DESPACHO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)
21 de março de 2013 (*)
«Artigo 99.° do Regulamento de Processo – Seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Diretivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE – Direito a indemnização ao abrigo do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Responsabilidade civil do segurado – Contribuição do lesado para o dano – Exclusão ou limitação do direito a indemnização»
No processo C‑229/10,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Tribunal Cível da Comarca do Porto (Portugal), por decisão de 15 de abril de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 10 de maio de 2010, no processo
Maria Alice Pendão Lapa Costa Ferreira,
Alexandra Pendão Lapa Ferreira
contra
Companhia de Seguros Tranquilidade SA,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),
composto por: A. Rosas, presidente de secção, D. Šváby (relator) e C. Vajda, juízes,
advogado‑geral: N. Jääskinen,
secretário: A. Calot Escobar,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de decidir por meio de despacho fundamentado, em conformidade com o artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,
profere o presente
Despacho
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113; a seguir «Primeira Diretiva»), da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (JO 1984, L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244; a seguir «Segunda Diretiva»), da Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis (JO L 129, p. 33, a seguir «Terceira Diretiva»), da Diretiva 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de maio de 2000, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis e que altera as Diretivas 73/239/CEE e 88/357/CEE do Conselho (Quarta Diretiva sobre o seguro automóvel) (JO L 181, p. 65), e da Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, que altera as Diretivas 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/26/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho] relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (JO L 149, p. 14).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M. A. Pendão Lapa Costa Ferreira, agindo em nome próprio e na qualidade de representante da sua filha menor Alexandra Pendão Lapa Ferreira, à Companhia de Seguros Tranquilidade SA (a seguir «Tranquilidade»), a respeito da indemnização por esta última, a título da responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, dos danos sofridos pelas demandantes no processo principal, em consequência de um acidente de viação.
Quadro jurídico
Direito da União
3 Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva:
«Cada Estado‑Membro […] adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.»
4 O artigo 2.°, n.° 1, da Segunda Diretiva dispõe:
«Cada Estado‑Membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o n.° 1 do artigo 3.° da [Primeira Diretiva], que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:
– pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer;
ou
– pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa;
ou
– pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa;
seja, por aplicação do n.° 1 do artigo 3.° da [Primeira Diretiva], considerada sem efeito no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro.
Todavia, a disposição ou a cláusula a que se refere o primeiro travessão do n.° 1 pode ser oponível às pessoas que, por sua livre vontade se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que a seguradora possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo tinha sido furtado.
Os Estados‑Membros têm a faculdade – relativamente aos sinistros ocorridos no seu território – de não aplicar o disposto no n.° 1 no caso de, e na medida em que, a vítima possa obter a indemnização pelo seu prejuízo através de um organismo de segurança social.»
5 O artigo 1.° da Terceira Diretiva dispõe:
«Sem prejuízo do n.° 1, segundo parágrafo, do artigo 2.° da [Segunda Diretiva], o seguro referido no n.° 1 do artigo 3.° da [Primeira Diretiva] cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo.
[...]»
6 Nos termos do artigo 1.°‑A da Terceira Diretiva, introduzido pela Diretiva 2005/14:
«O seguro referido no n.° 1 do artigo 3.° da [Primeira Diretiva] assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações.»
7 O considerando 16 da Directiva 2005/14 dispõe:
«Os danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que constituem habitualmente a parte mais vulnerável num acidente, deverão ser cobertos pelo seguro obrigatório do veículo envolvido no acidente caso tenham direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. Esta disposição não condiciona a responsabilidade civil nem o nível da indemnização por um acidente específico, ao abrigo da legislação nacional.»
Direito português
8 Nos termos do artigo 503.°, n.° 1, do Código Civil:
«Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.»
9 O artigo 504.°, n.° 1, desse código dispõe:
«A responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas.»
10 Nos termos do artigo 505.° do referido código:
«Sem prejuízo do disposto no artigo 570.°, a responsabilidade fixada pelo n.° 1 do artigo 503.° só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.»
11 O artigo 570.° do mesmo código prevê:
«1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.»
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
12 Em 11 de abril de 2002, Alexandra Pendão Lapa Ferreira, filha menor da demandante no processo principal, então com dez anos, e outra menor foram atropeladas por um veículo automóvel segurado pela Tranquilidade.
13 O Tribunal Cível da Comarca do Porto expõe, a este respeito, que, no momento do acidente, o semáforo estava vermelho para os peões e verde para a circulação dos veículos. Refere, no entanto, que a zona onde ocorreu o acidente era especialmente frequentada por crianças e jovens, que havia um sinal de trânsito a indicar a proximidade de uma escola, mas que, apesar da presença do referido sinal, o condutor do veículo continuou a circular a uma velocidade de 66 km/h.
14 Na sequência do acidente, M. A. Pendão Lapa Costa Ferreira, atuando em nome próprio e na qualidade de representante da sua filha menor, intentou uma acção no órgão jurisdicional de reenvio, contra a Tranquilidade, para obter a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do referido acidente.
15 O órgão jurisdicional de reenvio refere que, com base nos factos apurados e atendendo a que o atropelamento de que Alexandra Pendão Lapa Ferreira foi vítima lhe é exclusivamente imputável, resulta do disposto nos artigos 505.° e 570.° do Código Civil que os danos por ela sofridos e o dano sofrido pela sua mãe não podem ser indemnizados com fundamento na responsabilidade pelo risco resultante da circulação de veículos automóveis prevista no artigo 503.° do Código Civil.
16 O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade do regime de responsabilidade civil aplicável ao litígio no processo principal com as disposições do direito da União mencionadas nos n.os 3 a 6 do presente despacho.
17 Nestas condições, o Tribunal Cível da Comarca do Porto decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:
«1) É conforme com as Directivas Europeias Relativas ao Seguro Automóvel Obrigatório supra referidas, a interpretação do art.º 505.° do Código Civil, que estabelece que a responsabilidade pelo risco emergente da circulação de veículos é excluída em acidente, do qual o peão é o único e exclusivo responsável?
2) É conforme às mesmas Diretivas a interpretação do art.º 570.° do mesmo Código Civil, que estabelece que a indemnização pode ser reduzida ou excluída, com base na gravidade das culpas de ambas as partes, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento do dano?
3) E em caso afirmativo, aquelas Diretivas opõem‑se a uma interpretação que permita a limitação ou redução da indemnização, tendo‑se em conta a culpa do peão, por um lado, e o risco do veículo automóvel, por outro, na produção do sinistro?»
18 Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 2 de junho de 2010, foi suspensa a instância no presente processo até à prolação de acórdão no processo C‑409/09 (acórdão de 9 de junho de 2011, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, ainda não publicado na Coletânea). Na sequência da notificação do referido acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio indicou, por ofício recebido no Tribunal de Justiça em 22 de julho de 2011, que pretendia manter o seu pedido de decisão prejudicial.
19 Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 11 de agosto de 2011, foi suspensa a instância no presente processo até à prolação de acórdão no processo C‑300/10 (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, ainda não publicado na Coletânea).
Quanto às questões prejudiciais
20 Nos termos do artigo 99.° do seu Regulamento de Processo, quando a resposta a uma questão prejudicial possa ser claramente deduzida da jurisprudência, o Tribunal pode, a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, decidir pronunciar‑se por meio de despacho fundamentado.
21 Através das suas três questões, que importa analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que limita ou exclui o direito a indemnização do lesado num acidente no qual intervém um veículo automóvel, devido à contribuição, parcial ou exclusiva, desse lesado para a produção do dano.
22 Importa desde já observar que o artigo 1.°‑A da Terceira Diretiva, conforme alterada pela Diretiva 2005/14, não é aplicável ratione temporis aos factos no processo principal. Com efeito, esta disposição foi inserida na Terceira Diretiva pela Diretiva 2005/14, cujo artigo 7.° dispõe que a mesma entrava em vigor na data da sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia, ou seja, em 11 de junho de 2005, e cujo artigo 6.°, n.° 1, prevê que a diretiva devia ser transposta, o mais tardar, em 11 de junho de 2007. Ora, o acidente de viação que deu origem ao litígio no processo principal ocorreu em 11 de abril de 2002.
23 Do mesmo modo, importa referir que a Diretiva 2000/26 não é relevante no âmbito do presente litígio. Com efeito, como exposto no seu artigo 1.°, a mesma tem como objetivo o estabelecimento de disposições específicas aplicáveis às pessoas lesadas com direito a indemnização por qualquer perda ou dano sofridos em resultado de sinistros ocorridos num Estado‑Membro que não o seu Estado‑Membro de residência, causados pela circulação de veículos habitualmente estacionados e segurados num Estado‑Membro, enquanto, no caso vertente, todos os factos ocorreram num único Estado‑Membro.
24 Por conseguinte, há que considerar que a questão prejudicial visa apenas a interpretação dos artigos 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, 2.°, n.° 1, da Segunda Diretiva e 1.° da Terceira Diretiva.
25 A este respeito, importa recordar que o objetivo da Primeira e da Segunda Diretiva, como resulta do seu preâmbulo, é, por um lado, assegurar a livre circulação tanto dos veículos com estacionamento habitual no território da União Europeia como das pessoas que neles viajam e, por outro, garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (acórdãos de 28 de março de 1996, Ruiz Bernáldez, C‑129/94, Colet., p. I‑1829, n.° 13; de 14 de setembro de 2000, Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira, C‑348/98, Colet., p. I‑6711, n.° 24; de 17 de março de 2011, Carvalho Ferreira Santos, C‑484/09, Colet., p. I‑1821, n.° 24; e acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 23, e Marques Almeida, n.° 26).
26 A Primeira Diretiva, conforme precisada e completada pela Segunda e Terceira Diretivas, impõe assim aos Estados‑Membros a obrigação de assegurarem que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro e precisa, designadamente, os tipos de danos e os terceiros vítimas que este seguro deverá cobrir (v. acórdãos, já referidos, Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira, n.° 27; Carvalho Ferreira Santos, n.° 27; Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 24; e Marques Almeida, n.° 27).
27 Importa, porém, recordar que a obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, dos danos causados a terceiros por veículos automóveis é distinta da extensão da indemnização desses danos a título da responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela regulamentação da União, a segunda é regulada essencialmente pelo direito nacional (acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 25, e Marques Almeida, n.° 28).
28 A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas, como decorre do seu objeto e da sua redação, não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados‑Membros e que, no estado atual do direito da União, os Estados‑Membros conservam a liberdade de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos (acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 26, e Marques Almeida, n.° 29).
29 Assim sendo, os Estados‑Membros têm a obrigação de garantir que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, aplicável de acordo com o seu direito nacional, esteja coberta por um seguro conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas (acórdãos Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira, já referido, n.° 29; de 19 de abril de 2007, Farrell, C‑356/05, Colet., p. I‑3067, n.° 33; Carvalho Ferreira Santos, já referido, n.° 34; Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, já referido, n.° 27; e Marques Almeida, já referido, n.° 30).
30 Decorre igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados‑Membros devem exercer as suas competências neste domínio, no respeito do direito da União, e que as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas do seu efeito útil (acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 28, e Marques Almeida, n.° 31).
31 Como o Tribunal de Justiça já precisou, estas diretivas ficariam privadas desse efeito se, com fundamento na contribuição do lesado para a produção do dano, uma legislação nacional, definida com base em critérios gerais e abstratos, recusasse à vítima o direito de ser indemnizada pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis ou limitasse esse direito de modo desproporcionado. Por conseguinte, só em circunstâncias excecionais, com base numa apreciação individual, poderá este direito ser limitado (acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 29, e Marques Almeida, n.° 32).
32 O Tribunal de Justiça concluiu, assim, que o artigo 2.°, n.° 1, da Segunda Diretiva e o artigo 1.° da Terceira Diretiva se opõem a uma legislação nacional que permite negar ou limitar de modo desproporcionado, apenas com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, o direito do referido passageiro a ser indemnizado pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (acórdão Marques Almeida, já referido, n.° 33).
33 Todavia, importa salientar que, no litígio no processo principal, por um lado, diferentemente das circunstâncias que deram lugar ao acórdão de 30 de junho de 2005, Candolin e o. (C‑537/03, Colet., p. I‑5745), e ao acórdão Farrell, já referido, o direito a indemnização das vítimas de um acidente de viação é afetado, não devido a uma limitação da cobertura da responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis por disposições em matéria de seguro mas sim, à semelhança dos litígios que deram origem aos acórdãos, já referidos, Carvalho Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio e ainda Marques Almeida, devido ao regime nacional de responsabilidade civil em matéria de acidentes de circulação automóvel.
34 Com efeito, a legislação nacional em causa no processo principal visa apenas determinar o direito do lesado, assim como a eventual extensão desse direito, a uma indemnização a título da responsabilidade civil do segurado. Em contrapartida, não é suscetível de limitar a cobertura do seguro da responsabilidade civil no que respeita a um segurado.
35 Por outro lado, os artigos 503.° e 504.° do Código Civil preveem uma responsabilidade objetiva em caso de acidente de viação, mas, sem prejuízo do artigo 570.° deste código, a responsabilidade pelo risco, prevista no artigo 503.°, n.° 1, do mesmo, só é excluída, em conformidade com o seu artigo 505.°, quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior. O artigo 570.°, n.° 1, do Código Civil prevê que, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, este pode ser privado de parte ou da totalidade da indemnização, em função da apreciação que o tribunal competente fizer da gravidade das culpas de ambas as partes e das consequências que delas resultaram (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 32, e Marques Almeida, n.° 36).
36 Por outras palavras, a legislação nacional aplicável no âmbito de um litígio como o em causa no processo principal só pretende afastar a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima. Além disso, em caso de culpa do lesado que tenha concorrido para a produção do seu dano ou para o seu agravamento, a indemnização deste, nos termos dessa legislação, é afetada numa medida proporcional ao grau de gravidade dessa culpa (acórdão Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, já referido, n.° 33).
37 Contrariamente aos respetivos contextos jurídicos nos processos que deram lugar aos acórdãos, já referidos, Candolin e o. e Farrell, a mencionada legislação nacional não tem, portanto, por efeito, no caso de contribuição da vítima de um acidente de viação, em concreto, um peão menor envolvido nesse acidente, para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o direito que lhe assiste a uma indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis que cobre o condutor do veículo envolvido no acidente (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Carvalho Ferreira Santos, n.° 43, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 34, e Marques Almeida, n.° 37).
38 Em face das considerações expostas, há que concluir que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal não afeta a garantia, prevista no direito da União, de que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, determinada de acordo com o direito nacional aplicável, esteja coberta por um seguro conforme com a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas (v. acórdãos, já referidos, Carvalho Ferreira Santos, n.° 44, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n.° 34, e Marques Almeida, n.° 38).
39 Daqui decorre que há que responder às questões submetidas que a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito de a vítima de um acidente exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.
Quanto às despesas
40 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:
A Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito de a vítima de um acidente exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.
Assinaturas
* Língua do processo: português.