

( 12 ) Os recorrentes no processo principal impugnaram também perante o órgão jurisdicional de reenvio as subvenções destinadas a projetos de ativação referidas no artigo 3.1.2. do decreto relativo à política fundiária e imobiliária. O órgão jurisdicional de reenvio já determinou que esta medida constitui um auxílio de minimis na aceção do Regulamento (CE) n.o 1998/2006 da Comissão, de 15 de dezembro de 2006, relativo à aplicação dos artigos 87.° e 88.° do Tratado aos auxílios de minimis (JO L 379, p. 5), que está excluído do conceito de auxílio de Estado.

( 13 ) V. acórdãos de 29 de março de 2012, 3M Itália (C-417/10, n.o 37), e de 10 de junho de 2010, Fallimento Traghetti del Mediterraneo (C-140/09, Colet., p. I-5243, n.o 31 e jurisprudência referida).

( 14 ) A análise constante da decisão de reenvio prova que o órgão jurisdicional de reenvio está bem a par desta jurisprudência.

( 15 ) V., neste sentido, acórdãos de 30 de abril de 2009, Comissão/Itália e Wam (C-494/06 P, Colet., p. I-3639, n.o 52), e de 10 de janeiro de2006, Cassa di Risparmio di Firenze e o. (C-222/04, Colet., p. I-289, n.o 141 e jurisprudência referida).

( 16 ) V., neste sentido, acórdão de 8 de setembro de 2011, Paint Graphos e o. (C-78/08 a C-80/08, Colet., p. I-7611, n.o 80 e jurisprudência referida).

( 17 ) V., neste sentido, acórdão de 21 de março de1991, Itália/Comissão (303/88, Colet., p. I-1433, n.o 27).

( 18 ) V., neste sentido, acórdão de 10 de janeiro de 2006, Cassa di Risparmio di Firenze e o., já referido na nota 15 (n.o 140 e jurisprudência referida).

( 19 ) Devo, no entanto, salientar, a este respeito, que o órgão jurisdicional de reenvio pede não a interpretação das disposições do direito da União, mas a aplicação da interpretação já efetuada ao caso concreto. A prova disso é a análise detalhada da jurisprudência pertinente constante da decisão de reenvio. No entanto, o Tribunal de Justiça também não é competente para apreciar a matéria de facto no processo principal, nem para aplicar a medidas ou a situações nacionais as regras da União cuja interpretação fornece, sendo estas questões da competência exclusiva do órgão jurisdicional nacional (acórdão de 10 de junho de 2010, Fallimento Traghetti del Mediterraneo, já referido na nota 13 (n.o 22).

( 20 ) V. acórdãos de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C-280/00, Colet., p. I-7747, n.o 87), e de 10 de junho de 2010, Fallimento Traghetti del Mediterraneo, já referido na nota 13 (n.o 35 e jurisprudência referida).

( 21 ) V. acórdão de 10 de junho de 2010, Fallimento Traghetti del Mediterraneo, já referido na nota 13 (n.o 35).

( 22 ) V. acórdão de 10 de junho de 2010, Fallimento Traghetti del Mediterraneo, já referido na nota 13 (n.o 35).

( 23 ) V. acórdão de 10 de junho de 2010, Fallimento Traghetti del Mediterraneo, já referido na nota 13 (n.o 35).

( 24 ) V. acórdão de 24 de julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg, já referido na nota 20 (n.o 93).

( 25 ) V., neste sentido, acórdão de 8 de dezembro de 2011, France Télécom/Comissão (C-81/10 P, Colet., p. I-12899, n.o 58).

( 26 ) V., neste sentido, acórdão de 22 de junho de 2000, França/Comissão (C-332/98, Colet., p. I-4833, n.o 32).

( 27 ) V. n.os 23 e 24 das presentes conclusões.

( 28 ) V. acórdão de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius, já referido na nota 10 (n.o 20 e jurisprudência referida).

( 29 ) Ibidem (n.o 25 e jurisprudência referida).

( 30 ) V. acórdão de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius, já referido na nota 10 (n.o 30).

( 31 ) V., neste sentido, acórdão de 18 de janeiro de 2007, Auroux e o. (C-220/05, Colet., p. I-385, n.o 40).

( 32 ) Acórdão de 12 de julho de 2001 (C-399/98, Colet., p. I-5409).

( 33 ) Ibidem (n.o 75).

( 34 ) Acórdão de 12 de julho de 2001, Ordine degli Architetti e o., já referido na nota 32 (n.o 75).

( 35 ) Acórdão de 18 de dezembro de 2007 (C-220/06, Colet., p. I-12175).

( 36 ) Acórdão de 18 de dezembro de 2007, Asociación Profesional de Empresas de Reparto y Manipulado de Correspondencia, já referido na nota 35 (n.o 55).