ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

1 de Julho de 2010 (*)

«Cooperação judiciária em matéria civil – Matérias matrimonial e de responsabilidade parental – Regulamento (CE) n.° 2201/2003 – Deslocação ilícita de uma criança – Medidas provisórias relativas ao ‘poder de decisão parental’ – Direito de guarda – Decisão que ordena o regresso da criança – Execução – Competência – Processo prejudicial com tramitação urgente»

No processo C‑211/10 PPU,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Áustria), por decisão de 20 de Abril de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 3 de Maio de 2010, no processo intentado por

Doris Povse

contra

Mauro Alpago,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász (relator), J. Malenovský e D. Šváby, juízes,

advogada‑geral: E. Sharpston,

secretário: K. Malacek, administrador,

visto o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente, em conformidade com o artigo 104.°‑B do Regulamento de Processo,

vista a decisão de 11 de Maio de 2010 da Terceira Secção de deferir o referido pedido,

vistos os autos e após a audiência de 14 de Junho de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer e A. Hable, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por D. Hadroušek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Russo, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo letão, por K. Drevina e E. Drobiševska, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo esloveno, por A. Vran e V. Klemenc, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por F. Penlington, na qualidade de agente, assistida por K. Smith, barrister,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e S. Grünheid, na qualidade de agentes,

ouvida a advogada‑geral,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1, a seguir «regulamento»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe D. Povse a M. Alpago, a propósito do regresso a Itália da filha de ambos, Sofia, que se encontra na Áustria com a mãe, e ao direito de guarda desta criança.

 Quadro jurídico

 Convenção da Haia de 1980

3        O artigo 3.° da Convenção da Haia, de 25 de Outubro de 1980, sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (a seguir «Convenção da Haia de 1980»), dispõe:

«A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:

a)      Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e

b)      Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.»

4        O artigo 12.° desta Convenção prevê:

«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.° e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.

A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.

Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para um outro Estado, pode então suspender o processo ou rejeitar o pedido para o regresso da criança.»

5        Nos termos do artigo 13.° da Convenção da Haia de 1980:

«Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a)      Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b)      Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar‑se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.»

 Regulamentação da União

6        O décimo sétimo considerando do regulamento precisa:

«Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar‑se a Convenção de Haia [de 1980], completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.° Os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor‑se ao seu regresso em casos específicos devidamente justificados. Todavia, tal decisão deve poder ser substituída por uma decisão posterior do tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Se esta última decisão implicar o regresso da criança, este deverá ser efectuado sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado‑Membro onde se encontra a criança raptada.»

7        O vigésimo primeiro considerando do regulamento enuncia:

«O reconhecimento e a execução de decisões proferidas num Estado‑Membro têm por base o princípio da confiança mútua e os fundamentos do não reconhecimento serão reduzidos ao mínimo indispensável.»

8        O vigésimo terceiro considerando do regulamento tem a seguinte redacção:

«O Conselho Europeu de Tampere afirmou, nas suas conclusões (ponto 34) que as decisões proferidas em litígios em matéria de direito da família deveriam ser ‘automaticamente reconhecidas em toda a União sem quaisquer procedimentos intermediários ou motivos de recusa de execução’. Por este motivo, as decisões relativas ao direito de visita e as decisões relativas ao regresso da criança que tenham sido homologadas no Estado‑Membro de origem nos termos do presente regulamento deverão ser reconhecidas e têm força executória em todos os outros Estados‑Membros sem necessidade de qualquer outra formalidade. As regras de execução destas decisões continuam a ser reguladas pelo direito interno.»

9        O vigésimo quarto considerando do regulamento enuncia:

«A certidão emitida para facilitar a execução da decisão não deverá ser susceptível de recurso. Só pode dar origem a uma acção de rectificação em caso de erro material, ou seja quando a certidão não reflicta correctamente o conteúdo da decisão.»

10      O artigo 2.° do regulamento contém, no seu n.° 11, uma definição do conceito de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança» que corresponde, no essencial, à prevista no artigo 3.°, primeiro parágrafo, da Convenção da Haia de 1980.

11      A secção 2, intitulada «Responsabilidade parental», do capítulo II do regulamento engloba os artigos 8.° a 15.° deste último. O artigo 8.° do regulamento, sob a epígrafe «Competência geral», prevê:

«1.      Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.      O n.° 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.°, 10.° e 12.°»

12      Nos termos do artigo 10.° do regulamento, que contém regras específicas relativas à competência em caso de rapto da criança:

«Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas[...] continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado‑Membro e:

a)      Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção;

         ou

b)      A criança ter estado a residir nesse outro Estado‑Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:

i)      não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado‑Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,

ii)      o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),

iii)      o processo instaurado num tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.° 7 do artigo 11.°,

iv)      os tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.»

13      O artigo 11.° do regulamento, intitulado «Regresso da criança», dispõe:

«1.      Os n.os 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na [Convenção da Haia de 1980], a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

2.      Ao aplicar os artigos 12.° e 13.° da Convenção da Haia de 1980, deve‑se providenciar no sentido de que a criança tenha a oportunidade de ser ouvida durante o processo, excepto se tal for considerado inadequado em função da sua idade ou grau de maturidade.

3.       O tribunal ao qual seja apresentado um pedido de regresso de uma criança, nos termos do disposto no n.° 1, deve acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional.

Sem prejuízo do disposto no primeiro parágrafo, o tribunal deve pronunciar‑se o mais tardar no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido, excepto em caso de circunstâncias excepcionais que o impossibilitem.

4.      O tribunal não pode recusar o regresso da criança ao abrigo da alínea b) do artigo 13.° da Convenção da Haia de 1980, se se provar que foram tomadas medidas adequadas para garantir a sua protecção após o regresso.

5.      O tribunal não pode recusar o regresso da criança se a pessoa que o requereu não tiver tido oportunidade de ser ouvida.

6.      Se um tribunal tiver proferido uma decisão de retenção, ao abrigo do artigo 13.° da Convenção da Haia de 1980, deve imediatamente enviar, directamente ou através da sua autoridade central, uma cópia dessa decisão e dos documentos conexos, em especial as actas das audiências, ao tribunal competente ou à autoridade central do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da sua retenção ou deslocação ilícitas, tal como previsto no direito interno. O tribunal deve receber todos os documentos referidos no prazo de um mês a contar da data da decisão de retenção.

7.      Excepto se uma das partes já tiver instaurado um processo nos tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da retenção ou deslocação ilícitas, o tribunal ou a autoridade central que receba a informação referida no n.° 6 deve notificá‑la às partes e convidá‑las a apresentar as suas observações ao tribunal, nos termos do direito interno, no prazo de três meses a contar da data da notificação, para que o tribunal possa analisar a questão da guarda da criança.

Sem prejuízo das regras de competência previstas no presente regulamento, o tribunal arquivará o processo se não tiver recebido observações dentro do prazo previsto.

8.      Não obstante uma decisão de retenção, proferida ao abrigo do artigo 13.° da Convenção da Haia de 1980, uma decisão posterior que exija o regresso da criança, proferida por um tribunal competente ao abrigo do presente regulamento, tem força executória nos termos da secção 4 do capítulo III, a fim de garantir o regresso da criança.»

14      O artigo 15.° do regulamento, intitulado «Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a acção», prevê:

«1.      Excepcionalmente, os tribunais de um Estado‑Membro competentes para conhecer do mérito podem, se considerarem que um tribunal de outro Estado‑Membro, com o qual a criança tenha uma ligação particular, se encontra mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspectos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança:

a)      Suspender a instância em relação à totalidade ou a parte do processo em questão e convidar as partes a apresentarem um pedido ao tribunal desse outro Estado‑Membro, nos termos do n.° 4; ou

b)      Pedir ao tribunal de outro Estado‑Membro que se declare competente nos termos do n.° 5.

[…]

5.      O tribunal desse outro Estado‑Membro pode, se tal servir o superior interesse da criança, em virtude das circunstâncias específicas do caso, declarar‑se competente no prazo de seis semanas a contar da data em que tiver sido instaurado o processo com base nas alíneas a) ou b) do n.° 1. Nesse caso, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar renuncia à sua competência. No caso contrário, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar continua a ser competente, nos termos dos artigos 8.° a 14.°

6.      Os tribunais devem cooperar para efeitos do presente artigo, quer directamente, quer através das autoridades centrais designadas nos termos do artigo 53.°»

15      O artigo 40.° do regulamento faz parte da secção 4, sob a epígrafe «Força executória de certas decisões em matéria de direito de visita e de certas decisões que exigem o regresso da criança», a qual integra o capítulo III, intitulado «Reconhecimento e execução». Este artigo, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», prevê:

«1.      A presente secção é aplicável:

[…]

b)      Ao regresso da criança, na sequência de uma decisão que exija o regresso da criança, nos termos do n.° 8 do artigo 11.°

2.      O disposto na presente secção não impede o titular da responsabilidade parental de requerer o reconhecimento e a execução de uma decisão, nos termos das secções 1 e 2 do presente capítulo.»

16      Nos termos do artigo 42.° do regulamento, intitulado «Regresso da criança»:

«1.      O regresso da criança referido na alínea b) do n.° 1 do artigo 40.°[...] resultante de uma decisão executória proferida num Estado‑Membro é reconhecido e goza de força executória noutro Estado‑Membro sem necessidade de qualquer declaração que lhe reconheça essa força e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento, se essa decisão tiver sido homologada no Estado‑Membro de origem, nos termos do n.° 2.

Mesmo se a legislação nacional não previr a força executória de pleno direito de uma decisão que exija o regresso da criança previsto no n.° 8 do artigo 11.°, o tribunal pode declarar a decisão executória, não obstante qualquer recurso.

2.      O juiz de origem que pronunciou a decisão referida na alínea b) do n.° 1 do artigo 40.° só emite a certidão referida no n.° 1[...] se:

a)      A criança tiver tido oportunidade de ser ouvida, excepto se for considerada inadequada uma audição, tendo em conta a sua idade ou grau de maturidade;

b)      As partes tiverem tido a oportunidade de ser ouvidas; e

c)      O tribunal, ao pronunciar‑se, tiver tido em conta a justificação e as provas em que assentava a decisão pronunciada ao abrigo do artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980.

Se o tribunal ou qualquer outra autoridade tomarem medidas para garantir a protecção da criança após o seu regresso ao Estado‑Membro onde reside habitualmente, essas medidas deverão ser especificadas na certidão.

O juiz de origem emite a referida certidão, por sua própria iniciativa, utilizando o formulário constante do Anexo IV (certidão relativa ao regresso da criança).

A certidão é redigida na língua da decisão.»

17      Nos termos do artigo 43.° do regulamento, sob a epígrafe «Acção de rectificação»:

«1.      A legislação do Estado‑Membro de origem é aplicável a qualquer rectificação da certidão.

2.      A emissão de uma certidão nos termos do n.° 1 do artigo 41.° ou do n.° 1 do artigo 42.° não é susceptível de recurso.»

18      O artigo 44.° do regulamento, intitulado «Efeitos da certidão», tem a seguinte redacção:

«A certidão só produz efeitos nos limites do carácter executório da decisão.»

19      O artigo 47.° do regulamento, sob a epígrafe «Processo de execução», prevê:

«1.       O processo de execução é regulado pela lei do Estado‑Membro de execução.

2.      Qualquer decisão proferida pelo tribunal de outro Estado‑Membro, e declarada executória nos termos da secção 2 ou homologada nos termos do n.° 1 do artigo 41.° ou do n.° 1 do artigo 42.°, é executada no Estado‑Membro de execução como se nele tivesse sido emitida.

Em particular, uma decisão homologada nos termos do n.° 1 do artigo 41.° ou do n.° 1 do artigo 42.° não pode ser executada em caso de conflito com uma decisão com força executória proferida posteriormente.»

20      O artigo 60.° do regulamento, intitulado «Relações com determinadas convenções multilaterais», dispõe que, nas relações entre os Estados‑Membros, este regulamento prevalece, nomeadamente, sobre a Convenção da Haia de 1980.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

21      Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que D. Povse e M. Alpago, casal que não contraiu matrimónio, tiveram residência conjunta até fins de Janeiro de 2008 com a filha do casal, Sofia, nascida em 6 de Dezembro de 2006, em Vittorio Veneto, em Itália. Nos termos do artigo 317.°‑A do Código Civil italiano, os progenitores tinham a guarda conjunta da criança. Em fins de Janeiro de 2008, o casal separou‑se e D. Povse saiu do domicílio comum com a sua filha Sofia. Apesar de o Tribunale per i Minorenni di Venezia (Tribunal de Menores de Veneza) (Itália), por decisão provisória e urgente proferida em 8 de Fevereiro de 2008 a pedido do pai, ter proibido a mãe de sair do país com a criança, aquela, em Fevereiro de 2008, deslocou‑se com a filha para a Áustria, onde ambas vivem desde então.

22      Em 16 de Abril de 2008, M. Alpago apresentou um pedido ao Bezirksgericht Leoben (Áustria) no sentido de obter o regresso a Itália da sua filha, com fundamento no artigo 12.° da Convenção da Haia de 1980.

23      Em 23 de Maio de 2008, o Tribunale per i Minorenni di Venezia proferiu uma decisão pela qual revogou a proibição de a mãe sair do território italiano com a criança e atribuiu, a título provisório, a guarda da criança a ambos os progenitores, especificando que, até ser proferida uma decisão definitiva, a criança podia residir na Áustria com a mãe, à qual esse tribunal atribuiu poderes para tomar «decisões de administração ordinária». Na mesma decisão provisória, o tribunal italiano previa que o pai devia participar nas despesas relativas à vida da criança, estabelecia as modalidades e os horários de visita concedidos a este último e ordenava uma peritagem por parte de um assistente social a fim de analisar as relações entre a criança e ambos os progenitores.

24      Apesar desta decisão, resulta de um relatório de 15 de Maio de 2008 do assistente social designado que as visitas do pai eram autorizadas pela mãe de forma mínima e insuficiente para lhe permitir avaliar as relações do pai com a sua filha, sobretudo do ponto de vista da sua capacidade parental, razão pela qual o referido assistente social considerou não poder realizar a sua missão de forma completa e no interesse da criança.

25      Em 3 de Julho de 2008, o Bezirksgericht Leoben indeferiu o pedido de M. Alpago de 16 de Abril de 2008, mas esta decisão foi anulada, em 1 de Setembro de 2008, pelo Landesgericht Leoben (Áustria), com fundamento no facto de M. Alpago não ter sido ouvido, em conformidade com o artigo 11.°, n.° 5, do regulamento.

26      Em 21 de Novembro de 2008, o Bezirksgericht Leoben indeferiu de novo o pedido de M. Alpago, com fundamento na decisão do Tribunale per i Minorenni di Venezia de 23 de Maio de 2008, na qual se previa que a criança podia permanecer provisoriamente com a mãe.

27      Em 7 de Janeiro de 2009, o Landesgericht Leoben confirmou a decisão de indeferimento do pedido de M. Alpago, invocando um risco grave de danos psíquicos para a criança, na acepção do artigo 13.°, alínea b), da Convenção da Haia de 1980.

28      D. Povse pediu ao Bezirksgericht Judenburg (Áustria), territorialmente competente, que lhe atribuísse a guarda da criança. Em 26 de Maio de 2009, esse tribunal, sem conceder a M. Alpago a faculdade de se pronunciar em conformidade com o princípio do contraditório, declarou‑se competente com fundamento no artigo 15.°, n.° 5, do regulamento e pediu ao Tribunale per i Minorenni di Venezia que renunciasse à sua própria competência.

29      Todavia, M. Alpago já havia apresentado, em 9 de Abril de 2009, no Tribunale per i Minorenni di Venezia, no quadro do processo pendente relativo ao direito de guarda, um pedido no sentido de que fosse ordenado o regresso da sua filha a Itália com fundamento no artigo 11.°, n.° 8, do regulamento. Numa audiência realizada nesse tribunal em 19 de Maio de 2009, D. Povse declarou estar disponível para participar num programa de encontros entre o pai e a filha, organizado pelo assistente social. Não revelou a sua diligência judicial junto do Bezirksgericht Judenburg, a qual conduziu à decisão de 26 de Maio de 2009, acima mencionada.

30      Em 10 de Julho de 2009, o Tribunale per i Minorenni di Venezia confirmou a sua própria competência, declarando que, em sua opinião, as condições de transferência da competência nos termos do artigo 10.° do regulamento não estavam preenchidas, e constatou que a peritagem do assistente social que havia ordenado não pôde ser concluída devido ao facto de a mãe não ter respeitado o plano que o referido assistente tinha estabelecido em matéria de visitas.

31      Além disso, na mesma decisão de 10 de Julho de 2009, o Tribunale per i Minorenni di Venezia ordenou o regresso imediato da criança a Itália e encarregou o serviço social da cidade de Vittorio Veneto, na hipótese de a mãe regressar com a criança, de disponibilizar alojamento a ambas e de estabelecer um plano de contactos com o pai. O tribunal pretendia, com esta posição, restabelecer os contactos entre a criança e o pai, que tinham sido interrompidos devido à atitude da mãe. Para o efeito, o Tribunale per i Minorenni di Venezia emitiu uma certidão com fundamento no artigo 42.° do regulamento.

32      Em 25 de Agosto de 2009, o Bezirksgericht Judenburg proferiu um despacho de providências cautelares, confiando provisoriamente a guarda da criança a D. Povse. Enviou por correio uma cópia deste despacho a M. Alpago, em Itália, sem o informar do direito que lhe assistia de recusar a sua recepção e sem lhe juntar uma tradução. Este despacho transitou em julgado em 23 de Setembro de 2009 e tem força executória em direito austríaco.

33      Em 22 de Setembro de 2009, M. Alpago requereu ao Bezirksgericht Leoben a execução da decisão do Tribunale per i Minorenni di Venezia de 10 de Julho de 2009, que ordenava o regresso da sua filha a Itália. O Bezirksgericht Leoben indeferiu este pedido com fundamento no facto de a execução da decisão do tribunal italiano apresentar um risco grave de perigo psíquico para a criança. Tendo M. Alpago interposto recurso desta decisão para o Landesgericht Leoben, este, com fundamento no acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 2008, Rinau (C‑195/08 PPU, Colect., p. I‑5271), reformou esta decisão e ordenou o regresso da criança.

34      D. Povse interpôs recurso de «Revision» da decisão do Landesgericht Leoben para o Oberster Gerichtshof, no qual requeria o indeferimento do pedido de execução. Este tribunal, tendo dúvidas sobre a interpretação do regulamento, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Uma medida provisória que atribui [o ‘poder de decisão parental’], em especial o direito de fixar o local de residência, ao progenitor que tenha [raptado a criança], até ser proferida a decisão definitiva sobre o direito de guarda, deve igualmente ser considerada uma ‘decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança’ na acepção do artigo 10.°, alínea b), iv), do [r]egulamento […]?

2)      A decisão que ordena o regresso só é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 11.°, n.° 8, do [regulamento] quando o tribunal ordena o regresso com base numa decisão que ele próprio tenha proferido sobre a guarda?

3)      Em caso de resposta afirmativa à [primeira questão] ou à [segunda questão]:

a)      É possível invocar, no Estado de execução, a incompetência do tribunal de origem ([primeira questão]) ou a inaplicabilidade do artigo 8.°, n.° 2, do [regulamento] ([segunda questão]) para se opor à execução de uma decisão em relação à qual o tribunal de origem emitiu a certidão prevista no artigo 42.°, n.° 2, do [regulamento]?

b)      Ou, nesse caso, deve o recorrido pedir a revogação da certidão no Estado de origem, podendo a execução ser suspensa no Estado de execução até ser proferida a decisão no Estado de origem?

4)      Em caso de resposta negativa [à primeira e segunda questões], ou à [terceira questão, alínea a)]:

Uma decisão proferida por um tribunal do Estado de execução, considerada executória por força do respectivo direito, através da qual a guarda provisória é atribuída ao progenitor que [raptou a criança], obsta, por força do artigo 47.°, n.° 2, do [regulamento], à execução de uma decisão de regresso proferida anteriormente no Estado de origem com base no artigo 11.°, n.° 8, do [regulamento], mesmo que não obste à execução de uma decisão de regresso proferida no Estado de execução com base na Convenção [da Haia de 1980]?

5)      Em caso de resposta igualmente negativa à [quarta questão]:

a)      A execução de uma decisão para a qual o tribunal de origem emitiu a certidão prevista no artigo 42.°, n.° 2, do [regulamento] pode ser recusada no Estado de execução se, desde que a decisão foi proferida, as circunstâncias se tiverem alterado de tal modo que a execução nesse momento pudesse pôr gravemente em risco o superior interesse da criança?

b)      Ou deve o recorrido invocar essas alterações de circunstâncias no Estado de origem, podendo a execução ser suspensa no Estado de execução até ser proferida a decisão no Estado de origem?»

 Quanto à tramitação urgente

35      O órgão jurisdicional de reenvio fundamentou o seu pedido de submeter o reenvio prejudicial à tramitação urgente prevista no artigo 104.°‑B do Regulamento de Processo alegando que os contactos entre a criança e o pai foram interrompidos. Assim, uma decisão tardia sobre a execução da decisão do Tribunale per i Minorenni di Venezia de 10 de Julho de 2009, que ordenava o regresso da criança a Itália, agravaria o estado de deterioração das relações entre pai e filha e aumentaria, por conseguinte, o risco de danos psíquicos no caso de esta ser obrigada a regressar a Itália.

36      Sob proposta do juiz‑relator, ouvida a advogada‑geral, a Terceira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 11 de Maio de 2010, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente.

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

37      É pacífico que, no processo principal, está em causa a deslocação ilícita de uma criança, na acepção do artigo 3.°, primeiro parágrafo, da Convenção da Haia de 1980 e do artigo 2.°, n.° 11, do regulamento.

38      É igualmente pacífico que, em aplicação do artigo 10.° do regulamento, o tribunal competente, pelo menos à data do rapto, era o Tribunale per i Minorenni di Venezia, tribunal do local da residência habitual da criança antes da sua deslocação ilícita.

 Quanto à primeira questão

39      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, numa situação de deslocação ilícita de uma criança, o artigo 10.°, alínea b), iv), do regulamento deve ser interpretado no sentido de que uma medida provisória deve ser considerada uma «decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança», na acepção desta disposição.

40      Importa sublinhar que o sistema estabelecido pelo regulamento se funda no papel central atribuído ao tribunal competente em aplicação das disposições deste regulamento e que, em conformidade com o vigésimo primeiro considerando deste, o reconhecimento e a execução das decisões proferidas num Estado‑Membro têm por base o princípio da confiança mútua, devendo os fundamentos do não reconhecimento ser reduzidos ao mínimo indispensável.

41      Em caso de deslocação ilícita de crianças, o artigo 10.° do regulamento confere, regra geral, a competência aos tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da sua deslocação. Em princípio, esta competência mantém‑se, sendo transferida apenas se a criança passar a ter a residência habitual noutro Estado‑Membro e, além disso, se uma das condições alternativas referidas neste artigo 10.° estiver igualmente preenchida.

42      A questão do órgão jurisdicional de reenvio tem especificamente por objecto a questão de saber se, ao proferir uma medida provisória, o tribunal competente transferiu a sua competência, na acepção do artigo 10.°, alínea b), iv), do regulamento, para os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança raptada foi levada.

43      A este respeito, importa salientar que o regulamento visa dissuadir os raptos de crianças entre Estados‑Membros e, em caso de rapto, obter o regresso da criança sem demora (acórdão Rinau, já referido, n.° 52).

44      Daqui decorre que o rapto de uma criança não deveria, em princípio, ter por consequência transferir a competência dos tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da sua deslocação para os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança foi levada, mesmo na hipótese de, após o rapto, a criança ter adquirido residência habitual neste Estado‑Membro.

45      Por conseguinte, há que interpretar a condição enunciada no artigo 10.°, alínea b), iv), do regulamento de maneira restritiva.

46      Assim, à luz do papel central confiado pelo regulamento ao tribunal competente e do princípio da manutenção da competência deste, há que considerar que uma «decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança» é uma decisão definitiva, proferida tendo por base um exame exaustivo de todos os elementos pertinentes, na qual o tribunal competente se pronuncia sobre a regulação da questão da guarda da criança, a qual já não está sujeita a outras decisões administrativas ou judiciais. O facto de a regulação da questão da guarda da criança prever uma revisão ou um reexame periódico, num prazo determinado ou em função de certas circunstâncias, não priva a decisão do seu carácter definitivo.

47      Esta conclusão decorre da economia do regulamento e corresponde igualmente aos interesses da criança. Com efeito, no caso de uma decisão provisória poder conduzir a uma perda de competência sobre a questão da guarda da criança, poderia correr‑se o risco de o tribunal competente do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança ser dissuadido de proferir essa decisão provisória, apesar de os interesses da criança o exigirem.

48      Pela decisão de 23 de Maio de 2008, o Tribunale per i Minorenni di Venezia, tribunal competente em aplicação das disposições do regulamento, tendo em conta a situação de facto criada pelo rapto da criança e considerando o interesse desta última, revogou a proibição de saída do território italiano, confiou provisoriamente a guarda a ambos os progenitores, concedeu ao pai o direito de visita e ordenou uma peritagem por parte de um assistente social sobre as relações entre a criança e ambos os progenitores, com vista, precisamente, a proferir a sua decisão definitiva sobre o direito de guarda. Além disso, esse tribunal concedeu à mãe o direito de tomar, em relação à criança, decisões relativas à administração ordinária («decisioni […] concernenti l’ordinaria amministrazione»), isto é, decisões parentais sobre os aspectos práticos da vida quotidiana da criança.

49      Destas considerações resulta que esta decisão, qualificada de provisória tanto pelo Tribunale per i Minorenni di Venezia como pelo órgão jurisdicional de reenvio, de modo nenhum constitui uma decisão definitiva sobre o direito de guarda.

50      Assim, há que responder à primeira questão que o artigo 10.°, alínea b), iv), do regulamento deve ser interpretado no sentido de que uma medida provisória não constitui uma «decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança», na acepção desta disposição, e não pode constituir fundamento para uma transferência de competências a favor dos tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança foi ilicitamente deslocada.

 Quanto à segunda questão

51      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 11.°, n.° 8, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que uma decisão do tribunal competente que ordene o regresso da criança só é abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição quando tiver por base uma decisão definitiva do mesmo tribunal relativa ao direito de guarda da criança.

52      Importa salientar que tal interpretação, que faria depender a execução de uma decisão do tribunal competente ordenando o regresso da criança da existência de uma decisão definitiva sobre o direito de guarda proferida pelo mesmo tribunal, não encontra fundamento na redacção do artigo 11.° do regulamento e, especificamente, no seu n.° 8. Pelo contrário, o artigo 11.°, n.° 8, do regulamento abrange «uma decisão posterior que exija o regresso da criança».

53      É certo que o n.° 7 deste artigo dispõe que o tribunal ou a autoridade central do Estado‑Membro de residência habitual anterior deve notificar às partes a informação que receba relativa a uma decisão de retenção proferida no Estado‑Membro para onde a criança foi deslocada e convidá‑las a apresentar observações «para que o tribunal possa analisar a questão da guarda da criança». No entanto, esta disposição apenas define o objectivo último do procedimento administrativo e do processo judicial, ou seja, a regularização da situação da criança. Daqui não se pode deduzir que uma decisão sobre a guarda da criança constitua um requisito prévio da adopção de uma decisão que ordene o regresso da criança. Com efeito, esta última decisão intermédia também contribui para a realização do objectivo último, que é a resolução da questão da guarda da criança.

54      Do mesmo modo, os artigos 40.° e 42.° a 47.° do regulamento não subordinam a execução de uma decisão proferida ao abrigo do artigo 11.°, n.° 8, acompanhada da certidão referida no artigo 42.°, n.° 1, do regulamento, à adopção prévia de uma decisão em matéria de guarda.

55      Esta interpretação do artigo 11.°, n.° 8, do regulamento é confirmada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

56      O Tribunal de Justiça considerou que, apesar de intrinsecamente ligada a outras matérias reguladas pelo regulamento, nomeadamente o direito de guarda, a força executória de uma decisão que ordena o regresso de uma criança subsequente a uma decisão de retenção goza de autonomia processual, de forma a não atrasar o regresso de uma criança que tenha sido deslocada ilicitamente. Afirmou também a autonomia processual das disposições dos artigos 11.°, n.° 8, 40.° e 42.° do regulamento e a prioridade conferida à competência do tribunal de origem, no âmbito do capítulo III, secção 4, do regulamento (v., neste sentido, acórdão Rinau, já referido, n.os 63 e 64).

57      Acrescente‑se que esta interpretação é conforme com o objectivo e a finalidade do mecanismo estabelecido pelos artigos 11.°, n.° 8, 40.° e 42.° do regulamento.

58      Segundo este mecanismo, quando um tribunal do Estado‑Membro para onde a criança foi ilicitamente deslocada profere uma decisão de retenção em aplicação do artigo 13.° da Convenção da Haia de 1980, o regulamento, que afirma no artigo 60.° a sua primazia em relação a esta Convenção nas relações entre os Estados‑Membros, reserva ao tribunal competente nos termos deste mesmo regulamento a decisão relativa ao eventual regresso da criança. Assim, a artigo 11.°, n.° 8, dispõe que tal decisão do tribunal competente é executória nos termos do capítulo III, secção 4, do regulamento, com vista a assegurar o regresso da criança.

59      Importa recordar que o tribunal competente, antes de ser proferida esta decisão, deve ter em conta os argumentos e os elementos de prova com fundamento nos quais foi proferida a decisão de retenção. Esta tomada em consideração contribui para justificar o carácter executório desta decisão, uma vez adoptada, em conformidade com o princípio da confiança mútua subjacente ao regulamento.

60      Além disso, este sistema comporta um duplo exame da questão do regresso da criança, garantindo assim uma melhor fundamentação da decisão e uma protecção acrescida dos interesses da criança.

61      A tal acresce que, como observa acertadamente a Comissão Europeia, o tribunal ao qual compete em última instância estabelecer o direito de guarda deve dispor da faculdade de fixar todas as modalidades e medidas intermédias, incluindo a designação do local de residência da criança, o que poderia eventualmente tornar necessário o regresso desta.

62      O objectivo de celeridade prosseguido pelas disposições dos artigos 11.°, n.° 8, 40.° e 42.°, do regulamento e a prioridade dada à competência do tribunal de origem seriam dificilmente conciliáveis com uma interpretação segundo a qual uma decisão de regresso deveria ser precedida de uma decisão definitiva sobre o direito de guarda. Tal interpretação constituiria uma limitação que obrigaria eventualmente o tribunal competente a proferir uma decisão sobre o direito de guarda sem dispor de todas as informações e de todos os elementos pertinentes para o efeito nem do tempo necessário para a sua apreciação objectiva e serena.

63      No que respeita ao argumento de que tal interpretação poderia levar a deslocações inúteis da criança no caso de o tribunal competente acabar por conceder a guarda ao progenitor residente no Estado‑Membro para onde a criança foi deslocada, cumpre sublinhar que o interesse de proferir uma decisão judicial justa e bem fundamentada sobre a guarda definitiva da criança, a exigência de dissuadir os raptos de crianças assim como o direito da criança de manter relações pessoais regulares e contactos directos com ambos os progenitores primam sobre os eventuais inconvenientes que estas deslocações possam causar.

64      Com efeito, um desses direitos fundamentais da criança é o direito, enunciado no artigo 24.°, n.° 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice, em 7 de Dezembro de 2000 (JO C 364, p. 1), de manter relações pessoais regulares e contactos directos com ambos os progenitores, cuja observância se confunde incontestavelmente com o interesse superior de qualquer criança (v. acórdão de 23 de Dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, Colect., p. I‑0000, n.° 54). Ora, há que reconhecer que a deslocação ilícita de uma criança, na sequência de uma decisão unilateral de um dos seus progenitores, priva a criança, na maior parte dos casos, da possibilidade de manter relações pessoais regulares e contactos directos com o outro progenitor (acórdão Detiček, já referido, n.° 56).

65      A justeza desta abordagem resulta igualmente do exame da situação em causa no processo principal.

66      Com efeito, a decisão de 10 de Julho de 2009 na qual o tribunal competente ordenou o regresso da criança tem por fundamento o facto de as relações entre a criança e o pai terem sido interrompidas. Assim, é no interesse primordial da criança que estas relações se restabeleçam e, se possível, que seja igualmente assegurada a presença da mãe em Itália, a fim de que as relações da criança com os dois progenitores, bem como a capacidade parental e a personalidade destes últimos, sejam examinadas de forma aprofundada pelos serviços italianos competentes, antes de ser proferida uma decisão definitiva sobre a guarda e a responsabilidade parental.

67      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 11.°, n.° 8, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que uma decisão do tribunal competente que ordene o regresso da criança é abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição, mesmo que não seja precedida de uma decisão definitiva do mesmo tribunal relativa ao direito de guarda da criança.

 Quanto à terceira questão

68      Tendo em conta a resposta dada às duas primeiras questões prejudiciais, não há que responder à terceira questão.

 Quanto à quarta questão

69      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 47.°, n.° 2, segundo parágrafo, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que uma decisão que concede um direito de guarda provisório, proferida posteriormente por um tribunal do Estado‑Membro de execução e considerada executória por força do direito desse Estado, obsta à execução de uma decisão homologada, proferida anteriormente e que ordena o regresso da criança, por ser incompatível com esta última decisão.

70      Como resulta do vigésimo quarto considerando e dos artigos 42.°, n.° 1, e 43.°, n.° 2, do regulamento, a emissão de uma certidão não é susceptível de recurso e uma decisão assim homologada possui automaticamente força executória, sem que seja possível contestar o seu reconhecimento.

71      Por outro lado, nos termos do artigo 43.°, n.° 1, do regulamento, o direito do Estado‑Membro de origem é aplicável a qualquer rectificação da certidão, embora, segundo o vigésimo quarto considerando do regulamento, essa acção só possa ser intentada em caso de erro material, ou seja, quando a certidão não reflicta correctamente o conteúdo da decisão. Além disso, prevê‑se no artigo 44.° do regulamento que a certidão só produz efeitos nos limites do carácter executório da decisão, e no artigo 47.°, n.° 2, segundo parágrafo, do regulamento que uma decisão homologada não pode ser executada em caso de conflito com uma decisão com força executória proferida posteriormente.

72      Importa recordar igualmente que, como é referido no vigésimo terceiro considerando do regulamento, as regras de execução destas decisões continuam a ser reguladas pelo direito interno do Estado‑Membro de execução.

73      Decorre das disposições anteriores, que estabelecem uma repartição clara de competências entre os tribunais do Estado‑Membro de origem e do Estado‑Membro de execução e que visam o regresso rápido da criança, que uma certidão emitida por força do artigo 42.° do regulamento, que confere à decisão assim homologada uma força executória específica, não é susceptível de recurso. O tribunal requerido não pode deixar de reconhecer a força executória dessa decisão, sendo uma acção de rectificação ou dúvidas quanto à sua autenticidade os únicos meios que podem ser invocados em relação à certidão, por força das regras de direito do Estado‑Membro de origem (v., neste sentido, acórdão Rinau, já referido, n.os 85, 88 e 89). As únicas regras de direito aplicáveis do Estado‑Membro requerido são as que regulam as questões de natureza processual.

74      Em contrapartida, as questões relativas à substância da decisão enquanto tal, nomeadamente a questão de saber se estavam reunidas as condições exigíveis para permitir ao tribunal competente proferir essa decisão, incluindo a eventual contestação da competência, devem ser suscitadas nos tribunais do Estado‑Membro de origem, em conformidade com as regras da sua ordem jurídica. Do mesmo modo, um pedido de suspensão da execução de uma decisão homologada só pode ser apresentado no tribunal competente do Estado‑Membro de origem, em conformidade com as regras da sua ordem jurídica.

75      Assim, não pode ser suscitado nenhum fundamento nos tribunais do Estado‑Membro da deslocação contra a execução de tal decisão, visto que as regras jurídicas deste Estado regulam exclusivamente as questões de natureza processual, na acepção do artigo 47.°, n.° 1, do regulamento, ou seja, as regras de execução da decisão. Ora, um processo como o que é objecto da presente questão prejudicial não trata de requisitos de forma nem de questões processuais, mas regula questões de fundo.

76      Consequentemente, a existência de um conflito, na acepção do artigo 47.°, n.° 2, segundo parágrafo, do regulamento, entre uma decisão homologada e uma decisão executória posterior só pode ser verificada em relação às eventuais decisões proferidas posteriormente pelos tribunais competentes do Estado‑Membro de origem.

77      Tal conflito não se verifica apenas nos casos em que a decisão é anulada ou reformada em consequência de uma acção judicial intentada no Estado‑Membro de origem. Com efeito, foi salientado na audiência de alegações que o tribunal competente pode, por sua própria iniciativa ou, se for caso disso, a pedido dos serviços sociais, reformar a sua própria decisão quando o interesse da criança o exigir, e proferir uma nova decisão executória, sem revogar expressamente a primeira, a qual, por conseguinte, caducaria.

78      Considerar que uma decisão proferida posteriormente por um tribunal do Estado‑Membro de execução possa obstar à execução de uma decisão anterior homologada no Estado‑Membro de origem e que ordena o regresso da criança traduzir‑se‑ia em eludir o mecanismo estabelecido na secção 4 do capítulo III do regulamento. Tal excepção à competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem privaria de efeito útil o artigo 11.°, n.° 8, do regulamento, que confere em última instância ao juiz competente o direito de decisão e prevalece, por força do artigo 60.° do regulamento, sobre a Convenção da Haia de 1980, e reconheceria aos tribunais do Estado‑Membro de execução a competência quanto ao mérito.

79      Consequentemente, há que responder à quarta questão que o artigo 47.°, n.° 2, segundo parágrafo, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que uma decisão proferida posteriormente por um tribunal do Estado‑Membro de execução, que concede um direito de guarda provisório e é considerada executória por força do direito desse Estado, não pode obstar à execução de uma decisão homologada, proferida anteriormente pelo tribunal competente do Estado‑Membro de origem e que ordena o regresso da criança.

 Quanto à quinta questão

80      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a execução de uma decisão homologada pode ser recusada no Estado‑Membro de execução, com fundamento no facto de, devido a uma alteração das circunstâncias ocorrida após ter sido proferida, ser susceptível de afectar gravemente o superior interesse da criança, ou se tal alteração deve ser invocada nos tribunais do Estado‑Membro de origem, o que implicaria a suspensão da execução da decisão no Estado‑Membro requerido até ser proferida a decisão final no processo no Estado‑Membro de origem.

81      A este respeito, uma alteração significativa das circunstâncias relacionadas com o superior interesse da criança constitui uma questão de fundo, eventualmente susceptível de conduzir à alteração da decisão do tribunal competente sobre o regresso da criança. Ora, em conformidade com a repartição das competências reiteradamente evocada no presente acórdão, a decisão sobre esta questão incumbe ao tribunal competente do Estado‑Membro de origem. Esse tribunal é, de resto, segundo o sistema estabelecido pelo regulamento, igualmente competente para apreciar o superior interesse da criança, e é também a esse tribunal que deve ser submetido o pedido de suspensão eventual da execução da sua decisão.

82      Esta conclusão não pode ser infirmada pela referência, prevista no artigo 47.°, n.° 2, primeiro parágrafo, do regulamento, à execução de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro «como» se se tratasse de uma decisão emitida no Estado‑Membro de execução. Esta exigência deve ser interpretada em termos estritos. Apenas visa as regras processuais aplicáveis ao regresso da criança, e em caso algum pode fornecer um argumento substantivo para contestar a decisão do tribunal competente.

83      Assim, há que responder à quinta questão que a execução de uma decisão homologada não pode ser recusada no Estado‑Membro de execução, com fundamento no facto de, devido a uma alteração das circunstâncias ocorrida após ter sido proferida, ser susceptível de prejudicar gravemente o superior interesse da criança. Tal alteração deve ser invocada no tribunal competente do Estado‑Membro de origem, ao qual deve ser igualmente submetido um eventual pedido de suspensão da execução da sua decisão.

 Quanto às despesas

84      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 10.°, alínea b), iv), do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que uma medida provisória não constitui uma «decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança», na acepção desta disposição, e não pode constituir fundamento para uma transferência de competências a favor dos tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança foi ilicitamente deslocada.

2)      O artigo 11.°, n.° 8, do Regulamento n.° 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que uma decisão do tribunal competente que ordene o regresso da criança é abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição, mesmo que não seja precedida por uma decisão definitiva do mesmo tribunal relativa ao direito de guarda da criança.

3)      O artigo 47.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que uma decisão proferida posteriormente por um tribunal do Estado‑Membro de execução, que concede um direito de guarda provisório e é considerada executória por força do direito desse Estado, não pode obstar à execução de uma decisão homologada, proferida anteriormente pelo tribunal competente do Estado‑Membro de origem e que ordena o regresso da criança.

4)      A execução de uma decisão homologada não pode ser recusada no Estado‑Membro de execução, com fundamento no facto de, devido a uma alteração das circunstâncias ocorrida após ter sido proferida, ser susceptível de prejudicar gravemente o superior interesse da criança. Tal alteração deve ser invocada no tribunal competente do Estado‑Membro de origem, ao qual deve ser igualmente submetido um eventual pedido de suspensão da execução da sua decisão.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.