CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
NIILO JÄÄSKINEN
apresentadas em 11 de Março de 2010 1(1)
Processo C‑393/08
Emanuela Sbarigia
contra
Azienda USL RM/A
sendo intervenientes:
Comune di Roma
Assiprofar (Associazione Sindacale Proprietari Farmacia)
Ordine dei Farmacisti della Provincia di Roma
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Itália)]
«Legislação regional que regula os horários e períodos de abertura e fecho das farmácias – Proibição da possibilidade de renunciar ao período de encerramento anual e da possibilidade de ultrapassar o limite máximo de horas de abertura previsto – Autorização excepcional»
I – Introdução
1. O Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Itália) (a seguir «Tribunale») foi chamada a decidir num litígio que opõe E. Sbarigia, farmacêutica, à administração da comuna de Roma a propósito da legislação regional que regula os horários de abertura das farmácias, em especial a exclusão de qualquer possibilidade de renunciar ao período de encerramento para férias anuais. É neste âmbito que o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal duas questões, a primeira respeitante à interpretação dos artigos 49.° CE, 81.° CE, 82.° CE, 83.° CE, 84.° CE, 85.° CE e 86.° CE, e a segunda sobre a interpretação dos artigos 152.° CE e 153.° CE (2).
2. Resulta do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio expressa dúvidas quanto à questão da compatibilidade da legislação regional em causa, nomeadamente, com os princípios que subjazem à política da livre concorrência. Ora, a relação entre as disposições do direito da União Europeia referidas no reenvio prejudicial e o debate levado a cabo a nível nacional, e inclusivamente regional, relativo à concorrência não se encontra nitidamente estabelecido. Isto suscita interrogações não quanto à admissibilidade das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, mas também quanto à eventual necessidade de as reformular.
II – Quadro jurídico
3. Em Itália, a prestação dos serviços farmacêuticos está essencialmente organizada sob a forma de concessão de serviço público, subordinada à concessão de uma autorização.
4. Para garantir a continuidade do serviço farmacêutico, garante da protecção da saúde pública, os horários, os turnos e as férias anuais das farmácias são regulamentados por leis regionais. No caso do Lazio, trata‑se da Lei regional n.° 26, de 30 de Julho de 2002 (Legge regionale Lazio, a seguir «Lei regional n.° 26/2002») (3).
5. Os artigos 2.° e 3.° da Lei regional n.° 26/2002 fixam os horários de abertura, o serviço de turnos, o encerramento semanal e as férias anuais das farmácias. Estas disposições impõem, nomeadamente, os limites máximos de abertura, a obrigação de encerrar aos domingos e um meio dia por semana assim como nos dias feriados, e férias anuais com um período de duração mínima. A aplicação de vários artigos da Lei regional n.° 26/2002 está subordinada a condições relacionadas com as especificidades geográficas das comunas em causa ou com o local de estabelecimento.
6. O artigo 10.° da Lei regional n.° 26/2002 tem a seguinte redacção:
«1. Na comuna de Roma, cada Unidade Sanitária Local (USL) adopta as medidas da sua própria competência previstas pela presente lei, com o prévio acordo das outras USL interessadas.
2. Para os estabelecimentos situados em zonas específicas de comunas, o horário semanal de abertura ao público, as férias das farmácias urbanas e o meio dia de descanso semanal […] podem ser alterados por decisão da USL territorialmente competente, com o acordo do presidente da comuna em causa, a ordem provincial dos farmacêuticos e as organizações profissionais provinciais mais representativas das farmácias públicas e privadas.»
III – O processo principal e as questões prejudiciais
7. E. Sbarigia é proprietária de uma antiga farmácia situada numa zona específica, chamada «del Tridente», localizada no centro histórico de Roma. Este bairro, totalmente pedonal, encontra‑se no coração da zona turística da cidade.
8. Devido a esta localização e ao importante aumento do número de utentes no bairro durante o período estival de Julho e Agosto, E. Sbarigia requereu, em 31 de Maio de 2006, à Azienda USL RM/A territorialmente competente (a seguir «autoridade competente»), uma autorização para renunciar ao período de encerramento durante as férias de Verão de 2006.
9. Este pedido, apresentado com fundamento no segundo parágrafo do artigo 10.° da Lei regional n.° 26/2002, foi posteriormente alargado ao pedido de dispensa do encerramento durante todas as férias anuais, de alargamento dos seus horários de abertura semanal ao longo de todo o ano e de não encerramento nos dias feriados. A este respeito, E. alega que, em 8 de Setembro de 2006, fora concedida uma autorização semelhante a outra farmácia situada nas imediações da estação ferroviária «Termini», cuja clientela específica era a mesma que a da sua farmácia.
10. Os requerimentos de E. Sbarigia foram várias vezes indeferidos pela Azienda USL RM/A, em aplicação do artigo 10.°, n.° 2, da Lei regional n.° 26/2002, com o parecer desfavorável da comuna de Roma, da Ordine dei Farmacisti della Província di Roma (ordem provincial dos farmacêuticos da província de Roma), bem como das associações profissionais Assiprofar (Associazone Sindicale Proprietari Framacia) e Confservizi.
11. O Tribunale observa que os horários de abertura das farmácias, os turnos de domingo, o encerramento durante os dias feriados e as férias anuais não dependem da livre determinação e das exigências de organização de cada farmácia. As possibilidades de derrogação são limitadas e sempre subordinadas ao exercício do poder discricionário da administração, e as decisões de recusa difíceis de contestar.
12. Segundo o Tribunale, considerar o serviço farmacêutico como um serviço público que garante a protecção da saúde pública não é suficiente para justificar estas disposições restritivas relativas às modalidades de abertura das farmácias. Uma liberalização dos horários e dos períodos de abertura de todas as farmácias permitiria aumentar a oferta em geral, garantindo os planos de repartição uma distribuição geográfica equilibrada das farmácias, em benefício dos utentes. Uma reforma desta natureza é, aliás, preconizada por um relatório emitido em 1 de Fevereiro de 2007 pela Autoritá nazionale garante della concorrenza e del mercato (Autoridade nacional garante da concorrência e do mercado).
13. Além disso, as disposições em causa parecem‑lhe excessivas e injustificadas. O interesse público e as exigências relacionadas com o serviço farmacêutico estariam mais bem protegidos através de medidas concorrenciais e de liberalização das modalidades de abertura.
14. Assim, o Tribunale tem dúvidas quanto à compatibilidade das restrições controvertidas com certos princípios de direito comunitário.
15. Nestas circunstâncias, o Tribunale decidiu submeter ao Tribunal as seguintes questões prejudiciais:
«1. A imposição às farmácias das proibições de renúncia às férias anuais e de abertura para além dos limites máximos actualmente permitidos pelas disposições da Lei regional n.° 26/2002, e a exigência, por força do segundo parágrafo do artigo 10.° desta lei, para a concessão da excepção à referida proibição [na comuna] de Roma, de uma apreciação discricionária prévia da administração (efectuada em acordo com as entidades e os organismos indicados nesse artigo), sobre a especificidade da zona [da comuna] em que se situam as farmácias requerentes, são compatíveis com os princípios comunitários de protecção da livre concorrência e da livre prestação de serviços, consagrados, entre outros, nos artigos 49.° CE, 81.° CE, 82.° CE, 83.° CE, 84.° CE, 85.° CE e 86.° CE?
2. A imposição ao serviço público farmacêutico, ainda que com o objectivo de protecção da saúde dos utentes, de requisitos, como os estabelecidos na Lei regional n.° 26/2002, que limitam ou proíbem a possibilidade de alargamento diário, semanal e anual do período de abertura dos estabelecimentos farmacêuticos individuais, é compatível com os artigos 152.° CE e 153.° CE? (4)»
IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça
16. O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal em 11 de Setembro de 2008.
17. Foram apresentadas alegações escritas por E. Sbarigia, a comuna de Roma, os Governos grego, italiano, neerlandês, austríaco, bem como pela Comissão.
18. Em anexo à convocação para a audiência pública, as partes foram convidadas a pronunciar‑se, nas suas alegações, no âmbito da admissibilidade, sobre o elemento de conexão com o direito comunitário e, quanto ao mérito, sobre a interpretação dos artigos 28.° CE, 29.° CE, 30.° CE, 31.° CE e 86.°, n.° 2, CE.
19. Estiveram presentes na audiência, que teve lugar em 17 de Dezembro de 2009, E. Sbarigia, a Assiprofar, a Ordine dei Farmacisti della Provincia di Roma, os Governos helénico, francês, italiano e austríaco, bem como a Comissão.
V – Análise
A – Introdução
20. À partida, impõe‑se referir que o pedido de decisão prejudicial não contém nenhum esclarecimento quanto à questão de saber em que é que os nove artigos do Tratado e os dois princípios do direito da União anteriormente referidos carecem de interpretação. As partes que apresentaram alegações escritas parecem, também elas, ter dúvidas a este respeito.
21. A título preliminar, quero lembrar que a decisão de reenvio deve indicar os motivos específicos que levaram o juiz nacional a questionar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário submeter as questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (5). Neste contexto, é indispensável que o juiz nacional apresente um mínimo de explicações sobre os motivos da escolha das disposições do direito da União cuja interpretação solicita e sobre a relação por ele estabelecida entre estas disposições e a legislação aplicável ao litígio no processo principal (6).
22. Proponho‑me analisar o pedido de decisão prejudicial de acordo com a seguinte ordem: após ter analisado a admissibilidade das questões prejudiciais, abordarei a segunda questão referente aos artigos 152.° CE e 153.° CE, antes de abordar a primeira questão relativa ao direito da concorrência (artigos 81.° CE a 86.° CE) e à livre prestação de serviços (artigo 49.° CE).
B – Quanto à admissibilidade
23. No âmbito do presente processo, foram invocados dois motivos de inadmissibilidade.
24. Em primeiro lugar, nas suas alegações escritas, o Governo italiano sustenta que o pedido de decisão prejudicial não é admissível, em virtude da insuficiência de elementos de facto e de direito indispensáveis para compreender em que medida as disposições invocadas são pertinentes no caso em apreço.
25. A este respeito, é suficiente constatar que, segundo jurisprudência assente, o Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto da lide principal, quando o problema for de natureza hipotética ou ainda quando não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são submetidas (7).
26. Ora, atendendo aos elementos de facto e de direito fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça dispõe, em meu entender, de elementos suficientes para decidir sobre o pedido de decisão prejudicial.
27. Em segundo lugar, a pedido do Tribunal, a questão da admissibilidade também foi abordada na audiência, do ponto de vista da inexistência de qualquer elemento transfronteiriço no litígio.
28. Parece‑me claro que a situação factual em causa no processo principal não comporta nenhum elemento de estraneidade. No entanto, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a inexistência de um elemento transfronteiriço não leva o Tribunal a declarar um pedido prejudicial inadmissível em semelhante situação. Com efeito, no que diz respeito, mais especificamente, às questões sobre a interpretação do artigo 49.° CE, embora seja certo que todos os elementos do litígio submetidos ao órgão jurisdicional de reenvio estejam confinados ao interior de um único Estado‑Membro, no caso em apreço a uma região deste, uma resposta pode, todavia, ser útil ao órgão jurisdicional de reenvio, na hipótese, nomeadamente, de o direito interno impor que um nacional italiano beneficie dos mesmos direitos que os que um nacional de outro Estado‑Membro diferente da República Italiana retiraria do direito da União na mesma situação (8).
29. A propósito, refira‑se que, nos processos prejudiciais cujo alcance é meramente interno, o Tribunal de Justiça recorreu a diversas orientações.
30. Existe uma primeira série de decisões nas quais o Tribunal de Justiça declarou, através de acórdão, que as disposições do Tratado invocadas não podem ser aplicadas às actividades em que todos os elementos pertinentes estejam confinados ao interior de um único Estado‑Membro (9), e a questão de saber se é esse o caso depende de uma constatação de facto que compete ao órgão jurisdicional nacional de estabelecer (10).
31. Numa segunda série de decisões, declara‑se, através de despacho, que o direito da União pertinente não se opõe à regulamentação nacional em questão (11).
32. Uma terceira orientação determina que a regulamentação nacional em questão não se enquadra no âmbito do direito da União e que o objecto do litígio não apresenta nenhum elemento de conexão com qualquer uma das situações previstas pelas disposições dos Tratados. Em tais casos, o Tribunal de Justiça decidiu através de despacho, declarando‑se manifestamente incompetente para responder à questão que lhe havia sido submetida (12).
33. Por último, numa quarta série de decisões, o Tribunal de Justiça procede a um exame do mérito das disposições de direito da União cuja interpretação é solicitada, na medida em que o direito nacional em causa no processo principal se aplicava numa situação transfronteiriça, embora todos os elementos do litígio principal estejam confinados ao interior de um único Estado‑Membro (13).
34. Tendo em conta estas orientações, constato que a escolha entre um acórdão e um despacho é feita pelo Tribunal de Justiça de acordo com as práticas enunciadas no primeiro parágrafo do artigo 92.° do Regulamento de Processo. No que respeita à questão de saber se se trata ou não de uma situação interna, a resposta a dar à esta pergunta não deve, de modo algum, afectar a competência do Tribunal de Justiça para decidir sobre os critérios de aplicabilidade das disposições do direito da União e, sendo caso disso, sobre a sua interpretação.
35. Entendo que, em caso de dúvida, o Tribunal de Justiça deve partir fundamentalmente da hipótese de que, em princípio, há que examinar as questões prejudiciais quanto ao mérito, em vez de as declarar inadmissíveis. Limitar‑se a indicar que a questão é inadmissível pode ser entendido pelos órgãos jurisdicionais nacionais como contrário ao princípio de boa cooperação com os referidos órgãos jurisdicionais, que é um princípio fundamental que preside a esta relação. Além disso, existe uma diferença importante entre a análise da inadmissibilidade no âmbito de um recurso directo ou de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral, por um lado, e de uma questão prejudicial, por outro. Num recurso directo, a análise da admissibilidade visa proteger especialmente os interesses da parte demandada. Num recurso de uma decisão do Tribunal Geral, a aplicação estrita dos critérios de admissibilidade é importante para que a distribuição das competências entre os diferentes graus jurisdicionais seja respeitada. Estes motivos não são observados do mesmo modo num pedido de decisão prejudicial.
36. No presente processo, constato que a exigência do carácter transfronteiriço não reveste a mesma importância relativamente às diferentes liberdades fundamentais (14). Daí resulta que a aplicabilidade das disposições do Tratado depende da sua interpretação. Dado que as mesmas questões também podem ser submetidas ao Tribunal de Justiça no quadro de uma acção por incumprimento, sem que a eventual inexistência de um elemento transfronteiriço tenha a menor repercussão na admissibilidade da acção, em meu entender, há que solucionar o problema colocado pelo carácter «meramente interno» de uma situação através de uma abordagem quanto ao mérito, no âmbito da interpretação das disposições em causa, em vez de o considerar uma questão de competência do Tribunal de Justiça analisada ao nível da admissibilidade das questões prejudiciais.
37. Por fim, os critérios que permitem apreciar a admissibilidade de um pedido prejudicial, por um lado, e os que se destinam a analisar, quanto ao mérito, a suficiência dos elementos factuais e regulamentares tal como foram apresentados pelo órgão jurisdicional de reenvio, por outro, não são necessariamente coincidentes entre si, como veremos mais adiante.
38. Por conseguinte, proponho que o Tribunal considere admissível o pedido de decisão prejudicial.
C – Observações preliminares sobre a legislação regional
39. Em Itália, a competência para fixar as normas que regulam os horários e os períodos de abertura e de encerramento das farmácias é uma competência de natureza regional. Na audiência, as partes alegaram que as soluções adoptadas variavam de região para região.
40. Em Itália, a aplicação às farmácias do princípio da livre concorrência mostra‑se controversa. Seja como for, a venda de medicamentos sem receita médica foi liberalizada em Itália. Embora as farmácias sejam operadores económicos, não deixam por isso de estar obrigadas a prestar serviços de interesse geral (15).
41. Contudo, há que sublinhar que este último aspecto resulta igualmente da Lei regional n.° 26/2002. Esta lei deve ser considerada um acto de poder público que estabelece claramente as missões específicas correspondentes a obrigações de serviço público, atribuídas a todas as farmácias visadas por esta lei. Os artigos 2.° a 8.° da Lei regional n.° 26/2002 definem de forma pormenorizada as obrigações de serviço público relativas às horas de abertura, aos serviços diurno e nocturno nos domingos e dias feriados, ou seja, o serviço obrigatório que as farmácias devem assegurar fora do horário normal de abertura em vigor nos dias úteis, os serviços voluntários, os dias de descanso semanal, bem como as férias anuais. As obrigações que visam garantir o fornecimento de medicamentos aos pacientes de forma contínua, alargada e regular restringem a liberdade comercial das farmácias através de uma medida que vai muito para além das condições de autorização comuns para o exercício de uma actividade num sector específico.
42. O legislador regional parece ter considerado que a continuidade e a eficácia do fornecimento de medicamentos obrigavam as farmácias a respeitar certas normas em matéria de horários de abertura e de fixação das férias anuais.
43. Além disso, a distribuição geográfica das farmácias, que dispõem de uma provisão equivalente de medicamentos e estão regularmente acessíveis durante os horários de abertura uniformemente fixados a nível regional, visa garantir a proximidade do abastecimento às zonas mais isoladas, um motivo imperioso de interesse geral reconhecido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (16). A regulamentação dos horários de abertura pode, contudo, apresentar inconvenientes de duplo sentido. Assim, uma farmácia bem localizada pode considerá‑la um obstáculo, caso pretenda alargar os períodos de abertura do seu estabelecimento cuja actividade é particularmente rentável, ao passo que uma farmácia com uma localização menos boa pode, pelo contrário, considerá‑la um constrangimento, caso pretenda encurtar os referidos períodos para limitar os custos ligados ao seu funcionamento.
44. É à luz dos elementos acima mencionados que devemos proceder à análise das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.
D – Quanto aos artigos 152.° CE e 153.° CE
45. Proponho‑me abordar, em primeiro lugar, os artigos 152.° CE (saúde pública) e 153.° CE (protecção dos consumidores), embora façam parte da segunda questão.
46. E. Sbarigia entende que estes artigos se opõem à aplicação de exigências respeitantes aos períodos de abertura diários, semanais e anuais das farmácias, como as previstas pela Lei regional n.° 26/2002. Por sua vez, a parte demandada no processo principal sustenta que as disposições em causa não se opõem à lei regional em questão.
47. Nas suas alegações escritas, a Comissão e os Governos, à excepção do Governo helénico, defendem, no essencial, que os artigos 152.° CE e 153.° CE são meras normas de competência que se dirigem especialmente ao legislador comunitário, pelo que deverão ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que impõe às farmácias restrições quanto aos seus horários e períodos de abertura. O Governo helénico considera, por seu lado, que a fixação de um horário de funcionamento das farmácias não é contrário ao preceituado nos artigos 152.° CE e 153.° CE.
48. Em primeiro lugar, confesso ter dificuldades em descortinar a pertinência da interpretação do artigo 153.° CE para a resolução do litígio submetido ao órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, este artigo, apenas referido na questão prejudicial, respeita à protecção dos consumidores e prevê, designadamente, o âmbito do contributo da União Europeia para a realização dos objectivos neste domínio. O órgão jurisdicional de reenvio não explica, de nenhum modo, em que medida estava em causa a protecção dos consumidores, pelo que considero que a questão se reporta unicamente ao artigo 152.° CE.
49. No que diz respeito ao artigo 152.° CE, partilho da interpretação proposta pela Comissão e pelos Estados‑Membros, à excepção da República helénica, segundo a qual o artigo 152.° CE contém essencialmente uma regra de competência que se dirige em especial ao legislador comunitário. O 152.°, n.° 1, CE dispõe que um elevado nível de protecção da saúde humana será assegurado na definição e execução de todas as políticas e acções da Comunidade Europeia. Ora, no caso em apreço, não se trata da execução das políticas e acções da Comunidade.
50. Além disso, o artigo 152.°, n.° 5, CE não está directamente em jogo. Quanto a este aspecto, o Tribunal de Justiça já declarou que o direito da União não põe em causa a competência dos Estados‑Membros para instituir os seus sistemas de segurança social e adoptar, em especial, as disposições destinadas a organizar os serviços de saúde, como é o caso das farmácias. No entanto, no exercício desta competência, os Estados‑Membros devem respeitar o direito da União, nomeadamente as disposições do Tratado relativas às liberdades de circulação, incluindo a liberdade de estabelecimento, o que será analisado mais adiante (17).
51. O artigo 152.° CE não se aplica, portanto, ao caso em apreço.
E – Quanto aos artigos 81.° CE a 86.° CE
52. E. Sbarigia sustenta que a legislação regional em questão não é compatível com os artigos 81.° CE a 86.° CE. Ao invés, a parte demandada no processo principal considera que as disposições regionais são conformes com o direito da União. Os Governos neerlandês e austríaco consideram que os referidos artigos não são aplicáveis, ao passo que o Governo helénico assinala que a referência aos artigos 81.° CE a 86.° CE é imprecisa, dado que o órgão jurisdicional não forneceu explicações sobre a pertinência destas diferentes disposições. A Comissão questiona‑se sobre a pertinência do conjunto das referidas disposições, propondo, todavia, que os artigos 10.° CE e 81.° CE sejam interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que prevê a participação consultiva das organizações sindicais provinciais mais representativas das farmácias públicas e privadas, bem como a ordem provincial dos farmacêuticos, no processo decisório relativo à fixação dos horários e dos períodos de abertura das farmácias.
53. À semelhança da Comissão, considero que esta parte da primeira questão prejudicial não é de modo algum relevante para a resolução do litígio no processo principal.
54. Desde logo, há que reconhecer que os artigos 83.° CE, 84.° CE e 85.° CE não revestem qualquer pertinência no âmbito do litígio submetido ao órgão jurisdicional de reenvio, já que se trata quer de disposições de carácter meramente processual (é o caso dos artigos 83.° CE e 85.° CE) quer de disposições transitórias (é o caso do artigo 84.° CE).
55. Seguidamente, há que apurar a aplicabilidade do artigo 81.° CE. Parece‑me que a questão do juiz de reenvio visa, na realidade, determinar se disposições como as da Lei regional n.° 26/2002 são compatíveis com o artigo 81.° CE, interpretado em conjugação com o artigo 10.° CE.
56. Com efeito, segundo jurisprudência assente, embora seja verdade que o artigo 81.° CE respeita unicamente ao comportamento das empresas, não visando medidas legislativas ou regulamentares emanadas dos Estados‑Membros, também é certo que, interpretado em conjugação com o artigo 10.° CE, que instaura um dever de cooperação, impõe aos Estados‑Membros que não tomem nem mantenham em vigor medidas, mesmo de natureza legislativa ou regulamentar, susceptíveis de eliminar o efeito útil das regras de concorrência aplicáveis às empresas(18).
57. Por conseguinte, o Tribunal considerou que existe violação dos artigos 10.° CE e 81.° CE quando um Estado‑Membro impõe ou favorece a celebração de acordos contrários ao artigo 81.° CE ou reforça os efeitos de tais acordos, ou ainda quando retira à regulamentação destes o seu carácter estatal, delegando a operadores privados a responsabilidade de tomar decisões de interesse económico (19).
58. No entanto, há que sublinhar que uma lei como a Lei regional n.° 26/2002, que prevê tanto as modalidades de fixação dos períodos de abertura das farmácias como as que permitem a sua derrogação, não se integra em nenhuma das hipóteses de aplicação conjugada dos artigos 10.° CE e 81.° CE.
59. Em meu entender, não existe nenhum elemento susceptível de provar que a Lei regional n.° 26/2002 favorece, reforça ou codifica um acordo ou uma decisão entre empresas. Ao invés, parece‑me que a consulta das associações de farmácias prevista nessa lei regional responde à necessidade de organizar os turnos entre as farmácias. Da decisão de reenvio também não resulta que a disposição legislativa em causa tenha sido privada do seu carácter estatal por o Estado‑Membro em causa ter delegado a operadores privados a responsabilidade de tomar decisões de interesse económico.
60. Por fim, da decisão de reenvio não resulta que estejam aqui em causa um qualquer acordo entre empresas, uma decisão de associação de empresas ou uma prática concertada susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados‑Membros e que tenham por objecto ou como efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no interior do mercado comum, na acepção do artigo 81.° CE.
61. Quanto ao primeiro parágrafo do artigo 82.° CE, a sua redacção é a seguinte:
«É incompatível com o mercado comum e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre Estados‑Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste.»
62. A referência ao artigo 82.° CE, que proíbe a exploração abusiva de uma posição dominante, mostra‑se assim desprovida de pertinência, dado que não resulta dos autos do processo que a farmácia de E. Sbarigia ou outro estabelecimento seu concorrente se encontra em tal situação.
63. Nos termos do artigo 86.° n.° 1, CE, «[n]o que respeita às empresas públicas e as empresas a que concedam direitos especiais ou exclusivos, os Estados‑Membros não tomarão nem manterão qualquer medida contrária ao disposto no presente Tratado, designadamente ao disposto nos artigos 12.° e 81.° a 89.°, inclusive». De acordo com jurisprudência do Tribunal de Justiça, um Estado‑Membro viola as proibições estabelecidas nestas duas disposições quando a empresa em causa seja levada, pelo simples exercício dos direitos especiais ou exclusivos que lhe foram atribuídos, a explorar a sua posição dominante de modo abusivo, ou quando esses direitos são susceptíveis de criar uma situação em que essa empresa seja levada a cometer esses abusos (20).
64. No entanto, a decisão de reenvio não contém qualquer indicação respeitante, nomeadamente, à definição de mercado pertinente, ao cálculo das quotas de mercado detidas pelas diferentes empresas que operam no mercado e ao pretenso abuso de posição dominante suposto. O pedido prejudicial não enuncia as normas nacionais, ou mesmo regionais, relativas ao estabelecimento das farmácias. Não fornece qualquer informação quanto à existência de uma ou várias farmácias numa localização específica, como a chamada zona «del Tridente» ou a estação Termini. Também não especifica se existem normas respeitantes às distâncias mínimas entre as farmácias.
65. Relativamente ao artigo 86.°, n.° 2, CE importa recordar, em primeiro lugar, que, segundo esta disposição, «[a]s empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral ou que tenham a natureza de monopólio fiscal ficam submetidas ao disposto no presente Tratado, designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada. O desenvolvimento das trocas não deve ser afectado de maneira que contrarie os interesses da Comunidade».
66. O artigo 86.° n.° 2, CE submete às regras do Tratado as empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral ou que tenham a natureza de monopólio fiscal (21), permitindo, porém, algumas derrogações em benefício destas empresas (22). Ora, dado que não foi demonstrada a existência de qualquer incompatibilidade com o Tratado, as disposições do artigo 86.°, n.° 2, CE não são aplicáveis. A mesma conclusão pode ser retirada quanto à aplicabilidade do artigo 86.°, n.° 1, CE.
67. Com base nas informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece‑me possível concluir que se trata aqui sobretudo de uma inaplicabilidade das disposições referidas quanto ao mérito em vez de uma inadmissibilidade parcial da primeira questão prejudicial. Tal como expliquei mais acima, em tais situações, o Tribunal de Justiça não deve declarar a inadmissibilidade de uma questão prejudicial, mas sim conhecer do respectivo mérito para determinar se as disposições em causa são ou não aplicáveis (23).
68. Por conseguinte, proponho que o Tribunal responda que os artigos 10.° CE e 81.° CE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação regional que prevê a participação consultiva das organizações sindicais provinciais mais representativas das farmácias públicas e privadas, bem como da ordem provincial dos farmacêuticos, no processo decisório relativo à fixação dos horários e dos períodos de abertura das farmácias. As outras disposições referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio não são aplicáveis.
F – Quanto à livre prestação de serviços (artigo 49.° CE)
69. No que respeita às liberdades fundamentais, o órgão jurisdicional de reenvio solicitou apenas a interpretação do artigo 49.° CE.
70. O artigo 49.° CE proíbe as restrições à livre prestação de serviços no interior da Comunidade em relação aos nacionais dos Estados‑Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.
71. E. Sbarigia considera que a Lei regional n.° 26/2002 e a sua aplicação não são compatíveis com o artigo 49.° CE. Em contrapartida, os Governos helénico e austríaco sustentam que este artigo não é aplicável na inexistência de qualquer elemento transfronteiriço.
72. A Comissão, por seu turno, considera que a referência ao artigo 49.° CE é manifestamente errónea. Evoca jurisprudência assente segundo a qual um cidadão de um Estado‑Membro que, de modo estável e continuado, exerça uma actividade profissional num outro Estado‑Membro está abrangido pelas disposições do capítulo do Tratado relativo ao direito de estabelecimento e não pelas disposições do capítulo relativo aos serviços (24). Assim, este último capítulo – contrariamente ao primeiro – refere‑se, não à situação do nacional de um Estado‑Membro que participa de modo estável na vida económica de outro Estado‑Membro, mas apenas à do prestador que exerce ta sua actividade no território de outro Estado‑Membro a título temporário.
73. Partilho da análise da Comissão. Com efeito, resulta da decisão de reenvio que E. Sbarigia é proprietária de uma farmácia situada em Roma, onde exerce a actividade de venda de produtos farmacêuticos e parafarmacêuticos, de modo estável e continuado.
74. Importa também analisar a situação dos destinatários dos serviços em questão. A legislação em apreço restringe a possibilidade de os turistas utilizarem os serviços da farmácia de E. Sbarigia durante os períodos de encerramento obrigatório. Esta restrição não é, contudo, constitutiva de uma discriminação em razão da nacionalidade e qualquer pessoa pode utilizar as outras farmácias abertas ou de serviço (25).
75. Proponho, portanto, que o Tribunal de Justiça se digne responder que o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação regional que restringe as modalidades de abertura diária, semanal e anual das farmácias, numa situação como a que está em apreço no processo principal.
G – Quanto à eventual alteração de um fundamento jurídico das questões prejudiciais
76. Após ter analisado o conjunto das questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, entendo que o Tribunal de Justiça não deve prosseguir a sua análise.
77. É verdade que algumas das partes que apresentaram alegações escritas ao Tribunal de Justiça também mencionaram dois outros artigos, a saber, o artigo 43.° CE, relativo à liberdade de estabelecimento, e o artigo 28.° CE, em matéria de livre circulação de mercadorias, e que a aplicabilidade desses artigos foi evocada na audiência.
78. No entanto, entendo que o Tribunal não se deve pronunciar sobre estas duas disposições, a respeito das quais o órgão jurisdicional de reenvio não o questionou, e isto por duas ordens de razões.
79. Em primeiro lugar, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio identificar as disposições do direito da União cuja interpretação se lhe afigura necessária para resolver o litígio no processo principal. Na sua decisão de reenvio, fê‑lo de uma forma que me parece exaustiva, visando expressamente os princípios específicos subjacentes a um número significativo de disposições do direito da União. Num caso como o ora em apreço, não compete ao Tribunal de Justiça procurar todas as outras disposições do direito da União cuja interpretação pudesse ser útil ao órgão jurisdicional de reenvio. O poder que assiste ao Tribunal de Justiça de reformular as questões prejudiciais destina‑se, em meu entender, a permitir‑lhe auxiliar o órgão jurisdicional de reenvio a encontrar a expressão exacta de um problema de interpretação do direito da União que seja pertinente para o litígio. Segundo esta perspectiva, compete ao Tribunal especificar, e não ampliar, a problemática suscitada pelo reenvio prejudicial (26).
80. Em segundo lugar, esta leitura limitativa também é sustentada pelo Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Com efeito, a decisão de reenvio, tal como foi formulada pelo juiz a quo, é notificada, nos termos do Estatuto do Tribunal de Justiça, especialmente aos Estados‑Membros e às instituições da União. É com base nesse diploma que estes últimos avaliam a conveniência de apresentar ou não apresentar alegações escritas e de participar na tramitação processual no Tribunal de Justiça (27). Para este, trata‑se igualmente do documento de referência. Como é evidente, uma reformulação exige que o Tribunal disponha de todos os elementos necessários e pertinentes, incluindo os relativos à matéria de facto e ao quadro jurídico nacional.
81. A título exaustivo, quero lembrar que, em todo o caso, resulta de jurisprudência assente que o artigo 28.° CE não se aplica a uma regulamentação nacional sobre o encerramento de estabelecimentos que é oponível a todos os operadores económicos que exercem as suas actividades em território nacional e que afecta do mesmo modo, de facto e de direito, a comercialização dos produtos nacionais e dos produtos provenientes de outros Estados‑Membros (28).
82. No que diz respeito ao artigo 43.° CE, o Tribunal de Justiça declarou recentemente a compatibilidade com o Tratado de disposições italianas bastante restritivas sobre as farmácias, que tinham uma relação muito mais directa com a liberdade de estabelecimento do que as que estão em causa no processo principal (29).
83. Além disso, não considero que uma legislação regional como a Lei regional n.° 26/2002, indistintamente aplicável a todas as farmácias situadas na região em causa, deva ser incluída no número de medidas que proíbem, perturbam ou tornam menos atractivo o exercício da liberdade de estabelecimento pelas empresas dos outros Estados‑Membros. Não se trata, portanto, de uma restrição à liberdade de estabelecimento que corresponda à definição dada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (30).
84. Em meu entender, uma conclusão contrária só seria possível se a legislação sobre os horários de abertura e as férias anuais fosse desprovida de qualquer transparência, ou se a sua aplicação dependesse de forma determinante do poder discricionário da administração.
85. E. Sbarigia bem como o Governo neerlandês e a Comissão suscitaram a questão de saber se as modalidades de tomada de decisão relativamente às derrogações previstas no artigo 10.°, n.° 2, da Lei regional n.° 26/2002 são compatíveis com os artigos 28.° CE e/ou 43.° CE, tendo em conta, nomeadamente, as consultas previstas e o vasto poder discricionário reconhecido à administração.
86. O poder discricionário reconhecido à administração pela Lei regional n.° 26/2002 existe, nomeadamente, no que respeita à aplicação das derrogações e das isenções referidas nos artigos 2.°, n.° 2, 6.°, 7.°, n.° 3, 8.°, n.° 1, alíneas d) e e), e 10.°, n.° 2, dessa mesma lei.
87. Como é evidente, os casos em que a administração se deve pronunciar sobre uma derrogação ou uma dispensa variam. Antes de mais, é possível que exista uma proibição ou uma condição de aplicação geral relativamente à qual a administração possa conceder derrogações ou dispensas, desde que estejam preenchidas as condições previstas pela lei. Neste caso, a concessão da derrogação ou da dispensa é quase automática, independentemente do poder discricionário da administração. Uma segunda hipótese é aquela em que, embora preenchidas as condições exigidas para se poder beneficiar de uma derrogação, a sua concessão é, no entanto, deixada à discricionariedade da administração competente. Não se trata de uma situação excepcional. O exercício de um poder discricionário de apreciação pode mostrar‑se necessário, por exemplo, por não ser possível satisfazer todos os pedidos de derrogação. Uma terceira hipótese é aquela em que a legislação não especifica as condições de concessão da derrogação. Neste último caso, o poder discricionário da administração pode estar sujeito a uma fiscalização de conformidade jurisdicional por referência aos princípios gerais do direito administrativo, como os da igualdade de tratamento, da imparcialidade, da proporcionalidade e da proibição de qualquer desvio de poder.
88. A possibilidade de derrogação prevista no artigo 10.°, n.° 2, da Lei regional n.° 26/2002 parece situar‑se a meio caminho entre as duas últimas hipóteses. Está sujeita a certas condições geográficas e processuais. Com efeito, como já pude constatar, os autos do processo não contêm informações precisas relativamente às eventuais normas sobre a localização geográfica dos estabelecimentos farmacêuticos na região do Lácio. A mesma observação impõe‑se quanto à questão de saber como o conceito de «zona específica da comuna» foi interpretada, quer pela prática administrativa regional quer pela jurisprudência nacional. Seja como for, em minha opinião, esta disposição não deve ser analisada isoladamente, mas à luz do conjunto das disposições da Lei regional n.° 26/2002. Segundo esta perspectiva, trata‑se de uma disposição que prevê modalidades especiais, num caso concreto, entre outros, que implicam, nomeadamente, a possibilidade de adaptar os horários de abertura em função das circunstâncias.
89. Considerado isoladamente, é certo que o artigo 10.°, n.° 2, da Lei regional n.° 26/2002 pode ser criticado devido à sua falta de clareza e de rigor, mas, considerado à luz do conjunto das disposições da lei regional em causa, a disposição é razoável e compreensível. Seja como for, abstenho‑me de fazer minha a crítica enunciada relativamente ao único exemplo de aplicação desta disposição mencionado no processo, ou seja, a isenção atribuída a uma farmácia próxima da estação Termini, que analisa esta decisão como o indício de um tratamento discricionário, não objectivo ou discriminatório. Os motivos para atribuir um estatuto específico a uma farmácia situada num local de junção do tráfego ferroviário local, nacional e internacional de uma metrópole europeia não são necessariamente transponíveis para uma zona turística como aquela que está em causa no processo principal (31).
90. É forçoso compreender o regulamento dos horários de abertura e de encerramento no seu conjunto. Na audiência, o representante da Assiprofar deu um exemplo esclarecedor relativamente ao serviço voluntário de serviço nocturno com início por volta das 20 horas. Ora, o período entre as 20 e as 22 horas corresponde ao pico da actividade das farmácias que estão abertas durante a noite, pois, nesta região, é quando grande parte da população activa regressa a casa e as outras farmácias já estão fechadas. Um eventual alargamento do horário diurno prejudicaria o período de abertura mais rentável das farmácias abertas durante a noite, o que poderia levar ao desencorajamento dos candidatos ao serviço voluntário nocturno, na medida em que as exigências que lhe estão associadas deixariam de ser compensadas pelo benefício para eles resultante da prerrogativa de abrir durante a referida faixa horária. Em virtude do recuo da iniciativa privada, seria necessário retroceder a um sistema de serviço obrigatório.
91. Por último, tratando‑se do procedimento previsto pela Lei regional n.° 26/2002, nomeadamente de consultas obrigatórias, é óbvio que estas se enquadram no âmbito do exercício do poder discricionário da administração. A participação das outras partes não torna o procedimento, em si mesmo, incompatível com o direito da União. Importa, contudo, que a decisão seja objecto de uma fiscalização jurisdicional, o que parece acontecer no caso em apreço.
92. Do ponto de vista do reenvio prejudicial, proponho, por conseguinte, que o Tribunal de Justiça se digne responder às perguntas que lhe foram colocadas, desde que pertinentes, e, seja como for, que as não amplie para além do reenvio prejudicial que lhe foi submetido.
VI – Conclusão
93. Face às considerações que precedem, considero que importa responder às questões submetidas pelo Tribunale amministrativo regionale per il Lazio do seguinte modo:
«1) O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação regional que restringe as modalidades de abertura diária, semanal e anual das farmácias, numa situação como a que está em apreço no processo principal.
2) Os artigos 10.° CE e 81.° CE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação regional que prevê a participação consultiva das organizações sindicais provinciais mais representativas das farmácias públicas e privadas, bem como da ordem provincial dos farmacêuticos, no processo decisório relativo à fixação dos horários e dos períodos de abertura das farmácias.
3) As outras disposições referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio não são aplicáveis a uma situação como a que está em causa no processo principal.»
1 – Língua original: francês.
2 – Dado que o pedido de decisão prejudicial data de 21 de Maio de 2008, far‑se‑á referência às disposições do Tratado CE de acordo com a numeração aplicável antes da entrada em vigor do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia.
3 – GURI n.° 24, série especial n.° 3, de 14 de Junho de 2003, e Boll. Uff. Lazio n.° 23, Supplemento ordinario n.° 5, de 20 de Agosto de 2002.
4 – A questão refere‑se certamente ao Tratado CE, embora a segunda questão mencione o Tratado UE. Trata‑se, manifestamente, de um erro de escrita.
5 – V. Nota informativa relativa à apresentação de pedidos de decisão prejudicial pelos órgãos jurisdicionais nacionais (JO C 143 de 11 de Junho de 2005, p. 1), na sua versão mais recente (JO C 297 de 5 de Dezembro de 2009, p. 1).
6 – Ver, nomeadamente, despacho de 7 de Abril de 1995, Grau Gomis e o. (C‑167/94, Colect., p. I‑1023, n.° 9); acórdãos de 6 de Dezembro de 2005, ABNA e o. (C‑453/03, C‑11/04, C‑12/04 e C‑194/04, Colect., p. I‑10423, n.° 46); de 31 de Janeiro de 2008, Centro Europa 7 (C‑380/05, Colect., p. I‑349, n.° 54); bem como de 22 de Outubro de 2009, Meerts (C‑116/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 27).
7 – V. acórdão de 19 de Novembro de 2009, Filipiak (C‑314/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 42 e jurisprudência citada).
8 – V., nomeadamente, acórdãos de 5 de Dezembro de 2000, Guimont (C‑448/98, Colect., p. I‑10663, n.° 23); de 30 de Março de 2006, Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti (C‑451/03, Colect., p. I‑2941, n.° 29); bem como de 5 de Dezembro de 2006, Cipolla e o. (C‑94/04 e C‑202/04, Colect., p. I‑11421, n.° 30).
9 – V., neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 19 de Março de 1992, Batista Morais (C‑60/91, Colect., p. I‑2085, n.° 8), bem como de 16 de Fevereiro de 1995, Aubertin e o. (C‑29/94 à C‑35/94, Colect., p. I‑301, n.° 9).
10 – V., nomeadamente, acórdãos de 23 de Abril de 1991, Höfner e Elser (C‑41/90, Colect., p. I‑1979, n.° 37), e de 28 de Janeiro de 1992, Steen (C‑332/90, Colect., p. I‑341, n.° 9).
11 – V., nomeadamente, despachos de 5 de Abril de 2004, Mosconi (C‑3/02, não publicado na Colectânea, parte decisória) e de 19 de Junho de 2008, Kurt (C‑104/08, Colect., p. I‑97, n.° 24 e parte decisória).
12 – V. despacho de 6 de Outubro de 2005, Vajnai (C‑328/04, Colect., p. I‑8577, n.° 13); de 25 de Janeiro de 2007, Koval’ský (C‑302/06, Colect., p. I‑11, n.os 20 e 22); bem como de 16 de Janeiro de 2008, Polier (C‑361/07, Colect., p. I‑6, n.os 11 e segs.).
13 – V., nomeadamente, acórdão de 11 de Setembro de 2003, Anomar e o. (C‑6/01, Colect., p. I‑8621, n.° 40 e segs.).
14 – Por exemplo, no caso da livre circulação de mercadorias, o elemento transfronteiriço também só deve ser constatado no caso da livre prestação de serviços.
15 – V. também acórdão de 19 de Maio de 2009, Comissão/Itália (C‑531/06, ainda não publicado na Colectânea, n.°76).
16 – V. acórdão de 13 de Janeiro de 2000, TK‑Heimdienst (C‑254/98, Colect., p. I‑151, n.° 34).
17 – V., neste sentido, acórdãos de 16 de Maio de 2006, Watts (C‑372/04, Colect., p. I‑4325, n.os 92 e 146); de 10 de Março de 2009, Hartlauer (C‑169/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 2); bem como de 19 de Maio de 2009, Comissão/Itália, já referido, n.° 35.
18 – V., neste sentido, acórdãos Cipolla e o., já referido, n.° 47, bem como de 13 de Março de 2008, Doulamis (C‑446/05, Colect., p. I‑1377, n.° 19).
19 – Acórdão Cipolla e o., já referido, n.° 47.
20 – V., por exemplo, acórdãos de 12 de Setembro de 2000, Pavlov e o. (C‑180/98 a C‑184/98, Colect., p. I‑6451, n.° 127); de 25 de Outubro de 2001, Ambulanz Glöckner (C‑475/99, Colect., p. I‑8089, n.° 39)bem como acórdão Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, já referido, n.° 23.
21 – Como exemplos de serviços considerados de interesse económico geral, v. conclusões do advogado‑geral Ruiz‑Jarabo Colomer apresentadas, em 20 de Outubro de 2009, no processo Federutility e o. (C‑265/08, ainda pendente no Tribunal, n.° 53).
22 – V., nomeadamente, conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Hanner (acórdão de 31 de Maio de 2005, C‑438/02, Colect., p. I‑4551, n.os 135 e segs.).
23 – É possível que a minha abordagem quanto ao conhecimento do mérito do reenvio prejudicial, numa situação como esta, seja bastante divergente das soluções adoptadas pelo Tribunal de Justiça (v., a este respeito, nomeadamente, acórdão Centro Europa 7, já referido, n.° 63).
24 – V., nomeadamente, acórdãos de 21 de Junho de 1974, Reyners (C‑2/74, Colect., p. 325, n.° 21), e de 30 de Novembro de 1995, Gebhard (C‑55/94, Colect., p. I‑4165, n.° 28).
25 – Esta restrição é, portanto, indistintamente aplicável aos destinatários nacionais como aos de outros Estados‑Membros, mas conforme com o direito da União, na medida em que não visa proibir, perturbar ou tornar menos atractivas as actividades de um prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde presta legalmente serviços da mesma natureza. V., neste sentido, acórdãos de 31 de Janeiro de 1984, Luisi e Carbono (286/82 e 26/83, Recueil, p. 377, n.° 16); de 25 de Julho de 1991, Säger (C‑76/90, Colect., p. I‑4221, n.° 12); bem como de 3 de Outubro de 2000, Corsten (C‑58/98, Colect., p. I‑7919, n.° 33).
26 – V., neste sentido, acórdão Doulamis, já referido.
27 – V., neste sentido, acórdão de 17 de Julho de 2008, Raccanelli (C‑94/07, Colect., p. I‑5939, n.os 24 e 25).
28 – V. acórdão de 20 de Junho de 1996, Semeraro Casa Uno e o. (C‑418/93 a C‑421/93, C‑460/93 a C‑462/93, C‑464/93, C‑9/94 a C‑11/94, C‑14/94, C‑15/94, C‑23/94, C‑24/94 e C‑332/94, Colect., p. I‑2975, n.° 28), assim como acórdão de 10 de Fevereiro de 2009, Comissão/Itália (C‑110/05, ainda não publicado na Colectânea, n.° 36).
29 – V. acórdão de 19 de Maio de 2009, Comissão/Itália, já referido.
30 – V., nomeadamente, acórdão de 5 de Outubro de 2004, CaixaBank France (C‑442/02, Colect., p. I‑18961, n.° 11 e jurisprudência citada).
31 – O turismo é especificamente mencionado na Lei regional n.° 26/2002, no artigo 6.°, n.° 2, que diz respeito ao serviço voluntário diurno.