Processo C‑83/10

Aurora Sousa Rodríguez e o.

contra

Air France SA

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil n.° 1 de Pontevedra)

«Reenvio prejudicial – Transporte aéreo – Regulamento (CE) n.° 261/2004 – Artigo 2.°, alínea l) – Indemnização dos passageiros em caso de cancelamento de um voo – Conceito de ‘cancelamento’ – Artigo 12.° – Conceito de ‘indemnização suplementar’ – Indemnização nos termos do direito nacional»

Sumário do acórdão

1.        Transportes – Transportes aéreos – Regulamento n.° 261/2004 – Regras comuns em matéria de indemnização e de assistência aos passageiros em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável de um voo – Anulação – Conceito

[Regulamento n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 2.°, alínea l) e 5.°, n.° 3]

2.        Transportes – Transportes aéreos – Regulamento n.° 261/2004 – Regras comuns em matéria de indemnização e de assistência aos passageiros em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável de um voo – Indemnização suplementar – Alcance – Cobertura de um dano moral – Inclusão

(Regulamento n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 8.°, 9.° e 12; Convenção de Montreal de 1999)

1.        O conceito de «cancelamento», conforme definido no artigo 2.°, alínea l), do Regulamento n.° 261/2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento n.° 295/91, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, não visa exclusivamente a hipótese de não descolagem do avião em causa, abrangendo igualmente o caso de esse avião ter descolado, mas de, por qualquer razão, ter sido depois forçado a regressar ao aeroporto de partida no qual os passageiros do referido avião foram transferidos para outros voos.

O motivo pelo qual o avião foi forçado a regressar ao aeroporto de partida e, portanto, não chegou ao seu destino, é irrelevante para a qualificação de «cancelamento». Com efeito, este motivo é apenas pertinente para determinar, se, sendo caso disso, o referido cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis, na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, caso em que não é devida nenhuma indemnização.

(cf. n.os 34‑35, disp. 1)

2.        O conceito de «indemnização suplementar» mencionado no artigo 12.° do Regulamento n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que permite ao juiz nacional indemnizar, nas condições previstas pela Convenção de Montreal para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional ou pelo direito nacional, o dano, incluindo o dano moral, resultante do incumprimento do contrato de transporte aéreo. Em contrapartida, este conceito de «indemnização suplementar» não pode servir de fundamento jurídico ao juiz nacional para condenar a transportadora aérea a reembolsar aos passageiros do voo que foi atrasado ou cancelado as despesas que estes tiveram de efectuar devido ao incumprimento, pela referida transportadora, dos seus deveres de assistência previstos nos artigos 8.° e 9.° deste regulamento.

(cf. n.° 46, disp. 2)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

13 de Outubro de 2011 (*)

«Reenvio prejudicial – Transporte aéreo – Regulamento (CE) n.° 261/2004 – Artigo 2.°, alínea l) – Indemnização dos passageiros em caso de cancelamento de um voo – Conceito de ‘cancelamento’ – Artigo 12.° – Conceito de ‘indemnização suplementar’ – Indemnização nos termos do direito nacional»

No processo C‑83/10,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil n° 1 de Pontevedra (Espanha), por decisão de 1 de Fevereiro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 11 de Fevereiro de 2010, no processo

Aurora Sousa Rodríguez,

Yago López Sousa,

Rodrigo Manuel Puga Lueiro,

Luis Ángel Rodríguez González,

María del Mar Pato Barreiro,

Manuel López Alonso,

Yaiza Pato Rodríguez

contra

Air France SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, J. Malenovský (relator), R. Silva de Lapuerta, E. Juhász e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Sousa Rodríguez, Y. López Sousa, R. M. Puga Lueiro, L. A. Rodríguez González, M. M. Pato Barreiro, M. López Alonso e Y. Pato Rodríguez, por J. Portela Leiros, Procurador de los Tribunales, assistido por J. González Pérez, abogado,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e M. Perrot, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Russo, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo polaco, por M. Szpunar, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Hathaway, na qualidade de agente, assistido por D. Beard, barrister,

–        em representação da Comissão Europeia, por L. Lozano Palacios e K. Simonsson, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 28 de Junho de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 2.°, alínea l), e 12.° do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91 (JO L 46, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe sete passageiros à Air France SA (a seguir «Air France»), a propósito da indemnização pelos danos que consideram ter sofrido como consequência de atrasos importantes e pelos inconvenientes causados pelos problemas técnicos verificados no avião dessa companhia aérea durante um voo entre Paris (França) e Vigo (Espanha).

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        A Comunidade Europeia participou na Conferência Diplomática Internacional sobre Direito Aéreo, realizada em Montreal, de 10 a 28 de Maio de 1999, onde foi adoptada a Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional (a seguir «Convenção de Montreal»), tendo assinado esta Convenção em 9 de Dezembro de 1999.

4        Por decisão de 5 de Abril de 2001, o Conselho da União Europeia adoptou a Decisão 2001/539/CE, relativa à celebração pela Comunidade Europeia da Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional (Convenção de Montreal) (JO L 194, p. 38). Esta Convenção entrou em vigor, para a União Europeia, em 28 de Junho de 2004.

5        O artigo 19.° da Convenção de Montreal, sob a epígrafe «Atrasos», que figura no capítulo III da mesma, sob a epígrafe «Responsabilidade da transportadora e limites da indemnização por danos», dispõe:

«A transportadora é responsável pelo dano resultante de atraso no transporte aéreo de passageiros, bagagens ou mercadorias. Não obstante, a transportadora não será responsável pelo dano resultante de atraso se provar que ela ou os seus trabalhadores ou agentes adoptaram todas as medidas que poderiam razoavelmente ser exigidas para evitar o dano ou que lhes era impossível adoptar tais medidas.»

6        O artigo 22.°, n.° 1, desta Convenção, sob a epígrafe «Limites da responsabilidade por atrasos, bagagens e mercadorias», que se insere no mesmo capítulo III, enuncia:

«No transporte de pessoas, em caso de dano causado por atraso, conforme especificado no artigo 19.°, a responsabilidade da transportadora está limitada a 4150 direitos de saque especiais por passageiro.»

7        O artigo 29.° da Convenção de Montreal, sob a epígrafe «Fundamento dos pedidos», dispõe:

«No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as acções por danos, qualquer que seja o seu fundamento, quer este resida na presente Convenção, em contrato, em acto ilícito ou em qualquer outra causa, só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção, [...]»

 Direito da União

 Regulamento (CE) n.° 2027/97

8        O artigo 1.° do Regulamento (CE) n.° 2027/97 do Conselho, de 9 de Outubro de 1997, relativo à responsabilidade das transportadoras aéreas no transporte de passageiros e respectiva bagagem (JO L 285, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Maio de 2002 (JO L 140, p. 2, a seguir «Regulamento n.° 2027/97»), dispõe:

«O presente regulamento transpõe as disposições pertinentes da Convenção de Montreal [...]»

9        O artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2027/97 estabelece:

«A responsabilidade das transportadoras aéreas comunitárias relativamente aos passageiros e à sua bagagem regula‑se por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade.»

 Regulamento n.° 261/2004

10      O décimo e décimo sétimo considerandos do Regulamento n.° 261/2004 enunciam:

«(10) Os passageiros a quem seja recusado o embarque contra sua vontade deverão poder cancelar os seus voos, com reembolso dos seus bilhetes, ou prossegui‑los em condições satisfatórias e deverão receber assistência adequada enquanto aguardam um voo posterior.

[...]

(17)      Os passageiros cujos voos registem um atraso com uma determinada duração deverão receber assistência adequada e poder cancelar os seus voos, com reembolso dos seus bilhetes, ou prossegui‑los em condições satisfatórias.»

11      O artigo 1.°, n.° 1, deste regulamento, sob a epígrafe «Objecto», prevê:

«O presente regulamento estabelece, nas condições a seguir especificadas, os direitos mínimos dos passageiros, em caso de:

a)      Recusa de embarque contra sua vontade;

b)      Cancelamento de voos;

c)      Atraso de voos.»

12      O artigo 2.°, alínea l), do referido regulamento prevê, sob a epígrafe «Definições»:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[...]

l)      ‘Cancelamento’, a não realização de um voo que anteriormente estava programado e em que, pelo menos, um lugar foi reservado.»

13      O artigo 5.°, n.os 1 a 3, do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Cancelamento», enuncia:

«1.      Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

a)      Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos do artigo 8.°; e

b)      Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos da alínea a) do n.° 1 e do n.° 2 do artigo 9.°, bem como, em caso de reencaminhamento quando a hora de partida razoavelmente prevista do novo voo for, pelo menos, o dia após a partida que estava programada para o voo cancelado, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 9.°; e

c)      Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.°, salvo se:

i)      tiverem sido informados do cancelamento pelo menos duas semanas antes da hora programada de partida, ou

ii)      tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou

iii)      tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.

2.      Ao informar os passageiros do cancelamento, devem ser prestados esclarecimentos sobre eventuais transportes alternativos.

3.      A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.°, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.»

14      O artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento n.° 261/2004, sob a epígrafe «Atrasos», dispõe:

«Quando tiver motivos razoáveis para prever que em relação à sua hora programada de partida um voo se vai atrasar:

a)      Duas horas ou mais, no caso de quaisquer voos até 1500 quilómetros; ou

b)      Três horas ou mais, no caso de quaisquer voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e no de quaisquer outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros; ou

c)      Quatro horas ou mais, no caso de quaisquer voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b),

a transportadora aérea operadora deve oferecer aos passageiros

i)      a assistência especificada na alínea a) do n.° 1 e no n.° 2 do artigo 9.°, e

ii)      quando a hora de partida razoavelmente prevista for, pelo menos, o dia após a hora de partida previamente anunciada, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 9.°, e

iii)      quando o atraso for de, pelo menos, cinco horas, a assistência especificada na alínea a) do n.° 1 do artigo 8.°»

15      O artigo 7.°, n.° 1, deste regulamento, sob a epígrafe «Direito a indemnização», dispõe:

«Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)      250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros;

[…]»

16      O artigo 8.° do referido regulamento, sob a epígrafe «Direito a reembolso ou reencaminhamento», prevê:

«1.      Em caso de remissão para o presente artigo, deve ser oferecida aos passageiros a escolha entre:

a) –      O reembolso no prazo de sete dias, de acordo com as modalidades previstas no n.° 3 do artigo 7.°, do preço total de compra do bilhete, para a parte ou partes da viagem não efectuadas, e para a parte ou partes da viagem já efectuadas se o voo já não se justificar em relação ao plano inicial de viagem, cumulativamente, nos casos em que se justifique,

–      um voo de regresso para o primeiro ponto de partida;

b) –      O reencaminhamento, em condições de transporte equivalentes, para o seu destino final, na primeira oportunidade; ou

c) –      O reencaminhamento, em condições de transporte equivalentes, para o seu destino final numa data posterior, da conveniência do passageiro, sujeito à disponibilidade de lugares.

[...]

3.      Sempre que uma cidade ou região for servida por vários aeroportos e uma transportadora aérea operadora oferecer aos passageiros um voo para um aeroporto alternativo em relação àquele para o qual tinha sido feita a reserva, a transportadora aérea operadora deve suportar o custo da transferência do passageiro desse aeroporto alternativo para o aeroporto para o qual a reserva tinha sido feita, ou para outro destino próximo acordado com o passageiro.»

17      O artigo 9.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 261/2004, sob a epígrafe «Direito a assistência», prevê:

«1.      Em caso de remissão para o presente artigo, devem ser oferecidos a título gratuito aos passageiros:

a)      Refeições e bebidas em proporção razoável com o tempo de espera;

b)      Alojamento em hotel:

–        caso se torne necessária a estadia por uma ou mais noites, ou

–        caso se torne necessária uma estadia adicional à prevista pelo passageiro;

c)      Transporte entre o aeroporto e o local de alojamento (hotel ou outro).

2.      Além disso, devem ser oferecidas aos passageiros, a título gratuito, duas chamadas telefónicas, telexes, mensagens via fax ou mensagens por correio electrónico.»

18      O artigo 12.°, n.° 1, deste regulamento, sob a epígrafe «Indemnização suplementar, estabelece:

«O presente regulamento aplica‑se sem prejuízo dos direitos dos passageiros a uma indemnização suplementar. A indemnização concedida ao abrigo do presente regulamento pode ser deduzida dessa indemnização.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19      Os demandantes no processo principal celebraram com a Air France um contrato de transporte aéreo para serem transportados de Paris (França) para Vigo (Espanha) no voo 5578 da referida companhia. Esse voo estava marcado para dia 25 de Setembro de 2008, com partida do Aeroporto Paris‑Charles de Gaulle, às 19h40.

20      Alguns minutos após a descolagem do avião, à hora prevista, o comandante decidiu fazer meia‑volta e regressar ao ponto de partida, o Aeroporto Paris‑Charles de Gaulle, devido a uma avaria técnica do avião. Após o regresso ao aeroporto de origem, nada consta no processo principal que indique que o avião tenha descolado novamente e chegado, com atraso, ao seu destino.

21      Três dos passageiros do voo em causa foram convidados a apanhar um voo com partida no dia seguinte, 26 de Setembro de 2008, às 7h05, do Aeroporto de Paris‑Orly, com destino ao Porto (Portugal), seguindo depois para Vigo, de táxi. A outro passageiro foi proposto ir num voo de Paris para Vigo, no mesmo dia, via Bilbao. Quanto aos restantes passageiros, a Air France colocou‑os no seu voo Paris‑Vigo, com partida também em 26 de Setembro de 2008, à mesma hora que o voo onde ocorreu a avaria (19h40). Com excepção de um, nenhum dos passageiros do voo da véspera foi alojado a expensas da Air France ou recebeu qualquer assistência desta companhia aérea.

22      Sete dos passageiros do voo 5578, a saber, os demandantes no processo principal, intentaram uma acção contra a Air France pelos danos causados, no Juzgado de lo Mercantil n° 1 de Pontevedra (Tribunal de Comércio de Pontevedra), pelo incumprimento do contrato de transporte aéreo.

23      Os demandantes no processo principal solicitam a indemnização a que se refere o artigo 7.° do Regulamento n.° 261/2004, no montante fixo de 250 euros cada um, como previsto nessa disposição. Um dos demandantes exige, além disso, o reembolso da despesa que suportou com o seu transporte, de táxi, entre o aeroporto do Porto e Vigo. Outro demandante pede o reembolso das despesas de restauração no aeroporto de Paris, bem como as relativas à guarda do seu cão durante um dia a mais que o inicialmente previsto. Todos os demandantes pedem, por último, a condenação da Air France no pagamento de um montante adicional a título de reparação do dano não patrimonial que consideram ter sofrido.

24      Foi nestas circunstâncias que o Juzgado de lo Mercantil n° 1 de Pontevedra decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O conceito de ‘cancelamento’ definido na alínea l) do artigo 2.° do Regulamento (CE) n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que abrange exclusivamente a não descolagem do voo tal como estava programada ou no sentido de que também abrange qualquer circunstância que faça com que o referido voo reservado tenha descolado mas não chegue ao seu destino, incluindo o regresso forçado ao aeroporto de origem, por razões de ordem técnica?

2)      O conceito de ‘indemnização suplementar’ utilizado no artigo 12.° do [regulamento] deve ser interpretado no sentido de que permite ao órgão jurisdicional nacional, em caso de cancelamento, conceder uma indemnização por danos e prejuízos, incluindo danos morais, devido ao incumprimento do contrato de transporte aéreo, em conformidade com os critérios estabelecidos na legislação e na jurisprudência nacionais relativas ao incumprimento contratual, ou, pelo contrário, no sentido de que essa indemnização deve cobrir apenas as despesas realizadas pelos passageiros que sejam devidamente comprovadas e não tenham sido suficientemente ressarcidas pela transportadora aérea como exigem os artigos 8.° e 9.° do referido regulamento, mesmo que estas disposições não tenham sido invocadas, ou, por último, no sentido de que estes dois conceitos de indemnização suplementar são compatíveis entre si?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

25      Para efeitos de indemnização dos passageiros com fundamento nas disposições conjugadas dos artigos 5.° e 7.° do Regulamento n.° 261/2004, o órgão jurisdicional de reenvio, chamado a determinar se se pode considerar que o voo em causa foi «cancelado» na acepção do artigo 2.°, alínea l), deste regulamento, pretende, em substância, saber se o conceito de «cancelamento» visa exclusivamente a hipótese da não descolagem do avião em causa, ou se abrange também o caso de esse avião, tendo embora descolado, ter sido obrigado a regressar ao aeroporto de partida, na sequência de uma avaria técnica do aparelho.

26      Importa desde logo recordar que o artigo 2.°, alínea l), do referido regulamento define «cancelamento» como «a não realização de um voo que anteriormente estava programado e em que, pelo menos, um lugar foi reservado». Antes de poder determinar o sentido do conceito de «cancelamento», importa previamente precisar o sentido do conceito de «voo», para efeitos deste artigo.

27      A este respeito, o Tribunal de Justiça já considerou que um voo consiste, no essencial, numa operação de transporte aéreo, sendo assim, de certa maneira, uma «unidade» desse transporte, realizada por uma transportadora aérea que fixa o seu itinerário (acórdão de 10 de Julho de 2008, Emirates Airlines, C‑173/07, Colect., p. I‑5237, n.° 40). Além disso, o Tribunal de Justiça precisou que o itinerário constitui um elemento essencial do voo, uma vez que este último é efectuado em conformidade com uma programação previamente estabelecida pela transportadora (acórdão de 19 de Novembro de 2009, Sturgeon e o., C‑402/07 e C‑432/07, Colect., p. I‑10923, n.° 30).

28      O termo «itinerário» designa o percurso a efectuar pelo avião, do aeroporto de partida até ao aeroporto de chegada, segundo uma cronologia estabelecida, pelo que, para que se possa considerar que um voo foi efectuado, não basta que o avião tenha partido em conformidade com o itinerário previsto, mas ainda que chegue ao seu destino como consta do itinerário. Ora, a circunstância de a descolagem ter sido assegurada, mas de o avião ter posteriormente regressado ao aeroporto de partida, sem ter chegado ao destino que figurava no itinerário, leva a que não se possa considerar que o voo foi efectuado conforme previsto inicialmente.

29      Em seguida, não decorre de modo algum da definição do artigo 2.°, alínea l), do Regulamento n.° 261/2004 que, para além do facto de o voo inicialmente previsto não ter sido efectuado, o «cancelamento» deste voo, na acepção deste artigo, exija a adopção de uma decisão expressa de o cancelar.

30      A este propósito, o Tribunal de Justiça precisou que, em princípio, é possível concluir pela existência de um cancelamento quando o voo inicialmente previsto e que está atrasado for transferido para outro voo, isto é, quando a programação do voo inicial é abandonada e os passageiros deste se juntam aos passageiros de um voo igualmente programado, independentemente do voo para o qual os passageiros assim transferidos efectuaram as suas reservas (acórdão Sturgeon e o., já referido, n.° 36).

31      Nessa situação, não é de modo algum necessário que todos os passageiros que tenham reservado lugar no voo inicialmente previsto sejam transportados noutro voo. O que importa aqui é apenas a situação individual de cada passageiro assim transportado, quer dizer, o facto de, no que diz respeito ao passageiro em causa, a programação inicial do voo ter sido abandonada.

32      A este respeito, note‑se que tanto o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), como o décimo e décimo sétimo considerandos do Regulamento n.° 261/2004, nas diferentes versões linguísticas do regulamento, fazem referência ao cancelamento do «seu» voo.

33      Assim, é pacífico que todos os demandantes no processo principal foram transferidos para outros voos, programados para o dia seguinte ao da partida inicialmente prevista, permitindo‑lhes chegar ao seu destino final, a saber, Vigo, em certos casos, com escala. O «seu» voo inicialmente previsto deve, por conseguinte, ser qualificado de «cancelado».

34      Por fim, cumpre observar que o motivo pelo qual o avião foi forçado a regressar ao aeroporto de partida e, portanto, não chegou ao seu destino, é irrelevante para a qualificação de «cancelamento» na acepção da definição supra‑referida do artigo 2.°, alínea l), do Regulamento n.° 261/2004. Com efeito, este motivo é apenas pertinente para determinar, no quadro da indemnização do dano sofrido pelos passageiros em razão do cancelamento do seu voo, se, sendo caso disso, o referido cancelamento «se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, caso em que não é devida nenhuma indemnização.

35      Face às considerações anteriores, há que responder à primeira questão que o conceito de «cancelamento», conforme definido no artigo 2.°, alínea l), do Regulamento n.° 261/2004, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, não visa exclusivamente a hipótese de não descolagem do avião em causa, abrangendo igualmente o caso de esse avião ter descolado, mas de, por qualquer razão, ter sido depois forçado a regressar ao aeroporto de partida no qual os passageiros do referido avião foram transferidos para outros voos.

 Quanto à segunda questão

36      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, ao abrigo da indemnização suplementar prevista no artigo 12.° do Regulamento n.° 261/2004, o juiz nacional pode condenar a transportadora aérea a indemnizar qualquer tipo de dano, incluindo moral, que resulte do incumprimento do contrato de transporte aéreo, isto em conformidade com as regras nacionais. Interroga‑se, em especial, sobre a questão de saber se essa indemnização suplementar pode cobrir as despesas que os passageiros tiveram de efectuar devido ao incumprimento, por parte da transportadora aérea, dos deveres de assistência que lhe incumbem por força dos artigos 8.° e 9.° do Regulamento n.° 261/2004.

37      Desde logo, importa recordar que o artigo 1.° do Regulamento n.° 261/2004 sublinha o carácter mínimo dos direitos que institui em benefício dos passageiros dos transportes aéreos, em caso de recusa de embarque contra a sua vontade, de cancelamento do seu voo ou de atraso do mesmo. Além disso, o artigo 12.° deste regulamento, sob a epígrafe «Indemnização suplementar», prevê que o referido regulamento se aplica sem prejuízo do direito dos passageiros a uma indemnização suplementar. É igualmente especificado que a indemnização concedida em virtude do mesmo regulamento pode ser deduzida desta indemnização.

38      Resulta destas disposições que a indemnização concedida aos passageiros dos transportes aéreos, com base no artigo 12.° do Regulamento n.° 261/2004, se destina a completar a aplicação das medidas previstas pelo referido regulamento, de modo a que os passageiros sejam indemnizados pela totalidade do dano que sofreram devido ao incumprimento dos deveres contratuais pela transportadora aérea. Esta disposição permite assim ao juiz nacional condenar a transportadora aérea a indemnizar o dano resultante, para os passageiros, do incumprimento do contrato de transporte aéreo, com base num fundamento jurídico distinto do Regulamento n.° 261/2004, quer dizer, designadamente, nas condições previstas pela Convenção de Montreal ou pelo direito nacional.

39      A este respeito, recorde‑se que o Tribunal de Justiça já declarou que as medidas de assistência uniformes e imediatas adoptadas ao abrigo do Regulamento n.° 261/2004 não obstam a que os passageiros interessados, no caso de esse incumprimento das obrigações contratuais pela transportadora aérea lhes causar ainda danos que confiram direito a indemnização, possam, por outro lado, propor acções de indemnização dos referidos danos, nas condições fixadas na Convenção de Montreal (v., neste sentido, acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C‑344/04, Colect., p. I‑403, n.° 47).

40      Em especial, as disposições dos artigos 19.°, 22.° e 29.° da Convenção de Montreal, aplicáveis, por força do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2027/97, à responsabilidade de uma transportadora área estabelecida no território de um Estado‑Membro, precisam as condições em que, posteriormente ao atraso ou ao cancelamento de um voo, os passageiros em causa podem intentar as acções que visem obter, a título de reparação individualizada, indemnização por parte das transportadoras responsáveis por um dano resultante do incumprimento do contrato de transporte aéreo.

41      A este respeito, cumpre recordar que, no seu acórdão de 6 de Maio de 2010, Walz (C‑63/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 29), o Tribunal de Justiça declarou que os termos «prejuízo» e «dano», referidos no capítulo III da Convenção de Montreal, devem ser entendidos como incluindo tanto os danos materiais como os morais. Daqui decorre que o dano susceptível de indemnização por aplicação do artigo 12.° do Regulamento n.° 261/2004 pode ser um dano de natureza não só material mas também moral.

42      Em contrapartida, a título de indemnização suplementar, com base no artigo 12.° do Regulamento n.° 261/2004, o juiz nacional não pode condenar uma transportadora aérea a reembolsar aos passageiros do voo que foi atrasado ou cancelado as despesas que estes tiveram de realizar devido ao incumprimento por esta transportadora aérea dos deveres de assistência (reembolso do bilhete ou reencaminhamento para o destino final, assunção das despesas de transporte entre o aeroporto de chegada e o aeroporto inicialmente previsto) e de assunção de despesas (de restauração, alojamento e comunicações) que lhe incumbem por força dos artigos 8.° e 9.° deste regulamento.

43      Com efeito, não se pode considerar que as pretensões dos passageiros dos transportes aéreos, baseadas nos direitos que lhes são conferidos pelo referido regulamento, como os enunciados nos artigos 8.° e 9.° deste último, são abrangidas por uma indemnização «suplementar», no sentido em que esta última foi definida no n.° 38 do presente acórdão.

44      No entanto, quando uma transportadora aérea não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 8.° e 9.° do Regulamento n.° 261/2004, os passageiros podem invocar o direito a uma indemnização com base nos elementos enunciados nos referidos artigos.

45      Por último, tendo o tribunal nacional evocado a questão de saber se os direitos dos passageiros dos transportes aéreos previstos nos artigos 8.° e 9.° do Regulamento n.° 261/2004 estão dependentes da invocação das referidas disposições por parte destes últimos, importa sublinhar que, como referiu a advogada‑geral no n.° 61 das suas conclusões, nada no Regulamento n.° 261/2004 se opõe à concessão de uma indemnização pelo incumprimento das obrigações previstas nos artigos 8.° e 9.° do referido regulamento, se estas disposições não tiverem sido invocadas pelos ditos passageiros.

46      Face às considerações anteriores, há que responder à segunda questão que o conceito de «indemnização suplementar» mencionado no artigo 12.° do Regulamento n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que permite ao juiz nacional indemnizar, nas condições previstas pela Convenção de Montreal ou pelo direito nacional, o dano, incluindo o dano moral, resultante do incumprimento do contrato de transporte aéreo. Em contrapartida, este conceito de «indemnização suplementar» não pode servir de fundamento jurídico ao juiz nacional para condenar a transportadora aérea a reembolsar aos passageiros do voo que foi atrasado ou cancelado as despesas que estes tiveram de efectuar devido ao incumprimento, pela referida transportadora, dos seus deveres de assistência previstos nos artigos 8.° e 9.° deste regulamento.

 Quanto às despesas

47      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O conceito de «cancelamento», conforme definido no artigo 2.°, alínea l), do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, não visa exclusivamente a hipótese de não descolagem do avião em causa, abrangendo igualmente o caso de esse avião ter descolado, mas de, por qualquer razão, ter sido depois forçado a regressar ao aeroporto de partida no qual os passageiros do referido avião foram transferidos para outros voos.

2)      O conceito de «indemnização suplementar» mencionado no artigo 12.° do Regulamento n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que permite ao juiz nacional indemnizar, nas condições previstas pela Convenção de Montreal para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional ou pelo direito nacional, o dano, incluindo o dano moral, resultante do incumprimento do contrato de transporte aéreo. Em contrapartida, este conceito de «indemnização suplementar» não pode servir de fundamento jurídico ao juiz nacional para condenar a transportadora aérea a reembolsar aos passageiros do voo que foi atrasado ou cancelado as despesas que estes tiveram de efectuar devido ao incumprimento, pela referida transportadora, dos seus deveres de assistência previstos nos artigos 8.° e 9.° deste regulamento.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.