Processo C‑413/08 P

Lafarge SA

contra

Comissão Europeia

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Acordos, decisões e práticas concertadas – Placas de estuque – Desvirtuação dos elementos de prova – Ónus da prova – Falta de fundamentação – Regulamento n.° 17 – Artigo 15.°, n.° 2 – Sanção – Reincidência – Fase da tomada em consideração do efeito dissuasivo da coima»

Sumário do acórdão

1.        Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Fundamentos – Apreciação errada dos factos – Inadmissibilidade – Fiscalização pelo Tribunal de Justiça da apreciação dos elementos de prova – Exclusão, salvo em caso de desvirtuação – Fundamento relativo à desvirtuação dos elementos de prova

[Artigos 81.°, n.° 1, CE e 225.° CE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 51.°, primeiro parágrafo; Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigo 112.°, n.° 1, primeiro parágrafo, alínea c)]

2.        Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Prática concertada – Prova da infracção – Ónus da prova

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

3.        Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Fundamentos – Fundamento apresentado pela primeira vez no âmbito do recurso – Inadmissibilidade

4.        Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Reincidência – Base jurídica

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2)

5.        Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Reincidência – Conceito

(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão)

6.        Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Reincidência – Conceito – Infracção declarada por uma decisão objecto de fiscalização jurisdicional – Inclusão – Decisão posteriormente anulada – Consequências

(Artigo 233.° CE e 242.° CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão, ponto 2)

7.        Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Poder de apreciação conferido à Comissão pelo artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 – Violação do princípio da legalidade das penas – Inexistência

(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão)

8.        Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Carácter dissuasivo – Tomada em consideração da dimensão e dos recursos globais da empresa à qual foi aplicada uma sanção – Pertinência

(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2; Comunicação da Comissão 98/C 9/03, ponto 1 A)

1.        Quando um recorrente alega, no âmbito de um recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância, uma desvirtuação de elementos de prova pelo Tribunal de Primeira Instância, deve, em aplicação dos artigos 225.° CE, 51.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça e 112.°, n.° 1, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, indicar de modo preciso os elementos que, em seu entender, foram por ele desvirtuados e demonstrar os erros de análise que, na sua apreciação, levaram o Tribunal de Primeira Instância a essa desvirtuação.

Tal desvirtuação existe quando, sem ter recorrido a novos elementos de prova, a apreciação dos elementos de prova existentes se afigura manifestamente errada.

Num processo relativo à aplicação do artigo 81.°, n.° 1, CE, a existência de uma desvirtuação dos elementos de prova deve ser examinada à luz do facto de que, atendendo à proibição de participar em práticas e em acordos anticoncorrenciais bem como às sanções em que os infractores podem incorrer serem notórias, é usual as actividades que essas práticas e esses acordos comportam desenrolarem‑se de forma clandestina, as reuniões realizarem‑se em segredo, o mais das vezes, num país terceiro, e a documentação a elas respeitante ser reduzida ao mínimo. Mesmo que a Comissão descubra documentos que atestam de forma explícita um contacto ilegítimo entre operadores, como as actas de uma reunião, esses documentos serão normalmente fragmentários e esparsos, pelo que se revela frequentemente necessário reconstituir certos detalhes por dedução. Na maior parte dos casos, a existência de uma prática ou de um acordo anticoncorrencial deve ser inferida de um certo número de coincidências e de indícios que, considerados conjuntamente, podem constituir, na falta de outra explicação coerente, a prova de uma violação das regras da concorrência.

(cf. n.os 16, 17, 22)

2.        Incumbe à parte ou à autoridade que alega uma violação das regras da concorrência aduzir a respectiva prova e que cabe à empresa ou à associação de empresas que invocam um meio de defesa contra uma declaração de infracção a essas regras aduzir a prova de que se encontram preenchidas as condições de aplicação da regra a partir da qual esse meio de defesa é deduzido, pelo que a referida autoridade deverá, então, recorrer a outros elementos de prova.

Mesmo que o ónus da prova incumba, segundo esses princípios, quer à Comissão quer à empresa ou à associação em causa, os elementos factuais que uma parte invoca podem ser de molde a obrigar a outra parte a fornecer uma explicação ou uma justificação, sem o que é permitido concluir que foi dado cumprimento às regras em matéria de ónus da prova.

(cf. n.os 29, 30)

3.        Permitir a uma parte invocar pela primeira vez perante o Tribunal de Justiça um fundamento e argumentos que não invocou perante o Tribunal de Primeira Instância equivaleria a autorizá‑la a chamar o Tribunal de Justiça, cuja competência em matéria de recursos de decisões do Tribunal de Primeira Instância é limitada, a conhecer um litígio mais extenso do que aquele que o Tribunal de Primeira Instância teve de conhecer. No quadro de um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, a competência do Tribunal de Justiça está, portanto, limitada à apreciação da solução legal que foi dada aos fundamentos e aos argumentos debatidos perante os primeiros juízes.

(cf. n.° 52)

4.        O artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 habilita a Comissão a aplicar coimas contra empresas e associações de empresas por infracções aos artigos 81.° CE e 82.° CE. Nos termos dessa disposição, para determinar o montante da coima deve tomar‑se em consideração a duração e a gravidade da infracção em causa. A este respeito, uma eventual reincidência figura entre os elementos a tomar em consideração aquando da análise da gravidade da infracção em causa. Resulta daqui que o artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 constitui a base jurídica pertinente para a tomada em consideração de uma reincidência quando do cálculo da coima.

Ao confirmar a declaração, feita pela Comissão, da existência de uma reincidência por parte de uma empresa e a qualificação dessa reincidência como circunstância agravante, o Tribunal de Primeira Instância não viola o princípio nulla poena sine lege.

(cf. n.os 62‑65)

5.        O princípio da segurança jurídica não é violado pelo facto de não existir um prazo predeterminado para a tomada em conta da reincidência. Embora seja verdade que nem o Regulamento n.° 17 nem as orientações estabelecidas pela Comissão para o cálculo das coimas aplicadas nos termos do artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 e do artigo 65.°, n.° 5, do Tratado CECA prevêem um prazo máximo a partir do qual a reincidência possa ser tomada em conta, a Comissão não pode proceder a uma majoração da coima a título de reivindicação sem limitação no tempo.

A Comissão pode, em cada caso, tomar em consideração os indícios destinados a confirmar a propensão de uma empresa para violar as regras de concorrência, incluindo, por exemplo, o tempo que decorreu entre as infracções em causa. Por outro lado, o princípio da proporcionalidade exige que o tempo decorrido entre a infracção em causa e uma precedente infracção às regras de concorrência seja tomado em consideração para apreciar a propensão da empresa para violar essas regras.

No quadro da fiscalização jurisdicional exercida sobre os actos da Comissão em matéria de direito da concorrência, o Tribunal de Primeira Instância e, sendo caso disso, o Tribunal de Justiça podem, portanto, ser chamados a verificar se a Comissão respeitou o referido princípio quando majorou a coima aplicada a título da reincidência e se, em particular, essa majoração se impunha, nomeadamente, face ao tempo decorrido entre a infracção em causa e a precedente infracção às regras de concorrência.

(cf. n.os 66‑70, 72, 73)

6.        As decisões da Comissão gozam da presunção de validade enquanto não forem anuladas ou revogadas. Além disso, como prevê expressamente o artigo 242.° CE, os recursos para o Tribunal de Justiça não têm efeito suspensivo. Decorre daqui que, mesmo que ainda esteja sujeita a fiscalização jurisdicional, uma decisão da Comissão continua a produzir a totalidade dos seus efeitos, a menos que o Tribunal de Primeira Instância ou o Tribunal de Justiça decidam de outra forma.

A tese da recorrente segundo a qual a interposição de um recurso de anulação de uma decisão da Comissão em matéria de concorrência acarreta a suspensão da aplicação dessa decisão durante o processo judicial, pelo menos no que diz respeito às consequências que dela decorrem para efeitos da declaração, numa decisão posterior, de uma eventual reincidência, não assenta, portanto, em nenhuma base jurídica, mas, pelo contrário, colide, nomeadamente, com a redacção do artigo 242.° CE.

Além disso, se esta tese devesse ser acolhida, os autores de infracções seriam incitados a interpor recursos puramente dilatórios, com a única finalidade de evitar as consequências da reincidência enquanto durassem os processos no Tribunal de Primeira Instância e no Tribunal de Justiça.

A conclusão segundo a qual, para que a Comissão possa ter em conta a reincidência, basta que a empresa tenha sido previamente considerada autora de uma infracção do mesmo tipo, mesmo que a decisão em causa ainda esteja sujeita a fiscalização jurisdicional, tem, portanto, fundamento jurídico.

Essa conclusão não é posta em causa na hipótese de a decisão com base na qual a coima relativa a outra infracção foi majorada numa decisão ulterior ser anulada pelo juiz da União Europeia, após a adopção desta última. Com efeito, em tal hipótese, a Comissão está obrigada, em aplicação do artigo 233.° CE, a tomar as medidas necessárias para a execução do acórdão do Tribunal de Justiça, alterando, sendo caso disso, a decisão posterior na medida em que contenha uma majoração da coima a título da reincidência.

Este sistema é conforme com os princípios gerais da boa administração da justiça e da economia processual, na medida em que, por um lado, obriga a instituição de que emana o acto em causa a tomar as medidas necessárias para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal de Justiça, mesmo não havendo um pedido para esse efeito da empresa em causa, e, por outro, inviabiliza os recursos puramente dilatórios.

(cf. n.os 81‑89)

7.        Se bem que o artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 deixe à Comissão uma ampla margem de apreciação, limita, todavia, o seu exercício, instituindo critérios objectivos que a Comissão deve respeitar. Assim, por um lado, o montante da coima aplicável tem um limite máximo quantificável e absoluto, de forma que o montante máximo da coima susceptível de ser aplicada a uma dada empresa é determinável antecipadamente. Por outro lado, o exercício desse poder de apreciação está igualmente limitado pelas regras de conduta que a Comissão se impôs a si mesma na comunicação sobre a cooperação e nas orientações. Além disso, a prática administrativa conhecida e acessível da Comissão está inteiramente sujeita à fiscalização do juiz da União, cuja jurisprudência constante e publicada permitiu precisar os conceitos indeterminados que o artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 podia conter. Um operador avisado pode, assim, recorrendo, se necessário, aos serviços de um consultor jurídico, prever de forma suficientemente precisa o método de cálculo e a ordem de grandeza das coimas em que incorre em razão de determinado comportamento, e o facto de esse operador não poder, antecipadamente, conhecer com precisão o nível das coimas que a Comissão aplicará em cada caso concreto não pode constituir uma violação do princípio da legalidade das penas.

(cf. n.° 95)

8.        O conceito de dissuasão constitui um dos elementos a tomar em conta no cálculo do montante da coima a aplicar em virtude da infracção às regras da concorrência. O nexo entre, por um lado, a dimensão e os recursos globais das empresas e, por outro, a necessidade de assegurar um efeito dissuasivo à coima não pode ser contestado. Assim, quando calcula o montante da coima, a Comissão pode tomar em consideração, nomeadamente, a dimensão e o poder económico da empresa em causa. Assim, por exemplo, em razão do seu volume negócios global «enorme» relativamente ao dos outros membros do cartel, uma empresa mobilizaria mais facilmente os fundos necessários para o pagamento da sua coima, o que justificava a aplicação de um coeficiente multiplicador, tendo em vista um efeito dissuasivo suficiente dessa mesma coima.

O factor de dissuasão que o cálculo da coima aplicada a uma empresa pode implicar é avaliado tendo em conta uma série de elementos, e não somente a situação particular da empresa em causa. Não está, portanto, excluído que a fase do cálculo em que intervém a tomada em consideração de um factor de dissuasão possa ser pertinente à luz dos elementos tidos em conta para avaliar o referido factor, diferentes da dimensão e dos recursos globais da empresa em causa.

(cf. n.os 102‑105, 109)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

17 de Junho de 2010 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Acordos, decisões e práticas concertadas – Placas de estuque – Desvirtuação dos elementos de prova – Ónus da prova – Falta de fundamentação – Regulamento n.° 17 – Artigo 15.°, n.° 2 – Sanção – Reincidência – Fase da tomada em consideração do efeito dissuasivo da coima»

No processo C‑413/08 P,

que tem por objecto um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, nos termos do artigo 56.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, entrado em 18 de Setembro de 2008,

Lafarge SA, com sede em Paris (França), representada por A. Winckler, F. Brunet, E. Paroche, H. Kanellopoulos e C. Medina, avocats,

recorrente,

sendo as outras partes no processo:

Comissão Europeia, representada por F. Castillo de la Torre e N. von Lingen, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida em primeira instância,

Conselho da União Europeia,

interveniente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues, presidente de secção, P. Lindh, U. Lõhmus, A. Ó Caoimh e A. Arabadjiev (relator), juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 22 de Outubro de 2009,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de Fevereiro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        Pelo seu recurso, a Lafarge SA (a seguir «Lafarge») pede a anulação do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias de 8 de Julho de 2008, Lafarge/Comissão (T‑54/03, a seguir «acórdão recorrido»), com o qual este órgão jurisdicional negou provimento ao seu recurso destinado à anulação da Decisão 2005/471/CE da Comissão, de 27 de Novembro de 2002, relativa a um procedimento de aplicação do artigo 81.° do Tratado CE contra as empresas BPB PLC, Gebrüder Knauf Westdeutsche Gipswerke KG, Société Lafarge SA e Gyproc Benelux NV (Processo COMP/E‑1/37.152 – Placas de estuque) (JO 2005, L 166, p. 8, a seguir «decisão controvertida»).

 Quadro jurídico

2        O artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), prevê:

«A Comissão pode, mediante decisão, aplicar às empresas e associações de empresas multas de mil unidades de conta, no mínimo, a um milhão de unidades de conta, podendo este montante ser superior desde que não exceda dez por cento do volume de negócios realizado, durante o exercício social anterior, por cada uma das empresas que tenha participado na infracção, sempre que, deliberada ou negligentemente:

a)      Cometam uma infracção ao disposto no n.° 1 do artigo [81.°] ou no artigo [82.°] do Tratado, ou

[…]

Para determinar o montante da multa, deve tomar‑se em consideração, além da gravidade da infracção, a duração da mesma.»

3        A comunicação da Comissão intitulada «Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° do Tratado CECA» (JO 1998, C 9, p. 3, a seguir «orientações de 1998»), enuncia, no seu preâmbulo:

«Os princípios enunciados nas presentes orientações deverão permitir assegurar a transparência e o carácter objectivo das decisões da Comissão, quer em relação às empresas, quer em relação ao Tribunal de Justiça, reafirmando, simultaneamente, a margem de discricionariedade deixada pelo legislador à Comissão em matéria de fixação de coimas, no limite de 10% do volume de negócios global das empresas. […]

A nova metodologia aplicável ao montante das coimas pautar‑se‑á doravante pelo esquema a seguir apresentado que se baseia na fixação de um montante de base ajustado através de majorações, para ter em conta circunstâncias agravantes, e de diminuições, para ter em conta circunstâncias atenuantes.»

4        Nos termos do ponto 1 das referidas orientações, intitulado «Montante de base»:

«O montante de base é determinado em função da gravidade e da duração da infracção que constituem os únicos critérios referidos no n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17.

A.      Gravidade

[…]

Será, por outro lado, necessário tomar em consideração a capacidade económica efectiva dos autores da infracção de causarem um prejuízo importante aos outros operadores, nomeadamente aos consumidores, e determinar um montante que assegure que a coima apresenta um carácter suficientemente dissuasivo.

De uma forma geral, poderá igualmente considerar‑se o facto de as empresas de grandes dimensões disporem geralmente dos conhecimentos e das infra‑estruturas jurídico‑económicas que lhes permitem melhor apreciar o carácter de infracção do seu comportamento e respectivas consequências do ponto de vista do direito da concorrência.

[…]»

5        Em conformidade com o ponto 2 das mesmas orientações, o montante de base pode ser aumentado em caso de circunstâncias agravantes, tais como a reincidência da mesma empresa ou das mesmas empresas numa infracção do mesmo tipo.

 Factos na origem do litígio

6        No acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância resumiu o quadro factual que esteve na origem do litígio nos seguintes termos:

«1      A recorrente […] é uma empresa francesa que exerce actividade, a nível mundial, no sector dos materiais de construção. Detém 99,99% do capital da Lafarge Gypsum International SA (a seguir ‘Lafarge Plâtres’), que fabrica e comercializa diferentes produtos derivados do gesso, entre os quais placas de estuque.

2      Quatro produtores principais exercem actividade no domínio das placas de estuque na Europa: a BPB plc [(a seguir ‘BPB’)], a Gebrüder Knauf Westdeutsche Gipswerke KG (a seguir ‘Knauf’), a Gyproc Benelux NV (a seguir ‘Gyproc’) e a Lafarge Plâtres.

3      Na sequência das informações de que teve conhecimento, a Comissão procedeu, em 25 de Novembro de 1998, a verificações inopinadas junto de oito empresas que exercem actividade no domínio das placas de estuque, entre as quais a Lafarge Plâtres, na Isle‑sur‑la‑Sorgue (França), e a Lafarge, em Paris (França). Em 1 de Julho de 1999, prosseguiu as suas investigações junto de duas outras empresas.

4      A Comissão dirigiu, em seguida, pedidos de informações, a título do artigo 11.° do Regulamento n.° 17 […], às diferentes empresas em causa, entre as quais a Lafarge, em 21 de Setembro de 1999. Esta respondeu a esses pedidos em 29 de Outubro de 1999.

5      Em 18 de Abril de 2001, a Comissão instaurou o procedimento administrativo e adoptou uma comunicação de acusações contra as empresas BPB, Knauf, Lafarge, Etex SA e Gyproc. […]

[…]

8      Em 27 de Novembro de 2002, a Comissão adoptou a decisão [controvertida].

9      O dispositivo da decisão [controvertida] estabelece:

‘Artigo 1.°

A BPB […], o grupo Knauf […], a Lafarge […] e a Gyproc […] violaram o disposto no n.° 1 do artigo 81.° [CE] ao participarem numa série de acordos e práticas concertadas no sector das placas de estuque.

A infracção teve a seguinte duração:

a)      BPB: de 31 de Março de 1992 até, no máximo, 25 de Novembro de 1998;

b)      [o grupo] Knauf: de 31 de Março de 1992 até, no máximo, 25 de Novembro de 1998;

c)      […] Lafarge: de 31 de Agosto de 1992 até, no máximo, 25 de Novembro de 1998;

d)      Gyproc: de 6 de Junho de 1996 até, no máximo, 25 de Novembro de 1998;

[…]

Artigo 3.°

Pela infracção indicada no artigo 1.°, são aplicadas as seguintes coimas às empresas que se seguem:

a)      BPB […]: 138,6 milhões de euros;

b)      […] Knauf […]: 85,8 milhões de euros;

c)      […] Lafarge […]: 249,6 milhões de euros;

d)      Gyproc […]: 4,32 milhões de euros;

[…]’

10      A Comissão considera, na decisão [controvertida], que as empresas em causa participaram numa infracção única e contínua que se manifestou pelos seguintes comportamentos, constitutivos de acordos ou de práticas concertadas:

–        os representantes das empresas BPB e Knauf encontraram‑se em Londres (Reino Unido), em 1992, e manifestaram a vontade comum de estabilizar os mercados das placas de estuque na Alemanha, no Reino Unido, na França e no Benelux;

–        os representantes das empresas BPB e Knauf criaram, a partir de 1992, sistemas de troca de informações, a que aderiram a Lafarge e em seguida a Gyproc, sobre os seus volumes de vendas nos mercados alemão, do Reino Unido, francês e do Benelux;

–        os representantes das empresas BPB, Knauf e Lafarge trocaram entre si, por diversas vezes, antecipadamente, informações sobre as subidas de preços no mercado do Reino Unido;

–        para fazer face à evolução específica do mercado alemão, os representantes das empresas BPB, Knauf, Lafarge e Gyproc encontraram‑se em Versalhes (França), em 1996, em Bruxelas (Bélgica), em 1997, e em Haia (Países Baixos), em 1998, a fim de repartirem entre si ou, pelo menos, estabilizarem o mercado alemão;

–        os representantes das empresas BPB, Knauf, Lafarge e Gyproc trocaram entre si, por diversas vezes, informações e concertaram‑se sobre a aplicação de subidas de preços no mercado alemão, entre 1996 e 1998.

11      Para efeitos do cálculo do montante da coima, a Comissão fez aplicação da metodologia exposta nas orientações [de 1998].

12      Para a fixação do montante de base das coimas, determinado em função da gravidade da infracção, a Comissão considerou, antes de mais, que as empresas em causa tinham cometido uma infracção muito grave pela sua própria natureza, tendo as práticas em causa tido por objecto pôr termo à guerra dos preços e estabilizar o mercado através da troca de informações confidenciais. A Comissão considerou, além disso, que as práticas em causa tinham tido um impacto no mercado, pois as empresas em causa representavam a quase totalidade da oferta de placas de estuque, e que as diferentes manifestações do cartel se tinham concretizado num mercado que, ademais, era muito concentrado e oligopolístico. Quanto à extensão do mercado geográfico em causa, a Comissão considerou que o cartel tinha coberto os quatro principais mercados no seio da Comunidade Europeia, a saber, a Alemanha, o Reino Unido, a França e o Benelux.

13      Considerando, em seguida, que existia uma disparidade considerável entre as empresas em causa, a Comissão procedeu a um tratamento diferenciado, baseando‑se no volume de negócios extraído da venda do produto em causa nos mercados abrangidos, no decurso do último ano completo da infracção. Nessa base, o montante inicial das coimas foi fixado em 80 milhões de euros, para a BPB, em 52 milhões de euros, para a Knauf e a Lafarge, e em 8 milhões de euros, para a Gyproc.

14      A fim de assegurar à coima um efeito suficientemente dissuasivo face à dimensão e aos recursos globais das empresas, o montante de base da coima aplicada à Lafarge foi majorado em 100%, passando para 104 milhões de euros.

15      Para ter em conta a duração da infracção, o montante de base foi, em seguida, majorado em 65%, para a BPB e a Knauf, em 60%, para a Lafarge, e em 20%, para a Gyproc, sendo a infracção qualificada, pela Comissão, de infracção de longa duração, no caso da Knauf, da Lafarge e da BPB, e de duração média, em relação à Gyproc.

16      No tocante às circunstâncias agravantes, o montante de base das coimas aplicadas à BPB e à Lafarge foi majorado em 50%, a título da reincidência.

17      Em seguida, a Comissão reduziu 25% a coima aplicada à Gyproc, a título de circunstâncias atenuantes, pelo facto de esta ter sido um elemento desestabilizador que contribuiu para limitar os efeitos do cartel no mercado alemão e de ter estado ausente do mercado do Reino Unido.

18      Finalmente, a Comissão procedeu a uma redução do montante das coimas, de 30%, para a BPB, e de 40%, para a Gyproc, em aplicação da secção D, n.° 2, da Comunicação da Comissão sobre a não aplicação ou a redução de coimas nos processos relativos a acordos, decisões e práticas concertadas (JO 1996, C 207, p. 4, a seguir «comunicação sobre a cooperação»). Por conseguinte, o montante final das coimas aplicadas era de 138,6 milhões de euros, para a BPB, de 85,8 milhões de euros, para a Knauf, de 249,6 milhões de euros, para a Lafarge, e de 4,32 milhões de euros para a Gyproc.»

 Acórdão recorrido

7        Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 14 de Fevereiro de 2003, a Lafarge interpôs recurso de anulação da decisão controvertida. A título subsidiário, pediu ao Tribunal que reduzisse a coima que lhe foi aplicada.

8        No acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância negou provimento ao recurso na sua totalidade.

 Pedidos das partes

9        Através do presente recurso, a Lafarge pede que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        acolher as conclusões que apresentou em primeira instância a título principal, anulando a decisão controvertida na medida em que lhe aplica uma coima;

–        a título subsidiário, anular parcialmente o acórdão recorrido;

–        acolher as conclusões que apresentou em primeira instância a título subsidiário, reduzindo o montante da coima que lhe foi aplicada pela decisão controvertida; e

–        condenar a Comissão nas despesas.

10      A Comissão pede que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento ao recurso e

–        condenar a recorrente nas despesas.

 Quanto ao presente recurso

11      A Lafarge invoca seis fundamentos em apoio dos seus pedidos, o primeiro dos quais, apresentado a título principal, visa a anulação do acórdão recorrido na sua totalidade, e os outros cinco, apresentados a título subsidiário, visam a anulação parcial desse acórdão.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo à desvirtuação dos elementos de prova

Argumentação das partes

12      A Lafarge acusa o Tribunal de Primeira Instância de ter desvirtuado os elementos de prova na medida em que se referiu sistematicamente a um «contexto global» para determinar cada um dos comportamentos considerados como infracções. Em particular, tal desvirtuação resulta dos enunciados do acórdão recorrido, no que se refere às circunstâncias que envolvem o sistema de troca de informações (n.os 270 e 271 do acórdão recorrido), à troca de informações específica do Reino Unido n.° 303 do acórdão recorrido), às subidas de preços no Reino Unido no período anterior a 7 de Setembro de 1996 (n.° 324 do acórdão recorrido), à existência de um acordo de estabilização do mercado alemão (n.os 398 e 402 do acórdão recorrido) e às subidas de preços na Alemanha, em 1994 e 1995 (n.os 426 e 430 do acórdão recorrido).

13      No conjunto, o Tribunal de Primeira Instância baseou‑se num contexto global, quando a existência deste contexto não estava demonstrada e apenas o podia ser com base noutros comportamentos infractores que, por seu turno, foram qualificados assim pelo Tribunal de Primeira Instância apenas com base nesse mesmo «contexto global». O raciocínio do Tribunal de Primeira Instância é, por isso, falacioso.

14      A Comissão considera que a Lafarge não indica, na maior parte dos casos, os elementos de prova alegadamente desvirtuados e não demonstra os erros de análise que terão conduzido o Tribunal de Primeira Instância a essa desvirtuação. De qualquer forma, não se pode censurar o Tribunal de Primeira Instância por se ter referido a um contexto geral não demonstrado, nem por se ter baseado num raciocínio falacioso, dado que procedeu a um exame minucioso dos diferentes elementos de prova.

Apreciação do Tribunal de Justiça

15      É jurisprudência constante que o Tribunal de Justiça não tem competência para apurar os factos nem, salvo excepcionalmente, para examinar as provas que o Tribunal de Primeira Instância considerou em apoio de tais factos. Desde que essas provas tenham sido obtidas regularmente e os princípios gerais do direito e as regras de processo aplicáveis em matéria de ónus e de produção da prova tenham sido respeitados, é ao Tribunal de Primeira Instância que cabe apreciar o valor que se deve atribuir aos elementos que lhe foram submetidos (v. acórdãos de 8 de Maio de 2003, T. Port/Comissão, C‑122/01 P, Colect., p. I‑4261, n.° 27, e de 25 de Outubro de 2007, Komninou e o./Comissão, C‑167/06 P, n.° 40). Essa apreciação não constitui, portanto, sob reserva do caso da desvirtuação desses elementos, uma questão de direito submetida como tal à fiscalização do Tribunal de Justiça (v., nomeadamente, acórdão de 28 de Maio de 1998, New Holland Ford/Comissão, C‑8/95 P, Colect., p. I‑3175, n.° 26).

16      Quando alega desvirtuação de elementos de prova pelo Tribunal de Primeira Instância, um recorrente deve, em aplicação dos artigos 225.° CE, 51.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça e 112.°, n.° 1, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, indicar de modo preciso os elementos que, em seu entender, foram por ele desvirtuados e demonstrar os erros de análise que, na sua apreciação, levaram o Tribunal de Primeira Instância a essa desvirtuação (v., neste sentido, acórdão de 7 de Janeiro de 2004, Aalborg Portland e o./Comissão, C‑204/00 P, C‑205/00 P, C‑211/00 P, C‑213/00 P, C‑217/00 P e C‑219/00 P, Colect., p. I‑123, n.° 50).

17      Tal desvirtuação existe quando, sem ter recorrido a novos elementos de prova, a apreciação dos elementos de prova existentes se afigura manifestamente errada (v. acórdão de 18 de Janeiro de 2007, PKK e KNK/Conselho, C‑229/05 P, Colect., p. I‑439, n.° 37).

18      O único elemento de prova preciso cuja desvirtuação é alegada pela Lafarge é uma nota interna, do mês de Outubro de 1994, descoberta nas instalações da BPB. Segundo a Lafarge, nada nessa nota permite concluir que as concorrentes tenham tido contactos entre si.

19      A este respeito, no n.° 430 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância rejeitou a afirmação da Lafarge segundo a qual a BPB teve conhecimento da subida dos preços pela Knauf, anunciada na nota em questão, por intermédio de clientes. O Tribunal de Primeira Instância observou que «o autor dessa nota, tendo, em primeiro lugar, resumido a situação no mercado, explica que o director de vendas da Gyproc se tinha queixado de que a sua empresa perdera quotas de mercado e devia voltar a ganhá‑las. Além disso, estava previsto na nota congelar os preços ao nível nela mencionado e que uma subida dos preços teria lugar a partir de 1 de Fevereiro de 1995. Este último reparo é particularmente revelador. Com efeito, se o envio de anúncios de subidas de preços pela Knauf era unilateral e se os outros produtores não faziam mais que seguir essa subida dos preços, a BPB não poderia ter sabido, no mês de Outubro de 1994, que estava prevista uma subida de preços para 1 de Fevereiro de 1995, dado que a Knauf só anunciou essa subida dos preços em Novembro de 1994». Em seguida, o Tribunal de Primeira Instância tomou em consideração outros elementos precisos, a saber: em primeiro lugar, o facto de a Knauf ter indicado, em resposta a um pedido de informações da Comissão, que desde há muito tempo se estabelecera uma prática que consistia em enviar os anúncios de subidas de preços com as listas de preços, directamente, às concorrentes, ao mesmo tempo que aos clientes; em segundo lugar, o facto de, no decurso da verificação efectuada nas instalações da BPB e da Lafarge, a Comissão ter descoberto numerosas cópias de anúncios de subidas dos preços das concorrentes; e, em terceiro lugar, o facto de uma subida dos preços ter tido efectivamente lugar em 1 de Fevereiro e 1995.

20      Resulta, assim, do acórdão recorrido que o Tribunal de Primeira Instância examinou a nota interna em causa, não isoladamente mas em conjunto com outros elementos precisos dos autos. Por conseguinte, a acusação relativa a essa nota não pode vingar.

21      Quanto ao resto, impõe‑se referir que a recorrente não indicou de forma precisa os outros elementos de prova que terão sido desvirtuados pelo Tribunal de Primeira Instância. Com efeito, limita‑se a indicar as passagens do acórdão recorrido nas quais o Tribunal de Primeira Instância se referiu a um «contexto global», a saber, os n.os 271, 303, 324, 398, 402, 426 e 430, sem contudo identificar os elementos de prova concretos de que o Tribunal de Primeira Instância fez uma apreciação manifestamente errada.

22      Em circunstâncias como as do presente processo, a existência de uma desvirtuação dos elementos de prova deve ser examinada à luz do facto de que, atendendo à proibição de participar em práticas e em acordos anticoncorrenciais bem como às sanções em que os infractores podem incorrer serem notórias, é usual as actividades que essas práticas e esses acordos comportam desenrolarem‑se de forma clandestina, as reuniões realizarem‑se em segredo, o mais das vezes, num país terceiro, e a documentação a elas respeitante ser reduzida ao mínimo. Mesmo que a Comissão descubra documentos que atestam de forma explícita um contacto ilegítimo entre operadores, como as actas de uma reunião, esses documentos serão normalmente fragmentários e esparsos, pelo que se revela frequentemente necessário reconstituir certos detalhes por dedução. Na maior parte dos casos, a existência de uma prática ou de um acordo anticoncorrencial deve ser inferida de um certo número de coincidências e de indícios que, considerados conjuntamente, podem constituir, na falta de outra explicação coerente, a prova de uma violação das regras da concorrência (v., neste sentido, acórdão Aalborg Portland e o./Comissão, já referido, n.os 55 a 57).

23      Embora invoque uma desvirtuação dos elementos de prova, a recorrente visa, na realidade, obter uma nova apreciação desses elementos, o que escapa à competência do Tribunal de Justiça.

24      Por conseguinte, o primeiro fundamento deve ser julgado parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente.

25      Nestas circunstâncias, há que examinar os fundamentos invocados a título subsidiário pela recorrente.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo a uma violação das regras em matéria de ónus da prova, do princípio da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo

Argumentação das partes

26      A recorrente acusa o Tribunal de Primeira Instância de ter violado as regras em matéria de ónus da prova, o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo, ao concluir que a Comissão fez prova bastante de que a participação da Lafarge na infracção remonta a 31 de Agosto de 1992. A este respeito, lembra que, segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça deve certificar‑se de que os princípios gerais do direito comunitário bem como as regras de processo aplicáveis em matéria de ónus e de produção da prova foram observados. Por outro lado, o ónus da prova de uma infracção e da sua duração incumbe à Comissão.

27      No caso em apreço, o Tribunal de Primeira Instância considerou, nos n.os 507, 508 e 510 do acórdão recorrido, que a Comissão fez prova bastante de que a Lafarge participara na infracção desde 31 de Agosto de 1992, uma vez que a Lafarge não indicou nem a data exacta do início dessa participação nem as circunstâncias que a levaram a envolver‑se numa troca de informações anticoncorrencial. Ao agir deste modo, o Tribunal de Primeira Instância inverteu o ónus da prova. Ora, tal inversão do ónus da prova constitui igualmente uma violação da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo.

28      A Comissão contesta as afirmações da Lafarge e alega que o Tribunal de Primeira Instância considerou simplesmente que os elementos de prova mencionados nos n.os 503, 507 e 512 do acórdão recorrido constituem indícios suficientes para provar a participação da Lafarge na infracção a partir de meados do ano de 1992, mas a Lafarge poderia ter aduzido elementos em sentido contrário, o que não fez.

Apreciação do Tribunal de Justiça

29      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que incumbe à parte ou à autoridade que alega uma violação das regras da concorrência aduzir a respectiva prova e que cabe à empresa ou à associação de empresas que invocam um meio de defesa contra uma declaração de infracção a essas regras aduzir a prova de que se encontram preenchidas as condições de aplicação da regra a partir da qual esse meio de defesa é deduzido, pelo que a referida autoridade deverá, então, recorrer a outros elementos de prova (v., neste sentido, acórdão Aalborg Portland e o./Comissão, já referido, n.° 78).

30      Mesmo que o ónus da prova incumba, segundo esses princípios, quer à Comissão quer à empresa ou à associação em causa, os elementos factuais que uma parte invoca podem ser de molde a obrigar a outra parte a fornecer uma explicação ou uma justificação, sem o que é permitido concluir que foi dado cumprimento às regras em matéria de ónus da prova (v. acórdão Aalborg Portland e o./Comissão, já referido, n.° 79).

31      Resulta do n.° 515 do acórdão recorrido que o Tribunal de Primeira Instância considerou que a Comissão fez prova bastante de que a BPB tinha informado a Lafarge, o mais tardar, no fim do mês de Agosto de 1992, do acordo existente entre a BPB e a Knauf sobre as trocas de dados, e que, nessa ocasião, a Lafarge aderiu a esse acordo. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal de Primeira Instância apoiou‑se, por um lado, em certas declarações da BPB (n.os 503 e segs. do acórdão recorrido) e, por outro, no facto de a quota de mercado da Lafarge nos principais mercados europeus ser descrita em valor absoluto e em percentagem nos quadros da BPB, a partir de 1991 (n.° 512 do acórdão recorrido).

32      Por conseguinte, deve considerar‑se que, ao indicar, no n.° 508 do acórdão recorrido, que a recorrente se limitava a sublinhar as imprecisões das declarações da BPB, sem contudo fornecer a data exacta nem as circunstâncias que a levaram a envolver‑se nessa troca de dados, o Tribunal de Primeira Instância considerou, em aplicação da jurisprudência do Tribunal de Justiça mencionada nos n.os 29 e 30 do presente acórdão, que os elementos de prova apresentados pela Comissão eram de molde a obrigar a outra parte a fornecer uma explicação ou uma justificação, sem o que era permitido concluir que essa instituição deu cumprimento às obrigações que lhe incumbiam quanto ao ónus da prova. O Tribunal de Primeira Instância limitou‑se, assim, a indicar que a recorrente continuou em falta no que se refere à produção de provas em apoio da alegação segundo a qual a sua adesão ao acordo de troca de dados era necessariamente posterior ao mês de Junho de 1993, e provavelmente mesmo ao início do ano de 1994.

33      Decorre daqui que o Tribunal de Primeira Instância não violou as regras em matéria de ónus da prova.

34      Na medida em que assentam numa alegada inversão do ónus da prova, as acusações relativas a uma violação da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo devem igualmente ser rejeitadas.

35      Por conseguinte, o segundo fundamento é improcedente.

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo a uma falta de fundamentação e a uma violação do princípio da igualdade de tratamento

Argumentação das partes

36      A Lafarfge acusa o Tribunal de Primeira Instância de não ter respondido ao seu argumento relativo à desigualdade de tratamento entre ela e a Gyproc, tal como formulado nos pontos 374 e 375 da sua petição inicial em primeira instância, e de ter assim faltado ao dever de fundamentação que lhe incumbia. Nos n.os 500 a 518 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância considerou que, no tocante à Lafarge, os elementos de prova retidos pela Comissão, a saber, a menção das quotas de mercado da Lafarge nos quadros de M. [D] e as declarações da BPB, demonstram de forma suficiente a participação da Lafarge numa infracção única, complexa e contínua, a partir de 31 de Agosto de 1992, ao passo que, no tocante à Gyproc, a Comissão considerou que estes dois elementos não constituíam elementos de prova suficientes. Na réplica, a Lafarge acrescenta que também invocou a violação do princípio da igualdade de tratamento nos pontos 124, 511 e 512 da sua petição inicial em primeira instância, sem que o Tribunal de Primeira Instância tenha respondido a isso.

37      Segundo a Comissão, o terceiro fundamento é inadmissível, uma vez que a recorrente não pode fazer valer, na fase de recurso para o Tribunal de Justiça, um fundamento que não invocou perante o Tribunal de Primeira Instância. Por outro lado, no tocante à violação do princípio da igualdade de tratamento, a Comissão observa que a Lafarge não pode afirmar que se encontra na mesma situação que a Gyproc, uma vez que esta só participou directamente na troca de informações em 1996 e não participou de forma alguma nessa troca no que diz respeito ao mercado do Reino Unido, por não exercer actividade nesse mercado. A Comissão alega igualmente que os elementos suplementares que a Lafarge invocou na réplica constituem um fundamento novo, inadmissível na fase da réplica.

Apreciação do Tribunal de Justiça

38      No que toca à falta de fundamentação censurada ao Tribunal de Primeira Instância, por, no acórdão recorrido, não ter respondido ao argumento da recorrente, formulado nos pontos 374 e 375 da sua petição inicial em primeira instância, relativamente a uma desigualdade de tratamento entre ela e a Gyproc, importa referir que esses pontos estão redigidos nos seguintes termos:

«Uma vez que a participação da [Lafarge] não está demonstrada até finais de 1993, ou mesmo início de 1994, a troca de dados não é a primeira ‘manifestação’ para a [Lafarge], pois a troca de informações sobre os volumes e os contactos relativamente aos preços alegados pela Comissão que dizem especificamente respeito ao mercado britânico começaram mais cedo.

Sendo assim, nem uma nem outra dessas duas manifestações – pressupondo que estejam demonstradas – podiam obviamente constituir, enquanto tais, uma adesão da [Lafarge] a uma infracção única, complexa e contínua que cobre os quatro principais mercados europeus. Aliás, a Comissão considerou, quanto à Gyproc, que a participação nessas mesmas manifestações não podia bastar para demonstrar uma adesão à infracção única, complexa e contínua.»

39      Há que salientar, por um lado, que nenhuma alegação quanto a uma violação do princípio da igualdade de tratamento é explicitamente formulada na passagem acima reproduzida. Por outro lado, mesmo admitindo que possa ser deduzida dela, tal alegação não reveste nem carácter claro nem carácter preciso e não assenta em elementos de prova circunstanciados, destinados a escorá‑la.

40      O princípio da igualdade de tratamento opõe‑se, nomeadamente, a que situações comparáveis sejam tratadas de maneira diferente, a menos que tal tratamento seja objectivamente justificado (v., neste sentido, acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C‑344/04, Colect., p. I‑403, n.° 95). Ora, como alega com razão a Comissão, a recorrente nem sequer procurou demonstrar que se encontrava numa situação comparável à da Gyproc, o que teria sido ainda mais necessário dado que a participação dessas duas empresas na infracção em causa se caracteriza por diferenças factuais importantes. O alcance da alegação contida na última frase do ponto 375 da petição inicial em primeira instância é, por conseguinte, pouco claro.

41      É jurisprudência constante que o dever do Tribunal de Primeira Instância de fundamentar os seus acórdãos não pode ser interpretado no sentido de que implica que está obrigado a responder em pormenor a cada argumento apresentado pelo recorrente, em particular se o mesmo não revestir carácter suficientemente claro e preciso e não assentar em elementos de prova circunstanciados (v. acórdãos de 6 de Março de 2001, Connolly/Comissão, C‑274/99 P, Colect., p. I‑1611, n.° 121; de 11 de Setembro de 2003, Bélgica/Comissão, C‑197/99 P, Colect., p. I‑8461, n.° 81; e de 11 de Janeiro de 2007, Technische Glaswerke Ilmenau/Comissão, C‑404/04 P, n.° 90).

42      Na réplica, a recorrente censura o Tribunal de Primeira Instância por não ter respondido a outros pontos da sua petição inicial em primeira instância, a saber, os pontos 124, 511 e 512. Deve, todavia, salientar‑se que os referidos pontos visam diversas considerações da decisão controvertida e se reportam a fundamentos muito diferentes invocados perante o Tribunal de Primeira Instância. Como alega acertadamente a Comissão na tréplica, o Tribunal de Primeira Instância examinou, nomeadamente nos n.os 559 e 637 do acórdão recorrido, as alegações da recorrente relativas ao princípio da igualdade de tratamento. Ora, a recorrente não criticou esses pontos do acórdão recorrido no seu recurso para o Tribunal de Justiça.

43      Daí decorre que, através das alegações complementares apresentadas na réplica, a recorrente invoca essencialmente um fundamento novo no decurso da instância. Ora, resulta dos artigos 42.°, n.° 2, e 118.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça que é proibido deduzir novos fundamentos no decurso da instância, a menos que tenham origem em elementos de direito e de facto que se tenham revelado durante o processo (v., nomeadamente, despacho de 13 de Junho de 2006, Mancini/Comissão, C‑172/05 P, n.° 20). Uma vez que só na réplica é que a recorrente invocou o referido fundamento e que este não se baseia em elementos revelados após a interposição do recurso para o Tribunal de Justiça, há que rejeitá‑lo por ser tardio.

44      Por conseguinte, o terceiro fundamento deve ser julgado parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente.

 Quanto ao quarto fundamento, relativo à violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento

Argumentação das partes

45      A Lafarge considera que o acórdão recorrido viola os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento na medida em que confirma o montante de base da coima fixado pela Comissão a seu respeito, que é desproporcionado em relação ao montante de base da coima fixado para as outras empresas em causa na decisão controvertida. A Lafarge contesta a afirmação do Tribunal de Primeira Instância, contida no n.° 634 do acórdão recorrido, segundo a qual o montante das coimas pode ser calculado independentemente do volume de negócios das empresas. Mesmo pressupondo que essa afirmação seja correcta, a Comissão optou, na decisão controvertida, por separar as empresas em causa, segundo categorias, em função das suas quotas de mercado respectivas. Ora, resulta do acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 29 de Abril de 2004, Tokai Carbon e o./Comissão (T‑236/01, T‑239/01, T‑244/01 a T‑246/01, T‑251/01 e T‑252/01, Colect., p. II‑1181, n.os 223 a 232), que, a partir do momento em que a Comissão decide estabelecer categorias com base num critério como as quotas de mercado, a Comissão e o Tribunal de Primeira Instância estão obrigados a respeitar uma relação de proporcionalidade entre, por um lado, os limiares das diferentes categorias e, por outro, a quota de mercado de uma empresa e a sua classificação numa ou noutra das categorias.

46      Ora, o montante de base da coima da Lafarge é 6,5 vezes superior ao da coima da Gyproc, quando a quota de mercado detida pela primeira (24%), colocada na categoria 2, era somente 3,4 vezes superior à detida pela segunda (7%), colocada na categoria 3. Por outro lado, enquanto a quota de mercado da Lafarge, em 1997, representava menos de 81% da quota detida pela Knauf, estas duas empresas foram classificadas numa mesma categoria, tendo o montante de base da sua coima sido fixado em 52 milhões de euros.

47      Na réplica, a Lafarge precisa ter invocado um fundamento neste sentido perante o Tribunal de Primeira Instância.

48      A Comissão considera que o presente fundamento é inadmissível, pois tais argumentos não foram invocados pela recorrente no quadro do processo em primeira instância.

49      Além disso, os argumentos da Lafarge são manifestamente infundados. Assim, o Tribunal de Justiça confirmou que os membros de um cartel podiam ser repartidos em categorias, referindo a Comissão a este respeito o acórdão de 29 de Junho de 2006, SGL Carbon/Comissão (C‑308/04 P, Colect., p. I‑5977, n.os 52 e 53). Quando a Comissão decide reagrupar as empresas em causa em função das suas quotas de mercado, não é obrigada a certificar‑se de que o montante de base da coima a aplicar a cada empresa seja rigorosamente proporcional à sua quota de mercado. Uma vez que as quotas de mercado das diversas empresas são geralmente diferentes, isso obrigaria a Comissão a criar tantas categorias quantas as empresas em causa, o que privaria de objecto a sua repartição em categorias.

50      A Comissão sustenta igualmente que optou por repartir as empresas em três categorias, em função das respectivas quotas nos mercados abrangidos pelo cartel no último ano completo em que tinham participado (a saber, 1997). Assim, em razão da sua quota de mercado (42%) e da sua posição de maior produtor, a BPB foi incluída numa primeira categoria. A Knauf e a Lafarge, com, respectivamente, 28% e 24% de quotas de mercado, foram incluídas numa segunda categoria. Finalmente, devido a uma quota de mercado de 7% e à sua qualidade de actor muito modesto, a Gyproc foi classificada numa terceira categoria.

Apreciação do Tribunal de Justiça

51      Há que salientar que a recorrente se limitou a alegar perante o Tribunal de Primeira Instância que, embora a sua capacidade económica nos mercados alemão e do Reino Unido não lhe permitisse atentar contra a concorrência nesses mercados e ter constituído um factor de concorrência determinante enquanto durou a infracção, essa circunstância não se reflectiu no montante de base da coima que lhe foi aplicada. Em contrapartida, no quadro do presente fundamento, a Lafarge põe em causa a possibilidade de a Comissão estabelecer categorias de empresas em função das suas quotas de mercado ou, pelo menos, o método seguido pela Comissão para esse efeito. Decorre daí que a recorrente está a suscitar uma crítica a este respeito, pela primeira vez, perante o Tribunal de Justiça.

52      Ora, permitir a uma parte invocar pela primeira vez perante o Tribunal de Justiça um fundamento e argumentos que não invocou perante o Tribunal de Primeira Instância equivaleria a autorizá‑la a chamar o Tribunal de Justiça, cuja competência em matéria de recursos de decisões do Tribunal de Primeira Instância é limitada, a conhecer um litígio mais extenso do que aquele que o Tribunal de Primeira Instância teve de conhecer. No quadro de um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, a competência do Tribunal de Justiça está, portanto, limitada à apreciação da solução legal que foi dada aos fundamentos e aos argumentos debatidos perante os primeiros juízes (v. acórdãos de 30 de Março de 2000, VBA/VGB e o., C‑266/97 P, Colect., p. I‑2135, n.° 79, e de 21 de Setembro de 2006, JCB Service/Comissão, C‑167/04 P, Colect., p. I‑8935, n.° 114). Nesta medida, o presente fundamento é inadmissível.

53      Na medida em que se baseia na alegação da recorrente segundo a qual o Tribunal de Primeira Instância considerou, no n.° 634 do acórdão recorrido, que o montante das coimas pode ser calculado independentemente do volume de negócios das empresas, impõe‑se concluir que o presente fundamento assenta numa leitura errada do acórdão recorrido.

54      Com efeito, no referido número, o Tribunal de Primeira Instância lembrou que, no acórdão de 28 de Junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão (C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, Colect., p. I‑5425, n.os 255 e 312), o Tribunal de Justiça declarou que a Comissão não está obrigada a efectuar o cálculo da coima a partir de montantes baseados no volume de negócios das empresas em causa, nem a assegurar, no caso de aplicação de coimas a várias empresas implicadas numa mesma infracção, que os montantes finais das coimas obtidos por meio do seu cálculo para as empresas em causa traduzam qualquer diferenciação entre elas quanto ao volume de negócios global ou ao seu volume de negócios pertinente.

55      Por conseguinte, o quarto fundamento deve ser julgado parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente.

 Quanto ao quinto fundamento, relativo a erros de direito e a falta de fundamentação no que diz respeito à majoração da coima a título da reincidência

56      O presente fundamento divide‑se em duas partes.

 Quanto à primeira parte, relativa à existência de base jurídica para a majoração da coima a título da reincidência e à limitação no tempo da sua tomada em consideração

–       Argumentação das partes

57      A Lafarge acusa o Tribunal de Primeira Instância de ter violado, nos n.os 724 e 725 do acórdão recorrido, o princípio nulla poena sine lege na medida em que considerou que a Comissão dispunha de uma base legal para majorar a coima a aplicar à recorrente a título da reincidência. Segundo a recorrente, na quase totalidade dos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros, os juízes só podem agravar uma pena a título da reincidência nos casos e nas condições estritamente previstas na lei. Ora, o Regulamento n.° 17 não habilita a Comissão a aumentar as coimas por reincidência.

58      Por outro lado, o Tribunal de Primeira Instância violou, no n.° 725 do acórdão recorrido, o princípio da segurança jurídica, na medida em que considerou que a Comissão podia declarar a existência de uma reincidência sem limite no tempo. Com efeito, segundo um princípio geral comum aos direitos dos Estados‑Membros, a lei fixa, para a aplicação da reincidência, um prazo máximo entre o momento em que foi cometida a infracção examinada e uma eventual condenação anterior. A este respeito, a Lafarge refere o Código Penal de vários Estados‑Membros. Cita igualmente os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Öztürk, de 21 de Fevereiro de 1984, série A, n.° 73, e Lutz, de 25 de Agosto de 1987, série A, n.° 123‑A, dos quais resulta que, tendo em conta a natureza e o grau de severidade das sanções em direito da concorrência, essas sanções constituem «matéria penal» tal como definida por esse órgão jurisdicional.

59      Além disso, a recorrente convida o Tribunal de Justiça a interrogar‑se de novo sobre a conformidade do seu acórdão de 8 de Fevereiro de 2007, Groupe Danone/Comissão (C‑3/06 P, Colect., p. 1‑1331), com os princípios gerais supramencionados.

60      A Comissão lembra precisamente que argumentos semelhantes aos agora avançados pela recorrente foram rejeitados pelo Tribunal de Justiça nesse acórdão. Afirma que, no presente processo, não é necessário determinar se as considerações enunciadas pelo Tribunal de Primeira Instância são tais que tornariam sempre possível a majoração de uma sanção por reincidência, pois o Tribunal de Primeira Instância demonstrou que a filial da recorrente tinha continuado, durante quatro anos, a participar activamente no cartel, após lhe ter sido notificada a Decisão 94/815/CE da Comissão, de 30 de Novembro de 1994, relativa a um processo de aplicação do artigo [81.°] do Tratado CE (Processos IV/33.126 e 33.322 – Cimento) (JO L 343, p. 1), quando, no processo que deu lugar ao acórdão Groupe Danone/Comissão, já referido, o Tribunal de Justiça considerou que um lapso de tempo de menos de dez anos entre duas infracções revelava uma propensão para não retirar as consequências adequadas de uma declaração de infracção às regras de concorrência.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

61      No que toca à existência de base jurídica para a majoração da coima a título da reincidência, importa sublinhar que tal majoração responde ao imperativo de reprimir as infracções repetidas às regras de concorrência por uma mesma empresa.

62      O artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 habilita a Comissão a aplicar coimas contra empresas e associações de empresas por infracções aos artigos 81.° CE e 82.° CE. Nos termos dessa disposição, para determinar o montante da coima deve tomar‑se em consideração a duração e a gravidade da infracção em causa.

63      A este respeito, tal como o Tribunal de Primeira Instância indicou no n.° 722 do acórdão recorrido, uma eventual reincidência figura entre os elementos a tomar em consideração aquando da análise da gravidade da infracção em causa (v. acórdãos, já referidos, Aalborg Portland e o./Comissão, n.° 91, assim como Groupe Danone/Comissão, n.° 26).

64      Resulta daqui que o artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 constitui a base jurídica pertinente para a tomada em consideração de uma reincidência quando do cálculo da coima (v., neste sentido, acórdão Groupe Danone/Comissão, já referido, n.os 27 a 29).

65      Por conseguinte, ao confirmar a declaração, feita pela Comissão, da existência de uma reincidência por parte da recorrente e a qualificação dessa reincidência como circunstância agravante, o Tribunal de Primeira Instância não violou o princípio nulla poena sine lege.

66      No que respeita ao prazo máximo para além do qual uma reincidência não pode ser tomada em conta, há que sublinhar, desde logo, que nem o Regulamento n.° 17 nem as orientações de 1998 prevêem tal prazo.

67      O Tribunal de Justiça declarou, a este respeito, no n.° 37 do acórdão Groupe Danone/Comissão, já referido, que a inexistência desse prazo não viola o princípio da segurança jurídica.

68      A Lafarge convida, no entanto, o Tribunal de Justiça a reconsiderar a conclusão a que chegou nesse acórdão. A Lafarge parece deduzir do referido acórdão que seria possível à Comissão proceder a uma majoração da coima a título da reincidência, sem limite no tempo.

69      Tal dedução assenta, todavia, numa interpretação errada do referido acórdão. Com efeito, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça sublinhou que a Comissão pode, em cada caso, tomar em consideração os indícios destinados a confirmar a propensão de uma empresa para violar as regras de concorrência, incluindo, por exemplo, o tempo que decorreu entre as infracções em causa (acórdão Groupe Danone/Comissão, já referido, n.° 39).

70      Por outro lado, o princípio da proporcionalidade exige que o tempo decorrido entre a infracção em causa e uma precedente infracção às regras de concorrência seja tomado em consideração para apreciar a propensão da empresa para violar essas regras. No quadro da fiscalização jurisdicional exercida sobre os actos da Comissão em matéria de direito da concorrência, o Tribunal de Primeira Instância e, sendo caso disso, o Tribunal de Justiça podem, portanto, ser chamados a verificar se a Comissão respeitou o referido princípio quando majorou a coima aplicada a título da reincidência e se, em particular, essa majoração se impunha, nomeadamente, face ao tempo decorrido entre a infracção em causa e a precedente infracção às regras de concorrência.

71      No caso em apreço, o Tribunal de Primeira Instância observou, no n.° 727 do acórdão recorrido, que o historial das infracções declaradas contra a recorrente atesta a sua propensão para não retirar as consequências adequadas de uma declaração de infracção às regras de concorrência proferida contra si, dado que já tinha sido objecto de medidas anteriores da Comissão, no quadro da Decisão 94/815, e que a filial da recorrente continuou, não obstante, a participar activamente no cartel em causa, até 1998, ou seja, durante quatro anos após essa decisão lhe ter sido notificada.

72      Por conseguinte, o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro de direito ao julgar que o princípio da segurança jurídica não é violado pelo facto de não existir um prazo predeterminado para a tomada em conta da reincidência.

73      No tocante à acusação relativa à alegada violação de um princípio geral comum aos Estados‑Membros, segundo o qual não se pode ter em conta uma reincidência para além de um prazo máximo, essa acusação deve ser rejeitada como inoperante, na medida em que, como decorre do n.° 70 do presente acórdão, o direito da concorrência da União não autoriza a Comissão a ter em conta uma reincidência sem limite no tempo.

74      A recorrente procura, além disso, demonstrar, evocando sumariamente os acórdãos, já referidos, Öztürk e Lutz, que as sanções aplicadas pela Comissão no quadro do direito da concorrência constituem «matéria penal» na acepção do artigo 6.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950.

75      Esse argumento não pode, no entanto, vingar. Com efeito, mesmo na hipótese de as sanções aplicadas pela Comissão no quadro do direito da concorrência deverem ser consideradas «matéria penal» na acepção do artigo 6.° da referida Convenção, a recorrente não demonstra em que medida o Tribunal de Primeira Instância teria violado o seu direito a um processo equitativo, tal como consagrado pelo referido artigo.

76      Por conseguinte, a primeira parte do quinto fundamento deve ser rejeitada.

 Quanto à segunda parte, relativa à existência de uma reincidência sem que a primeira declaração de infracção se tenha tornado definitiva

–       Argumentação das partes

77      A Lafarge alega que o Tribunal de Primeira Instância violou um princípio geral comum aos direitos dos Estados‑Membros assim como os princípios da segurança jurídica e da legalidade dos delitos e das penas, ao considerar que a Comissão tinha fundamento para majorar o montante da coima a título da reincidência, embora a decisão que declara uma precedente infracção por factos similares não se tenha tornado definitiva no momento dos factos visados na decisão controvertida.

78      Segundo o direito penal dos Estados‑Membros, uma pessoa é geralmente considerada em situação de reincidência, unicamente se, após ter sido definitivamente condenada por uma primeira infracção, cometer outra infracção desse tipo. Um dos elementos essenciais da reincidência é, portanto, a existência de uma condenação definitiva, o que pressupõe o esgotamento das vias de recurso, no momento em que é cometida uma nova infracção. No caso em apreço, a Comissão baseou‑se na Decisão 94/815, para considerar que a Lafarge estava em situação de reincidência. A Lafarge interpôs, no entanto, recurso de anulação dessa decisão e o Tribunal de Primeira Instância proferiu o seu acórdão em 15 de Março de 2000 (Cimenteries CBR e o./Comissão, T‑25/95, T‑26/95, T‑30/95 a T‑32/95, T‑34/95 a T‑39/95, T‑42/95 a T‑46/95, T‑48/95, T‑50/95 a T‑65/95, T‑68/95 a T‑71/95, T‑87/95, T‑88/95, T‑103/95 e T‑104/95, Colect., p. II‑491). O referido acórdão tornou‑se definitivo dois meses após a sua notificação à Lafarge, uma vez que esta não interpôs recurso para o Tribunal de Justiça. Ora, as práticas visadas na decisão controvertida terminaram, segundo a Comissão, no mês de Novembro de 1998. Por conseguinte, nessa data, a Lafarge não tinha sido objecto de uma declaração de infracção tornada definitiva, dado que a Decisão 94/815 não era definitiva na medida em que o Tribunal de Primeira Instância ainda não tinha conhecido o referido recurso de anulação.

79      Por outro lado, a Lafarge sustenta que o Tribunal de Primeira Instância cometeu igualmente um erro de direito e faltou, além disso, ao seu dever de fundamentação, ao afirmar, no n.° 737 do acórdão recorrido, que o poder da Comissão para, numa decisão, declarar a existência de uma reincidência, mesmo que a primeira decisão que declara uma infracção não tenha carácter definitivo, é justificado pela reabertura dos prazos de recurso de anulação da segunda decisão, quando, após a adopção desta, a primeira decisão for anulada. Com efeito, nenhuma disposição do direito comunitário prevê tal reabertura de prazo. A Lafarge considera que esse erro deve acarretar a anulação do acórdão recorrido, visto que é contrário aos princípios da segurança jurídica e da boa administração da justiça fazer recair no sujeito de direito o encargo de restabelecer o direito, quando este foi violado devido a uma má definição do conceito de reincidência.

80      Embora conteste a procedência desta parte do fundamento, a Comissão partilha, todavia, da opinião da recorrente segundo a qual nenhuma disposição do direito comunitário prevê a possibilidade de reabertura do prazo de recurso de anulação de uma decisão da Comissão. Esta última propõe que o Tribunal de Justiça proceda a uma substituição de fundamentos, uma vez que a anulação de uma primeira decisão que pune uma violação do direito da concorrência, em que se baseia a declaração de reincidência feita no quadro de uma segunda decisão, confere o direito de a empresa em causa pedir à Comissão o reexame da segunda decisão. A Comissão refere, a este respeito, o artigo 233.° CE.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

81      O Tribunal de Primeira Instância declarou, no n.° 734 do acórdão recorrido, que, para a Comissão poder ter em conta a reincidência, basta que a empresa tenha sido previamente considerada autora de uma infracção do mesmo tipo, mesmo que a decisão em causa ainda esteja sujeita a fiscalização jurisdicional. A este respeito, lembrou com razão, no n.° 736 do acórdão recorrido, que as decisões da Comissão beneficiam de uma presunção de validade enquanto não tiverem sido anuladas ou retiradas (v., neste sentido, acórdão de 15 de Junho de 1994, Comissão/BASF e o., C‑137/92 P, Colect., p. I‑2555, n.° 48).

82      No mesmo número do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância sublinhou, uma vez mais acertadamente, que os recursos para o Tribunal de Justiça não têm efeito suspensivo. Efectivamente, o artigo 242.° CE prevê‑o expressamente.

83      Decorre daqui que, mesmo que ainda esteja sujeita a fiscalização jurisdicional, uma decisão da Comissão continua a produzir a totalidade dos seus efeitos, a menos que o Tribunal de Primeira Instância ou o Tribunal de Justiça decidam de outra forma.

84      Por conseguinte, a tese da recorrente segundo a qual a interposição de um recurso de anulação de uma decisão da Comissão acarreta a suspensão da aplicação dessa decisão durante o processo judicial, pelo menos no que diz respeito às consequências que dela decorrem para efeitos da declaração, numa decisão posterior, de uma eventual reincidência, não assenta em nenhuma base jurídica, mas, pelo contrário, colide, nomeadamente, com a redacção do artigo 242.° CE.

85      Além disso, se a tese sustentada pela recorrente devesse ser acolhida, os autores de infracções seriam incitados a interpor recursos puramente dilatórios, com a única finalidade de evitar as consequências da reincidência enquanto durassem os processos no Tribunal de Primeira Instância e no Tribunal de Justiça.

86      A conclusão do Tribunal de Primeira Instância segundo a qual, para que a Comissão possa ter em conta a reincidência, basta que a empresa tenha sido previamente considerada autora de uma infracção do mesmo tipo, mesmo que a decisão em causa ainda esteja sujeita a fiscalização jurisdicional, tem, portanto, fundamento jurídico.

87      Essa conclusão não é posta em causa na hipótese de a decisão com base na qual a coima relativa a outra infracção foi majorada numa decisão ulterior ser anulada pelo juiz da União Europeia, após a adopção desta última.

88      Com efeito, em tal hipótese, a Comissão está obrigada, em aplicação do artigo 233.° CE, a tomar as medidas necessárias para a execução do acórdão do Tribunal de Justiça, alterando, sendo caso disso, a decisão posterior na medida em que contenha uma majoração da coima a título da reincidência.

89      Contrariamente ao que sustenta a recorrente, este sistema é conforme com os princípios gerais da boa administração da justiça e da economia processual, na medida em que, por um lado, obriga a instituição de que emana o acto em causa a tomar as medidas necessárias para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal de Justiça, mesmo não havendo um pedido para esse efeito da empresa em causa, e, por outro, inviabiliza os recursos puramente dilatórios.

90      No entanto, admitindo que o Tribunal de Primeira Instância tenha cometido um erro de direito, como sublinham a recorrente e a Comissão, ao declarar, no n.° 737 do acórdão recorrido, que, na hipótese de uma decisão com base na qual a coima relativa a outra infracção foi majorada a título da reincidência numa decisão ulterior ser anulada após esta última decisão se ter tornado definitiva, se trata de um facto novo que implica a reabertura do prazo de recurso relativo à segunda decisão, esse erro não pode acarretar a anulação do referido acórdão, uma vez que o seu dispositivo se funda noutras razões de direito (v., neste sentido, acórdão de 13 de Julho de 2000, Salzgitter/Comissão, C‑210/98 P, Colect., p. I‑5843, n.° 58 e jurisprudência citada).

91      Resulta nomeadamente dos n.os 734 a 736 e 739 do acórdão recorrido que é isso que acontece no caso vertente. Com efeito, o Tribunal de Primeira Instância baseou‑se não só nas considerações desenvolvidas nos n.os 734 e 736 do acórdão recorrido e expostas no n.° 81 do presente acórdão, mas lembrou também, no n.° 735 do acórdão recorrido, que a apreciação das características específicas de uma reincidência depende de uma avaliação das circunstâncias da situação do caso em apreço pela Comissão, no quadro do seu poder de apreciação. Além disso, o Tribunal de Primeira Instância distinguiu, no n.° 739 do acórdão recorrido, o presente caso do caso que deu lugar ao acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 11 de Março de 1999, Thyssen Stahl/Comissão (T‑141/94, Colect., p. II‑347), em que a maior parte da infracção teve lugar antes da primeira decisão, ao passo que, no caso em apreço, a Lafarge continuou a participar no cartel em causa durante mais de quatro anos após a adopção da Decisão 94/815, que deu lugar ao acórdão Cimenteries CBR e o./Comissão, já referido.

92      No tocante à acusação relativa a uma alegada violação do princípio geral da segurança jurídica, importa salientar que a recorrente se limitou a invocar essa violação, sem demonstrar em que medida, precisamente, esse princípio terá sido violado.

93      A este respeito, há que sublinhar que o Tribunal de Primeira Instância indicou, no n.° 720 do acórdão recorrido, que o ponto 2 das orientações de 1998, intitulado «Circunstâncias agravantes», estabelece uma lista não exaustiva das circunstâncias que, como a reincidência, podem conduzir a um aumento do montante de base da coima. Nos termos do referido ponto 2, é precisamente visada a «reincidência da mesma ou das mesmas empresas relativamente a uma infracção do mesmo tipo», sem ser mencionada nenhuma condição relativa ao carácter «definitivo» da decisão que declara a infracção anterior. Ora, é jurisprudência constante que as orientações da Comissão garantem a segurança jurídica das empresas em causa, ao determinarem a metodologia que a Comissão se impôs para efeitos da fixação do montante das coimas aplicadas ao abrigo do artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 (v. acórdão de 22 de Maio de 2008, Evonik Degussa/Comissão e Conselho, C‑266/06 P, n.° 53).

94      No que toca à alegação relativa a uma pretensa violação do princípio geral da legalidade dos delitos e das penas, há que recordar que esse princípio exige que a lei defina claramente as infracções e as penas que as reprimem (acórdão Evonik Degussa/Comissão e Conselho, já referido, n.° 39). Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a clareza da lei aprecia‑se não só face à redacção da disposição pertinente mas também face às precisões fornecidas por jurisprudência constante e publicada (v., neste sentido, TEDH, acórdão G. e França, de 27 de Setembro de 1995, série A, n.° 325‑B, § 25). Há que salientar, além disso, que o facto de uma lei conferir um poder de apreciação não colide, em si mesmo, com a exigência de previsibilidade, desde que o alcance e as modalidades de exercício desse poder se encontrem definidas com nitidez suficiente, tendo em conta o fim legítimo em jogo, para fornecer ao indivíduo uma protecção adequada contra o arbitrário (TEDH, acórdão Margareta e Roger Andersson e Suécia, de 25 de Fevereiro de 1992, série A, n.° 226, § 75).

95      Importa recordar a este respeito que, se bem que o artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 deixe à Comissão uma ampla margem de apreciação, limita, todavia, o seu exercício, instituindo critérios objectivos que a Comissão deve respeitar. Assim, por um lado, o montante da coima aplicável tem um limite máximo quantificável e absoluto, de forma que o montante máximo da coima susceptível de ser aplicada a uma dada empresa é determinável antecipadamente. Por outro lado, o exercício desse poder de apreciação está igualmente limitado pelas regras de conduta que a Comissão se impôs a si mesma na comunicação sobre a cooperação e nas orientações. Além disso, a prática administrativa conhecida e acessível da Comissão está inteiramente sujeita à fiscalização do juiz da União, cuja jurisprudência constante e publicada permitiu precisar os conceitos indeterminados que o artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 podia conter. Um operador avisado pode, assim, recorrendo, se necessário, aos serviços de um consultor jurídico, prever de forma suficientemente precisa o método de cálculo e a ordem de grandeza das coimas em que incorre em razão de determinado comportamento, e o facto de esse operador não poder, antecipadamente, conhecer com precisão o nível das coimas que a Comissão aplicará em cada caso concreto não pode constituir uma violação do princípio da legalidade das penas (v., neste sentido, acórdão Evonik Degussa/Comissão e Conselho, já referido, n.os 50 a 55).

96      Tendo em conta o conjunto das considerações que precedem, deve ser rejeitada a segunda parte do quinto fundamento.

97      Decorre daqui que o quinto fundamento deve ser rejeitado na sua totalidade.

 Quanto ao sexto fundamento, relativo a um erro de direito respeitante à majoração do montante de base da coima a título do efeito dissuasivo

Argumentação das partes

98      A recorrente alega que o Tribunal de Primeira Instância violou, nos n.os 680 a 684 do acórdão recorrido, o artigo 81.° CE e o Regulamento n.° 17, ao considerar que a Comissão tinha fundamentos para apreciar a necessidade de aplicar, a título de efeito dissuasivo, uma majoração ao montante de partida da coima, e não no fim do cálculo desta. A recorrente considera que uma majoração, a título dissuasivo, do montante da coima calculado em função da gravidade e da duração da infracção assim como das circunstâncias agravantes ou atenuantes do caso em apreço só é admitida quando esse montante for insuficientemente elevado para convencer a empresa e o conjunto dos operadores económicos da gravidade da infracção e da necessidade de não a repetir.

99      A recorrente refere‑se igualmente à comunicação da Comissão, intitulada «Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2, alínea a), do artigo 23.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003» (JO 2006, C 210, p. 2, a seguir «orientações de 2006»), segundo a qual a necessidade de um «aumento específico [do montante da coima] tendo em vista o carácter dissuasivo» desta é apreciado à luz do montante final da coima, isto é, após a determinação do montante de base e o ajustamento desse montante em função das circunstâncias agravantes ou atenuantes.

100    A Comissão observa que as orientações de 2006 não são pertinentes no caso em apreço, porque a decisão controvertida foi adoptada em aplicação das orientações de 1998, que prevêem que a dimensão e os recursos globais da empresa podem ser tomados em conta na avaliação da gravidade da infracção (ponto 1.A), e isso antes da tomada em conta da duração desta (ponto 1.B). A Comissão tem a possibilidade de alterar a sua política de sanção das infracções ao direito comunitário da concorrência. Os termos das orientações de 1998 e das orientações de 2006 são similares na medida em que dão à Comissão a possibilidade de tomar em conta a dimensão e os recursos globais das empresas no cálculo da coima. Além disso, a fase em que a dimensão da empresa é tomada em conta não tem nenhum efeito, na medida em que a majoração a esse título é independente do montante final da coima.

Apreciação do Tribunal de Justiça

101    Como o Tribunal de Primeira Instância reconheceu no n.° 657 do acórdão recorrido, a majoração em 100% do montante de base da coima determinado em função da gravidade da infracção encontra o seu fundamento na necessidade de assegurar à coima um efeito dissuasivo suficiente em consideração da dimensão e dos recursos globais da Lafarge.

102    Quanto ao conceito de dissuasão, há que recordar que constitui um dos elementos a tomar em conta no cálculo do montante da coima. Com efeito, é jurisprudência constante que as coimas aplicadas em razão de violações do artigo 81.° CE, tal como previstas no artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17, têm por objecto reprimir os actos ilegais das empresas envolvidas assim como dissuadir as empresas em causa e outros operadores económicos de violarem, no futuro, as regras do direito da concorrência da União. Ora, o nexo entre, por um lado, a dimensão e os recursos globais das empresas e, por outro, a necessidade de assegurar um efeito dissuasivo à coima não pode ser contestado. Assim, quando calcula o montante da coima, a Comissão pode tomar em consideração, nomeadamente, a dimensão e o poder económico da empresa em causa (v., neste sentido, acórdão de 29 de Junho de 2006, Showa Denko/Comissão, C‑289/04 P, Colect., p. I‑5859, n.° 16 e jurisprudência citada).

103    A Lafarge não contesta a tomada em consideração da sua dimensão e dos seus recursos globais, enquanto tais, a fim de assegurar um efeito dissuasivo suficiente à coima, mas critica a fase em que teve lugar essa tomada em consideração.

104    Deve sublinhar‑se, a este respeito, que a tomada em consideração da dimensão e dos recursos globais da empresa em causa, a fim de assegurar um efeito dissuasivo suficiente à coima, reside no impacto pretendido na referida empresa, não devendo a sanção ser negligenciável à luz, nomeadamente, da capacidade financeira desta.

105    Assim, o Tribunal de Justiça entendeu que o Tribunal de Primeira Instância tinha fundamentos para considerar que, em razão do seu volume negócios global «enorme» relativamente ao dos outros membros do cartel, uma empresa mobilizaria mais facilmente os fundos necessários para o pagamento da sua coima, o que justificava a aplicação de um coeficiente multiplicador, tendo em vista um efeito dissuasivo suficiente dessa mesma coima (v. acórdão Showa Denko/Comissão, já referido, n.° 18).

106    No caso vertente, uma vez que o cálculo da coima foi efectuado pela aplicação de coeficientes multiplicadores, a sequência de aplicação desses coeficientes não teve incidência no montante final da coima, independentemente da fase em que o multiplicador em causa interveio.

107    Além disso, impõe‑se reconhecer que a Lafarge de maneira nenhuma fundamenta a sua afirmação segundo a qual, se tivesse sido determinado sem tomar em conta o multiplicador relativo ao efeito dissuasivo, o montante da coima teria sido suficiente para assegurar esse efeito à coima.

108    Por último, no que diz respeito ao argumento que a recorrente retira das orientações de 2006, há que sublinhar, como alega com razão a Comissão, que estas não eram aplicáveis aos factos que estão na origem do presente litígio.

109    De resto, deve salientar‑se que o factor de dissuasão que o cálculo da coima aplicada a uma empresa pode implicar é avaliado tendo em conta uma série de elementos, e não somente a situação particular da empresa em causa (v., neste sentido, acórdão Showa Denko/Comissão, já referido, n.° 23). Não está, portanto, excluído que a fase do cálculo em que intervém a tomada em consideração de um factor de dissuasão possa ser pertinente à luz dos elementos tidos em conta para avaliar o referido factor, diferentes da dimensão e dos recursos globais da empresa em causa. A recorrente não demonstrou, todavia, que seja esse o caso no presente processo.

110    Por conseguinte, há que julgar improcedente o sexto fundamento.

111    Decorre das considerações que precedem que deve ser negado provimento ao recurso na sua totalidade.

 Quanto às despesas

112    Por força do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal de Primeira Instância por força do artigo 118.° do mesmo regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da recorrente e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Lafarge SA é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.