CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 15 de Julho de 2010 1(1)

Processo C‑512/08

Comissão Europeia

contra

República Francesa

«Livre prestação de serviços – Restrições injustificadas – Requisito da autorização prévia na França como condição para o reembolso de prestações médicas não hospitalares fornecidas noutro Estado‑Membro com recurso a equipamento material pesado – Inexistência de legislação que garanta ao doente segurado o reembolso complementar correspondente à diferença em relação ao montante a que teria direito de acordo com a fórmula usada no Estado‑Membro de inscrição e o montante que lhe seria devido de acordo com a fórmula utilizada no Estado‑Membro em que o tratamento é dispensado»





1.        Os acórdãos do Tribunal de Justiça em matéria da aplicação das regras do mercado interno aos serviços de saúde (2) têm suscitado grande controvérsia. Frequentemente, estes acórdãos colocam problemas que assumem importância constitucional e substantiva. Demonstram os efeitos potencialmente destabilizadores para diversos sistemas de segurança social que resultam da decisão de submeter os serviços essenciais públicos ao regime da livre circulação da União Europeia (3).

2.        A este propósito, a presente acção por incumprimento não constitui excepção. A primeira acusação da Comissão imputa à França o não cumprimento das obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° do Tratado CE (4), na medida em que o reembolso das prestações médicas fornecidas em meio não hospitalar que exigem a utilização de equipamentos materiais pesados (5) está sujeito a autorização prévia. A segunda acusação imputa às autoridades francesas a falta de adopção de uma legislação específica que confira ao doente beneficiário da segurança social francesa um reembolso complementar nas condições previstas no n.° 53 do acórdão Vanbraekel (6).

3.        O processo no qual foi proferido o acórdão Vanbraekel tinha por objecto a base do cálculo do montante a reembolsar a um beneficiário do sistema de segurança social belga que recebeu tratamento médico num hospital em França. A questão era a de saber se o doente devia ser reembolsado pela segurança social belga de acordo com o montante que seria pago pela segurança social francesa (FRF 38.608,99) ou de acordo com o nível de reembolso previsto pelo direito belga (FRF 49.935,44) (7). O Tribunal de Justiça concluiu que, uma vez que o artigo 22.° do Regulamento n.°1408/71 (8) não era aplicável, a questão devia ser apreciada à luz do artigo 49.° CE (9). O Tribunal de Justiça considerou que o facto de o direito nacional não conferir o direito a um reembolso complementar constituía uma restrição injustificada à livre prestação de serviços (10) e definiu, no n.° 53 do seu acórdão, as condições de elegibilidade dos doentes para obterem este reembolso complementar (11).

 Legislação comunitária

 Artigo 49.° CE

4.        O primeiro parágrafo do artigo 49.° CE dispõe o seguinte: «No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade em relação aos nacionais dos Estados‑Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.»

5.        O artigo 55.° CE estende a derrogação por razões de saúde pública à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 46.° CE à livre prestação de serviços consagrada no artigo 49.° CE.

 Regulamento n.° 1408/71

6.        O Regulamento n.° 1408/71 (a seguir «regulamento») não está directamente em causa no presente processo. Contudo, é necessário tê‑lo presente para compreender o quadro legislativo da UE. O regulamento tem como objectivo permitir que os trabalhadores que se deslocam no interior da União conservem os seus direitos às prestações de cuidados de saúde e da segurança social (ver designadamente os seus quinto e sexto considerandos). O regulamento observa o princípio de que a segurança social é um domínio que continua reservado à competência dos Estados‑Membros. Não constitui, por isso, uma medida de harmonização, tendo unicamente por objectivo assegurar um certo grau de coordenação, prevendo que sistemas fundamentalmente distintos possam cooperar de forma a assegurar prestações mínimas da segurança social e de cuidados de saúde (12). O seu artigo 22.°, n.° 1, alínea c), exige autorização prévia para os tratamentos médicos recebidos no território de Estado‑Membro diverso daquele em que está inscrito o doente (facto que não impede que este possa invocar o artigo 49.° CE) (13). O seu artigo 36.° define o procedimento de reembolso entre as instituições dos Estados de inscrição do beneficiário da segurança social e as do Estado em que são dispensados os cuidados de saúde.

 Quadro jurídico nacional

 Code de la sécurité sociale [Código da Segurança Social]

7.        O Decreto n.° 2005‑386, de 19 de Abril de 2005, inseriu os artigos R.332‑3 e R.332‑4 no Código da Segurança Social francês. Na secção relativa aos cuidados de saúde dispensados fora de França, o artigo R.332‑3 dispõe o seguinte: «As caixas de seguro de doença procedem ao reembolso das despesas com os cuidados de saúde dispensados aos segurados sociais e seus dependentes num Estado‑Membro da União Europeia ou num Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, em condições idênticas às aplicáveis caso estes cuidados tivessem sido recebidos em França, sem que o montante reembolsado possa exceder o montante das despesas suportadas pelo segurado e sem prejuízo das adaptações previstas nos artigos R.332‑4 e R.332‑6».

8.        O artigo R.332‑4 dispõe o seguinte: «Salvo em caso de cuidados inopinados, as caixas de seguro de doença não podem, sem autorização prévia, proceder ao reembolso das despesas com cuidados hospitalares ou que exigem recurso aos equipamentos materiais pesados a que se refere a secção II do artigo R.712‑2 do Código da Saúde Pública dispensados aos segurados sociais e seus dependentes noutro Estado‑Membro da União Europeia ou num Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu [...]».

9.        A autorização prévia a que se refere o artigo R.332‑4 pode ser recusada caso esteja preenchida uma das seguintes condições: o tratamento proposto não faz parte dos tratamentos reembolsados ao abrigo da regulamentação aplicável em França; ou um tratamento idêntico ou igualmente eficaz pode ser dispensado em França em tempo oportuno, atendendo ao estado do doente e à evolução provável da sua doença. O artigo R.332‑4 também define o processo de apresentação do pedido de autorização prévia. Essencialmente, os doentes devem apresentar o pedido à caixa em que estejam inscritos e qualquer decisão de indeferimento deve ser fundamentada, sendo susceptível de recurso.

 Code de la santé publique [Código da Saúde Pública]

10.      O artigo L.6121‑1 do Código da Saúde Pública, na sua versão em vigor no momento relevante para os presentes autos, expõe os objectivos em matéria de saúde pública, entre os quais se inclui a ponderação da necessidade de planear a repartição dos recursos para assegurar o acesso público aos serviços de saúde. O artigo L.6122‑1 dispõe: «estão sujeitos a autorização da agência regional de hospitalização os projectos relativos à criação de quaisquer estabelecimentos de saúde, de criação, reconversão e reagrupamento de serviços de saúde, incluindo sob a forma de alternativas à hospitalização, bem como de instalação de [equipamentos materiais pesados]. A lista das actividades de cuidados e dos [equipamentos materiais pesados] sujeitos a autorização é fixada por decreto, em Conseil d’État».

11.      O artigo L.6122‑14 define o equipamento abrangido por esta lista como sendo o «[...] equipamento móvel destinado ao diagnóstico, ao tratamento ou à reeducação funcional de feridos, doentes ou mulheres grávidas, ou ao tratamento informático, cuja utilização só seja possível em condições de instalação e funcionamento particularmente onerosas ou que possam implicar um número excessivo de actos médicos».

12.      A lista deste equipamento consta do artigo L.6122‑26 (que corresponde à antiga secção II do artigo R.712‑2 do mesmo código), o qual prevê a sujeição à autorização prévia do seguinte equipamento material pesado:

1. Câmara de cintilação munida ou não de detector de emissão de positrões em coincidência, tomógrafo de emissões, câmara de positrões («tomógrafo PET») (14);

2. Aparelhos de espectroscopia ou de espectrometria por ressonância magnética nuclear para uso clínico (15);

3. Scanner para uso médico (16);

4. Câmara hiperbárica (17);

5. Ciclotrão para uso médico (18).

13.      As autoridades francesas emitiram três circulares para explicar a situação no direito nacional a respeito do reembolso do custo dos tratamentos médicos dispensados aos beneficiários da segurança social francesa noutro Estado‑Membro ou no Espaço Económico Europeu (a seguir «EEE») e o requisito da autorização prévia para os tratamentos dispensados no estrangeiro com recurso a equipamento material pesado (19).

14.      A circular DSS/DACI/2003/286 explicita que os beneficiários da segurança social francesa podem pedir o reembolso complementar nas condições enunciadas no acórdão Vanbraekel.

15.      A circular DSS/DACI/2005/235 refere que: «O Decreto 2005‑386, de 19 de Abril de 2005, relativo ao pagamento dos tratamentos dispensados fora de França completa a integração no direito nacional da jurisprudência comunitária em matéria da livre prestação de serviços e da livre circulação de mercadorias no domínio dos cuidados de saúde [...]». A circular esclarece que os pedidos de autorização prévia não devem ser sistematicamente indeferidos pelas autoridades competentes, mas unicamente quando sejam aplicáveis as condições previstas pelo artigo R.332‑4 do Código da Segurança Social» (20).

16.      A circular DSS/DACI/2008/242 confirma que os beneficiários devem obter o reembolso complementar previsto pelo acórdão Vanbraekel. Realça que, embora a segurança social deva aplicar a jurisprudência do Tribunal de Justiça, existem obstáculos ao cálculo do montante do reembolso complementar (tais como a falta de um quadro de referência comum para comparação dos diversos custos dos cuidados de saúde no conjunto dos Estados‑Membros), mas incentiva, porém, as autoridades competentes a continuarem a processar os pedidos de reembolso complementar.

 Antecedentes e procedimento pré‑contencioso

17.      Em 18 de Outubro de 2006, a Comissão emitiu uma notificação para cumprir contendo três acusações. À luz da resposta das autoridades francesas, de 1 de Março de 2007, a Comissão exprimiu a sua satisfação quanto ao facto de a legislação francesa exigir que a administração envie um aviso de recepção na sequência dos pedidos provenientes das autoridades hospitalares de outros Estados‑Membros para confirmar a concessão da autorização prévia para o tratamento, tendo por isso desistido desta acusação.

18.      O Governo francês não contestou as outras duas acusações da Comissão. De facto, as autoridades francesas indicaram que pretendiam alterar o Código da Segurança Social de molde a resolver o imputado nas acusações relativas ao requisito da autorização prévia para os tratamentos com recurso a equipamento material pesado e à falta de legislação específica para dar execução ao enunciado no acórdão Vanbraekel.

19.      Em 23 de Outubro de 2007, a Comissão emitiu um parecer fundamentado a respeito das duas acusações restantes. Na sua resposta de 13 de Dezembro de 2007, as autoridades francesas indicaram novamente que pretendiam alterar a legislação para dar cumprimento ao parecer fundamentado da Comissão. Por carta posterior, de 28 de Julho de 2008, as autoridades francesas reiteraram a sua intenção de remover o requisito da autorização prévia e comunicaram à Comissão o texto da circular DSS/DACI/2008/242, que esclarece as condições do pagamento do reembolso complementar.

20.      Porém, entretanto, em 2 de Julho de 2008, a Comissão adoptou uma proposta de directiva relativa à aplicação dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços (a seguir «proposta da Comissão») (21).

21.      As autoridades francesas reviram a sua posição à luz desta proposta e decidiram contestar o incumprimento.

22.      A Comissão intentou, pois, a presente acção em 25 de Novembro de 2008, pedindo que o Tribunal de Justiça se digne declarar que:

–        tendo subordinado à obtenção de uma autorização prévia, por força do artigo R.332‑4 do Código da Segurança Social, o reembolso das prestações médicas dispensadas em consultório que exigem a utilização dos equipamentos materiais pesados mencionados no ponto II do artigo R.6122‑26 do Código da Saúde Pública,

–        não tendo previsto no artigo R‑332‑4 ou em qualquer outra disposição de direito francês a possibilidade de conceder, ao doente beneficiário da segurança social francesa, um reembolso complementar nas condições previstas no n.° 53 do acórdão de 12 de Julho de 2001, Vanbraekel e o. (C‑368/98),

a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, e

condenar a República Francesa nas despesas.

23.      A Comissão e os Governos francês, espanhol e do Reino Unido apresentaram observações orais na audiência de 2 de Março de 2010. O Governo finlandês apresentou observações escritas, mas não apresentou observações orais no Tribunal.

 Apreciação

 Observações preliminares

24.      Começarei por examinar a alegação das autoridades francesas segundo a qual a alteração da sua posição não tem implicações processuais para a acção ora em apreço. Também procederei a uma breve análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o ónus da prova em acções por incumprimento.

25.      Segundo a sua jurisprudência assente, a regularidade do procedimento pré‑contencioso constitui uma garantia essencial pretendida pelo Tratado, não apenas para a protecção dos direitos do Estado‑Membro em causa, mas igualmente para assegurar que o eventual processo contencioso venha a ter por objecto um litígio claramente definido (22). Uma vez definido o objecto do litígio, o Estado‑Membro tem o direito de invocar todos os fundamentos ao seu dispor para assegurar a sua defesa. Além disso, nenhuma regra processual exige que o Estado‑Membro apresente todos os argumentos da sua defesa na fase pré‑contenciosa de uma acção por incumprimento.

26.      As acusações da Comissão foram claramente expostas na fase pré‑contenciosa. Nunca houve qualquer ambiguidade ou incerteza a respeito da posição da Comissão. Consequentemente a França não sofreu qualquer dano com a forma como os acontecimentos evoluíram. Pelo mesmo motivo, uma vez que estas regras existem para proteger o Estado‑Membro demandado (e não a Comissão), nada há que impeça que a França modifique a sua posição.

27.      Assim, nas acções por incumprimento, a posição da Comissão não é igual à posição do Estado‑Membro demandado. Em especial, a regra de que a Comissão não pode apresentar novas acusações na fase contenciosa não se aplica mutatis mutandis ao Estado‑Membro no respeitante à sua defesa (23).

28.      Concordo, por isso, com as autoridades francesas no sentido de que não impedidas por qualquer regra processual de contestar a acção e de impugnar ambas as acusações da Comissão.

29.      Quanto ao ónus da prova, decorre claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que cabe à Comissão provar a alegação do incumprimento da obrigação em causa e apresentar ao Tribunal as informações necessárias à verificação, por este, da existência desse incumprimento (24).

30.      Consequentemente, o ónus da prova incumbe nos presentes autos à Comissão, cabendo‑lhe provar que uma específica medida nacional (no que diz respeito à primeira acusação) ou a falta de uma específica medida nacional (no que diz respeito à segunda acusação) constituem um obstáculo à livre de prestação de serviços na acepção do artigo 49.° CE (25).

 Mérito da causa

31.      Abordarei em primeiro lugar a segunda acusação da Comissão (execução do acórdão Vanbraekel), antes de me debruçar sobre o requisito da autorização prévia para as prestações médicas não hospitalares dispensadas noutro Estado‑Membro com recurso a equipamento material pesado.

 A segunda acusação – execução do acórdão Vanbraekel

32.      No contexto da segunda acusação da Comissão, cabe analisar duas questões distintas. Em primeiro lugar, a Comissão cumpriu o ónus da prova que lhe incumbe no quadro das acções por incumprimento, tendo provado que a falta de uma específica medida nacional constitui um obstáculo à livre prestação de serviços garantida pelo artigo 49.° CE? Em segundo lugar, mesmo não existindo prova efectiva de tal obstáculo, o Estado‑Membro tem, não obstante, o dever de agir, aprovando legislação específica para dar cumprimento a um acórdão do Tribunal de Justiça que diz respeito à interpretação de uma disposição do Tratado que produz efeito directo?

33.      O ponto de partida para a apreciação destas questões pode ser descrito de forma relativamente simples. A Comissão reconhece que não há nenhuma divergência entre a sua opinião e a da França no tocante à interpretação do acórdão Vanbraekel e ao pagamento do reembolso complementar. Admite que a circular DSS/DACI/2008/242 exprime correctamente esta interpretação. Além disso, não existe em França qualquer disposição legislativa que impeça o pagamento do reembolso complementar.

34.      Por seu turno, as autoridades francesas reconhecem abertamente que não aprovaram legislação para dar aplicação ao enunciado no acórdão Vanbraekel. Invocam as circulares DSS/DACI/2005/235 e DSS/DACI/2008/242, conjugadas com o facto de as pessoas poderem invocar directamente os direitos que lhes confere o artigo 49.° CE.

35.      A Comissão não sugeriu a existência de uma prática administrativa contínua de não pagamento do reembolso complementar pelas autoridades francesas. A Comissão também não apresentou prova a respeito de casos específicos nos quais o pagamento do reembolso complementar tenha sido recusado pelas autoridades francesas e, assim, da falta da aplicação na prática do enunciado no acórdão Vanbraekel. Não foram apresentados ao Tribunal elementos que indiquem que os doentes beneficiários da segurança social francesa são dissuadidos de procurar tratamento médico noutros Estados‑Membros ou no EEE, por poderem não obter o reembolso complementar mesmo preenchendo as condições definidas no acórdão Vanbraekel.

36.      Assim, creio que a Comissão não provou que a falta de legislação específica implique uma restrição à livre prestação de serviços na acepção do artigo 49.° CE. Se a única questão suscitada fosse a de saber se a Comissão satisfez o ónus da prova no contexto da acção por incumprimento, concluiria, pois, que a segunda acusação devia ser julgada improcedente.

37.      Contudo, a segunda acusação da Comissão também suscita a nova questão de princípio de saber se, para dar cumprimento a um acórdão anterior do Tribunal de Justiça relativo à interpretação do Tratado CE, o Estado‑Membro está obrigado a introduzir legislação específica para lhe dar execução.

38.      A França alega que o artigo 49.° CE produz efeito directo, não exigindo por isso qualquer transposição específica para o direito interno. Donde decorre que o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Vanbraekel, que tinha por objecto a interpretação do artigo 49.° CE, produz o mesmo efeito jurídico dos regulamentos da União Europeia nas ordens jurídicas dos Estados‑Membros. A França argumenta que o artigo R.332‑3 do Código da Segurança Social pode ser interpretado no sentido de que abrange o pagamento do reembolso complementar tal como previsto pelo acórdão Vanbraekel. A única intervenção exigida era, por isso, a emissão das apropriadas circulares administrativas para esclarecer a situação a nível nacional (26). A França menciona três casos concretos nos quais o reembolso complementar foi ou está em vias de ser pago e salienta que os tribunais franceses têm dado cumprimento ao acórdão Vanbraekel, decidindo que o reembolso complementar deve ser pago (27).

39.      A Comissão alega que os Estados‑Membros não podem invocar o efeito directo quando as medidas nacionais são incompatíveis com o artigo 49.° CE. As circulares emitidas pela França criam uma situação de ambiguidade e de incerteza jurídica. A Comissão conclui que França tem o dever de agir, aprovando legislação específica para dar execução ao acórdão Vanbraekel no direito nacional.

40.      O Governo espanhol apoia a França. Alega que um acórdão do Tribunal de Justiça não é análogo a uma directiva e que o Estado‑Membro pode dar cumprimento a um acórdão por meios diversos da aprovação de legislação específica.

41.      Discordo da conclusão da Comissão.

42.      Constitui jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que certas disposições do Tratado, sendo claras, precisas e suficientemente incondicionais para poderem ser invocadas perante os tribunais nacionais por uma pessoa singular ou colectiva sem necessidade de medidas de execução ulteriores, produzem efeito directo (28). Uma disposição do Tratado directamente aplicável produz tais efeitos nas relações entre os particulares e o Estado.

43.      No acórdão Vanbraekel, o Tribunal de Justiça interpretou o artigo 49.° CE no sentido de que «se o reembolso das despesas suportadas com os serviços hospitalares prestados no Estado‑Membro de estada, que resulta da aplicação das regras em vigor nesse Estado, for inferior ao que resulta da aplicação da legislação em vigor no Estado‑Membro de inscrição em caso de hospitalização neste último Estado, a instituição competente deve conceder ao beneficiário da segurança social um reembolso complementar correspondente a essa diferença» (29).

44.      Creio que não há dúvida de que o artigo 49.° CE, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Vanbraekel, confere aos particulares direitos directamente aplicáveis, atribuindo‑lhes o direito ao reembolso complementar dos custos dos cuidados de saúde.

45.      É claro que existem circunstâncias nas quais, na sequência de uma decisão do Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros devem proceder à alteração ou à revogação de medidas nacionais em vigor que sejam incompatíveis com o direito da UE, para dar cumprimento às obrigações que lhes incumbem por força dos Tratados. Vêm‑me à mente três exemplos específicos.

46.      Em primeiro lugar, um Estado‑Membro pode ter‑se inicialmente equivocado quanto ao alcance das obrigações que lhe incumbem por força de uma directiva, transpondo‑a por isso incorrectamente. Na sequência de um acórdão do Tribunal de Justiça (seja no quadro de uma acção ou recurso directo ou de um pedido de decisão prejudicial), o Estado‑Membro em causa pode ter que legislar para rectificar a situação (30).

47.      Em segundo lugar, a legislação nacional em causa pode conter um elemento positivo que esteja em contradição com uma disposição do Tratado que produz efeito directo. Nesse caso, o Estado‑Membro terá que legislar para eliminar a contradição e dar cumprimento ao acórdão do Tribunal de Justiça (31).

48.      Em terceiro lugar, a legislação nacional em causa pode ser ambígua ou obscura e podem existir indícios de que tal criou (ou pode criar) uma situação de incerteza jurídica. Nesse caso, é necessário clarificar a situação jurídica por via legislativa (32).

49.      As circunstâncias do presente processo não correspondem a nenhuma das três situações expostas. No acórdão Vanbraekel, o Tribunal de Justiça deu interpretação a uma disposição do Tratado que produz efeito directo. Não existe legislação nacional que lhe seja contrária. As autoridades nacionais competentes foram notificadas das circunstâncias no respeito das quais deve ser efectuado o reembolso complementar. A prova apresentada no Tribunal de Justiça demonstra que: a) os particulares estão cientes em França do seu direito de pedir o reembolso complementar; b) pedidos deste tipo foram efectivamente apresentados às autoridades competentes; e, c) em caso do seu indeferimento pelas autoridades competentes, cabe recurso efectivo para os tribunais franceses (33).

50.      É verdade que o Tribunal de Justiça tem enunciado de forma constante que o direito que os particulares têm de invocar normas do Tratado directamente aplicáveis perante os órgãos jurisdicionais nacionais só constitui uma garantia mínima e não chega para assegurar por si só a aplicação plena e completa do Tratado (34). Constitui também jurisprudência assente que, para garantir a certeza jurídica, os Estados‑Membros são obrigados a criar uma situação jurídica suficientemente precisa, clara e previsível para permitir aos particulares conhecerem os seus direitos e obrigações (35).

51.      Reconheço que a aprovação de legislação específica é uma forma de assegurar que é dada a nível nacional execução às obrigações comunitárias. Tal abordagem pode também facilitar a tarefa da Comissão de zelar pelo cumprimento do direito da UE pelos Estados‑Membros (o simples facto de existir legislação nem sempre assegura necessariamente que a um direito conferido ao nível da UE seja dada execução de forma cabal e efectiva). Todavia, não creio que a efectiva execução destas obrigações possa ser feita unicamente pela via da aprovação de legislação, quando a obrigação comunitária em questão resulta de uma disposição do Tratado que produz efeito directo, como interpretada por um acórdão do Tribunal de Justiça, e não existe qualquer disposição jurídica nacional que lhe seja contrária nem haja prova de uma situação de incerteza jurídica persistente que exija solução.

52.      Concluo, pois, que as autoridades francesas não estão obrigadas a introduzir no direito nacional uma disposição específica que imponha que seja concedido ao doente beneficiário da segurança social francesa um reembolso complementar nos termos previstos no n.° 53 do acórdão Vanbraekel. A segunda acusação da Comissão deve, por conseguinte, ser julgada improcedente.

 A primeira acusação

O requisito da autorização prévia constitui uma restrição nos termos do artigo 49.° CE?

53.      A Comissão alega que o requisito da autorização prévia imposto pelo direito francês para a obtenção do reembolso complementar relativamente às prestações médicas não hospitalares com recurso a equipamento material pesado fornecidas noutro Estado‑Membro constitui uma restrição nos termos do artigo 49.° CE.

54.      Constitui já jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que os cuidados de saúde estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 49.° CE (36). Já no acórdão Luisi e Carbone (37), o Tribunal de Justiça declarou que as disposições do Tratado abrangem tanto os destinatários como os prestadores de cuidados de saúde e que a liberdade de circulação do destinatário constitui o corolário necessário da liberdade do prestador de serviços (38). Mais recentemente, o Tribunal de Justiça declarou categoricamente que as prestações médicas estão abrangidas pelo âmbito do artigo 60.° CE (actual artigo 57.° TFUE), sem que a este propósito haja que distinguir consoante os cuidados sejam ministrados num quadro hospitalar ou fora desse quadro (39). Também é claro que um sistema que impõe uma autorização prévia para que um doente possa ser reembolsado pelas autoridades do seu próprio Estado‑Membro dos custos do tratamento hospitalar dispensado noutro Estado‑Membro constitui, tanto para os doentes como para os prestadores, um obstáculo à livre prestação de serviços (40).

55.      Consequentemente, sujeitar o reembolso dos custos das prestações médicas não hospitalares com recurso a equipamento material pesado noutro Estado‑Membro ou num Estado do EEE ao requisito da autorização prévia pelas autoridades francesas constitui um obstáculo à livre prestação de serviços (41).

 Justificação

56.      O Tribunal já apreciou o carácter justificado ou não do requisito da autorização prévia para a prestação de serviços médicos fornecidos no âmbito hospitalar («prestações médicas hospitalares») (42).

57.      Para a apreciação desta questão, o Tribunal de Justiça examinou três factores: em primeiro lugar, a aplicabilidade das razões imperiosas de interesse geral definidas pela sua jurisprudência e a possibilidade de estas justificarem obstáculos à livre prestação de serviços; em segundo lugar, a questão de saber se tal restrição está abrangida por derrogações com base em razões de saúde pública nos termos dos artigos 46.° CE e 55.° CE; e, em terceiro lugar, o carácter discriminatório ou não do requisito da autorização prévia.

58.      O Tribunal declarou que a necessidade de evitar um risco grave para o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social constitui uma razão imperiosa de interesse geral susceptível de justificar a restrição decorrente do requisito da autorização prévia (43).

59.      Reconheceu que o objectivo de manutenção de um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos pode igualmente ser abrangido por derrogações com base em razões de saúde pública previstas nos artigos 46.° CE e 55.° CE, na medida em que contribua para a realização de um nível elevado de protecção da saúde (44). Reconheceu ainda que o artigo 46.° CE permite aos Estados‑Membros restringir a livre prestação de serviços médicos e hospitalares, na medida em que a manutenção da capacidade de tratamento ou de uma especialidade médica no território nacional seja essencial para a saúde pública, ou mesmo para a sobrevivência da sua população (45).

60.      Esclareceu que, para que um regime de autorização prévia seja justificado mesmo que derrogue uma liberdade fundamental, deve ser fundamentado em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, de modo a enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades nacionais, a fim de este não ser utilizado de modo arbitrário (46). Neste contexto, entendo a referência do Tribunal de Justiça aos «critérios não discriminatórios» como significando critérios que não introduzem uma discriminação ilícita entre casos comparáveis nos quais a autorização prévia é requerida para os tratamentos a receber noutro Estado‑Membro. Assim, o requisito da obtenção de autorização prévia para o recebimento de tratamentos noutro Estado‑Membro com recurso a equipamento material pesado constitui uma restrição (que pode não ser aplicada, exactamente nos mesmos termos, ao recebimento desses tratamentos em França). Para que este requisito esteja justificado, o sistema no quadro do qual é aplicado deve satisfazer o critério antes referido (e, nessa fase, cada um dos critérios invocados devem ser aplicados de forma objectiva e não discriminatória).

61.      Contudo, o Tribunal de Justiça ainda não apreciou as mesmas questões em relação a prestações médicas fornecidas em âmbito não hospitalar («prestações médicas não hospitalares»).

62.      A Comissão sustenta que, no plano dos princípios, a justificação do requisito da autorização prévia para a obtenção do reembolso das prestações médicas hospitalares está intrinsecamente associada à natureza desses serviços. Defende que decorre do carácter muito oneroso das prestações médicas hospitalares a necessidade de planear o seu fornecimento. Contudo, as prestações médicas não hospitalares não possuem as mesmas características que as prestações médicas hospitalares; assim, o requisito da autorização prévia para as prestações médicas não hospitalares não pode ser justificado. A proposta da Comissão prevê que um requisito de autorização prévia se deve limitar aos casos em que haja prova de que a saída de doentes (por exemplo, para evitar as listas de espera) é susceptível de comprometer o sistema de saúde (47).

63.      A Comissão não contestou o conteúdo da lista de equipamento inscrita no artigo R.6122‑26 e não apresentou qualquer observação sobre a questão de saber se os aparelhos que constam desta lista devem ser considerados equipamento material pesado.

64.      A França, com o apoio dos Governos finlandês e do Reino Unido, alega que os princípios estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito da autorização prévia dos tratamentos hospitalares podem ser transpostos para as prestações médicas não hospitalares com recurso a equipamento material pesado. A aquisição e uso deste equipamento exigem planificação para assegurar o acesso permanente e suficiente a um leque equilibrado de cuidados de saúde, independentemente de o equipamento em questão se encontrar num hospital ou numa clínica ou mesmo no consultório de um médico de clínica geral. Os custos significativos que envolvem implicam que as considerações por si suscitadas são análogas às que se aplicam à planificação dos cuidados hospitalares e que é essencial evitar o desperdício de recursos. A França faz especial referência aos tomógrafos PET, que naquele Estado‑Membro podem ser instalados dentro ou fora de um hospital (48). As autoridades francesas realçam também que o artigo R.6122‑26 do Código da Saúde Pública contém uma lista limitativa do equipamento sujeito a autorização prévia. Por fim, a França invoca o facto de a proposta da Comissão (49) prever (no artigo 8.°) que os cuidados de saúde que exigem «um elevado nível de especialização e de investimento em infra‑estruturas ou equipamentos médicos» estão abrangidos pela definição dos «cuidados hospitalares».

65.      Na minha perspectiva, a autorização prévia não é usada no presente caso unicamente como um mecanismo para regular os fluxos migratórios dos doentes, embora tal possa constituir uma parte da sua função. Pelo contrário, a sua função principal parece assumir uma importância essencial para a estratégia do sistema de saúde. Esta função é a de permitir às autoridades competentes planearem o uso dos recursos disponíveis para o financiamento dos serviços de saúde na fase inicial, na qual são avaliados os recursos, a demografia, as infra‑estruturas e as disponibilidades de equipamento e de pessoal. Assim, o procedimento de autorização prévia permite às autoridades francesas um melhor tratamento da questão geral da atribuição dos recursos ao serviço de saúde e a gestão de um especial aspecto deste serviço (nomeadamente, os efeitos dos fluxos migratórios de doentes na viabilidade financeira do sistema de saúde e de segurança social).

66.      As razões imperiosas susceptíveis de justificar uma restrição tal como o requisito de autorização prévia assentam na necessidade de as autoridades nacionais planearem os recursos a utilizar na segurança social e na saúde de modo a atingirem um elevado nível de protecção da saúde pública (50). É isto, e não o facto de o tratamento com recurso a equipamento material pesado ser dispensado em meio hospitalar ou não hospitalar, que é essencial para a apreciação do carácter justificado da autorização prévia.

67.      O Tribunal de Justiça já reconheceu que pode ser difícil de estabelecer uma distinção entre prestações hospitalares e não hospitalares. Por exemplo, certas prestações dispensadas em meio hospitalar, podem sê‑lo igualmente numa clínica, num centro médico ou por um médico, no seu consultório (51).

68.      Podem também existir diferenças entre os Estados‑Membros no que diz respeito à definição das prestações hospitalares e não hospitalares. Os elementos fornecidos ao Tribunal de Justiça nos presentes autos demonstram que existem tais diferenças, por exemplo, entre a França e o Reino Unido no que respeita à localização dos tomógrafos PET (52). De facto, a Comissão reconhece na sua proposta (53) que não existe uma definição coerente de prestações hospitalares (que designa por «cuidados hospitalares») nos diferentes sistemas de saúde da União (54).

69.      Não creio, pois, que o local onde o serviço médico é recebido possa ser determinante para apurar se um requisito de autorização prévia pode ser objectivamente justificado.

70.      Os Governos francês e finlandês invocam também o acórdão Hartlauer (55). Ambos alegam que o enunciado neste acórdão (segundo o qual, a planificação, que exige uma autorização prévia para a instalação de novos prestadores de cuidados ambulatórios, pode afigurar‑se indispensável para assegurar uma assistência médica que se adapte às necessidades da população) deve ser aplicado no presente processo.

71.      O processo Hartlauer dizia respeito a uma empresa alemã que pretendia estabelecer uma clínica dentária privada na Áustria. A questão submetida ao Tribunal de Justiça impunha que se examinasse se os artigos 43.° CE e 48.° CE se opunham a disposições nacionais por força das quais era necessária uma autorização administrativa prévia para a abertura de um estabelecimento de saúde privado, como uma clínica dentária independente. O Tribunal de Justiça reconheceu que as infra‑estruturas de cuidados ambulatórios, como os consultórios médicos e as policlínicas, podem, tal como os estabelecimentos hospitalares, ser objecto de planificação. Seguidamente, declarou: «Na verdade, uma planificação, que exige uma autorização prévia para a instalação de novos prestadores de cuidados, pode afigurar‑se indispensável para colmatar eventuais lacunas no acesso aos cuidados ambulatórios e para evitar a abertura de estruturas em duplicado, de modo a assegurar uma assistência médica que se adapte às necessidades da população, cubra todo o território e tenha em conta as regiões geograficamente isoladas ou que de outra forma se encontrem numa situação desfavorecida» (56).

72.      O presente caso difere do examinado no acórdão Hartlauer, na medida em que diz respeito à liberdade de receber serviços e não à liberdade de estabelecimento.

73.      Aceito prontamente que não seria apropriado admitir a aplicação do requisito da autorização prévia ao fornecimento ou recebimento de prestações médicas que requerem a utilização de equipamento normal, relativamente pouco dispendioso. Contudo, a maioria do equipamento material pesado a que diz respeito a presente acção por incumprimento está bem distante (por exemplo) de uma vulgar máquina de raios X. Este equipamento é diferente do que se encontra geralmente no consultório (bem equipado) de um médico de clínica geral. A sua aquisição é muito onerosa. Pode exigir a sua instalação num meio específico. Pode igualmente exigir o manuseamento e manutenção por pessoal devidamente qualificado e treinado.

74.      Creio, por um lado, que a aquisição, instalação e utilização deste equipamento envolve uma planificação semelhante à efectuada a respeito dos serviços hospitalares. Por outro lado, precisamente porque os custos do financiamento deste equipamento são tão importantes, as questões suscitadas pelas disposições relativas à livre prestação de serviços podem aqui ser prontamente comparadas às que se colocam a respeito da liberdade de estabelecimento; e o acórdão Hartlauer pode razoavelmente ser aplicado por analogia. Independentemente da abordagem seguida, a justificação essencial do requisito de autorização prévia é a mesma. A possibilidade de serem estimados os custos em função da natureza limitada dos recursos é crucial para a decisão das autoridades competentes relativamente ao que deve constituir o adequado fornecimento de assistência médica, de modo a sustentar o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social e a manter uma assistência médica e hospitalar de qualidade acessível a todos.

75.      Concluo, pois, que o requisito da autorização prévia está, em princípio, justificado.

 Proporcionalidade

76.      Mesmo estando o requisito da autorização prévia justificado por estas razões imperiosas, é, porém, necessário apreciar se é proporcional: ou seja, verificar que não excede o que é objectivamente necessário para esse fim e que esse resultado não pode ser obtido por regras menos gravosas (57).

77.      As autoridades francesas limitaram o requisito da autorização prévia a uma lista restrita de equipamento, constante do artigo R.6122‑26 do Código da Saúde Pública. Além disso, o artigo R.332‑4 do Código da Segurança Social estabelece as condições que devem estar reunidas para que a autorização prévia possa ser indeferida e garante a recorribilidade destas decisões. Assim, em princípio, esta legislação não excede o que é objectivamente necessário e o mesmo resultado não poderia ser alcançado por regras menos gravosas.

78.      Creio que a reunião da maioria, senão mesmo da totalidade, dos seguintes elementos permite concluir que o requisito da autorização prévia é proporcional no respeitante à utilização de equipamentos específicos no fornecimento de prestações médicas não hospitalares.

79.      Em primeiro lugar, os custos em termos de capital do equipamento em causa são provavelmente muito importantes, exigindo um substancial investimento pelas autoridades competentes. Em segundo lugar, os custos de funcionamento podem ser tão elevados que imponham a previsão da sua inscrição numa rubrica separada do orçamento. Em terceiro lugar, o equipamento em questão é provavelmente equipamento especializado, no sentido de que se destina a um específico procedimento ou tipo de análise médicos (normalmente complexos). Em quarto lugar, é previsível que se trate de equipamento que só será usado após um exame preliminar do doente e não sistematicamente na primeira fase do diagnóstico e/ou do tratamento. Em quinto lugar, é muito possível que a instalação, manutenção e funcionamento do equipamento exija pessoal com formação adequada para o efeito.

80.      À luz destas considerações, o que dizer do equipamento constante da lista do artigo R.6122‑26 do Código da Saúde Pública, objecto do presente processo?

81.      Creio que as autoridades francesas provaram que os tomógrafos PET constituem equipamento material pesado. Trata‑se de aparelhos especializados onerosos que têm de ser utilizados por pessoal qualificado e experiente. Os doentes devem ser sujeitos a um exame médico prévio antes da tomografia. Creio que é proporcional condicionar o reembolso do custo da prestação de serviços com recurso a tomógrafos PET à obtenção da autorização prévia.

82.      A Comissão nada alegou a respeito da questão de saber em que medida os outros aparelhos constantes da lista não constituem equipamento material pesado cuja inclusão na lista do equipamento sujeito a autorização prévia é proporcional (58). O Tribunal de Justiça não dispõe, por isso, de dados que lhe permitam concluir que estes aparelhos não deviam ser incluídos na lista.

83.      Embora, em caso de dúvida quanto à proporcionalidade de uma determinada medida, caiba ao Estado‑Membro explicar por que razão esta medida é de facto proporcional, este ónus só lhe pode incumbir caso tal dúvida tenha sido suscitada. Todavia, no presente processo, não se pode exigir que a França responda a um argumento que não lhe foi apresentado. Concluo, pois, que nos presentes autos não há motivos para não considerar proporcional o requisito da autorização prévia no tocante ao reembolso de serviços prestados com recurso aos restantes equipamentos materiais pesados constantes da lista do artigo R.6122‑26 do Código da Saúde Pública (59).

84.      Donde decorre que o artigo R.332‑4 do Código da Segurança Social, que sujeita a autorização prévia o reembolso das prestações médicas não hospitalares que exigem a utilização do equipamento material pesado mencionado no artigo R.6122‑26 do Código da Saúde Pública, está objectivamente justificado.

85.      Por conseguinte, a primeira acusação da Comissão também deve ser julgada improcedente.

 Conclusão

86.      Pelas razões expostas, concluo propondo que o Tribunal de Justiça julgue a acção improcedente e (como pedido pela França nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça) condene a Comissão nas despesas.


1 – Língua original: inglês.


2 – V., por exemplo, acórdãos de 28 de Abril de 1998, Decker (C‑120/95, Colect., p. I‑1831) (livre circulação dos produtos médicos), e Kohll (C‑158/96, Colect., p. I‑1931) (livre prestação de serviços).


3 – V. V.G. Hatzopoulos, «Killing National Health and insurance systems but healing patients? The European Market for health care services after the Judgments of the ECJ in Vanbraekel and Peerbooms», Common Market Law Review 2002, p. 683, e C. Nedwick, «Citizenship, free movement and health care: cementing individual rights by corroding social solidarity», Common Market Law Review 2006, p. 1645.


4 – V. actual artigo 56.° TFUE.


5 – A expressão em língua francesa utilizada no pedido da Comissão é «équipements matériels lourds». Nas presentes conclusões, utilizarei como equivalente a expressão «equipamento médico pesado».


6 – Acórdão de 12 de Julho de 2001, Vanbraekel e o. (C‑368/98, Colect., p. I‑5363).


7 – Respectivamente, cerca de EUR 6.000 e EUR 7.680.


8 – Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 149, p. 2; EE 05 F1 p. 98). O regulamento foi alterado posteriormente. No momento relevante para o presente processo, a versão então em vigor era a que resultava do Regulamento (CE) n.° 629/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Abril de 2006 (JO L 114, p. 1) (foi publicada uma versão consolidada no JO 1997, L 28, p. 1).


9 – No momento em que foi proferido o acórdão Vanbraekel, a disposição relevante era o artigo 59.° do Tratado CE.


10 – V. acórdão Vanbraekel, já referido supra na nota 6, n.os 43 a 52.


11 – V. n.° 43 infra.


12 – Acórdão de 6 de Março de 1979, Rossi (100/78, Colect., p. 447, n.° 13).


13 – Acórdão de 16 de Maio de 2006, Watts (C‑372/04, Colect., n.os 46 a 48).


14 –      Técnica imagiológica médica que produz imagens ou fotografias em 3D de processos funcionais no corpo.


15 –      A aplicação médica deste aparelho (também designado aparelho de ressonância magnética ou scanner IRM) mais conhecida é a visualização pormenorizada da estrutura interna do corpo. É especialmente útil em imagiologia neurológica, músculo‑esquelética, cardiovascular e oncológica.


16 –      Aparelho que usa raios X para o estudo de estruturas anatómicas.


17 –      Aparelho inicialmente usado para tratar as doenças dos mergulhadores, como a doença por descompressão, estas câmaras são frequentemente usadas num quadro hospitalar, mas também podem ser usadas pelo doente em sua casa. São usadas no tratamento de várias doenças, como a paralisia cerebral, e são também recomendadas por alguns médicos no tratamento do zumbido no ouvido (acufeno ou tinnitus).


18 –      Aparelho usado no tratamento do cancro. Por exemplo, os feixes de iões do ciclotrão podem ser usados na terapia com protões para penetrar no corpo e eliminar tumores, reduzindo ao mínimo os danos provocados nos tecidos saudáveis circundantes.


19 – Circular DSS/DACI/2003/286, de 18 de Junho de 2003, circular DSS/DACI/2005/235, de 19 de Maio de 2005, e circular DSS/DACI/2008/242, de 21 de Julho de 2008, que modificou a circular DSS/DACI/2005/235.


20 – V. n.° 9 supra.


21 – O Conselho aprovou esta proposta de directiva em 8 de Junho de 2010.


22 – V. acórdãos de 16 de Setembro de 1999, Comissão/Espanha (C‑414/97, Colect., p. I‑5585, n.° 19), de 15 de Fevereiro de 2007, Comissão/Países Baixos (C‑34/04, Colect., p. I‑1387, n.° 49), e, de data mais recente, de 11 de Setembro de 2008, Comissão/Lituânia (C‑274/07, Colect., p. I‑7117, n.° 21).


23 – V. acórdão Comissão/Espanha, já referido supra na nota 22, n.os 18 e 19.


24 – V. acórdãos de 23 de Outubro de 1997, Comissão/França (C‑159/94, Colect., p. I‑5815, n.° 102), de 14 de Dezembro de 2000, Comissão/França (C‑55/99, Colect., p. I‑1499, n.° 30), de 6 de Novembro de 2003, Comissão/Reino Unido (C‑434/01, Colect., p. I‑13239, n.° 21). V., de data mais recente, acórdão de 18 de Dezembro de 2007, Comissão/Irlanda (C‑532/03, Colect., p. I‑11353, n.° 29).


25 – V. acórdão de 13 de Novembro de 2007, Comissão/Irlanda (C‑507/03, Colect., p. I‑9777, n.os 33 a 35).


26 – As autoridades francesas remetem para as circulares mencionadas nos n.os 14 a 16 supra.


27 – V. acórdão da Cour de cassation (France) (Secção Social), de 28 de Março de 2002, no processo Magnan/CPAM de Hauts de Seine.


28 – V., por exemplo, acórdãos de 19 de Dezembro de 1968, Salgoil (13/68, Colect. 1965‑1968, pp. 903, 906) (artigo 28.° CE, livre circulação de mercadorias), de 4 de Dezembro de 1974, van Duyn (41/74, Colect., p. 567) (artigo 34.° CE, livre circulação dos trabalhadores), de 21 de Junho de 1974, Reyners (2/74, Colect., p. 325) (artigo 43.° CE, liberdade de estabelecimento) e de 3 de Dezembro de 1974, Van Binsbergen (33/74, Colect., p. 543) (artigo 49.° CE, livre prestação de serviços).


29 – V. acórdão Vanbraekel, já referido supra na nota 6, n.° 53.


30 – V., designadamente, acórdãos de 30 de Maio de 1991, Comissão/Alemanha (C‑58/89, Colect., p. I‑2607, n.os 13 a 16) e de 18 de Junho de 2002, Comissão/França (C‑60/01, Colect., p. I‑5679, n.os 25 a 28).


31 – V., designadamente, acórdão de 9 de Março de 2000, Comissão/Itália (C‑358/98, Colect., p. I‑1255, n.° 17).


32 – V., designadamente, acórdão de 9 de Dezembro de 2003, Comissão/Itália (C‑129/00, Colect., p. I‑14637, n.° 33).


33 – V. acórdão Magnan da Cour de cassation de France, já referido supra na nota 27.


34 – V. acórdãos de 15 de Outubro de 1986, Comissão/Itália (168/85, Colect., p. 2945, n.os 9 a 11), de 26 de Fevereiro de 1991, Comissão/Itália (C‑120/88, Colect., p. I‑621, n.° 10), e de 26 de Fevereiro de 1991, Comissão/Espanha (C‑119/89, Colect., p. I‑641, n.° 9). V. também acórdão de 5 de Março de 1996, Brasserie du PêchEUR e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93, Colect., p. I‑1029, n.° 20).


35 – V. acórdão de 28 de Janeiro de 2010, Comissão/Irlanda (C‑456/08, Colect., p. I‑0000, n.° 61 e jurisprudência aí referida).


36 – V. acórdãos Decker e Kohll, já referidos supra na nota 2.


37 – Acórdão de 31 de Janeiro de 1984, Luisi e Carbone (286/82 e 26/83, Recueil, p. 377, n.° 16).


38 – V. acórdãos de 2 de Fevereiro de 1989, Cowan (186/87, Colect., p. 195, n.° 17) e Kohll, já referido supra na nota 2, n.° 29.


39 – V. acórdão de 12 de Julho de 2001, Smits e Peerbooms (C‑157/99, Colect., p. I‑5473, n.° 53) e Watts, já referido supra na nota 13, n.os 86 e 87.


40 – V. acórdão Watts, já referido supra na nota 3, n.° 98.


41 – V. acórdão Kohll, já referido supra na nota 2, n.° 35.


42 – V. acórdão Watts, já referido supra na nota 13, n.os 103 a 110 e jurisprudência aí referida.


43 – V. acórdão Watts, já referido supra na nota 13, n.° 103 e jurisprudência aí referida.


44 – V. acórdão Watts, já referido supra na nota 13, n.° 104 e jurisprudência aí referida.


45 – V. acórdão Watts, já referido supra na nota 13, n.° 105 e jurisprudência aí referida.


46 – V. acórdão Watts, já referido supra na nota 13, n.° 116.


47 – V. COM(2008)414 final, já referida supra na nota 20, ponto 7.3 da exposição de motivos e considerando 31 da proposta original da Comissão.


48 – As autoridades francesas afirmam que existem cerca de 20 tomógrafos PET em França, os quais podem ser instalados dentro ou fora de um hospital (por exemplo, numa clínica municipal), desde que existam as instalações apropriadas. O custo de aquisição de cada aparelho é aproximadamente de EUR 2.6 milhões, o custo de instalação é aproximadamente de EUR 800.000 por máquina e o custo anual de funcionamento é aproximadamente de EUR 1,5 milhões. Cada exame, que dura cerca de uma hora, custa cerca de EUR 1.200.


49 – Já referida no n.° 20 supra.


50 – V. acórdão Smits e Peerbooms, já referido supra na nota 39, n.° 76.


51 – V. acórdão de 13 de Maio de 2003, Müller‑Fauré e van Riet (C‑385/99, Colect., p. I‑4509, n.° 75).


52 – No Reino Unido existem 20 tomógrafos PET que são usados no tratamento de doentes e 3 outros usados para fins de investigação. Contudo, ao contrário do que acontece em França (v. supra, nota 48), todos estes tomógrafos estão situados em meio hospitalar. Existem também seis tomógrafos móveis que têm de ser instalados em meio hospitalar para poderem ser utilizados.


53 – COM (2008) 414 final, já referida supra na nota 20, ponto 7.3 da exposição de motivos. V. também o considerando 31 e o artigo 8.°, n.° 2, da proposta original da Comissão


54 – Na sua proposta original (ponto 7.3 da exposição de motivos), a Comissão afirmou: «A definição mais comum e próxima de ‘cuidados hospitalares’ é a de cuidados em regime de internamento (ou seja, os tratamentos que exigem, pelo menos, uma noite de permanência num hospital ou clínica). Com base nisto, o n.° 1 do artigo 8.° da directiva fornece uma definição comunitária mínima para a noção de ‘cuidados hospitalares’. Contudo, é possível que se deva também alargar o conceito de ‘cuidados hospitalares’ a outros tipos de tratamento, como as prestações hospitalares que exigem a utilização de infra‑estruturas ou de equipamentos médicos altamente especializados e onerosos, ou que apresentam um risco especial para os doentes ou a população. Por esta razão, o n.° 1 do artigo 8.° dispõe igualmente que pode ser expressamente elaborada pela Comissão e regularmente actualizada uma lista técnica desse tipo de tratamentos».


55 – Acórdão de 10 de Março de 2009, Hartlauer (C‑169/07, Colect., p. I‑1721).


56 – V. acórdão Hartlauer, n.os 51 e 52.


57 – V. acórdãos de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha (C‑205/84, Colect., p. 3755, n.os 27 e 29); de 26 de Fevereiro de 1991, Comissão/Itália (C‑180/89, Colect., p. I‑709, n.os 17 e 18); de 20 de Maio de 1992, Ramrath (C‑106/91, Colect., p. I‑3351, n.os 30 e 31); Smits e Peerbooms, já referido supra na nota 39, n.° 75; e Watts, já referido supra na nota 13, n.° 106.


58 – Aparelhos de espectroscopia ou de espectrometria de ressonância magnética nuclear para uso clínico; scanner para uso médico, câmara hiperbárica e ciclotrão para uso médico.


59 – V. acórdão Watts, já referido supra na nota 13, n.° 106 e jurisprudência aí referida.