CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 24 de Junho de 2010 1(1)

Processo C‑482/08

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte

contra

Conselho da União Europeia

«Exclusão do Reino Unido do processo de adopção de uma decisão do Conselho relativa ao acesso, para efeitos de consulta por razões de polícia, ao Sistema de Informação sobre Vistos (VIS)»





1.        Com o presente recurso, o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte pede ao Tribunal de Justiça que anule a Decisão 2008/633/JAI do Conselho, de 23 de Junho de 2008, relativa ao acesso para consulta ao Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) por parte das autoridades designadas dos Estados‑Membros e por parte da Europol para efeitos de prevenção, detecção e investigação de infracções terroristas e outras infracções penais graves (2) (a seguir «decisão impugnada»).

2.        O Reino Unido não foi admitido a participar na aprovação da decisão impugnada, uma vez que a mesma foi considerada como um desenvolvimento de um domínio criado pelos acordos de Schengen (o dos vistos) no qual esse Estado‑Membro não participa. O Reino Unido sustenta, porém, que a decisão impugnada constitui uma medida reconduzível ao domínio da cooperação policial, e não ao âmbito dos vistos.

I –    Contexto normativo

A –    Os acordos de Schengen

3.        Como é sabido, os primeiros acordos de Schengen foram celebrados em 1985 pela França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos, a fim de criar um espaço (o chamado «espaço Schengen») sem fronteiras internas. Outros Estados‑Membros aderiram posteriormente a esses acordos e, em 1997, com o Tratado de Amesterdão, o respectivo corpus normativo foi incorporado na União Europeia. Em particular, tal foi realizado mediante um protocolo próprio anexo ao Tratado (3) (a seguir «Protocolo de Schengen»), que autorizou a instauração de uma cooperação reforçada no referido âmbito.

4.        O Protocolo de Schengen, no seu artigo 4.°, prevê que:

«A Irlanda e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, que não se encontram vinculados pelo acervo de Schengen, podem, a todo o tempo, requerer a possibilidade de aplicar, no todo ou em parte, as disposições desse acervo.

O Conselho deliberará sobre esse pedido por unanimidade dos membros a que se refere o artigo 1.° e do representante do governo do Estado interessado.»

5.        Em conformidade com o previsto no Protocolo de Schengen, o Reino Unido requereu e obteve a participação em algumas partes do acervo de Schengen. Através da Decisão 2000/365/CE (4), o Conselho definiu os âmbitos de participação desse Estado‑Membro. É pacífico, e não foi contestado em sede do presente recurso, que o Reino Unido não participa, no âmbito do acervo de Schengen, na cooperação relativa aos vistos (5).

B –    O Sistema de Informação sobre Vistos

6.        O Sistema de Informação sobre Vistos (a seguir também «VIS») foi estabelecido através da Decisão 2004/512/CE (6) com o fim de alcançar um sistema comum dos Estados‑Membros em matéria de vistos, de forma a permitir, em particular, que as autoridades nacionais competentes possam dispor de uma base de dados nesse domínio.

7.        A Decisão 2004/512/CE foi adoptada utilizando como base jurídica o artigo 66.° CE (7), o qual, inserido no título IV da parte III do Tratado CE, prevê que «[o] Conselho [...] adoptará medidas destinadas a assegurar uma cooperação entre os serviços competentes das Administrações dos Estados‑Membros nos domínios abrangidos pelo presente título, bem como entre esses serviços e a Comissão». As matérias reguladas no título em questão são definidas como «vistos, asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação de pessoas».

8.        O décimo primeiro considerando da Decisão 2004/512/CE é assim formulado:

«A presente decisão constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen em que o Reino Unido não participa, nos termos da Decisão 2000/365/CE do Conselho [...], pelo que o Reino Unido não participa na sua aprovação e não fica a ela vinculado, nem sujeito à sua aplicação.»

9.        A Decisão 2004/512/CE foi depois continuada, em especial com o fim de conferir uma regulação detalhada ao sistema VIS, pelo Regulamento (CE) n.° 767/2008 (8). Também este regulamento encontra a sua base jurídica no título IV da parte III do Tratado CE. Como precisa o seu vigésimo nono considerando, o Reino Unido não participa na sua aprovação e não fica a ele vinculado.

C –    A decisão impugnada

10.      A decisão impugnada tem por objectivo permitir o acesso ao sistema VIS, em algumas circunstâncias específicas, à Europol e às autoridades dos Estados‑Membros competentes para prevenir e investigar algumas infracções penais de particular gravidade. Dado que o sistema VIS, por si só, não tem funções ligadas à prevenção e à repressão de crimes, esse acesso específico é configurado pela decisão impugnada como excepcional. Em particular, trata‑se de um acesso «para consulta», como precisa o artigo 1.°, restringido, para além disso, aos casos nos quais a consulta tem a finalidade de prevenir ou reprimir infracções terroristas e outras infracções penais graves.

11.      A base jurídica da decisão impugnada é constituída pelo artigo 30.°, n.° 1, alínea b), UE, e pelo artigo 34.°, n.° 2, alínea c), UE (9).

12.      Nos seus considerandos, a decisão impugnada diz o seguinte:

«(1)      [...] A criação do VIS representa uma das iniciativas fundamentais das políticas da União Europeia destinadas a criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. O VIS deverá ter por objectivo melhorar a aplicação da política comum de vistos e contribuir para reforçar a segurança interna e a luta contra o terrorismo em condições claramente definidas e controladas.

[…]

(5)      A presente decisão vem completar o Regulamento (CE) n.° 767/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho [...], na medida em que prevê uma base jurídica ao abrigo do título VI do Tratado da União Europeia, autorizando as autoridades designadas e a Europol a terem acesso ao VIS.

(6)      [...] É fundamental garantir que o pessoal devidamente habilitado com direito de acesso ao VIS seja restringido àqueles com “necessidade de ter conhecimento” e que esteja correctamente informado acerca das regras em matéria de segurança e de protecção de dados.

[…]

(13)      A presente decisão constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen em que o Reino Unido não participa, nos termos da Decisão 2000/365/CE do Conselho [...], pelo que o Reino Unido não participa na sua aprovação e não fica a ela vinculado, nem sujeito à sua aplicação.

[…]

(15)      Todavia, de acordo com a Decisão‑Quadro 2006/960/JAI do Conselho [...], as informações constantes do VIS podem ser facultadas ao Reino Unido e à Irlanda pelas autoridades competentes dos Estados‑Membros cujas autoridades designadas têm acesso ao VIS em conformidade com a presente decisão. As informações constantes dos registos nacionais de vistos do Reino Unido e da Irlanda podem ser facultadas às autoridades responsáveis pela aplicação da lei dos outros Estados‑Membros. Qualquer forma de acesso directo ao VIS por parte das autoridades centrais do Reino Unido e da Irlanda exige, na situação actual da sua participação no acervo de Schengen, um acordo entre a Comunidade e estes Estados‑Membros, eventualmente completado por outras regras que determinem as condições e modalidades desse acesso.

[…]»

II – O processo perante o Tribunal de Justiça

13.      Com o seu recurso, apresentado na Secretaria em 10 de Novembro de 2008, o Reino Unido pede a anulação da decisão impugnada, na parte em que excluiu esse Estado‑Membro da sua adopção.

14.      O Conselho, apoiado pela Comissão, pede que o recurso seja julgado improcedente, por falta de fundamento.

15.      As partes foram ouvidas na audiência de 14 de Abril de 2010. Nessa sede, o Reino de Espanha apresentou observações orais em apoio das conclusões do Conselho.

III – Considerações preliminares

16.      Antes de examinar em detalhe os argumentos das partes e apreciar o fundamento dos mesmos é necessário, a título preliminar, identificar com precisão o âmbito do litígio. De facto, existem alguns elementos que, apesar de terem sido discutidos no decurso do processo, não são objecto de controvérsia entre as partes.

17.      É pacífico, em primeiro lugar, que o Reino Unido não participa na parte do acervo de Schengen relativa aos vistos, que compreende, em particular, o sistema VIS.

18.      Em segundo lugar, todas as partes concordam acerca da correcção da base jurídica utilizada para adoptar a decisão impugnada (isto é, como foi visto, os artigos 30.° UE e 34.° UE).

19.      Do ponto de vista jurídico, o único aspecto acerca do qual as partes divergem, e que deverá, portanto, ser esclarecido pelo Tribunal de Justiça, consiste na correcção ou não da qualificação da decisão impugnada como acto de desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos.

IV – Argumentos das partes

A –    A posição do Reino Unido

20.      O Reino Unido pede a anulação da decisão impugnada, nos termos do artigo 35.°, n.° 6, UE, alegando violação de formalidades essenciais e/ou do Tratado. Em particular, a tese de fundo do Reino Unido é que a citada decisão não constitui um desenvolvimento da política comum em matéria de vistos, mas uma medida relativa à cooperação policial, como seria demonstrado, entre outras, pela base jurídica utilizada pelo Conselho para a sua adopção.

21.      O Reino Unido reconhece que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, caso a decisão impugnada devesse ser qualificada como desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos, esse Estado‑Membro não teria tido qualquer direito de participar na sua adopção. Devendo, porém, essa eventualidade ser excluída, o Reino Unido, que participa na cooperação policial, deveria ter sido admitido a participar na adopção do acto.

22.      A própria Comissão, na proposta de decisão originária, teria reconhecido, segundo o Reino Unido, o direito deste Estado‑Membro participar no mecanismo de acesso ao sistema VIS por razões ligadas à prevenção e à luta contra o terrorismo e outras infracções penais graves.

23.      Como preconiza a jurisprudência do Tribunal, para efeitos de determinar a que domínio da cooperação de Schengen a decisão impugnada deve ser reconduzida, é necessário reportar‑se à finalidade e ao conteúdo da mesma. Pois bem, nem a finalidade nem o conteúdo da decisão impugnada tinham nada que ver com a política em matéria de vistos, uma vez que o único objectivo do acto é o de permitir uma luta mais eficaz contra algumas formas de criminalidade.

24.      Segundo o Governo do Reino Unido, a escolha do Conselho de considerar a decisão impugnada como um desenvolvimento da cooperação de Schengen em matéria de vistos estaria viciada por uma contradição fundamental: o Conselho não poderia, de facto, ao mesmo tempo, utilizar como base jurídica os artigos do título VI do Tratado UE, que se referem à cooperação em matéria policial, e qualificar o acto, para efeitos da sua adopção, como uma medida relacionada com a política de vistos. Se na verdade a decisão impugnada pudesse ser reconduzida à matéria de vistos, a sua base jurídica deveria ter sido indicada no âmbito do título IV da parte III do Tratado CE.

25.      O Reino Unido reconhece finalmente que o eventual acolhimento da sua posição poderia criar problemas à participação da Islândia, da Noruega e da Suíça no sistema criado pela decisão impugnada. Esses países, de facto, participam na cooperação de Schengen em matéria de vistos, mas não participam na cooperação policial. O Reino Unido observa todavia, por um lado, que as eventuais consequências sobre países terceiros da qualificação jurídica da decisão impugnada não podem modificar a natureza necessariamente objectiva da mesma qualificação. Por outro lado, esse Estado‑Membro declara‑se totalmente favorável e aberto a procurar uma solução para permitir, em qualquer caso, a esses Estados terceiros participarem no sistema.

B –    A posição do Conselho

26.      O Conselho contesta integralmente os argumentos do Reino Unido.

27.      A título preliminar, o Conselho indica que, com base no quadro normativo actualmente em vigor, o Reino Unido já tem a possibilidade de obter um acesso aos dados contidos no sistema VIS, com base na Decisão‑Quadro 2006/960/JAI (10): a única diferença é que, com o sistema actual, esse acesso é indirecto, enquanto que o Reino Unido desejaria obter, participando na decisão impugnada, um acesso directo.

28.      O Conselho critica o argumento do Reino Unido segundo o qual as modalidades de adopção da decisão impugnada teriam sido contraditórias. No entender do Conselho, de facto, a circunstância de a base jurídica da medida se encontrar no título VI UE, e não no título IV CE, não tem qualquer relevância para efeitos de determinar se a decisão impugnada constitui ou não um desenvolvimento do acervo de Schengen no âmbito da política dos vistos. Nenhuma disposição imporia, de facto, um vínculo necessário entre a escolha da base jurídica e o âmbito do acervo de Schengen ao qual uma determinada medida pode ser reconduzida.

29.      O objectivo prosseguido pela decisão impugnada é precisamente o de completar a regulação do VIS com algumas regras específicas para o acesso à base de dados dos vistos para fins de prevenção e luta contra o crime. Em consequência, a escolha da base jurídica foi correcta, dado que o artigo 30.°, n.° 1, alínea b), UE prevê uma cooperação que compreende «[a] recolha, armazenamento, tratamento, análise e intercâmbio de informações pertinentes, em especial através da Europol».

30.      O Conselho contesta a abordagem sugerida pelo Reino Unido, segundo a qual os critérios para verificar a pertença a um determinado domínio do acervo de Schengen seriam só os do conteúdo e do objectivo da disposição a classificar. A jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a matéria não imporia uma abordagem tão uniforme. Segundo o Conselho seria, pelo contrário, indispensável ter em conta para além do conteúdo e do objecto do acto, também o critério da coerência do acervo de Schengen. Esse critério foi posto em evidência, por exemplo, na Decisão 2000/365/CE.

31.      Segundo o Conselho, a decisão impugnada estaria relacionada com o regulamento VIS, tanto do ponto de vista funcional como substancial. O facto de a base jurídica da decisão impugnada ser diferente da do regulamento VIS não teria nenhuma consequência sobre a possibilidade de considerar a medida em questão como um desenvolvimento e um complemento do dito regulamento. O Conselho admite que, vista isoladamente, a decisão impugnada não pode ser considerada como tendo relação com os acordos de Schengen: o que importa, porém, é o facto de essa decisão apresentar uma ligação objectiva com as disposições relativas ao VIS. Deve‑se, para além disso, ter presente que o sistema VIS não é, como parece querer apresentá‑lo o Reino Unido, um sistema com duas finalidades diferentes, a saber, a gestão da política dos vistos e a prevenção e repressão de actividades criminais. O VIS, sublinha o Conselho, tem uma única finalidade principal, que é a de permitir o intercâmbio de informações relativas aos vistos de entrada entre as autoridades nacionais que se ocupam da imigração e do controlo nas fronteiras: a possibilidade de aceder a esse sistema para fins policiais deve ser considerada totalmente secundária e acessória relativamente ao objectivo principal. É, aliás, significativo, observa o Conselho, que esse acesso por razões de polícia seja um acesso só para consulta, sem possibilidade de introduzir ou modificar os dados do VIS.

32.      O Conselho observa também que, subscrevendo a posição do Reino Unido, a Islândia, a Noruega e a Suíça estariam excluídas do âmbito de aplicação da decisão: o que comportaria o resultado paradoxal de esses Estados terceiros, apesar de participarem de pleno direito na gestão e utilização do sistema VIS, não poderem a ele aceder para efeitos de prevenção e repressão de crimes. Sob esse aspecto, estes Estados encontrar‑se‑iam numa posição de desvantagem relativamente a Estados (o Reino Unido e a Irlanda) que não participam no VIS.

C –    A posição da Comissão e a do Reino de Espanha

33.      A Comissão interveio no processo em apoio do Conselho, e partilha dos seus argumentos. Em particular, a Comissão insiste no princípio da coerência do acervo de Schengen e na impossibilidade de se considerar o VIS como um sistema de dupla finalidade.

34.      No que diz respeito à sua proposta inicial que depois conduziu à adopção da decisão impugnada, a Comissão esclarece que essa proposta não considerava a eventualidade de uma aplicação integral ao Reino Unido: a proposta limitava‑se, de facto, a prever um acesso indirecto para o Reino Unido e a Irlanda.

35.      O Reino de Espanha, que apenas apresentou observações orais, sustenta, por sua vez, a justeza da posição do Conselho. Em particular, esse Estado‑Membro considera que, mesmo se se quisesse examinar a decisão impugnada com base nos únicos critérios do conteúdo e do objectivo, esta poderia ser, de qualquer modo, considerada um desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos: o conteúdo e o objectivo da decisão impugnada, de facto, são relativos simplesmente a algumas modalidades de acesso a uma base de dados que, como todos reconhecem, cai num domínio da cooperação reforçada de Schengen na qual o Reino Unido não participa.

V –    Apreciação

A –    Observações introdutórias

1.      Quanto ao pedido do Reino Unido

36.      O Reino Unido formulou de forma atípica o pedido que submete ao Tribunal de Justiça. Por um lado, de facto, esse Estado‑Membro pede a anulação da decisão impugnada. Por outro, pede ao Tribunal que mantenha em vigor as suas disposições, com excepção daquelas que excluem a participação do Reino Unido no mecanismo de acesso ao VIS previsto pela decisão.

37.      De um ponto de vista formal, a segunda parte do pedido do Reino Unido pode ser provavelmente entendida como pedido, formulado na acepção do artigo 231.° CE, de conservar alguns efeitos da decisão impugnada até à nova intervenção do legislador.

38.      Na audiência, o Reino Unido sustentou que o seu pedido de manter em vigor alguns efeitos da decisão deve entender‑se, na realidade, como sendo relativo à decisão impugnada na sua integralidade. Essa manutenção teria, portanto, só a finalidade de permitir a continuação do sistema existente, sem qualquer modificação, até à adopção de uma nova decisão por parte do Conselho.

39.      Sublinho que existe uma certa incoerência entre o que foi pedido pelo Reino Unido na sua petição [cf., em particular, a alínea b) do n.° 116] e o que foi sustentado na audiência. Na petição, de facto, o pedido de manter em vigor as disposições da decisão impugnada é explicitamente limitado às partes da mesma que não excluem o Reino Unido do acesso ao VIS por razões de polícia, de modo que esse Estado‑Membro parece, com efeito, requerer, provisoriamente, a possibilidade de aceder de imediato a essa base de dados. Na audiência, pelo contrário, como se viu, o Reino Unido reconheceu que, mesmo em caso de anulação, só depois da adopção de uma nova medida as suas autoridades policiais poderiam beneficiar de um acesso directo à base de dados sobre vistos.

40.      Este ponto, todavia, parece‑me relativamente secundário. Não existem, de facto, aqui as condições objectivas necessárias para uma anulação parcial da decisão impugnada, e, por conseguinte, também não existem para manter em vigor apenas determinadas partes da referida decisão.

41.      Deve, com efeito, recordar‑se que, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, a anulação parcial de um acto só é possível na medida em que diga respeito a partes «destacáveis» desse acto, e na condição de a anulação parcial não modificar a substância do próprio acto (11).

42.      Aqui, pelo contrário, os vícios denunciados pelo Reino Unido não tocam apenas uma parte específica da decisão impugnada, e dizem respeito, pelo contrário, a essa decisão no seu conjunto. A escolha de fazer participar ou não alguns Estados‑Membros na adopção de um acto não constitui decerto uma parte desse acto que possa ser facilmente destacada do resto. É, com efeito, evidente que, caso se devesse considerar que o Reino Unido e a Irlanda tinham o direito de participar na adopção do acto impugnado, esses Estados‑Membros tinham o direito/dever de se pronunciar e de votar acerca da totalidade da medida. Como foi justamente realçado pelo Conselho nas suas observações escritas, uma eventual ilegalidade deste tipo imporia uma reconsideração de toda a decisão impugnada. Por outras palavras, o legislador da União deveria, por assim dizer, recomeçar do princípio.

43.      Consequentemente, em caso de acolhimento dos argumentos apresentados pelo Reino Unido, a decisão do Tribunal de Justiça só pode ser uma anulação total da decisão impugnada.

2.      Quanto à proposta inicial da Comissão

44.      O Reino Unido sustenta, como se viu, que a proposta inicialmente formulada pela Comissão para a decisão impugnada teria previsto uma possibilidade de acesso às informações por parte das autoridades policiais do Reino Unido. O que demonstraria, segundo esse Estado‑Membro, a correcção da sua posição, visto que confirmaria que a decisão impugnada não pode ser considerada como um desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos.

45.      A este propósito, observo antes de mais, que é evidente que o exame da proposta inicial da Comissão, ainda que possa fornecer elementos úteis para o esclarecimento das circunstâncias específicas do caso, continua a ser, de qualquer modo, irrelevante para determinar a eventual ilegalidade da decisão impugnada.

46.      O elemento mais importante que se deve salientar é, porém, outro. A proposta da Comissão inseria‑se, relativamente à decisão impugnada, numa óptica completamente diferente. Além de prever o acesso directo das autoridades policiais dos Estados Schengen ao VIS, de facto, a mesma previa também uma partilha das respectivas bases de dados por parte dos Estados participantes no VIS, por um lado, e dos Estados‑Membros não participantes no VIS (Reino Unido e Irlanda), por outro. É portanto perfeitamente lógico que essa proposta partisse do pressuposto de que o Reino Unido também devia participar na aprovação da decisão, uma vez que aquele devia, por sua vez, permitir o acesso à sua própria base de dados relativa aos vistos.

47.      Aliás, deve notar‑se que, também na proposta inicial da Comissão, não estava prevista uma possibilidade de acesso directo a essa base de dados para os Estados‑Membros não participantes no VIS: o artigo 6.° da proposta, de facto, prefigurava um mecanismo de acesso indirecto, baseado no envio de um pedido através das autoridades de um dos Estados participantes no VIS.

48.      A decisão impugnada constitui, por assim dizer, um redimensionamento das ambições originariamente contidas na proposta da Comissão: a decisão impugnada é, de facto, uma medida que se ocupa unicamente do acesso ao VIS para actividades de investigação e repressão penal, e não contém qualquer disposição acerca do intercâmbio de dados entre os Estados que participam e os que não participam no VIS.

49.      Em conclusão, parece‑me que o exame da proposta inicial da Comissão não fornece qualquer elemento decisivo para nos pronunciarmos acerca da legalidade da decisão impugnada.

B –    A qualificação da decisão impugnada

50.      O problema que o Tribunal de Justiça tem de resolver no presente processo consiste exclusivamente em determinar se a decisão impugnada pode ou não ser considerada um acto que desenvolve o acervo de Schengen em matéria de vistos.

51.      As partes estão de acordo sobre o facto de que, em caso de resposta afirmativa, o Reino Unido teria sido correctamente excluído da adopção da decisão impugnada. A jurisprudência do Tribunal de Justiça tem, efectivamente, afirmado de modo inequívoco que a participação numa medida reconduzível a um domínio do acervo de Schengen é reservada aos Estados‑Membros que participam nesse domínio. Esta jurisprudência resulta de dois acórdãos, ambos proferidos em 18 de Dezembro de 2007, relativos a processos que opunham, também eles, o Reino Unido ao Conselho (12).

52.      Nesses acórdãos, o Tribunal de Justiça utilizou, por analogia, para determinar a relação de uma medida com o acervo de Schengen, os critérios aplicáveis à escolha da base jurídica de um acto da União. Em particular, o Tribunal declarou que «a qualificação de um acto comunitário como proposta ou iniciativa baseada no acervo de Schengen [...] deve assentar em elementos objectivos, susceptíveis de fiscalização jurisdicional, entre os quais figuram, nomeadamente, a finalidade e o conteúdo do acto» (13).

53.      No caso em apreço, se se fizesse referência somente à finalidade da decisão impugnada, o Reino Unido obteria provavelmente a anulação pedida. Como, de facto, confirma também a escolha da base jurídica efectuada pelo Conselho (constituída, recordo‑o, pelas normas constantes do título VI TUE), a decisão visa realizar uma finalidade que é indubitavelmente típica dos actos de cooperação policial. O próprio Conselho reconhece essa circunstância.

54.       Diferente e, em certa medida, menos claro, é, pelo contrário, o raciocínio no que diz respeito ao conteúdo do acto. Poder‑se‑ia pensar que, uma vez que o conteúdo da decisão impugnada é constituído por uma série de disposições que permitem o acesso ao sistema VIS por razões de polícia, o critério que se reporta ao conteúdo da medida depõe a favor de uma qualificação desta como medida passível de ser inserida no âmbito do título VI TUE.

55.      Deve, porém, salientar‑se que, em concreto, a decisão impugnada não prevê o intercâmbio de dados pessoais para fins policiais em termos gerais (14). Pelo contrário, ela prevê as modalidades para concretizar, de forma excepcional e na ocorrência de circunstâncias específicas, um acesso para fins policiais a uma base de dados (o VIS) que não foi concebida para semelhantes objectivos. As partes estão todas de acordo acerca do facto de o uso ordinário e predominante do sistema VIS estar ligado ao controlo das fronteiras e das entradas, e não à prevenção ou à repressão de actividades criminosas. Noutros termos, o legislador escolheu configurar a decisão impugnada como uma simples medida de gestão do VIS, que permite usar esse sistema, em alguns casos, para fins diferentes daqueles para os quais é normalmente utilizável.

56.       Em consequência, o conteúdo da decisão impugnada é constituído, em primeiro lugar e mesmo antes de uma série de disposições destinadas a realizar uma cooperação em matéria policial, por um conjunto de medidas referentes à gestão do VIS, ou seja, de uma base de dados relativa aos vistos, criada com base no título IV do Tratado CE e integrando um domínio da cooperação reforçada de Schengen no qual o Reino Unido não participa.

57.      A aplicação por analogia dos critérios utilizáveis para definir a base jurídica de um acto não permite, pois, resolver de modo unívoco o problema da possibilidade ou não de qualificar a decisão impugnada como um desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos.

58.      Além disso, penso que, em geral, uma consideração isolada e abstracta da finalidade e do conteúdo da decisão não é suficiente quando a questão não diz respeito à escolha da base jurídica mas, como no caso presente, à relação com o acervo de Schengen.

59.      Importa, de facto, em primeiro lugar, observar que, como se viu, o Tribunal de Justiça não invocou, a este propósito, pura e simplesmente a sua própria jurisprudência relativa à escolha da base jurídica. O Tribunal declarou, de facto, explicitamente que o recurso aos critérios dessa jurisprudência é feito por analogia: não é portanto seguro que se deva proceder de modo idêntico.

60.      Em segundo lugar, a jurisprudência relativa à escolha da base jurídica também não afirma que se deve fazer referência exclusivamente ao conteúdo e à finalidade do acto. Essa jurisprudência declara, pelo contrário, a necessidade de fazer referência a elementos objectivos, que permitam a fiscalização jurisdicional sobre a escolha do legislador. Entre esses elementos objectivos figuram tipificadamente, e são amiúde lembrados pelo Tribunal de Justiça, o conteúdo e a finalidade: eles não são todavia, de modo algum, os únicos elementos possíveis a ter em consideração (15).

61.      Ora, no caso em apreço existe, parece‑me, um elemento objectivo ulterior a ter em consideração: como se viu, a decisão impugnada diz respeito, sob o aspecto material, a uma base de dados (o VIS) instituída no âmbito da cooperação de Schengen, num domínio (o dos vistos) no qual o Reino Unido não participa. Esse elemento indica sem sombra de dúvida a existência de um estreito vínculo entre a decisão impugnada e a cooperação de Schengen em matéria de vistos.

62.      Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça lembrou que, de acordo com jurisprudência assente, uma disposição não deve ser interpretada isoladamente, mas sempre no contexto específico no qual a mesma se insere (16).

63.      Em quarto lugar, finalmente, a especial natureza da cooperação de Schengen, enquanto cooperação reforçada que diz respeito apenas a uma parte dos Estados‑Membros da União, impõe que se tenha em conta um outro princípio, o da integridade e da coerência do acervo de Schengen (17). Esse princípio encontra‑se reflectido, em particular, no segundo considerando da citada Decisão 2000/365/CE (18).

64.      Também a jurisprudência do Tribunal de Justiça, não obstante não se ter pronunciado de modo explícito sobre este ponto, tem tido em consideração a necessidade de evitar que o acervo de Schengen possa ser fragmentado e desvirtuado admitindo formas de participação excessivamente «fáceis» dos Estados‑Membros que não participam integralmente na cooperação de Schengen. Em particular, o Tribunal de Justiça afirmou que as medidas de desenvolvimento do acervo de Schengen «devem estar de acordo com as disposições que aplicam ou de que constituem um desenvolvimento, pelo que pressupõem a aceitação tanto dessas disposições como dos princípios que constituem o seu fundamento» (19).

65.      A passagem ora citada não diz respeito a uma situação idêntica à presente: naquele caso, de facto, o Tribunal de Justiça partia do pressuposto de que a medida em apreço era sem dúvida um desenvolvimento do acervo de Schengen, enquanto que no presente processo é exactamente essa qualificação o objecto de debate. A citação, porém, mostra bem, na minha opinião, a necessidade de evitar que o acervo de Schengen possa ser objecto de interpretações cujo resultado último fosse o de lhe modificar, de modo aparentemente superficial mas, na realidade, significativo, o alcance e as características (20).

66.      Penso que, em geral, o princípio da integridade e da coerência do acervo de Schengen impõe que se considere como um desenvolvimento desse acervo qualquer medida que não pudesse concretamente existir sem ele. No presente caso, o acesso aos dados do sistema VIS pressupõe, como é evidente, a existência desse sistema, que encontra o seu único fundamento na cooperação de Schengen em matéria de vistos.

67.      Em consequência, o princípio da integridade e da coerência leva a considerar a decisão impugnada como um desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos.

68.      Encontramo‑nos, novamente, nesta altura, numa situação em que a aplicação de diferentes critérios interpretativos produz dois resultados divergentes. Por um lado, o exame da finalidade da decisão impugnada milita a favor da sua classificação como medida «normal» de cooperação policial. Por outro, a aplicação do princípio da integridade e da coerência do acervo de Schengen leva, ao invés, a qualificá‑la como medida de desenvolvimento da cooperação reforçada em matéria de vistos e, por conseguinte, do próprio acervo de Schengen. O exame do conteúdo da decisão impugnada, por seu turno, pode conduzir, como se viu, tanto a uma como a outra das duas qualificações.

69.      É, por consequência, necessário identificar um critério que permita fazer prevalecer uma ou outra das duas perspectivas possíveis.

70.      A situação específica do caso em apreço não permite, na minha opinião, aplicar por analogia os critérios que, em matéria de escolha da base jurídica, a jurisprudência do Tribunal de Justiça formulou para o caso de incerteza entre duas concepções possíveis.

71.      Em primeiro lugar, de facto, não é aplicável o princípio segundo o qual, no caso de existirem várias bases jurídicas possíveis para um acto da União, se deve utilizar aquela que corresponda à finalidade principal prosseguida (21). Esse princípio é, de facto, aplicável, como resulta de resto de um modo claro da sua formulação por parte do Tribunal de Justiça, apenas no caso de existir uma pluralidade de bases jurídicas possíveis devido à pluralidade de fins prosseguidos pela norma que deve ser qualificada. No presente caso, pelo contrário, o problema não é tanto a presença de várias finalidades, mas o do resultado divergente a que conduzem dois critérios diferentes de qualificação jurídica da norma (o da consideração da finalidade, por um lado, e o da integridade e da coerência do acervo de Schengen, por outro).

72.      Em segundo lugar, não é tão‑pouco possível aplicar o princípio, que aliás a jurisprudência do Tribunal de Justiça reconheceu como excepcional, que admite a possibilidade de assentar uma medida sobre duas bases jurídicas diferentes (22). No presente caso, de facto, a aplicação dos dois critérios anteriormente referidos produz dois resultados reciprocamente incompatíveis. Não é, efectivamente, concebível que um acto possa ser ao mesmo tempo adoptado como medida ordinária de cooperação policial e como medida de desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos: trata‑se, de facto, de duas situações que, por definição, implicam dois grupos diferentes de Estados (os Estados‑Membros da União, no primeiro caso, uma parte dos Estados-Membros da União e alguns Estados terceiros, no segundo).

73.      Parece‑me que uma possível solução para o problema deve ser identificada por referência, por assim dizer, ao «peso específico» dos critérios em conflito. Trata‑se de critérios, em princípio, da mesma importância e dignidade, mas que podem ser hierarquizados, considerando um prevalente relativamente ao outro, com base nas circunstâncias específicas de cada situação particular. A lógica a seguir é, com efeito, a mesma que o Tribunal de Justiça segue, ao determinar a base jurídica de um acto, quando o mesmo tem duas componentes diferentes: em tais casos, a base jurídica a utilizar é a ligada à componente principal. No caso presente, entre os dois critérios deve prevalecer aquele que, nas circunstâncias específicas, parece mais adequado, tendo em consideração o conteúdo do acto que é objecto de litígio.

74.      No presente processo, o critério da finalidade assenta na função «policial» da decisão impugnada. O critério da integridade e da coerência do acervo de Schengen, pelo contrário, reporta‑se aos elementos materiais do acto em questão, que utiliza uma base de dados (o VIS) criada para gerir os vistos.

75.      Penso que, no caso concreto que é submetido à apreciação do Tribunal de Justiça, o peso do «elemento Schengen», isto é da base de dados VIS, é superior ao do «elemento cooperação policial», que tem uma natureza ao mesmo tempo acessória e dependente relativamente àquele. Tal explica‑se, na perspectiva que o legislador escolheu, pelo facto de que a decisão impugnada é, antes de mais, uma medida de gestão da base de dados VIS. Por outras palavras, o conteúdo da decisão impugnada não é apenas um conjunto de normas destinadas à prevenção e à repressão de infracções penais, mas também, e antes de mais, um conjunto de normas relativas à consulta do VIS.

76.      Não é de negligenciar a este propósito o facto de que, como o próprio Reino Unido reconheceu na audiência, na situação actual não pode aceder directamente ao VIS ainda que essa possibilidade lhe fosse reconhecida. De facto, esse Estado‑Membro não dispõe da infra‑estrutura necessária (a ligação «física» com o VIS). E essa infra‑estrutura não pode seguramente ser criada com base na decisão impugnada: a mesma de facto não contém qualquer disposição do ponto de vista técnico, confirmando assim a sua natureza acessória relativamente ao corpus normativo que regula o VIS, adoptado com base no título IV do Tratado CE.

77.      Como o Conselho repetidamente salientou nas suas observações escritas, se se qualificasse a decisão impugnada como uma «normal» medida de cooperação policial, obter‑se‑ia o resultado paradoxal de permitir o acesso ao VIS, com o fim de prevenir e perseguir algumas infracções penais particularmente graves, a países (o Reino Unido e a Irlanda) que não contribuem para a gestão dessa base de dados, enquanto esse acesso seria negado a países (a Suíça, a Noruega e a Islândia) que contribuem para a gestão e para o financiamento do VIS, que o utilizam quotidianamente para os seus fins «ordinários» (isto é, essencialmente, o controlo das fronteiras).

78.      O Reino Unido esforça‑se por apresentar a decisão impugnada como uma medida de intercâmbio de informações, sustentando que, se o Reino Unido e a Irlanda pudessem participar na mesma, esses Estados‑Membros colocariam à disposição os dados de que dispõem em matéria de vistos. Esse raciocínio contém todavia, na minha opinião, um erro de perspectiva. O mesmo estaria de facto correcto se a decisão impugnada tivesse sido efectivamente concebida pelo legislador como medida relativa ao intercâmbio dos dados, de acordo com a proposta inicial da Comissão. Uma vez que, pelo contrário, como se viu, a decisão impugnada é na realidade unicamente uma medida de gestão e organização da base de dados VIS, penso que é mais correcta a perspectiva que limita o direito de aprovar semelhante medida unicamente às entidades que criaram e gerem essa base de dados.

79.      É naturalmente e de todo desejável que se possa chegar a uma partilha, pelo menos para algumas finalidades, das informações em matéria de vistos contidas no VIS, por um lado, e nas correspondentes bases de dados do Reino Unido e da Irlanda, por outro. Isso, todavia, só poderá acontecer numa perspectiva completamente diferente da adoptada na medida impugnada, nomeadamente, através de uma medida especificamente destinada à partilha ou ao intercâmbio desses dados.

C –    A base jurídica escolhida pelo Conselho

80.      Resta todavia, em conclusão, um último problema, que não pode ser ignorado e que constitui talvez o ponto mais delicado e difícil do presente processo. Refiro‑me ao possível papel que deve ser reconhecido à base jurídica que o Conselho utilizou para adoptar o acto em questão.

81.      Em particular, como se viu ao sintetizar os argumentos das partes, o Reino Unido insiste no facto de que o uso de uma base jurídica assente no título VI TUE indicaria que a decisão impugnada não constitui um desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos, mas uma medida de cooperação policial na qual, em consequência, o Reino Unido deveria ter sido admitido a participar.

82.      Em suma, o argumento exposto no número anterior parte da ideia de que existe uma incompatibilidade entre o facto de uma decisão se basear no título VI TUE e a sua qualificação como desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos.

83.      Importa, entretanto, lembrar que o acervo de Schengen compreende também medidas que dizem respeito à cooperação policial (23). É verdade que o Reino Unido participa, pelo menos em parte, nesse domínio da cooperação de Schengen, diferentemente do que sucede em matéria de vistos (24): isto demonstra todavia que, por si só, uma medida de polícia se pode incluir no âmbito da cooperação de Schengen, e que não existe nenhum obstáculo de princípio à qualificação de uma medida baseada no título VI TUE como pertencente ao acervo de Schengen.

84.      O facto de a base jurídica da decisão impugnada ser constituída pelos artigos 30.° UE e 34.° UE não exclui, portanto, que a mesma decisão possa ser um desenvolvimento do acervo de Schengen.

85.      Todavia, aquilo que o Reino Unido contesta é que a decisão possa ser considerada um desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos, não do acervo de Schengen em geral. A este propósito, todavia, considero, de acordo com as observações que desenvolvi anteriormente, que o facto de a finalidade da medida ser uma finalidade «policial» não anula o facto de que, do ponto de vista do seu conteúdo, se trata essencialmente de uma decisão relativa ao modo de gestão do sistema VIS.

86.      Além disso, importa ter presente que o Reino Unido não participa automaticamente nem sequer nas medidas de Schengen que dizem respeito à cooperação policial. A sua participação é limitada aos casos em que a mesma está explicitamente prevista.

87.      Consequentemente, entendo que a escolha do Conselho de considerar a decisão impugnada ao mesmo tempo uma medida de desenvolvimento do acervo de Schengen em matéria de vistos e um acto baseado no título VI TUE foi correcta, embora atípica. A decisão impugnada é uma medida que se inclui na cooperação de Schengen, e cuja base jurídica é constituída pelas normas da União que regulam a cooperação policial. Uma vez que, todavia, a decisão impugnada é um acto relativo à gestão do sistema VIS, ela é adoptada pelos «países VIS». O recurso do Reino Unido deve portanto, na minha opinião, ser julgado improcedente.

88.      Para concluir, gostaria de realçar um elemento importante, a saber, a natureza, de todo peculiar do presente processo. A eventual declaração de improcedência do recurso do Reino Unido, por parte do Tribunal de Justiça, não implicaria, de modo algum, contestar a importância do papel da base jurídica no âmbito do direito da União. É claro que, em princípio, é a indicação da base jurídica de um acto que determina as modalidades segundo as quais o mesmo deve ser adoptado. Deve‑se, porém, considerar que a cooperação reforçada de Schengen constitui uma espécie de corpus paralelo no direito da União. As regras do direito da União são sempre aplicáveis no âmbito da cooperação de Schengen, com o único limite (que funcionou no presente caso) que deriva do facto de, nalguns casos, o número dos Estados que participam nas decisões não ser necessariamente o mesmo que para os actos «ordinários» da União.

VI – Conclusões

89.      Com base nas observações desenvolvidas, proponho portanto ao Tribunal de Justiça que:

–        julgue improcedente o recurso;

–        condene o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte nas despesas;

–        determine que a Comissão e o Reino de Espanha suportem as suas próprias despesas.


1 – Língua original: italiano.


2 – JO L 218, p. 129.


3 – Protocolo (n.° 2) que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia. Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o Protocolo de Schengen, agora n.° 19, foi ligeiramente alterado. A versão a que se deve fazer referência no presente processo é, no entanto, a anterior.


4 – Decisão 2000/365/CE do Conselho, de 29 de Maio de 2000, sobre o pedido do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 131, p. 43).


5 – O Reino Unido, como recorda esse mesmo Estado‑Membro nas suas próprias observações escritas, participa em boa parte do acervo de Schengen nos âmbitos relativos à polícia e à segurança, mas não participa em tudo o que diz respeito à abolição das fronteiras internas e à circulação de pessoas.


6 – Decisão 2004/512/CE do Conselho, de 8 de Junho de 2004, que estabelece o Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) (JO L 213, p. 5).


7 – Ao qual corresponde, actualmente, o artigo 74.° TFUE.


8 – Regulamento (CE) n.° 767/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Julho de 2008, relativo ao Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) e ao intercâmbio de dados entre os Estados‑Membros sobre os vistos de curta duração (regulamento VIS) (JO L 218, p. 60).


9 – Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, essas disposições foram revogadas, e a matéria da cooperação policial foi transferida para o TFUE, onde partilha actualmente o mesmo título (o título V da parte III) com as normas sobre as quais se funda a cooperação reforçada em matéria de vistos. Essa nova colocação abre perspectivas interessantes, que foram também invocadas na audiência: se tivesse de ser adoptada hoje, sustentou o Conselho, a decisão impugnada poderia fundar‑se sobre uma base jurídica diferente. Essas observações são, contudo, irrelevantes para a solução do presente litígio.


10 – Decisão‑Quadro 2006/960/JAI do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006, relativa à simplificação do intercâmbio de dados e informações entre as autoridades de aplicação da lei dos Estados‑Membros da União Europeia (JO L 386, p. 89).


11 – Acórdão de 11 de Dezembro de 2008, Comissão/Département du Loiret (C‑295/07 P, Colect., p. I‑9363, n.os 105 e 106 e jurisprudência aí citada).


12 – Acórdãos de 18 de Dezembro de 2007, Reino Unido/Conselho (C‑77/05, Colect., p. I‑11459, n.° 62), e Reino Unido/Conselho (C‑137/05, Colect., p. I‑11593, n.° 50).


13 – Acórdão C‑77/05, Reino Unido/Conselho, já referido na nota 12 supra (n.° 77). O Tribunal de Justiça invocou depois alguns acórdãos «clássicos» em matéria de escolha da base jurídica: acórdãos de 11 de Junho de 1991, Comissão/Conselho, dito «dióxido de titânio» (C‑300/89, Colect., p. I‑2867, n.° 10); de 13 de Setembro de 2005, Comissão/Conselho (C‑176/03, Colect., p. I‑7879, n.° 45); e de 23 de Outubro de 2007, Comissão/Conselho (C‑440/05, Colect., p. I‑9097, n.° 61).


14 – Um sistema com essa finalidade já existia, como se viu, foi instituído pela Decisão 2006/960/JAI (v. nota 10 supra): todavia, como se recordou, o acesso às informações com base nesse sistema era indirecto e não directo como previa, em contrapartida, a decisão impugnada.


15 – V., por exemplo, os acórdãos de 26 de Março de 1987, Comissão/Conselho (45/86, Colect., p. 1493, n.° 11); «dióxido de titânio», já referido na nota 13 (n.° 10); e de 12 de Novembro de 1996 Reino Unido/Conselho (C‑84/94, Colect., p. I‑5755, n.° 25). V., para além disso, o parecer 2/00, de 6 de Dezembro de 2001 (Colect., p. I‑9713, n.° 22).


16 – Acórdão C‑77/05, Reino Unido/Conselho, já referido na nota 12 (n.° 55).


17 – Acerca desse princípio v., em geral, as conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak apresentadas em 10 de Julho de 2007, no processo C‑137/05, Reino Unido/Conselho (já referido na nota 12, n.os 108 a 112 das conclusões).


18 – Esse considerando indica designadamente que «o acervo de Schengen foi concebido e está a funcionar como um conjunto coerente que tem de ser plenamente aceite e aplicado por todos os Estados‑Membros que apoiam o princípio da abolição dos controlos de pessoas nas suas fronteiras comuns».


19 – Acórdão C‑77/05, Reino Unido/Conselho, já referido na nota 12 supra (n.° 61).


20 – Acerca da natureza do conceito de coerência no âmbito do discurso jurídico, v. as minhas conclusões de 5 de Março de 2009 no processo C‑429/07, na origem do acórdão de 11 de Junho de 2009, X (Colect., p. I‑4833, n.° 28 e nota 6 das conclusões).


21 – V. acórdão de 20 de Maio de 2008, Comissão/Conselho (C‑91/05, Colect., p. I‑3651, n.° 73 e jurisprudência aí citada).


22 – V., por exemplo, acórdãos de 11 de Setembro de 2003, Comissão/Conselho (C‑211/01, Colect., p. I‑8913, n.° 40), e de 10 de Janeiro de 2006, Comissão/Conselho (C‑94/03, Colect., p. I‑1, n.° 36).


23 – V., por exemplo, os artigos 39.° e segs. da Convenção de Schengen (JO L 239, p. 1, de 22 de Setembro de 2000).


24 – V. o artigo 1.° da Decisão 2000/365/CE já referida.