Processo C‑457/09

Claude Chartry

contra

État belge

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal de première instance de Liège)

«Reenvio prejudicial – Artigo 234.° CE – Apreciação da conformidade de uma disposição nacional com o direito da União e com a Constituição nacional – Legislação nacional que prevê o carácter prioritário de um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Necessidade de conexão com o direito da União – Incompetência manifesta do Tribunal de Justiça»

Sumário do despacho

1.        Questões prejudiciais – Recurso ao Tribunal de Justiça – Competência dos tribunais nacionais – Legislação nacional que prevê o carácter prioritário de um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade – Inadmissibilidade – Requisito

(Artigo 234.° CE)

2.        Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Limites – Pedido de interpretação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Decisão nacional que não apresenta nenhum elemento de conexão ao Direito da União – Incompetência do Tribunal de Justiça

(Artigo 234.° CE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 51.°, n.° 1)

1.        O artigo 234.° CE opõe‑se à legislação de um Estado‑Membro que institui um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade das leis nacionais, na medida em que o carácter prioritário desse procedimento tenha como consequência impedir, quer antes da transmissão de uma questão de constitucionalidade ao tribunal nacional encarregado de exercer a fiscalização de constitucionalidade das leis quer, sendo caso disso, posteriormente à decisão desse tribunal sobre a referida questão, todos os outros órgãos jurisdicionais nacionais de exercerem a sua faculdade ou de cumprirem a sua obrigação de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.

(cf. n.° 20)

2.        Chamado a pronunciar‑se ao abrigo do artigo 234.° CE, o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre a interpretação do Tratado e sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições da União Europeia. Neste âmbito, a competência do Tribunal de Justiça está limitada unicamente ao exame das disposições do direito da União.

O artigo 51.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia enuncia que as disposições desta têm por destinatários os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. De resto, esta limitação não foi alterada com a entrada em vigor, a 1 de Dezembro de 2009, do Tratado de Lisboa, após a qual, e por força do novo artigo 6.°, n.° 1, UE, a Carta tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. Com efeito, este artigo precisa que de forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União tal como definidas nos Tratados.

Não ficou assim demonstrada a competência do Tribunal de Justiça para responder a um pedido de interpretação do artigo 6.°, n.° 1, UE, quando a decisão de reenvio não contém nenhum elemento concreto que permita considerar que o objecto do litígio apresenta uma conexão com o direito da União.

(cf. n.os 21,23‑26)







DESPACHO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

1 de Março de 2011 (*)

«Reenvio prejudicial – Artigo 234.° CE – Apreciação da conformidade de uma disposição nacional com o direito da União e com a Constituição nacional – Legislação nacional que prevê o carácter prioritário de um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Necessidade de conexão com o direito da União – Incompetência manifesta do Tribunal de Justiça»

No processo C‑457/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo tribunal de première instance de Liège (Bélgica), por decisão de 29 de Outubro de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 23 de Novembro de 2009, no processo

Claude Chartry

contra

État belge,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: J.‑J. Kasel, presidente de secção, M. Ilešič e M. Berger (relatora), juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Calot Escobar,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Despacho

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 6.° UE, na versão anterior ao Tratado de Lisboa, e do artigo 234.° CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe C. Chartry ao Estado belga, em matéria fiscal.

 Quadro jurídico

3        O artigo 26.° da Lei especial de 6 de Janeiro de 1989 sobre a Cour d’arbitrage (Moniteur belge de 7 de Janeiro de 1989), conforme alterado, designadamente, pela Lei especial de 12 de Julho de 2009 (Moniteur belge de 31 de Julho de 2009), tem a seguinte redacção:

«§ 1. A Cour d’arbitrage decide, a título prejudicial, por acórdão, nas questões relativas à

[...]

3°      violação por uma lei, decreto ou disposição prevista no artigo 134.° da Constituição, dos artigos do título II ‘Dos Belgas e seus direitos’, e dos artigos 170.°, 172.° e 191.° da Constituição,

[...]

§ 2.      Quando uma questão deste tipo é suscitada perante um órgão jurisdicional, este deve pedir à Cour d’arbitrage que se pronuncie sobre ela.

Contudo, o órgão jurisdicional não está sujeito a esta obrigação:

[…]

2°      quando a Cour d’arbitrage já se pronunciou sobre uma questão ou um recurso com um objecto idêntico.

[…]

§ 4.      Quando seja alegado perante um órgão jurisdicional nacional que uma lei, um decreto ou uma disposição referida no artigo 134.° da Constituição viola um direito fundamental garantido em termos total ou parcialmente semelhantes por uma disposição do título II da Constituição e por uma disposição de direito da União ou de direito internacional, o órgão jurisdicional está obrigado a submeter previamente à Cour d’arbitrage a questão prejudicial sobre a compatibilidade com a disposição do título II da Constituição.

Em derrogação do primeiro parágrafo, a obrigação de submeter uma questão prejudicial à Cour d’arbitrage não é aplicável:

1°      nos casos previstos nos n.os 2 e 3;

[…]»

4        O artigo 28.° da Lei especial de 6 de Janeiro de 1989 sobre a Cour d’arbitrage prevê:

«O órgão jurisdicional que submeteu a questão prejudicial, bem como qualquer outro órgão jurisdicional chamado a decidir no mesmo processo, estão obrigados, para a solução do litígio no qual foram colocadas as questões visadas no artigo 26.°, a dar cumprimento ao acórdão proferido pela Cour d’arbitrage.»

 Matéria de facto na origem do litígio e questão prejudicial

5        C. Chartry, com domicílio na Bélgica, trabalhou como informador para uma sociedade estabelecida na Bélgica, especializada na defesa de segurados.

6        Na sequência de uma fiscalização, a Administração Fiscal belga rectificou os rendimentos declarados por C. Chartry relativos aos exercícios fiscais de 1994, 1995 e 1996 e recalculou o montante dos impostos directos devidos por C. Chartry a título desses exercícios. O imposto adicional relativo ao exercício de 1994 devia ser liquidado até 18 de Fevereiro de 1997, o relativo ao exercício de 1995 até 18 de Setembro de 1997 e o relativo ao exercício de 1996 até 25 de Agosto de 1997.

7        Em 11 de Fevereiro e 9 de Outubro de 1997, C. Chartry reclamou das decisões que fixaram o imposto adicional.

8        Em 30 de Novembro e 7 de Dezembro de 2001, C. Chartry foi notificado da interrupção da prescrição.

9        As reclamações de C. Chartry foram em grande parte indeferidas por decisão da Administração Fiscal de 17 de Outubro de 2007.

10      Em 17 de Janeiro de 2008, C. Chartry recorreu para o tribunal de première instance de Liège. Sustentou que, de acordo com a regulamentação fiscal belga, os impostos directos prescrevem ao fim de cinco anos a contar da data fixada para o seu pagamento e que não houve interrupção da prescrição na acepção do artigo 2244.° do Código Civil belga nos cinco anos que se seguiram à data fixada para o pagamento do imposto adicional que lhe é reclamado. No que se refere aos avisos de notificação datados de 2001, C. Chartry invoca a jurisprudência da Cour de cassation belga de acordo com a qual um aviso notificado relativo a uma dívida de imposto contestada não tem como efeito interromper a prescrição na acepção do artigo 2244.° do referido Código Civil.

11      O Estado belga afirma, por seu turno, que, por força do artigo 49.° da Lei‑Programa de 9 de Julho de 2004 (Moniteur belge de 15 de Julho de 2004), ainda que a dívida de imposto seja contestada, um aviso deve ser interpretado como um acto que interrompe a prescrição na acepção do artigo 2244.° do Código Civil belga.

12      O órgão jurisdicional de reenvio indica que, por acórdãos de 7 de Dezembro de 2005 e de 1 de Fevereiro de 2006, a Cour d’arbitrage considerou que o artigo 49.° da Lei‑Programa de 9 de Julho de 2004 tem efeito retroactivo que atinge as garantias jurisdicionais de que gozam os cidadãos, mas que esse efeito é justificado por circunstâncias excepcionais e é ditado por razões imperiosas de interesse geral.

13      O órgão jurisdicional de reenvio entende que o artigo 49.° da Lei‑Programa de 9 de Julho de 2004, tendo em conta o seu carácter retroactivo, constitui uma intervenção do legislador num processo judicial em curso que, na situação especial de C. Chartry, não é justificada por um justo equilíbrio entre as exigências do interesse geral e a protecção dos direitos fundamentais do interessado.

14      O órgão jurisdicional de reenvio considera, contudo, que está impedido de retirar as consequências desta constatação pelo artigo 26.° da Lei especial de 6 de Janeiro de 1989 sobre a Cour d’arbitrage, que, em princípio, obriga o órgão jurisdicional perante o qual é invocado quando uma disposição viola um direito fundamental garantido simultaneamente por uma disposição da Constituição belga e uma disposição de direito da União ou de direito internacional a colocar previamente à Cour d’arbitrage a questão prejudicial sobre a constitucionalidade da disposição em causa. É certo que, por aplicação dos n.os 4, segundo parágrafo, ponto 1, e 2, segundo parágrafo, ponto 2, do referido artigo, esta obrigação não lhe era aplicável no caso concreto, uma vez que a Cour d’arbitrage já por duas vezes afirmou a conformidade do artigo 49.° da Lei‑Programa de 9 de Julho de 2004 com a Constituição belga. Estas decisões da Cour d’arbitrage impedem‑no, contudo, de exercer uma fiscalização específica, individualizada, das circunstâncias particulares do litígio que lhe foi submetido.

15      Foi nestas condições que o tribunal de première instance de Liège decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 6.° [UE] e o artigo 234.° [CE] opõem‑se a que uma lei nacional, como a Lei de 12 de Julho de 2009, que altera o artigo 26.° da Lei especial de 6 de Janeiro de 1989 sobre a Cour d’arbitrage, imponha ao juiz nacional a obrigação de interrogar previamente a Cour constitutionnelle quando constata que um contribuinte nacional é privado por outra lei nacional, isto é, o artigo 49.° da [Lei‑Programa] de 9 de Julho de 2004, da protecção jurisdicional efectiva garantida pelo artigo 6.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950, a seguir «CEDH»], integrad[o] no direito comunitário, sem que esse juiz possa assegurar imediatamente o efeito directo do direito comunitário no litígio que lhe é submetido e possa ainda exercer um controlo da conformidade com convenções quando a Cour constitutionnelle reconheceu a compatibilidade da lei nacional com os direitos fundamentais garantidos pelo título II da Constituição [belga]?»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

16      Os Governos belga e francês, bem como a Comissão Europeia, que apresentaram observações escritas, sustentam que o Tribunal de Justiça não é competente para responder à questão submetida.

17      Para verificar a competência do Tribunal de Justiça, importa examinar o objecto da questão submetida.

18      Na sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 234.° CE se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que, por um lado, impõe aos seus órgãos jurisdicionais que submetam previamente ao órgão jurisdicional nacional encarregado de exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis uma questão relativa à conformidade de uma disposição de direito interno com um direito fundamental garantido pela Constituição quando está em causa, concomitantemente, a contradição desta disposição com um direito fundamental garantido total ou parcialmente pelo direito da União e que, por outro, vincula os órgãos jurisdicionais do referido Estado‑Membro quanto à apreciação jurídica feita pelo órgão jurisdicional nacional encarregado de exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis.

19      A este respeito, importa recordar que, de acordo com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, para assegurar o primado do direito da União, o funcionamento do sistema de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituído pelo artigo 234.° CE requer que o juiz nacional possa livremente, em qualquer momento do processo que considere adequado, submeter ao Tribunal de Justiça qualquer questão prejudicial que entenda ser necessária (v. acórdão de 22 de Junho de 2010, Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, Colect., p. I‑0000, n.° 52).

20      Mais exactamente, o Tribunal de Justiça considerou que o artigo 234.° CE se opõe à legislação de um Estado‑Membro que institui um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade das leis nacionais, na medida em que o carácter prioritário desse procedimento tenha como consequência impedir, quer antes da transmissão de uma questão de constitucionalidade ao tribunal nacional encarregado de exercer a fiscalização de constitucionalidade das leis quer, sendo caso disso, posteriormente à decisão desse tribunal sobre a referida questão, todos os outros órgãos jurisdicionais nacionais de exercerem a sua faculdade ou de cumprirem a sua obrigação de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (acórdão Melki e Abdeli, já referido, n.° 57).

21      Contudo, importa recordar também que, chamado a pronunciar‑se ao abrigo do artigo 234.° CE, o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre a interpretação do Tratado CE e sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições da União Europeia. Neste âmbito, a competência do Tribunal de Justiça está limitada unicamente ao exame das disposições do direito da União (v., designadamente, despachos de 16 de Janeiro de 2008, Polier, C‑361/07, n.° 9, e de 12 de Novembro de 2010, Asparuhov Estov e o., C‑339/10, Colect., p. I‑0000, n.° 11).

22      É jurisprudência assente que as exigências que decorrem da protecção dos direitos fundamentais vinculam os Estados‑Membros sempre que estes sejam chamados a aplicar o direito da União (v. despacho Asparuhov Estov e o., já referido, n.° 13).

23      Do mesmo modo, o artigo 51.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») enuncia que as disposições desta têm por destinatários «os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União».

24      De resto, esta limitação não foi alterada com a entrada em vigor, a 1 de Dezembro de 2009, do Tratado de Lisboa, após a qual, e por força do novo artigo 6.°, n.° 1, UE, a Carta tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. Com efeito, este artigo precisa que de forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados.

25      Ora, embora o direito a um recurso efectivo, garantido pelo artigo 6.°, n.° 1, da CEDH, a que se refere o órgão jurisdicional de reenvio, constitua um princípio geral do direito da União (v., designadamente, acórdão de 16 de Julho de 2009, Der Grüne Punkt Duales System Deutschland/Comissão, C‑385/07 P, Colect., p. I‑6155, n.os 177 e 178), e foi reafirmado no artigo 47.° da Carta, não é menos certo que a decisão de reenvio não contém nenhum elemento concreto que permita considerar que o objecto do litígio no processo principal apresenta uma conexão com o direito da União. O litígio no processo principal, que opõe um cidadão belga ao Estado belga a propósito da tributação das actividades exercidas no território deste Estado‑Membro, não apresenta nenhum elemento de conexão com qualquer das situações consideradas nas disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de pessoas, de serviços ou de capitais. Além disso, o referido litígio não incide sobre a aplicação de medidas nacionais pelas quais o Estado‑Membro em causa aplique o direito da União.

26      Não ficou assim demonstrada a competência do Tribunal de Justiça para responder ao presente pedido de decisão prejudicial.

27      Nestas condições, há que concluir que, com base no artigo 92.°, n.° 1, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça é manifestamente incompetente para responder à questão que lhe foi submetida pelo tribunal de première instance de Liège.

 Quanto às despesas

28      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) decide:

O Tribunal de Justiça da União Europeia é manifestamente incompetente para responder à questão que lhe foi submetida pelo tribunal de première instance de Liège (Bélgica).

Assinaturas


* Língua do processo: francês.