CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 30 de Setembro de 2010 (1)

Processo C‑239/09

SEYDALAND Vereinigte Agrarbetriebe GmbH & Co. KG

contra

BVVG Bodenverwertungs‑ und ‑verwaltungs GmbH

(pedido de decisão prejudicial apresentado Landgericht Berlin)

«Auxílios de Estado – Programa de privatização dos terrenos agrícolas dos ‘novos Länder’ – Cálculo do valor de mercado»





I –    Introdução

1.        No presente processo, o Landgericht Berlin pergunta ao Tribunal de Justiça se uma norma nacional que prevê diversos métodos para o cálculo do valor de mercado dos terrenos agrícolas situados nos «novos Länder» e objecto de privatização é compatível com o artigo 87.° CE (actual artigo 107.° TFUE).

2.        A questão requer em primeiro lugar, determinar quais são propriamente os referidos métodos previstos no preceito controvertido, ponto sobre o qual não existe uma opinião unânime nos autos, e em segundo lugar, indagar se os referidos métodos permitem, na prática, determinar o valor de mercado real das terras privatizadas. Este último elemento é essencial para garantir que nas transacções em questão não é excedida a quantia máxima admitida pelo direito da União para os auxílios que pode receber o comprador das terras (35% do valor de mercado).

3.        Como se verá, o carácter técnico do processo e a indefinição de alguns dos seus elementos principais obrigam, a meu ver, o Tribunal de Justiça a dar à questão submetida uma resposta condicionada e dinâmica, isto é, dependente, por um lado, de diversas apreciações fácticas de carácter evolutivo, e, por outro, da interpretação do direito interno que o juiz nacional faça, e, além disso, fundamentada na aplicação concreta que em cada caso seja feita da disposição controvertida.

II – Quadro normativo

A –    As normas do direito da União em matéria de auxílios de Estado

4.        Em 10 de Julho de 1997, a Comissão publicou uma Comunicação no que respeita a auxílios estatais no âmbito da venda de terrenos e imóveis públicos (a seguir «comunicação») (2), com a finalidade de clarificar a sua política nesta matéria e reduzir, assim, o número de casos a examinar.

5.        O capítulo II, n.° 2, letra a) desta comunicação dispõe no seu primeiro parágrafo que, se as autoridades públicas decidirem não recorrer à venda através de concurso público aberto e incondicional (que se presume uma venda realizada ao valor de mercado e não contêm consequentemente, nenhum elemento de auxílio de Estado), «deverá ser efectuada uma avaliação independente por um ou vários peritos avaliadores previamente às negociações de venda, por forma a estabelecer o valor de mercado, com base em indicadores de mercado e critérios de avaliação de aceitação geral. O preço de mercado estabelecido desta forma constituirá o preço mínimo de aquisição susceptível de ser acordado sem a concessão de auxílios estatais». No quinto parágrafo precisa‑se que «[p]or ‘valor de mercado’ entende‑se o preço pelo qual os terrenos e construções poderiam ser vendidos, à data da avaliação, por contrato privado celebrado entre um vendedor voluntário e um comprador independente, subentendendo‑se que o bem é objecto de uma oferta pública no mercado, que as condições deste permitem uma venda regular e que se dispõe de um prazo normal para negociar a venda, tendo em conta a natureza do bem».

6.        O Regulamento (CE) n.° 950/97 do Conselho, de 20 de Maio de 1997, relativo à melhoria da eficácia das estruturas agrícolas (3), contém algumas previsões específicas para as ajudas no âmbito da política agrícola. O seu artigo 7.°, n.° 2, alínea b), dispõe que o valor total da ajuda, expresso em percentagem do volume do investimento, é limitado a 35% para os investimentos em bens imóveis situados em zonas não desfavorecidas. Este regulamento foi revogado e substituído pelo Regulamento (CE) n.° 1257/1999 (4), cujo artigo 7.°, segundo parágrafo, dispõe que «[é] fixado um limite máximo de 40% […] para o montante total do apoio, expresso em percentagem do volume de investimento elegível».

B –    Direito alemão

7.        As normas reguladoras do programa de aquisição de terras agrícolas dos novos Länder estão contidas numa lei de 27 de Setembro de 1994 (Ausgleichsleistungsgesetz – AusglLeistG; a seguir «Lei das indemnizações») (5), que foi executada, quanto a este aspecto, por um regulamento de 20 de Dezembro de 1995 (Flächenerwerbsverordnung; a seguir «Regulamento da aquisição de terras») (6).

8.        Nos termos do § 3.°, n.° 7, da Lei das indemnizações, o valor das terras agrícolas é calculado reduzindo‑se o valor de mercado em 35%.

9.        O § 5.°, n.° 1, do Regulamento da aquisição de terras dispunha na sua versão aplicável ao caso em apreço, o seguinte:

«O valor de mercado dos terrenos agrícolas, nos termos do § 3, n.° 7, primeira e sexta frases, […] da Lei das indemnizações, é apurado nos termos do disposto no Regulamento das avaliações [Wertermittlungsverordnung] de 6 de Dezembro de 1988 (BGBl. I, p. 2209) […].

Caso existam avaliações regionais [regionale Wertansätze] para terras aráveis e pastos, o valor será determinado com base nas mesmas. As avaliações regionais são publicadas pelo Ministro Federal das Finanças [Bundesminister der Finanzen] no Jornal Oficial Federal [Bundesanzeiger]. O interessado na compra ou a entidade responsável pela privatização poderá requerer que se proceda à fixação de um valor de mercado diferente das referidas avaliações, através de um relatório de avaliação elaborado pelo comité territorialmente competente constituído nos termos do § 192 da Código da edificação [Bundesbaugesetz], desde que efectivamente existam indícios de que as avaliações regionais são desadequadas para servir de base à determinação do valor.» (7)

C –    As decisões da Comissão em relação ao regime alemão de privatização de terras

10.      Após uma primeira decisão pela qual a Comissão declarou parcialmente incompatível com o mercado interno o regime de auxílios estabelecido pelo programa alemão de privatização de terras (8), as autoridades alemãs introduziram determinadas alterações normativas, o que levou a que a regulamentação alemã fosse, nos termos já expostos, declarada compatível com o artigo 87.° CE por uma nova decisão da Comissão de 19 de Janeiro de 2000 (9).

III – O litígio no processo principal e a questão prejudicial

11.      A BVVG (Bodenverwertungs‑ und ‑verwaltungs GmbH, a seguir «BVVG»), demandada no processo principal, é uma filial integralmente detida pelo Bundesanstalt für vereinigungsbedingte Sonderaufgaben, organismo federal para os assuntos especificamente relacionados com a reunificação alemã. Este organismo incumbiu a BVVG de proceder à privatização de certas áreas agrícolas e florestais.

12.       Por contrato celebrado em 18 de Dezembro de 2007, a BVVG vendeu à Seydaland determinados prédios rústicos com aptidão agrícola, que no passado tinham pertencido à República Democrática Alemã. O preço total de compra foi de 245 907,91 euros, dos quais 210 810,18 correspondiam a áreas agrícolas.

13.      A Seydaland intentou uma acção contra a BVVG perante o Landgericht Berlin, alegando que o preço de venda era excessivo dado que tinha sido calculado através de um procedimento irregular. Na sua opinião, se tivessem sido aplicadas as avaliações regionais, o preço apenas teria sido de 146 850,24 euros. Para a demandada, porém, a venda a esse preço teria constituído um auxílio de Estado contrário ao artigo 87.° CE.

14.      Considerando que a decisão da causa depende se saber se o § 5 do Regulamento da aquisição de terras viola o artigo 87.° CE, o Landgericht Berlin submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O § 5, n.° 1, segunda e quarta (10) frases, do Flächenerwerbsverordnung, adoptado em execução do § 4, n.° 3, ponto 1, da Ausgleichsleistungsgesetz, viola o artigo 87.° CE?»

IV – O processo no Tribunal de Justiça

15.      O pedido prejudicial foi registado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 1 de Julho de 2009.

16.      Apresentaram observações, a Seydaland, a BVVG, a Comissão e o Governo alemão.

17.      Em 30 de Abril de 2010, o Tribunal de Justiça colocou ao Governo alemão duas perguntas escritas relativas ao comité de peritos imobiliários previsto no § 192 da Código da edificação: em primeiro lugar, indagava‑se sobre as regras relativas à nomeação dos seus membros e acerca das regras de funcionamento aplicadas pelo comité quando intervém no âmbito de um privatização de terrenos agrícolas nos termos do § 5 do Regulamento da aquisição de terras; em segundo lugar, perguntava‑se se, para fixar nesse contexto o valor de mercado das terras, o comité está vinculado por avaliações ou se, pelo contrário, dispõe de uma margem de apreciação. O Governo alemão respondeu a ambas as questões por escrito apresentado em 28 de Maio de 2010. A respeito da composição dos comités de peritos imobiliários, afirma resumidamente que os seus membros devem estar especializados na matéria e ser independentes (a sua actividade principal, por exemplo, não pode consistir em avaliar imóveis da entidade local em causa) e que as regras para a sua designação são determinadas pelos diversos Länder. Quanto à segunda questão, o Governo alemão declara que os comités de peritos são livres e independentes e que não estão vinculados por quaisquer avaliações, embora existam alguns parâmetros que podem ser tidos em conta. Numa primeira fase decidem‑se os parâmetros que podem ser tomados em consideração na avaliação do terreno em causa e, posteriormente, discute‑se o valor que deve ser atribuído aos referidos parâmetros.

V –    Submissão da questão. Reformulação

A –    O objecto do litígio no processo principal: definição das posições

18.      No litígio que lhe é submetido, o Landgericht Berlin deve determinar se, relativamente à transacção com a Seydaland, a actuação da BVVG, sociedade responsável pela privatização das terras agrícolas da antiga República Democrática Alemã, foi realizada em conformidade com o direito.

19.      Nestes termos, o processo gira à volta de um elemento instrumental do regime desta privatização que é o método de cálculo do valor de mercado que deverá servir de base para a determinação do preço de venda destas terras.

20.      Ninguém discute que, nos termos do direito da União, a intensidade máxima do auxílio que pode receber o comprador é de 35% do valor de mercado das terras adquiridas (11). A este respeito, o § 3, n.° 7, da Lei alemã relativa às indemnizações optou por estabelecer que o valor das terras agricultor deve ser calculado mediante a subtracção desta percentagem máxima de 35% ao valor de mercado.

21.      As divergências de opinião surgem quando se trata de determinar qual o método de cálculo a utilizar num caso este a fim de, conciliando as exigências do direito interno e dos Tratados, poder obter o valor real de mercado das terras objecto de privatização.

22.      A Seydaland considera que, à luz do § 5 do Regulamento alemão relativo à aquisição de terras, a BVVG deveria ter formado o preço de venda dos terrenos a partir das avaliações regionais publicadas oficialmente ou recorrendo à intervenção de um comité de avaliação nos termos do § 192 da Código da edificação. Ao optar por recorrer a uma terceira via não expressamente prevista no referido § 5, que consiste em deduzir, através do seu próprio sistema de cálculo, o preço de venda com base na situação actual do mercado, a demandada actuou indevidamente.

23.      Em contrapartida, a BVVG alega que, no momento da celebração da venda, as avaliações regionais estavam desfasadas dado que não tinham podido adaptar‑se com rapidez suficiente à nova situação do mercado nos novos Länder, caracterizada por um extraordinário aumento dos preços das terras agrícolas (12). As referidas avaliações não reflectiam uma situação actualizada do mercado, mas sim um contexto de preços mais baixos correspondente a um ou dois anos anteriores. Consequentemente, se o preço tivesse sido calculado através da utilização das avaliações regionais, ter‑se‑ia obtido um valor inferior ao do mercado e, após a aplicação da redução de 35%, ter‑se‑ia concedido um auxílio de Estado ilegal.

24.      Por outro lado, o próprio Ministério das Finanças alemão estava consciente desta situação quando, em 10 de Julho de 2007, deu instruções à BVVG para examinar as avaliações regionais publicadas no Jornal Oficial Federal, para caso estas divergissem em mais de 20% da média dos valores utilizados em operações equiparáveis no mercado pudessem deixar servir de base à determinação do valor de mercado.

25.       Segundo o cálculo da demandada, tal era a situação no caso em apreço. Por esta razão e dadas as dificuldades que resultariam do recurso a uma avaliação individual para cada venda num programa de privatizações tão amplo, a BVVG utilizou um novo conjunto de avaliações que a própria tinha elaborado a partir de dados obtidos noutras vendas de terrenos recentes, bem como dos dados procedentes do próprio comité de peritos constituído nos termos do § 192 da Código da edificação.

26.      Na sua intervenção no Tribunal de Justiça, a BVVG e o Governo alemão defendem que a actuação da primeira foi correcta na perspectiva do direito da União, na medida em que a determinação de um valor actual e real de mercado constitui uma exigência iniludível deste direito (em particular, do artigo 87.° CE e da comunicação da Comissão de 1997). De resto, também sustentam a legalidade da referida actuação sob o ponto de vista do direito interno, por entenderem que o § 5, n.° 1, do Regulamento da aquisição de terras não se opõe à utilização de um método de avaliação diferente dos que cita expressamente.

27.      Ora, na sua questão prejudicial, o Landgericht Berlin só indirectamente projecta as suas dúvidas sobre a regularidade da actuação da BVVG neste caso. O que o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber é se «[o] § 5, n.° 1, segunda e quarta frases», do Regulamento da aquisição de terras é, em abstracto, compatível com o artigo 87.° CE.

28.      Portanto, não se trata de determinar se o método de cálculo utilizado neste caso concreto pela BVVG permitia obter o valor de mercado das terras (o que não parece que se discuta), mas se os restantes métodos expressamente previstos no referido § 5 teriam permitido também realizá‑lo. Apenas em caso afirmativo seria possível considerar que a disposição em causa é compatível com o direito da União (13).

29.      Ora, antes de realizar esta análise, importa proceder a uma reformulação da questão prejudicial.

B –    Reformulação da questão prejudicial

30.      Em primeiro lugar, há que recordar que o Landgericht Berlin se refere unicamente às segunda e quarta frases do § 5, n.° 1, que, na sua versão vigente à data da celebração do contrato, fazia referência expressa a dois métodos de avaliação: as avaliações regionais e o comité de avaliação previsto pelo § 192 da Código da edificação, respectivamente.

31.      Por conseguinte, em princípio, o Landgericht Berlin deixou fora da questão prejudicial a primeira frase do § 5 que dispõe que «[o] valor de mercado das terras aptas para a exploração agrícola […] é apurado nos termos do disposto no Regulamento relativo à avaliação do valor [Wertermittlungsverordnung] de 6 de Dezembro de 1988». O Governo alemão, contudo, alega que esta parte da disposição é indispensável para uma adequada interpretação da mesma e a mais importante para assegurar a sua total compatibilidade com o direito da União. Para efeitos, portanto, de proporcionar uma resposta útil ao juiz nacional, considero conveniente incluir na análise a totalidade do § 5, n.° 1, do Regulamento da aquisição de terras.

32.      Em segundo lugar, importa recordar que o Tribunal de Justiça não pode, no âmbito de um processo prejudicial, pronunciar‑se directamente sobre a compatibilidade de uma norma nacional com o direito da União. A referência ao § 5 do Regulamento da aquisição de terras deve, consequentemente, ser feita de modo indirecto.

33.      Atendendo ao exposto, entendo que a questão prejudicial pode ser adequadamente formulada nos seguintes termos:

«Uma norma nacional como o § 5, n.° 1, do Flächenerwerbsverordnung é contrária ao artigo 87.° CE?»

VI – Análise da questão prejudicial

A –    Quanto a saber se os métodos de cálculo do § 5, n.° 1, permitem obter o valor real de mercado

34.      Como se afirmou acima, a apreciação da compatibilidade do § 5 do Regulamento da aquisição de terras com o artigo 87.° CE exige que se determine se os métodos de cálculo previstos naquele preceito são adequados para determinar o verdadeiro valor de mercado das terras agrícolas. Só em caso afirmativo poderá garantir‑se que não será fixado um preço tão baixo que implique a concessão ao comprador de um auxílio de Estado.

35.      Para efeitos desta análise, parecem‑me oportunas algumas considerações prévias.

36.      Há que observar que a importância da obtenção do valor de mercado destas terras é determinada pela circunstância de a Alemanha ter optado por aplicar a esse valor a redução máxima admitida, neste caso 35% do mesmo, ao seu preço de venda (14). Se o Estado tivesse escolhido aplicar uma redução sensivelmente menor, o risco de uma determinação incorrecta do valor de mercado se traduzir imediatamente num auxílio de Estado ilegal teria sido consideravelmente mais baixo. Ao invés, quando, como no caso em apreço, o Estado opta por fazer toda a dedução que lhe é permitida, qualquer determinação do valor de mercado das terras em relação à qual se possa afirmar com fundamento que não reflecte, por ser inferior, o valor de mercado, traduz‑se num auxílio ilegal.

37.      É claro que nenhum método é infalível na determinação ex ante do valor real de mercado, como também é evidente que os métodos imagináveis não são todos igualmente adequados. Na sua versão inicial da disposição controvertida, a Alemanha renunciou tanto a um concurso público aberto como à avaliação individual, preferindo dois procedimentos, um principal, consistente na aplicação das designadas avaliações regionais, e outro subsidiário, a apreciação por um comité de avaliação que, pelo menos parcialmente, parece também guiar‑se pelas suas próprias tabelas de valores.

38.      Evidentemente, a melhor forma de obter um valor de mercado consiste em submeter a transacção a um procedimento de concurso público aberto e incondicional. Assim, a comunicação da Comissão de 10 de Julho de 1997 presume que estas ventas por hasta pública se realizam sempre ao valor de mercado, pelo que não comportam nenhum elemento de auxílio de Estado. No entanto, não se efectuando uma venda em hasta pública, a referida comunicação mostra claramente a sua preferência por uma avaliação individualizada do bem baseada «em indicadores de mercado e critérios de avaliação de aceitação geral».

39.      Por conseguinte, o mero facto de o § 5 do Regulamento da aquisição de terras não prever nestes casos o recurso a um procedimento de venda em hasta pública – de difícil execução em programas de privatização tão extensos como este – não implica a sua incompatibilidade com o direito da União.

40.      Por outro lado, a utilização de tabelas de valores ou avaliações também não constitui, a meu ver, um factor determinante per se para se concluir que o método de cálculo em causa é inadequado para fixar o valor de mercado: a própria comunicação da Comissão faz referência, como se viu, ao emprego de «indicadores de mercado» e a «critérios de avaliação de aceitação geral». Ora, à referida comunicação está subjacente a ideia de que estes indicadores ou critérios devem estar o mais possível actualizados para evitar que percam a validade e se tornem desfasados em relação às novas situações do mercado (15). O risco de que tal ocorra é indubitavelmente maior num contexto de preços fortemente crescentes como o que se verificou no caso em apreço.

41.      Finalmente, a maior ou menor probabilidade de um determinado procedimento de cálculo do valor de mercado alcançar o seu objectivo tem desde logo consequências relativas à sua compatibilidade com o direito da União. Ora, uma vez formulada a questão, como no caso vertente, em termos de um juízo geral e abstracto sobre um dado procedimento, é preciso apreciar um certo grau de «improbabilidade» de o referido resultado, isto é, o valor de mercado, poder ser alcançado como um passo prévio à declaração de incumprimento do direito da União.

42.      Dito isto, o facto de essa «improbabilidade» não poder ser apreciada em termos gerais não implica que quaisquer aplicações da disposição em questão respeitem o direito da União. Por conseguinte, a resposta que neste caso o Tribunal de Justiça possa dar não está em condições de resolver todos os problemas que possam colocar‑se ao órgão jurisdicional de reenvio na aplicação desta disposição. Pelo contrário, será este quem deve analisar se, nas circunstâncias específicas de cada caso, se verificou ou não um caso de auxílio ilegal.

43.      É nesta óptica e sob esta perspectiva dinâmica que devem ser analisados os dois métodos de cálculo expressamente previstos no § 5 do Regulamento da aquisição de terras.

1.      O método baseado em «avaliações regionais» (regionale Wertansätze)

44.      O ponto fraco de quaisquer avaliações, o que não é muito discutido, é a sua possível e, incluindo, previsível «desactualização», isto é, a sua falta de correspondência com a evolução do mercado, numa palavra, a sua rigidez perante um fenómeno essencialmente flutuante. Por isso, a possibilidade de «actualização» destes valores adquire uma importância crucial, mesmo apesar de a suficiência destas previsões nunca poder considerar‑se assegurada.

45.      Os autos quase não fornecem dados concretos sobre a forma de elaboração destas avaliações regionais (16) nem, o que é mais importante, sobre o ritmo ou a velocidade a que podem ser actualizados (que pode variar em função do Land).

46.      A Seydaland apresenta uma carta do Instituto regional de cadastro (Landesamt für Vermessung) do Land de Sachsen‑Anhalt na qual se afirma que existe uma actualização rápida (pelo menos anual) dos valores imobiliários de referência (Bodenrichtwerte) do § 196 da Código da edificação, base das avaliações regionais. Ainda que se confirmasse, este dado reflecte unicamente a situação no referido Land.

47.      De resto, no processo praticamente não se discutiu o facto de, no momento da celebração do contrato controvertido, as tabelas publicadas oficialmente não espelharem o valor actual de mercado. Por conseguinte, sob uma perspectiva dinâmica pode concluir‑se que as referidas avaliações regionais podem não corresponder ao valor de mercado se não forem actualizadas com rapidez suficiente, especialmente num contexto de preços crescentes.

2.      O cálculo encomendado a um «comité de avaliação» (Gutachtersausschuss)

48.      No entanto, o próprio § 5 do Regulamento da aquisição de terras parece superar este último inconveniente ao prever a possibilidade de, em tais casos, o cálculo baseado nas avaliações regionais, de aplicação prioritária, ser afastado em favor da intervenção de um comité de avaliação territorialmente competente constituído nos termos do § 192 da Código da edificação.

49.      A actuação destes comités de avaliação poderá ser um instrumento mais flexível, com maior capacidade de adaptação às variações rápidas dos níveis de preços. Dos autos não resulta, contudo, uma opinião unânime sobre este aspecto.

50.      O Landgericht Berlin, por um lado, afirma que os comités não calculam o valor de mercado «de acordo com as características actuais do mercado, mas sim com base num cabaz de vários preços de compra e venda organizado pelo referido comité, nos termos do § 195 da BBauG, que pode ter vários anos». Os comités de avaliação operam também, finalmente, com recurso a tabelas pré‑estabelecidas e susceptíveis de apresentar o mesmo problema de desfasamento das avaliações regionais (17).

51.      Em contrapartida, o Governo alemão sustenta que os membros do comité de avaliação não estão vinculados por nenhuma avaliação e que podem adaptar a sua decisão sobre o valor atendendo a outras circunstâncias. Em particular, a primeira frase do próprio § 5 do Regulamento da aquisição de terras abre ao comité de avaliação, segundo o Governo alemão (18), a possibilidade de aplicar métodos de avaliação diferentes e mais flexíveis. Faremos, contudo, referência a esta possibilidade mais adiante.

52.      Não obstante estes indícios favoráveis, o juízo sobre a compatibilidade deste segundo método de cálculo com o artigo 87.° CE só pode ser feito sob reserva de este permitir, na sua aplicação prática, alcançar o resultado adequado. Caberá novamente ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar até que ponto os indícios ou as tabelas que o comité de avaliação aplique estão suficientemente actualizados e se o referido comité dispõe de suficiente liberdade para, sendo caso disso, afastar‑se desses valores pré‑estabelecidos.

B –    Quanto a saber se o § 5, n.° 1, prevê outros métodos de cálculo alternativos

53.      Ora, mesmo que se chegasse à conclusão de que os dois métodos de cálculo antes analisados não permitem garantir de modo suficiente uma avaliação correcta do valor de mercado, o § 5, n.° 1, do Regulamento da aquisição de terras ainda poderia ser compatível com o direito da União se fosse possível a interpretar a sua letra no sentido de que não se opõe à aplicação de um mecanismo alternativo para a determinação do referido valor de mercado (por exemplo, o aplicado pela BVVG).

54.      Dos autos não resulta com clareza se esta via alternativa de cálculo é uma possibilidade implicitamente contemplada no referido § 5, ou se é necessário afastar a aplicação desta norma para chegar a uma solução que respeite as exigências do artigo 87.° CE.

55.      O órgão jurisdicional de reenvio e a Comissão partem da ideia de que o § 5, n.° 1, apenas prevê dois métodos de cálculo do valor de mercado. O Governo alemão, pelo contrário, alega que a referida disposição abre a porta à aplicação de outros métodos de cálculo ao remeter, na sua primeira frase, para as disposições gerais do Regulamento relativo à avaliação do valor (Wertermittlungsverordnung), que contém três métodos adicionais de avaliação. Por seu turno, a BVVG acrescenta que, em todo o caso, o § 5 não exclui o recurso a uma avaliação individualizada das terras realizada por um perito, em conformidade com as regras gerais que regem os litígios civis (§ 404, n.° 2, da Zivilprozessordnung, Código de Processo Civil).

56.      Por outro lado, a nova redacção do § 5, n.° 1, do Regulamento da aquisição de terras, que entrou em vigor em 11 de Julho de 2009, já prevê expressamente esta possibilidade de recorrer à avaliação do valor de mercado por um perito ajuramentado que deverá ter em conta «as últimas evoluções do valor no âmbito dos procedimentos de venda em hasta pública de terrenos comparáveis» (19).

57.      A opção a favor de uma ou outra das duas interpretações possíveis da disposição controvertida, ainda que podendo ser essencial para a resposta à questão prejudicial tal como está formulada, não compete ao Tribunal de Justiça, mas ao órgão jurisdicional que procedeu ao reenvio.

58.      Independentemente desta consideração, importa recordar que a jurisprudência assinalou de forma constante que, em toda a medida do possível, o órgão jurisdicional nacional deve dar à lei interna uma interpretação conforme com as exigências do direito da União (20). O Governo alemão e a BVVG propõem, como se expôs, uma interpretação do § 5 do Regulamento da aquisição de terras conforme com tais exigências, mas incumbirá ao Landgericht Berlin determinar se esta interpretação é ou não possível.

VII – Conclusão

59.      Em conformidade com as reflexões expostas, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial do Landgericht Berlin, declarando que:

«1.      Os procedimentos de determinação dos valores de mercado de terras agrícolas como os previstos no § 5, n.° 1, do Regulamento da aquisição de terras de 20 de Dezembro de 1995 não são contrários ao artigo 87.° CE na medida em que:

a)      as avaliações, indicadas como primeiro critério de determinação do valor, sejam objecto de actualização ao ritmo exigido pela evolução do mercado, ou,

b)      a intervenção do comité de avaliação prevista a título subsidiário não esteja necessariamente vinculada por critérios de avaliação susceptíveis de se tornarem desfasados em resultado da evolução do mercado.

Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se as condições fixadas nas alíneas a) e b) se verificam caso a caso.

2.      A questão de saber se uma norma nacional como a contida no referido regulamento autoriza ou não o recurso a outros critérios de determinação do valor distintos dos expressamente previstos na mencionada disposição, caso ganhe relevância em consequência das alíneas anteriores, deve ser resolvida pelo órgão jurisdicional de reenvio com recurso a uma interpretação conforme com o direito da União.»


1 – Língua original: espanhol.


2 – JO C 209, p. 3.


3 – Regulamento do Conselho de 20 de Maio de 1997 (JO L 142 p. 1).


4 – Regulamento (CE) n.° 1257/1999 do Conselho, de 17 de Maio de 1999, relativo ao apoio do Fundo Europeu de Orientação e de Garantia Agrícola (FEOGA) ao desenvolvimento rural e que altera e revoga determinados regulamentos (JO L 160, p. 80).


5 – Lei das indemnizações a conceder pelas expropriações irreversíveis realizadas entre 1945 e 1949 no quadro da ocupação do território alemão (Gesetz über staatliche Ausgleichsleistungen für Enteignungen auf besatzungsrechtlicher oder besatzungshoheitlicher Grundlage, die nicht mehr rückgängig gemacht werden können), BGBl. I 1994, 2624.


6 – Regulamento da aquisição de terras agrícolas e florestais, o procedimento e os comités nos termos da Lei das indemnizações (Verordnung über den Erwerb land‑ und forstwirtschaftlicher Flächen, das Verfahren sowie den Beirat nach dem Ausgleichsleistungsgesetz), BGBl. I 1995, 2072.


7 –      Esta versão esteve em vigor até 10 de Julho de 2009. A nova versão, em vigor desde 11 de Julho do mesmo ano, tem a seguinte redacção (as alterações estão sublinhadas): «O valor de mercado das terras aptas para a exploração agrícola, nos termos do § 3, n.° 7, primeira e sexta frases, […], da Lei das indemnizações, é apurado nos termos do disposto no Regulamento relativo à avaliação do valor [Wertermittlungsverordnung] de 6 de Dezembro de 1988 (BGBl. I, p. 2209) […]. Caso existam avaliações regionais [regionale Wertansätze] para terras aráveis e pastos, o valor será determinado com base nas mesmas. As avaliações regionais são publicadas pelo Ministro Federal das Finanças no Jornal Oficial Federal. Quando existam indícios de que as avaliações regionais são desadequadas para servir de base à determinação do valor, a entidade responsável pela privatização fará uma oferta tendo em conta a evolução do valor. O interessado na compra ou a entidade responsável pela privatização poderá requerer que se proceda à fixação de um valor de mercado diferente das referidas avaliações, através de um relatório de avaliação elaborado pelo comité territorialmente competente constituído nos termos do § 192 da Baugesetzbuch ou por um perito ajuramentado que deverá também ter em conta as últimas evoluções do valor no âmbito dos procedimentos de venda em hasta pública de terrenos comparáveis.»


8 – Decisão 1999/268/CE da Comissão, de 20 de Janeiro de 1999, relativa à aquisição de terras nos termos da Lei sobre compensações (JO L 107, p. 21).


9 – Decisão de auxílios de Estado n.° 506/99 – Alemanha.


10 –      Embora na versão original da questão prejudicial se leia «segunda e terceira frases», trata‑se de um erro.


11 – Também não é questionado que a utilização de um preço de venda inferior ao do mercado constitui neste caso um «auxílio de Estado» na acepção da jurisprudência, na medida em que preenche todos os requisitos do artigo 87.° CE. Outro exemplo deste tipo de auxílio pode ser encontrado no acórdão de 11 de Dezembro de 2008, Comissão/Département du Loiret (C‑295/07 P, Colect., p. I‑9363).


12 – Segundo a demandada, os preços aumentaram 18% em 2007 e 15% em 2008.


13 – O argumento segundo o qual a decisão da Comissão de 19 de Janeiro de 2000 teria dado o seu aval aos dois métodos de cálculo previstos no § 5 é irrelevante para este efeito, dado que nada impediria o Tribunal de Justiça de manifestar no caso em apreço uma opinião contrária a essa teórica aprovação da Comissão. Por conseguinte, não considero necessário analisar o teor dessa decisão. Em todo o caso, como reconhecem o próprio Governo alemão e a Comissão, esta não aprovou os citados métodos de forma incondicionada, mas sob reserva de estes permitirem, na sua aplicação prática, atingir o valor de mercado das terras em questão.


14 – § 3, n.° 7, da Lei das indemnizações.


15 – Por esta razão, o capítulo II, n.° 2, alínea a), quinto parágrafo, da comunicação entende que o valor de mercado seria aquele ao qual se poderia livremente vender «à data da avaliação».


16 – Para além do facto de estarem baseados em «valores imobiliários de referência» (Bodenrichtwerte) contemplados no § 196 da Código da edificação. As avaliações regionais e estes valores imobiliários de referência parecem distinguir‑se pela área territorial que cobrem (neste sentido, Columbus, C. Die Gemeinschaftskonformität des regionalen Wertansatzes, Briefe zum Agrarrecht 1/2009, 14, 15).


17 – De facto, o cabaz de preços de compra organizado nos termos do § 195 da Código da edificação (Kaufpreissammlung) serve para elaborar os «valores imobiliários de referência» previstos no § 196 da mesma lei (Bodenrichterte), que constituem a base, por sua vez, das avaliações regionais (regionaleWertansätze) (v. nota anterior).


18 – Esta afirmação foi feita no seu primeiro articulado de intervenção no processo.


19 – É claro se pode considerar que a alteração da disposição exprime determinadas carências da redacção anterior, embora o Governo alemão sustente que a reforma clarificou unicamente o teor literal da disposição sem ampliar o seu conteúdo.


20 – Acórdãos de 26 de Setembro de 2000, Engelbrecht (C‑262/97, Colect., p. I‑7321), n.° 39; de 27 de Outubro de 2009, ČEZ (C‑115/08, ainda não publicado na Colectânea), n.° 138; de 13 de Abril de 2010, Wall (C‑91/08, ainda não publicado na Colectânea), n.° 70; e de 22 de Junho de 2010, Aziz Melki e Sélim Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, ainda não publicado na Colectânea), n.os 49 e 50.