Processo C‑52/08

Comissão Europeia

contra

República Portuguesa

«Incumprimento de Estado – Notários – Directiva 2005/36/CE»

Sumário do acórdão

1.        Acção por incumprimento – Objecto do litígio – Determinação durante o procedimento pré‑contencioso – Adaptação devido a uma alteração no direito da União – Admissibilidade – Requisitos

(Artigo 226.° CE)

2.        Acção por incumprimento – Exame do mérito pelo Tribunal de Justiça – Situação a tomar em consideração – Situação no termo do prazo fixado no parecer fundamentado – Situação de incerteza resultante de circunstâncias especiais ocorridas aquando do processo legislativo Inexistência de incumprimento

(Artigos 43.° CE, 45.°, primeiro parágrafo, CE e 226.° CE; Diretiva 2005/36 do Parlamento Europeu e do Conselho)

1.        No âmbito de uma acção por incumprimento, embora os pedidos contidos na petição inicial não possam, em princípio, ser ampliados para além dos incumprimentos alegados nas conclusões do parecer fundamentado e na notificação para cumprir, na verdade a Comissão pode procurar obter a declaração de um incumprimento das obrigações que têm origem na versão inicial de um acto da União, posteriormente alterado ou revogado, e que foram mantidas pelas disposições de um novo acto da União. Em contrapartida, o objecto do litígio não pode ser ampliado a obrigações resultantes de novas disposições que não tenham equivalência na versão inicial do acto em questão, sob pena de incorrer numa violação das formalidades essenciais da regularidade do processo destinado a declarar o incumprimento.

(cf. n.° 42)

2.        Quando, no decurso do processo legislativo, circunstâncias específicas como a não tomada de posição clara do legislador ou a não precisão clara relativamente à determinação do âmbito de aplicação de uma disposição do Direito da União, dêem origem a uma situação de incerteza, não é possível constatar que existia, no termo do prazo concedido no parecer fundamentado, uma obrigação suficientemente clara de os Estados‑Membros transporem uma directiva.

(cf. n.os 54‑56)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

24 de Maio de 2011 (*)

«Incumprimento de Estado – Notários – Directiva 2005/36/CE»

No processo C‑52/08,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 12 de Fevereiro de 2008,

Comissão Europeia, representada por H. Støvlbæk e P. Andrade, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

apoiada por:

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por S. Ossowski, na qualidade de agente, assistido por K. Smith, barrister,

interveniente,

contra

República Portuguesa, representada por L. Inez Fernandes e F. S. Gaspar Rosa, na qualidade de agentes,

demandada,

apoiada por:

República Checa, representada por M. Smolek, na qualidade de agente,

República da Lituânia, representada por D. Kriaučiūnas e E. Matulionytė, na qualidade de agentes,

República da Eslovénia, representada por V. Klemenc e Ž. Cilenšek Bončina, na qualidade de agentes,

República Eslovaca, representada por J. Čorba, na qualidade de agente,

intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev (relator) e J.‑J. Kasel, presidentes de secção, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász, G. Arestis, M. Ilešič, C. Toader e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 28 de Abril de 2010,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de Setembro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        Através da sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, não tendo adoptado as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à Directiva 2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Setembro de 2005, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO L 255, p. 22), a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força desta directiva.

 Quadro jurídico

 Direito da União

2        O considerando 9 da Directiva 2005/36 enuncia que, «[n]o que se refere à liberdade de estabelecimento, sem deixar de manter os princípios e as garantias subjacentes aos diferentes sistemas de reconhecimento em vigor, as regras destes sistemas deveriam ser melhoradas à luz da experiência».

3        Em conformidade com o disposto no considerando 14 desta directiva, «[o] mecanismo de reconhecimento estabelecido [pela Directiva 89/48/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, relativa a um sistema geral de reconhecimento dos diplomas de ensino superior que sancionam formações profissionais com uma duração mínima de três anos (JO 1989, L 19, p. 16)] mantém‑se inalterado».

4        O considerando 41 da Directiva 2005/36 enuncia que esta «não prejudica a aplicação do n.° 4 do artigo 39.° [CE] e do artigo 45.° [CE], designadamente no que diz respeito aos notários».

5        O artigo 2.°, n.° 3, da Directiva 2005/36 tem a seguinte redacção:

«Sempre que num instrumento separado da legislação comunitária sejam estabelecidas outras regras específicas directamente relacionadas com o reconhecimento de qualificações profissionais para determinada profissão regulamentada, não se aplicarão as disposições correspondentes da presente directiva.»

6        A profissão de notário não foi objecto de nenhum instrumento separado de direito da União, do tipo visado no referido artigo 2.°, n.° 3.

7        A Directiva 2005/36 revogou, nos termos do seu artigo 62.°, a Directiva 89/48, com efeitos a partir de 20 de Outubro de 2007.

 Legislação nacional

8        Os notários exercem as suas funções, na ordem jurídica portuguesa, no âmbito de uma profissão liberal. A organização desta profissão é regulada pelo Decreto‑Lei n.° 26/2004, de 4 de Fevereiro de 2004, que aprova o Estatuto do Notariado (Diário da República, I série‑A, n.° 29, de 4 de Fevereiro de 2004, a seguir «Estatuto do Notariado»).

9        O artigo 1.°, n.os 1 e 2, do Estatuto do Notariado dispõe:

«1.      O notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública.

2.      O notário é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que actua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.»

10      O artigo 4.°, n.° 1, do referido Estatuto enuncia que «[c]ompete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo‑os do seu valor e alcance».

11      O artigo 4.°, n.° 2, do mesmo Estatuto precisa que compete ao notário, designadamente, lavrar testamentos e outros instrumentos públicos, exarar termos de autenticação ou de reconhecimento da autoria da letra ou das assinaturas, passar certificados, certificar traduções, passar certidões e extrair públicas formas, lavrar instrumentos de actas de reuniões e conservar documentos.

12      Nos termos do artigo 25.° do Estatuto do Notariado, o acesso à profissão de notário está sujeito aos seguintes requisitos cumulativos:

–        não estar inibido do exercício de funções públicas ou interdito para o exercício de funções notariais;

–        possuir licenciatura em Direito reconhecida pelas leis portuguesas;

–        ter frequentado o estágio notarial; e

–        ter obtido aprovação em concurso realizado pelo Conselho do Notariado.

13      O Decreto‑Lei n.° 27/2004, de 4 de Fevereiro de 2004 (Diário da República, I série‑A, n.° 29, de 4 de Fevereiro de 2004), criou a Ordem dos Notários. A atribuição do título de notário é, por seu lado, regulada pela Portaria n.° 398/2004 do Ministro da Justiça, de 21 de Abril de 2004.

14      Nos termos do artigo 38.° do Decreto‑Lei n.° 76‑A/2006, de 29 de Março de 2006 (Diário da República, I série‑A, n.° 63, suplemento, de 29 de Março de 2006), os poderes de autenticação, de certificação e de reconhecimento de documentos também foram atribuídos aos conservadores e aos oficiais de registo, às câmaras de comércio e indústria, bem como aos advogados e aos solicitadores. As autenticações, as certificações e os reconhecimentos efectuados nestes termos conferem ao documento em causa a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.

15      Como foi explicado pela República Portuguesa na audiência, o legislador português eliminou progressivamente a necessidade de autenticação notarial no que respeita à quase totalidade dos actos para os quais essa autenticação era anteriormente exigida.

 Procedimento pré‑contencioso

16      Foi apresentada à Comissão uma queixa relativa à não transposição da Directiva 89/48, no que respeita à profissão de notário em Portugal. Depois de ter examinado esta queixa, a Comissão, por carta de 20 de Dezembro de 2001, enviou à República Portuguesa uma notificação para cumprir, para que esta, no prazo de dois meses, apresentasse as suas observações a propósito da não transposição desta directiva.

17      Na sua resposta de 17 de Junho de 2002 à notificação para cumprir, a República Portuguesa informou a Comissão de que estava a proceder a uma reforma legislativa em matéria de acesso à profissão de notário.

18      A Comissão, em 18 de Outubro de 2006, dirigiu a este Estado‑Membro um parecer fundamentado no qual concluiu que o referido Estado‑Membro não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbiam por força da Directiva 89/48. Esta instituição convidou a República Portuguesa a adoptar as medidas necessárias para dar cumprimento ao parecer fundamentado no prazo de dois meses a contar da sua recepção.

19      Por carta de 24 de Janeiro de 2007, a República Portuguesa apresentou os motivos pelos quais considerava que a posição defendida pela Comissão não era procedente.

20      Foi nestas condições que a Comissão decidiu intentar a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

21      A Comissão alega, em primeiro lugar, que a actividade dos notários não está ligada ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE. A este respeito, recorda que, na parte em que prevê uma excepção à liberdade de estabelecimento, esta disposição deve ser interpretada restritivamente (acórdão de 21 de Junho de 1974, Reyners, C‑2/74, Colect., p. 325, n.° 43).

22      O âmbito de aplicação da referida excepção deve, além disso, ser restringido às actividades que, em si próprias, constituem a participação directa e específica no exercício do poder público (acórdão Reyners, já referido, n.os 44 e 45). Segundo a Comissão, o conceito de poder público decorre de um poder de decisão que vai além do direito comum, que se traduz na capacidade de agir independentemente da vontade de outros sujeitos ou mesmo contra essa vontade. Em especial, a autoridade pública manifesta‑se, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, através do exercício de poderes de coerção (acórdão de 29 de Outubro de 1998, Comissão/Espanha, C‑114/97, Colect., p. I‑6717, n.° 37).

23      Ficam assim excluídas do âmbito de aplicação do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE as actividades que constituem assistência ou colaboração no funcionamento da autoridade pública (v., neste sentido, acórdão de 13 de Julho de 1993, Thijssen, C‑42/92, Colect., p. I‑4047, n.° 22).

24      A Comissão e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte são de opinião de que as actividades que estão ligadas ao exercício da autoridade pública devem ser distinguidas das que são exercidas no interesse geral. Com efeito, são atribuídas a diversas profissões competências específicas no interesse geral, que não são suficientes para conferir à sua actividade a natureza de exercício da autoridade pública.

25      Uma vez que a legislação portuguesa não atribui poderes decisórios aos notários, a actividade destes não está ligada ao exercício da autoridade pública.

26      Em segundo lugar, a Comissão examina, à luz das exigências da Directiva 2005/36, os requisitos a que está sujeito o acesso à profissão de notário em Portugal.

27      À semelhança do Reino Unido, esta instituição considera que o considerando 41 desta directiva não exclui a profissão de notário do âmbito de aplicação da referida directiva. Este considerando deve ser interpretado no sentido de que o artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE é aplicável à profissão de notário, uma vez que as actividades desempenhadas nesta profissão estão ligadas ao exercício da autoridade pública. Ora, uma vez que as actividades dos notários não estão, na ordem jurídica portuguesa, ligadas ao exercício da autoridade pública, é‑lhes aplicável a Directiva 2005/36.

28      A este respeito, a Comissão observa que o exercício da profissão de notário em Portugal está sujeito a cinco requisitos. Em primeiro lugar, os candidatos devem ser licenciados em Direito por uma Universidade portuguesa ou possuir habilitação académica equivalente face à lei portuguesa. Em segundo lugar, os candidatos devem ser aprovados num concurso de atribuição do título de notário. Em terceiro lugar, devem efectuar um estágio, no termo do qual o notário patrono elabora uma informação do estágio na qual se pronuncia sobre a aptidão do estagiário para o exercício da profissão. Em quarto lugar, depois de terem efectuado o referido estágio, os candidatos devem ser aprovados num segundo concurso que lhes permita exercer a profissão. Em quinto lugar, os candidatos tomam posse mediante juramento perante o Ministro da Justiça e o bastonário da Ordem dos Notários.

29      A Comissão considera que os primeiros três requisitos mencionados no número anterior não são compatíveis com as exigências da Directiva 2005/36. Assim, o primeiro requisito contraria os artigos 13.°, n.° 1, e 14.°, n.° 3, desta directiva, uma vez que proíbe que os titulares de licenciaturas em Direito conferidas por Universidades de outros Estados‑Membros ou de habilitações académicas que não são consideradas equivalentes exerçam a profissão de notário em Portugal. O segundo requisito contraria, nomeadamente, o artigo 14.°, n.° 3, da referida directiva, uma vez que o concurso que permite obter o título de notário incide num amplo espectro de matérias que constam do diploma ou da formação do candidato. No que respeita ao terceiro requisito, o estágio em causa constitui não apenas um estágio de adaptação mas, simultaneamente, uma prova de aptidão, quando o artigo 14.°, n.° 3, da Directiva 2005/36 proíbe que se exija cumulativamente a frequência de um estágio de adaptação, por um lado, e a aprovação numa prova de aptidão, por outro.

30      A República Portuguesa, apoiada pela República da Lituânia, pela República da Eslovénia e pela República Eslovaca, alega, em primeiro lugar, que as actividades do notário participam, em conformidade com a legislação da União e a jurisprudência do Tribunal de Justiça, no exercício de prerrogativas de autoridade pública na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

31      Com efeito, o Tribunal de Justiça já confirmou, no seu acórdão de 30 de Setembro de 2003, Colegio de Oficiales de la Marina Mercante Española (C‑405/01, Colect., p. I‑10391, n.° 42), que as actividades do notário relativas à elaboração de testamentos constituem uma participação no exercício de prerrogativas de autoridade pública.

32      O Parlamento Europeu também concluiu pela aplicabilidade do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE à profissão de notário, na sua Resolução de 18 de Janeiro de 1994 sobre a situação e organização do notariado nos doze Estados‑Membros da Comunidade (JO C 44, p. 36), e na sua Resolução de 23 de Março de 2006 sobre as profissões jurídicas e o interesse geral no funcionamento da ordem jurídica (JO C 292E, p. 105).

33      Do mesmo modo, as Directivas 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («Directiva sobre o comércio electrónico») (JO L 178, p. 1), e 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO L 376, p. 36), excluem dos respectivos âmbitos de aplicação as actividades de notário.

34      Certos aspectos do Estatuto do Notariado, a saber, nomeadamente, o seu estatuto de oficial público, o regime de numerus clausus a que está sujeito e o juramento bem como as incompatibilidades previstas na lei, também comprovam a participação dos notários no exercício da autoridade pública.

35      No que respeita à pretensa não transposição da Directiva 2005/36, a República Portuguesa, a República da Lituânia e a República da Eslovénia alegam, em segundo lugar, que o considerando 41 desta directiva enuncia expressamente que esta «não prejudica a aplicação do n.° 4 do artigo 39.° [CE] e do artigo 45.° [CE], designadamente no que diz respeito aos notários». Esta reserva confirma que a profissão de notário está excluída do âmbito de aplicação da Directiva 2005/36. No considerando 12 da Directiva 89/48 figura uma reserva similar.

36      Referindo‑se aos trabalhos preparatórios da Directiva 2005/36, nomeadamente à Resolução legislativa do Parlamento Europeu sobre uma proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO 2004, C 97E, p. 230), adoptada em primeira leitura, em 11 de Fevereiro de 2004, a República Portuguesa conclui que o legislador da União retirou a profissão de notário do âmbito de aplicação da referida directiva.

37      A República Checa considera que, na medida em que o exercício da profissão de notário exige um conhecimento aprofundado do direito nacional do Estado‑Membro de acolhimento, a exigência de uma prova de aptidão que incida sobre questões relativas ao direito interno desse Estado‑Membro está em consonância com as condições que figuram no artigo 3.°, n.° 1, alínea h), da Directiva 2005/36.

38      A República da Eslovénia alega que o Tribunal de Justiça deve, oficiosamente, julgar improcedente a presente acção, pelo facto de o processo pré‑contencioso ter por objecto a pretensa não transposição da Directiva 89/48, ao passo que, na presente acção, se acusa a República Portuguesa é acusada de não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do disposto na Directiva 2005/36.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

 Quanto à admissibilidade da acção

39      Resulta da petição inicial da Comissão que a presente acção tem por objecto uma pretensa não transposição da Directiva 2005/36. Contudo, há que notar que tanto a notificação para cumprir como o parecer fundamentado enviados pela Comissão se referem à Directiva 89/48. Por conseguinte, há que analisar oficiosamente a questão da admissibilidade da presente acção.

40      Com efeito, nos termos da sua jurisprudência, o Tribunal de Justiça pode apreciar oficiosamente se estão preenchidas as condições estabelecidas no artigo 226.° CE para a propositura de uma acção por incumprimento (acórdãos de 31 de Março de 1992, Comissão/Itália, C‑362/90, Colect., p. I‑2353, n.° 8, e de 9 de Setembro de 2004, Comissão/Grécia, C‑417/02, Colect., p. I‑7973, n.° 16).

41      É jurisprudência constante que a existência de um incumprimento no âmbito de uma acção intentada ao abrigo do artigo 226.° CE deve ser apreciada à luz da legislação da União em vigor no termo do prazo que a Comissão concedeu ao Estado‑Membro em causa para dar cumprimento ao seu parecer fundamentado (v., nomeadamente, acórdãos de 10 de Setembro de 1996, Comissão/Alemanha, C‑61/94, Colect., p. I‑3989, n.° 42, de 5 de Outubro de 2006, Comissão/Bélgica, C‑377/03, Colect., p. I‑9733, n.° 33, e de 10 de Setembro de 2009, Comissão/Grécia, C‑416/07, Colect., p. I‑7883, p. 27). Ora, há que constatar que a Directiva 2005/36 revogou a Directiva 89/48 a partir de 20 de Outubro de 2007, ou seja, depois de ter expirado o prazo fixado no parecer fundamentado.

42      Contudo, como o Tribunal de Justiça já declarou, embora os pedidos contidos na petição inicial não possam, em princípio, ser ampliados para além dos incumprimentos alegados nas conclusões do parecer fundamentado e na notificação para cumprir, na verdade a Comissão pode procurar obter a declaração de um incumprimento das obrigações que têm origem na versão inicial de um acto da União, posteriormente alterado ou revogado, e que foram mantidas pelas disposições de um novo acto da União. Em contrapartida, o objecto do litígio não pode ser ampliado a obrigações resultantes de novas disposições que não tenham equivalência na versão inicial do acto em questão, sem incorrer na violação das formalidades essenciais da regularidade do processo destinado a declarar o incumprimento (v., a este respeito, acórdãos de 9 de Novembro de 1999, Comissão/Itália, C‑365/97, Colect., p. I‑7773, n.° 36, de 12 de Junho de 2003, Comissão/Itália, C‑363/00, Colect., p. I‑5767, n.° 22, e de 10 de Setembro de 2009, Comissão/Grécia, já referido, n.° 28).

43      Por conseguinte, os pedidos contidos na petição inicial da Comissão que visam obter a declaração de que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 2005/36 são, em princípio, admissíveis, na condição de as obrigações decorrentes desta directiva serem análogas às que decorrem da Directiva 89/48 (v., por analogia, acórdão de 10 de Setembro de 2009, Comissão/Grécia, já referido, n.° 29).

44      Ora, como resulta do considerando 9 da Directiva 2005/36, embora vise melhorar, reorganizar e racionalizar as disposições existentes através de uma uniformização dos princípios aplicáveis, esta directiva mantém, no que se refere à liberdade de estabelecimento, os princípios e as garantias subjacentes aos diferentes sistemas de reconhecimento em vigor, como o instaurado pela Directiva 89/48.

45      Do mesmo modo, o considerando 14 da Directiva 2005/36 enuncia que o mecanismo de reconhecimento estabelecido, nomeadamente, pela Directiva 89/48 se mantém inalterado.

46      No presente caso, a acusação que a Comissão faz à República Portuguesa visa, no que se refere à profissão de notário, a falta de transposição, não de uma determinada disposição da Directiva 2005/36 mas desta directiva na sua totalidade.

47      Nestas condições, há que constatar que a pretensa obrigação de transposição da Directiva 2005/36 para a profissão de notário é análoga à que decorre da Directiva 89/48, na medida em que, por um lado, os princípios e as garantias subjacentes ao mecanismo de reconhecimento criado por esta última directiva são mantidos na primeira e, por outro, este mecanismo de reconhecimento não foi alterado depois da adopção da Directiva 2005/36.

48      Por conseguinte, o presente fundamento é admissível.

 Quanto ao mérito

49      A Comissão acusa a República Portuguesa de não ter transposto a Directiva 2005/36, no que respeita à profissão de notário. Por conseguinte, há que examinar se a referida directiva é aplicável a esta profissão.

50      A este respeito, há que tomar em consideração o contexto legislativo em que esta se inscreve.

51      Importa assim salientar que o legislador previu expressamente, no considerando 12 da Directiva 89/48, que antecedeu a Directiva 2005/36, que o sistema geral de reconhecimento de diplomas do ensino superior, criado pela primeira destas directivas, «em nada prejudica a aplicação do [artigo 45.° CE]». A reserva assim emitida traduz a vontade do legislador de deixar as actividades abrangidas pelo artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE fora do âmbito de aplicação da Directiva 89/48.

52      Ora, no momento em que a Directiva 89/48 foi adoptada, o Tribunal de Justiça ainda não tinha tido a oportunidade de se pronunciar sobre a questão de saber se as actividades notariais são ou não abrangidas pelo artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

53      Nos anos que se seguiram à adopção da Directiva 89/48, o Parlamento afirmou, nas suas Resoluções de 1994 e de 2006, mencionadas no n.° 32 do presente acórdão, por um lado, que o artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE se devia aplicar integralmente à profissão de notário enquanto tal, ao passo que, por outro, manifestou a vontade de eliminar o requisito da nacionalidade para o acesso a esta profissão.

54      Além disso, no momento da adopção da Directiva 2005/36, que substituiu a Directiva 89/48, o legislador da União teve o cuidado de precisar, no considerando 41 da primeira destas directivas, que esta não prejudica a aplicação do artigo 45.° CE, «designadamente no que diz respeito aos notários». Ora, ao emitir esta reserva, o legislador da União não tomou posição sobre a aplicabilidade do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, e, por conseguinte, da Directiva 2005/36, às actividades notariais.

55      Este facto é, nomeadamente, comprovado pelos trabalhos preparatórios desta última directiva. Com efeito, o Parlamento tinha proposto, na sua resolução legislativa mencionada no n.° 36 do presente acórdão, que fosse expressamente indicado no texto da Directiva 2005/36 que esta não se aplica aos notários. Se esta posição não foi incluída na Proposta alterada de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais [COM(2004) 317 final], nem na Posição Comum (CE) n.° 10/2005, de 21 de Dezembro de 2004, adoptada pelo Conselho, deliberando nos termos do procedimento previsto no artigo 251.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia, tendo em vista a adopção de uma directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO 2005, C 58E, p. 1), não foi por a directiva em causa se dever aplicar à profissão de notário, mas, nomeadamente, por «[o] artigo 45.°[, primeiro parágrafo,] do Tratado […] prev[er] uma derrogação ao princípio da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços para as actividades que impliquem uma participação directa e específica no exercício da autoridade pública».

56      A este respeito, atendendo a todas as circunstâncias específicas que caracterizaram o processo legislativo e a situação de incerteza que dele resultou, como decorre do contexto legislativo acima recordado, não é possível constatar que existia, no termo do prazo concedido no parecer fundamentado, uma obrigação suficientemente clara de os Estados‑Membros transporem a Directiva 2005/36 no que respeita à profissão de notário.

57      Por conseguinte, há que julgar a acção improcedente.

 Quanto às despesas

58      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Portuguesa pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

59      Nos termos do artigo 69.°, n.° 4, primeiro parágrafo, deste mesmo regulamento, os Estados‑Membros que intervenham no litígio suportam as suas próprias despesas. Por conseguinte, a República Checa, a República da Lituânia, a República da Eslovénia, a República Eslovaca e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte suportarão as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      A acção é julgada improcedente.

2)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas.

3)      A República Checa, a República da Lituânia, a República da Eslovénia, a República Eslovaca e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte suportam as suas próprias despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: português.