CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

E. SHARPSTON

apresentadas em 8 de Julho de 2010 1(1)

Processo C‑303/08

Metin Bozkurt

contra

Land Baden‑Württemberg

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesverwaltungsgericht (Alemanha)]

«Acordo de Associação CEE‑Turquia – Artigo 7.°, primeiro parágrafo, da Decisão n.° 1/80 – Direito de residência adquirido pelo cônjuge de uma trabalhadora turca – Perda do direito em consequência do divórcio – Perda do direito em consequência da violação dos deveres associados à relação conjugal que deu origem ao direito de residência»





1.        O presente pedido de decisão prejudicial tem, mais uma vez, por objecto a Decisão n.° 1/80 do Conselho de Associação CEE‑Turquia (a seguir «Decisão n.° 1/80) (2). O órgão jurisdicional nacional pretende obter esclarecimentos sobre a situação de um nacional turco que adquiriu o direito de residência num Estado‑Membro na qualidade de cônjuge de uma trabalhadora turca. O casamento foi posteriormente dissolvido e o marido foi condenado por violação e agressão da sua ex‑mulher. Este nacional turco pode continuar a invocar direitos ao abrigo do artigo 7.° da Decisão n.° 1/80, não obstante a dissolução do casamento que, inicialmente, lhe conferiu o direito de residir no Estado‑Membro de acolhimento? Em caso afirmativo, o facto de ter violado os seus deveres conjugais ao violar e agredir a sua mulher implica a perda dos direitos que tenha adquirido ao abrigo do artigo 7.°?

 Quadro jurídico

 Acordo de Associação CEE‑Turquia

2.        O Acordo de Associação CEE‑Turquia (3) (a seguir «Acordo de Associação») foi celebrado em 1963.

3.        O artigo 59.° do protocolo adicional ao Acordo de Associação (4) tem a seguinte redacção:

«Nos domínios abrangidos pelo presente protocolo, a Turquia não pode beneficiar de um tratamento mais favorável do que aquele que os Estados‑Membros aplicam entre si por força do Tratado que institui a Comunidade.»

4.        O capítulo II da Decisão n.° 1/80 intitula‑se «Disposições sociais». A secção 1 desse capítulo intitula‑se «Questões relativas ao emprego e à livre circulação de trabalhadores» e abrange os artigos 6.° a 16.° da decisão.

5.        O artigo 6.°, n.os 1 e 2, da Decisão n.° 1/80 dispõe:

«1) Sem prejuízo do disposto no artigo 7.° relativamente ao livre acesso ao emprego dos membros da sua família, o trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro:

–        tem direito, nesse Estado‑Membro, após um ano de emprego regular, à renovação da sua autorização de trabalho para a mesma entidade patronal, se dispuser de um emprego;

–        tem direito, nesse Estado‑Membro, após três anos de emprego regular e sem prejuízo da prioridade a conceder aos trabalhadores dos Estados‑Membros da Comunidade, a responder, dentro da mesma profissão, a outra oferta de emprego de uma entidade patronal de sua escolha, feita em condições normais e registada nos serviços de emprego desse Estado‑Membro;

–        beneficia, nesse Estado‑Membro, após quatro anos de emprego regular, do livre acesso a qualquer actividade assalariada da sua escolha.

2) As férias anuais e as faltas por maternidade, acidente de trabalho ou doença de curta duração são equiparadas aos períodos de emprego regular. Os períodos de desemprego involuntário, devidamente comprovados pelas autoridades competentes, e as faltas por doença de longa duração, ainda que não sejam equiparados a períodos de emprego regular, não prejudicam os direitos adquiridos em virtude do período de emprego anterior.»

6.        O artigo 7.° da Decisão n.° 1/80 prevê:

«Os membros da família de um trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro que tenham sido autorizados a reunir‑se‑lhe:

–        têm o direito de responder – sem prejuízo da prioridade a conceder aos trabalhadores dos Estados‑Membros da Comunidade ‑ a qualquer oferta de emprego, desde que residam regularmente nesse Estado‑Membro há pelo menos três anos;

–        beneficiam, nesse Estado‑Membro, do livre acesso a qualquer actividade assalariada da sua escolha, desde que aí residam regularmente há pelo menos cinco anos.

Os filhos dos trabalhadores turcos que tenham obtido uma formação profissional no país de acolhimento poderão, independentemente da duração da sua residência nesse Estado‑Membro, desde que um dos pais tenha legalmente trabalho no Estado‑Membro interessado pelo menos três anos, responder a qualquer oferta de emprego nesse Estado.»

7.        O artigo 14.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80 prevê:

«As disposições da presente secção são aplicáveis sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública.»

 O processo principal e as questões prejudiciais

8.        M. Bozkurt, o demandante no processo principal, é um nacional turco, nascido em 1959.

9.        Entrou na Alemanha em 1992 e apresentou um pedido de asilo. Em Setembro de 1993, casou com uma trabalhadora turca integrada no mercado regular de trabalho daquele Estado‑Membro. Depois do casamento, retirou o seu pedido de asilo e, em Outubro de 1993, obteve uma autorização de residência temporária, que se converteu em permanente em Outubro de 1998. Naquela altura, satisfazia as condições estabelecidas no artigo 7.°, primeiro parágrafo, da Decisão n.° 1/80.

10.      Desde Junho de 2000, vive separado da sua mulher, da qual se divorciou em Novembro de 2003.

11.      Durante a sua residência na Alemanha, M. Bozkurt teve vários empregos. O órgão jurisdicional nacional afirma, contudo, que não lhe é possível fornecer indicações concretas sobre esta matéria, dado que M. Bozkurt se recusa a prestar estas informações, não obstante ter sido solicitado para o fazer. Está provado que esteve de baixa por doença durante 18 meses a partir do início de 2000. Desde então, está desempregado e recebe prestações do Estado.

12.      M. Bozkurt foi várias vezes condenado por crimes. Em Maio de 1996, foi condenado a quatro meses de prisão por ofensas corporais graves. Em Novembro de 2000, foi condenado a oito meses de prisão por ofensas corporais, tentativa de ofensas corporais graves e crime de dano. Em Maio de 2004, foi condenado por violação da sua ex‑mulher, em concurso com ofensas corporais voluntárias. A violação terá ocorrido em 2002, quando ainda se encontravam casados, embora separados. Em sede de recurso, a pena foi fixada em dois anos. A pena foi suspensa e M. Bozkurt foi libertado do estabelecimento prisional onde estava em prisão preventiva em Janeiro de 2005.

13.      Por decisão de 26 de Julho de 2005, o Land Baden‑Württemberg, demandado no processo principal, ordenou a sua expulsão da Alemanha. M. Bozkurt recorreu desta decisão para o Vewaltungsgericht (Tribunal Administrativo) e a decisão foi anulada por sentença proferida em 5 de Julho de 2006. Por sua vez, o Land Baden‑Württemberg recorreu desta sentença para o Verwaltungsgerichtshof (Tribunal Administrativo Superior). Por sentença de 14 de Março de 2007, foi negado provimento ao recurso. O Verwaltungsgerichtshof considerou, no essencial, que, uma vez que M. Bozkurt podia invocar um direito de residência ao abrigo do artigo 7.° da Decisão n.° 1/80, a decisão de expulsão teria de cumprir os procedimentos aplicáveis a cidadãos da União Europeia (5)Uma vez que estes procedimentos não tinham sido cumpridos, a decisão era ilegal. Além disso, o facto de M. Bozkurt ter estado desempregado desde 2000, de ser possível que nunca mais voltasse a trabalhar por motivo de doença e de ter passado cerca de nove meses na prisão não implica a perda dos seus direitos ao abrigo do artigo 7.° Pelo contrário, a jurisprudência do Tribunal de Justiça deveria ser interpretada no sentido de que o seu direito de residência não seria afectado pelo facto de já não se encontrarem reunidas as condições da sua aquisição. Consequentemente, M. Bozkurt continuava a poder invocar direitos ao abrigo do referido artigo.

14.      O Land Baden‑Württemberg interpôs recurso desta decisão para o Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal). Neste recurso, foram suscitadas questões sobre o reconhecimento dos direitos emergentes, entre outros, do artigo 7.° da Decisão n.° 1/80 a uma pessoa como M. Bozkurt.

15.      Tendo entendido que a decisão do litígio que lhe tinha sido submetido exigia uma interpretação daquela disposição, o Bundesverwaltungsgericht decidiu suspender a instância e solicitar ao Tribunal de Justiça para se pronunciar, a título prejudicial, sobre as seguintes questões:

«1.      O direito ao emprego e à residência adquirido pelo cônjuge, ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, da [Decisão n.° 1/80], como membro da família de um trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro, mantém‑se mesmo depois do divórcio?

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

2.      A invocação do direito de residência decorrente do direito da ex‑mulher, ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, da [Decisão n.° 1/80], constitui um abuso de direito quando o nacional turco, depois de adquirir esse direito, a violou e agrediu e este comportamento foi punido com uma pena de prisão de dois anos?»

16.      Apresentaram observações escritas M. Bozkurt, os Governos dinamarquês, alemão e italiano, o Land Baden‑Württemberg e a Comissão Europeia. Não foi requerida nem teve lugar qualquer audiência.

 Apreciação

 Observações preliminares

17.      Embora as questões prejudiciais tenham por objecto o artigo 7.° da Decisão n.° 1/80, o órgão jurisdicional nacional refere‑se, na decisão de reenvio, à possibilidade de M. Bozkurt ter adquirido direitos, na qualidade de trabalhador turco, ao abrigo do artigo 6.° dessa decisão. Contudo, refere seguidamente que tal possibilidade deve ser excluída, dado que M. Bozkurt não forneceu indicações concretas ou documentos sobre o seu emprego na Alemanha, não obstante o Land Baden‑Württemberg lhe ter solicitado que o fizesse. Sem a cooperação de M. Bozkurt, é impossível determinar se adquiriu direitos ao abrigo daquele artigo ou se os terá perdido por ter estado desempregado durante vários anos.

18.      Nas suas observações, a Comissão manifesta algumas dúvidas quanto ao entendimento do órgão jurisdicional nacional, salientando que o artigo 6.°, n.° 2, da Decisão n.° 1/80 estabelece expressamente que, embora os períodos de desemprego involuntário e as faltas por doença de longa duração não sejam equiparados a períodos de emprego regular, não prejudicam os direitos adquiridos em virtude do período de emprego anterior. Na opinião da Comissão, o órgão jurisdicional nacional deve tentar novamente obter estas informações. Se M. Bozkurt tivesse adquirido direitos ao abrigo do artigo 6.°, seria desnecessário analisar a sua situação ao abrigo do artigo 7.°

19.      Como observa a própria Comissão, é jurisprudência assente que, no quadro de um processo nos termos do artigo 234.° CE (actualmente, artigo 267.° TFUE), baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos da causa é da competência do órgão jurisdicional nacional (6). Da mesma forma, é da exclusiva competência do órgão jurisdicional nacional a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça (7).

20.      Não obstante, talvez seja útil declarar – a fim de ajudar o órgão jurisdicional nacional na decisão sobre o litígio que lhe foi submetido – que concordo com as observações da Comissão sobre o teor e o efeito do artigo 6.° da Decisão n.° 1/80. O facto de M. Bozkurt estar desempregado há vários anos não implica, por si só, a perda dos seus direitos ao abrigo daquele artigo (8). A aplicação concreta do mesmo no processo principal é, evidentemente, da competência exclusiva do órgão jurisdicional nacional.

 Questão 1

21.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional nacional pretende essencialmente saber se uma pessoa que deixou de ser um «membro da família» de um trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho do Estado‑Membro de acolhimento continua a poder invocar direitos ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, da Decisão n.° 1/80 (a seguir «artigo 7.°»).

22.      Por outras palavras, um Estado‑Membro tem competência para condicionar esses direitos à manutenção do estatuto de «membro da família»? Caso se considere que, uma vez adquiridos, os direitos em causa têm natureza autónoma, o Estado‑Membro em causa não poderá ordenar a expulsão de uma pessoa na situação de M. Bozkurt.

23.      Os Governos dinamarquês e alemão e o Land Baden‑Württemberg alegam que a perda do estatuto de membro da família implica a perda daqueles direitos. M. Bozkurt e a Comissão alegam exactamente o contrário, ou seja, que os direitos, uma vez adquiridos, têm natureza autónoma. O Governo italiano entende, com algumas reservas, que o divórcio de M. Bozkurt não deveria afectar os seus direitos ao abrigo do artigo 7.°

24.      A fim de responder a esta questão, é necessário, em primeiro lugar, considerar em que medida os artigos 6.° e 7.° da Decisão n.° 1/80 desempenham uma função social ao atribuírem direitos aos trabalhadores turcos e aos membros da sua família nos Estados‑Membros. Seguidamente, importa tomar em consideração o processo através do qual os objectivos subjacentes àquelas disposições são concretizados na prática e, por acréscimo, o grau de discricionariedade desses Estados‑Membros na imposição de condições sobre a residência daqueles que pretendem beneficiar da sua aplicação. Não faltam decisões do Tribunal de Justiça nesta matéria e, na apreciação destas questões, recorrerei sistematicamente à sua vasta jurisprudência.

 O artigo 7.° como instrumento social

25.      O artigo 7.° está integrado na secção 1 (intitulada «Questões relativas ao emprego e à livre circulação de trabalhadores») do capítulo II (intitulado «Disposições sociais») da Decisão n.° 1/80.

26.      É inquestionável que o artigo 7.° deve ter efeito directo nos Estados‑Membros, de modo que os nacionais turcos que preencham as condições nele estabelecidas podem invocar directamente os direitos que o mesmo lhes confere (9).

27.      Em virtude do artigo 6.° da Decisão n.° 1/80, que consta da mesma secção, os trabalhadores turcos integrados no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro beneficiam de determinados direitos de acesso ao mercado de trabalho desse Estado‑Membro. Após quatro anos de emprego regular nos termos daquele artigo, beneficiam de livre acesso a qualquer actividade assalariada da sua escolha dentro do Estado‑Membro de acolhimento (10).

28.      Nos termos do artigo 7.°, primeiro parágrafo, os membros da família desses trabalhadores que tenham sido autorizados a reunir‑se‑lhe beneficiam de acesso limitado ao mercado de trabalho do Estado‑Membro de acolhimento, desde que aí residam regularmente há pelo menos três anos. Depois de residirem regularmente nesse Estado há cinco anos, beneficiam do livre acesso a qualquer actividade assalariada da sua escolha. Com estas disposições, dá‑se início a um processo gradual de integração, tanto para o trabalhador como para os membros da sua família.

29.      Para beneficiar dos direitos previstos no artigo 7.°, a pessoa em causa deverá, em primeiro lugar, ser membro da família de um trabalhador turco já integrado no mercado regular de trabalho do Estado‑Membro de acolhimento e, em segundo lugar, ter sido autorizada pelas autoridades competentes desse Estado a juntar‑se aí ao referido trabalhador (11).

30.      O processo de integração previsto no artigo 7.° decorre em duas fases. A primeira tem a duração de três anos. Durante este período, a menos que o Estado‑Membro de acolhimento decida estabelecer, em termos gerais, condições mais favoráveis para os membros da família, o interessado não tem direito a exercer uma actividade assalariada nesse Estado. A segunda fase tem a duração de dois anos. O membro da família pode exercer uma actividade assalariada, mas esse direito está sujeito à «prioridade a conceder aos trabalhadores dos Estados‑Membros da Comunidade». Uma vez decorrido esse período de cinco anos, o membro da família pode exercer qualquer actividade assalariada da sua escolha.

31.      O direito de procurar e/ou exercer uma actividade assalariada implica necessariamente um direito concomitante de residência no Estado‑Membro de acolhimento, sem o qual o primeiro direito seria desprovido de qualquer efeito (12).

 A aplicação do artigo 7.° na prática

32.      Qual o grau de discricionariedade dos Estados‑Membros na imposição de condições sobre o direito de residência dos membros da família?

33.      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o Estado‑Membro em causa pode impor condições, tanto em relação à entrada inicial do membro da família no seu território como em relação à residência dessa pessoa durante (pelo menos) um período de três anos após essa entrada. A decisão sobre a entrada compete exclusivamente ao Estado‑Membro de acolhimento, que é livre de impor condições nesta matéria. As condições que esse Estado pode impor depois de autorizar a entrada são mais limitadas: no essencial, têm direito a garantir que a presença do membro da família é «compatível com o espírito e a finalidade do artigo 7.°». É inquestionável, por exemplo, que o Estado‑Membro de acolhimento pode impor como condição que o membro da família mantenha vida em comum com o trabalhador ao qual foi autorizado a reunir‑se (13).

34.      Quais são os objectivos deste período mínimo de residência do ponto de vista do trabalhador turco e dos membros da sua família?

35.      Basicamente, existem dois objectivos. Em primeiro lugar, a presença dos membros da família no território do Estado‑Membro de acolhimento visa possibilitar o reagrupamento familiar (14). Numa fase inicial, pelo menos, o objectivo principal é melhorar a situação dos trabalhadores turcos, e não a dos membros da sua família. Ao terem os membros da sua família junto de si, estes trabalhadores beneficiarão de uma melhor qualidade de vida no seu local de trabalho.

36.      Em segundo lugar, o objectivo consiste na integração do membro da família. Ao autorizar a presença dos membros da família no seu território, o Estado‑Membro de acolhimento proporciona a essas pessoas a oportunidade de se integrarem gradualmente na sua sociedade e, mais tarde, de aí exercerem uma actividade assalariada. A sua posição no Estado‑Membro de acolhimento fica, assim, «consolidada» (15). Neste caso, as pessoas visadas são os membros da família, e não o trabalhador turco a quem se reuniram.

37.      Qual é a situação uma vez terminado o período mínimo de residência? O Estado‑Membro de acolhimento pode continuar a impor condições sobre o direito de residência dos membros da família depois de estes terem adquirido o direito incondicional de participar no mercado de trabalho desse Estado‑Membro? Esse Estado pode dizer a uma pessoa como M. Bozkurt: «pode permanecer neste país enquanto for casado; no entanto, caso se divorcie, reservamo‑nos o direito de o expulsar do nosso território»?

38.      Considero que, nesta situação, o Estado‑Membro de acolhimento já não pode impor condições sobre o direito de residência. O tempo para o fazer já passou.

39.      Este entendimento é corroborado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 7.°, tanto no que respeita à apreciação da natureza genérica do direito como aos casos concretos em que foi reconhecida a sua manutenção. De uma perspectiva geral, o que o Tribunal de Justiça fez foi salientar a natureza autónoma do direito adquirido após o termo do período mínimo. Assim, no acórdão Ergat (16), o Tribunal de Justiça afirmou que «os Estados‑Membros deixam, porém, de poder estabelecer condições à residência de um membro da família de um trabalhador turco para além do referido período de três anos» e que «por maioria de razão, o mesmo será de aplicar a um emigrante turco que … preencha as condições do segundo travessão do primeiro parágrafo do artigo 7.°» (ou seja, que resida legalmente no Estado‑Membro de acolhimento há cinco anos) (17). Em seguida, referiu‑se à situação de um membro da família que preenche as condições estabelecidas no artigo 7.° como a de alguém que está «já regularmente integrado no Estado‑Membro de acolhimento» e que «tem a possibilidade de se inserir duradouramente no Estado‑Membro de acolhimento» (18). No acórdão Eyüp (19), mencionou o requisito de que «o reagrupamento familiar, que motivou a entrada do interessado no território do Estado‑Membro em causa, se manifeste durante um certo tempo através da coabitação efectiva em comunhão doméstica com o trabalhador, e que tal deve suceder sempre que o interessado não preencha, ele próprio, as condições para aceder ao mercado de trabalho nesse Estado» (20).

40.      Ao destacar a função do artigo 7.° na integração dos membros da família com direitos decorrentes deste artigo na sociedade do Estado‑Membro de acolhimento, o Tribunal de Justiça salientou que o direito de residência, a outra face da moeda do direito de acesso ao mercado de trabalho do Estado‑Membro em causa, é «independente da manutenção das condições de acesso a [tal direito]» (21). No acórdão Ergat, sustentou que «o direito incondicional de aceder a qualquer actividade livremente escolhida pelo interessado, sem que lhe possa ademais ser oposta qualquer prioridade dos trabalhadores dos Estados‑Membros … seria esvaziado de qualquer conteúdo se as autoridades nacionais competentes tivessem a possibilidade de condicionar ou restringir […] os direitos precisos que a [Decisão n.° 1/80] conferiu directamente aos migrantes turcos» (22).

41.      Aplicando este raciocínio a situações concretas, o Tribunal de Justiça considerou, por exemplo, que é legítimo invocar direitos adquiridos ao abrigo do artigo 7.°, não obstante o pai do demandante, o titular originário do direito de residência, ter abandonado o Estado‑Membro de acolhimento e já não residir ou trabalhar no mesmo no momento em que esses direitos foram exercidos (23). Da mesma forma, entendeu que o facto de uma pessoa que preenchia as condições estabelecidas no artigo 7.°, primeiro parágrafo, ainda não exercer, com a idade de 23 anos, uma actividade assalariada, não constituía um obstáculo à concessão do direito de residência (24).

42.      É certo que esta jurisprudência diz respeito a pessoas que, ao contrário de M. Bozkurt, eram «membros da família» à data em que o seu direito de residência foi posto em causa pelo Estado‑Membro de acolhimento. Porém, considero que não procede o argumento apresentado pelos Governos dinamarquês e alemão e pelo Land Baden‑Württemberg nas suas observações de que a quebra dos laços familiares implica a perda dos direitos eventualmente adquiridos por M. Bozkurt ao abrigo do artigo 7.° Como resulta claramente da decisão de reenvio, M. Bozkurt foi, durante cinco anos, membro da família de um trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro, neste caso a Alemanha. Não há qualquer indicação de que, durante esse período, não tenha cumprido as condições que lhe foram impostas. Consequentemente, no termo desse período de cinco anos, adquiriu plenos direitos ao abrigo do artigo 7.° Esses direitos tinham natureza autónoma e, salvo duas excepções, que mencionarei no número seguinte, definitiva. Entendo que o facto de M. Bozkurt se ter divorciado e perdido o estatuto de «membro da família» não pode ter qualquer efeito sobre a sua situação.

43.      As duas excepções que mencionei anteriormente são as seguintes. Os nacionais turcos que tenham adquirido direitos incondicionais de residência e de acesso ao mercado de trabalho no Estado‑Membro de acolhimento podem perder esses direitos em duas situações. A primeira prende‑se com os motivos de ordem pública, segurança pública e saúde pública previstos no artigo 14.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80. Retomarei esta questão mais adiante (25). A segunda respeita aos casos em que o interessado abandona o território do Estado‑Membro de acolhimento por um período de tempo significativo sem motivos legítimos (26).

44.      Assim, a primeira situação reflecte o direito inalienável de um Estado‑Membro de expulsar um nacional turco do seu território com fundamento em motivos legítimos específicos – direito esse que mantém também em relação aos cidadãos da UE. A segunda situação prende‑se com o facto de um direito incondicional de residência não ser, em termos conceptuais, o mesmo que possuir a nacionalidade do Estado‑Membro de acolhimento ou gozar de direitos especiais associados à cidadania da União Europeia.

45.      Na minha opinião, é inquestionável que estes são os únicos fundamentos que poderão justificar a perda dos direitos adquiridos por uma pessoa como M. Bozkurt (27).

46.      Na decisão de reenvio, o órgão jurisdicional nacional menciona o potencial impacto do Regulamento n.° 1612/68 (28) sobre a situação de M. Bozkurt. Nesta matéria, o Tribunal de Justiça entendeu que, uma vez que o artigo 7.° não contém uma definição de «membro da família», é legítimo recorrer à definição deste conceito constante do regulamento, a fim de formular o correspondente conceito para efeitos do artigo 7.° (29) No acórdão Reed (30), o Tribunal de Justiça considerou, a propósito do artigo 10.° do Regulamento n.° 1612/68, que o conceito de «família» de um trabalhador não abrangia a pessoa com quem vivia em união de facto (31) O órgão jurisdicional nacional (cuja argumentação sobre esta questão é subscrita pelos Governos dinamarquês e alemão) pergunta se este entendimento deve ser interpretado no sentido de que o direito de residência de M. Bozkurt se extingue com o divórcio.

47.      Na minha opinião, decorre da análise acima efectuada que, uma vez terminado o período de cinco anos e adquiridos direitos plenos ao abrigo do artigo 7.°, a questão da aplicação por analogia do Regulamento n.° 1612/68 a uma pessoa na situação de M. Bozkurt torna‑se irrelevante. A questão da qualificação de M. Bozkurt como membro da família pura e simplesmente não se coloca neste contexto. O que importa determinar é se ele tinha sido um membro da família durante o referido período de cinco anos.

48.      Por último, abordarei a questão da aplicação do artigo 59.° do protocolo adicional, que também foi suscitada pelo órgão jurisdicional nacional e pelos Governos dinamarquês, alemão e italiano. Esta disposição proíbe a atribuição de um tratamento mais favorável a nacionais turcos do que a cidadãos da União Europeia em situações comparáveis. Nos termos da legislação comunitária em vigor à data da decisão de expulsão de M. Bozkurt (32), os cidadãos da União que tivessem entrado num Estado‑Membro e aí residissem na qualidade de membros da família podiam eles mesmos perder o seu direito de residência caso se divorciassem da pessoa a quem se tinham reunido. Se o artigo 7.° fosse interpretado no sentido de atribuir a M. Bozkurt um direito definitivo de residência em circunstâncias equivalentes (segundo o argumento), este beneficiaria de um tratamento mais favorável. Esta interpretação contrariaria o disposto no artigo 59.° e, como tal, deve ser rejeitada.

49.      Considero que este argumento não procede.

50.      Tal como salienta, e com razão, a Comissão nas suas observações, o mesmo argumento, mutatis mutandis, – o caso dizia respeito a um filho e não a um cônjuge – foi apreciado e rejeitado no acórdão Derin (33). Aquele caso envolvia o filho de um nacional turco que invocava um direito de residência ao abrigo do artigo 7.°, apesar de ter mais de 21 anos e já não residir nem estar a cargo dos seus pais, a quem se tinha reunido no Estado‑Membro de acolhimento. Ao considerar a aplicabilidade do artigo 59.°, o Tribunal de Justiça comparou os direitos concedidos a cidadãos da União e a nacionais turcos. Neste contexto, referiu que os filhos dos primeiros beneficiavam de um direito incondicional de se instalarem com a sua família nos Estado‑Membro de acolhimento, enquanto o direito correspondente dos filhos dos nacionais turcos era condicional, na medida em que estava sujeito à autorização das autoridades do Estado‑Membro em causa. Seguidamente, observou que os filhos de um cidadão da União têm o direito de aceder a qualquer actividade assalariada no Estado‑Membro de acolhimento, enquanto o direito correspondente dos filhos dos trabalhadores turcos se rege, de forma precisa, pelo artigo 7.°, primeiro parágrafo. Por último, salientou que os nacionais turcos não têm o direito de circular livremente no interior da Comunidade, e que poderão perder o seu direito de residência nos casos em que seja aplicável o artigo 14.° da Decisão n.° 1/80 ou se abandonarem o território do Estado‑Membro de acolhimento durante um período significativo e sem razões legítimas (34). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça considerou que a situação do filho de um trabalhador turco «não pode ser utilmente comparada» com a de um descendente de um nacional de um Estado‑Membro, atentas as diferenças sensíveis existentes entre a respectiva situação jurídica (35).

51.      Na minha opinião, nada impede que esta argumentação seja aplicada a uma pessoa, como M. Bozkurt, na qualidade de ex‑cônjuge de um nacional turco.

52.      Daqui decorre que o argumento baseado no artigo 59.° do protocolo adicional deve ser considerado improcedente.

53.      Pelos motivos acima expostos, considero que a resposta à pergunta 1 deverá ser que o direito ao emprego e à residência adquirido pelo cônjuge, ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, como membro da família de um trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro, se mantém mesmo depois do divórcio.

 Questão 2

54.      Esta é uma questão importante. Antes de abordar as questões de direito relevantes para o caso em apreço, gostaria de salientar que o que está em causa não é o crime de violação ou opiniões pessoais sobre este crime, mas sim o que constitui um abuso de direito perante a dissolução do casamento que deu origem a um direito de residência ao abrigo do artigo 7.° É este o contexto em que a questão deve ser apreciada. O direito de um Estado‑Membro de expulsar uma pessoa na situação de M. Bozkurt é uma questão distinta, regulada pelo artigo 14.° da Decisão n.° 1/80, sobre a qual me debruçarei no n.° 70 e segs. infra.

55.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se a invocação do direito de residência decorrente do direito da ex‑mulher, ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, constitui abuso de direito quando uma pessoa como M. Bozkurt, depois de adquirir esse direito, a violou e agrediu e este comportamento foi punido com uma pena suspensa de dois anos de prisão.

56.      Os Governos dinamarquês e alemão e o Land Baden‑Württemberg alegam que tal comportamento constitui efectivamente um abuso de direito. Consequentemente, um Estado‑Membro é competente para privar M. Bozkurt do seu direito de residência. O Governo italiano entende que esta questão deveria ser abordada no contexto do artigo 14.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80. Debruçar‑me‑ei sobre esta questão mais adiante (36). Por seu lado, a Comissão alega que não é correcto aplicar o conceito de abuso de direito a uma situação como a de M. Bozkurt no processo principal.

57.      Concordo com a Comissão.

58.      É inquestionável que a proibição do abuso de direito é um princípio geral do direito comunitário (37) Daqui decorre que o direito comunitário não pode ser utilizado para fins fraudulentos ou abusivos (38).

59.      Foi já observado que, para determinar se um determinado comportamento configura ou não um abuso de direito num caso concreto, o critério de referência é «se houve ou não uma deturpação das finalidades e dos objectivos da disposição comunitária que confere o direito em questão» (39).

60.      O direito em questão no processo principal é o direito de residência decorrente do artigo 7.°, cujas finalidades e objectivos já enunciei (40).

61.      É legítimo afirmar que o comportamento ilícito de M. Bozkurt pode implicar, por si mesmo e automaticamente, a perda desse direito?

62.      Considero que a resposta deve ser negativa.

63.      Tendo em conta os factos descritos na decisão de reenvio, nada parece indicar que estamos perante um caso de casamento por conveniência, celebrado com o intuito de obter benefícios que, de outro modo, não seriam concedidos. O Tribunal de Justiça considerou que um casamento de conveniência não pode criar direitos ao abrigo do direito comunitário (41). Se M. Bozkurt tivesse tentado adquirir direitos ao abrigo do artigo 7.° através de uma relação fictícia, tais direitos seriam desprovidos de qualquer valor (42). Porém, não é essa a situação no caso vertente.

64.      A violação é um crime muito grave. Uma vez que a vítima do crime cometido por M. Bozkurt era a sua mulher, é inquestionável que este violou os seus deveres conjugais. Entendo, porém, que tal comportamento não constitui um abuso do direito de residência de M. Bozkurt ao abrigo do artigo 7.°, o que conduziria necessariamente à perda desse direito por força dos princípios supramencionados.

65.      Defendo esta posição por dois motivos.

66.      Em primeiro lugar, creio que, nos casos em que o direito em causa deva ser entendido como um direito autónomo (e, como já referi, considero ser este um desses casos), não faz sentido falar num abuso desse direito por força de um crime cometido contra o titular do direito originário do qual o seu deriva. Quando o direito tem natureza independente, as questões relacionadas com a origem desse direito são, por definição, irrelevantes.

67.      Em segundo lugar, a fim de determinar se existiu um abuso de direito para efeitos do artigo 7.°, é necessário tomar em consideração os requisitos consagrados na jurisprudência. No acórdão Emsland‑Stärke (43), o Tribunal de Justiça entendeu que deveria ser aplicado um critério baseado em dois elementos. Numa primeira fase, é necessário estabelecer a existência de um conjunto de circunstâncias objectivas das quais resulte que, apesar do respeito formal das condições previstas na legislação comunitária, o objectivo pretendido por essa legislação não foi alcançado. Numa segunda fase, tem de existir um elemento subjectivo que consiste na vontade de obter um benefício que resulta da legislação comunitária, criando artificialmente as condições exigidas para a sua obtenção (44). Esse elemento subjectivo deve representar o «único objectivo» do comportamento em causa (45).

68.      O comportamento censurado no caso de M. Bozkurt não cumpre, de forma alguma, os dois requisitos. Não se pode afirmar que, ao casar com a Sr.ª Bozkurt, o seu único objectivo era o de usufruir de um benefício previsto na legislação comunitária. O órgão jurisdicional nacional afirma que, em virtude do seu comportamento, M. Bozkurt se revelou «indigno» de adquirir direitos ao abrigo do artigo 7.° Ainda que tal seja verdade, este tipo de indignidade e um abuso de direito nos termos do direito comunitário são duas realidades distintas. O critério referido no acórdão Emsland‑Stärke (46) não fala em «indignidade».

69.      Acrescentaria ainda que, desta conclusão, decorre logicamente que, mesmo que o comportamento em causa tivesse ocorrido durante o período de três anos ou cinco anos mencionado no artigo 7.°, primeiro parágrafo, não constituiria, ainda assim, um abuso de direito para efeitos do direito comunitário.

70.      Pelos motivos acima expostos, considero que a resposta à segunda questão deve ser que a invocação do direito de residência decorrente do direito da ex‑mulher, ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, não constitui abuso de direito quando a pessoa em causa, depois de adquirir esse direito, a violou e agrediu e este comportamento foi punido com uma pena suspensa de dois anos de prisão.

 Observações finais

71.      Embora o órgão jurisdicional nacional mencione o artigo 14.° da Decisão n.° 1/80 na sua decisão de reenvio, não desenvolve uma argumentação específica em relação a este artigo. Tal como entendo os factos descritos, a tentativa de expulsar M. Bozkurt em 2005 frustrou‑se em virtude do artigo 9.° da Directiva 64/221/CEE. Era evidente que esta disposição tinha de ser cumprida para que a decisão de expulsão fosse válida, e que não tinha sido cumprida (47).

72.      Não obstante, é difícil ignorar o que eu descreveria como um sentimento de desconforto, que perpassa tanto pela decisão de reenvio como pelas observações dos Governos dinamarquês e alemão e do Land Baden‑Württemberg, perante a permanência de uma pessoa com registo criminal como M. Bozkurt no território nacional; é necessário fazer alguma coisa.

73.      Não pretendo com isto dizer que as tentativas de abordar «lateralmente» questões de expulsão, como aconteceu no processo principal, estão necessariamente condenadas ao fracasso. Uma pessoa que não preencha as condições estabelecidas no artigo 7.°, correctamente interpretado, não goza do direito de permanecer no território do Estado‑Membro de acolhimento e pode ser expulsa dele.

74.      Contudo, considero que, em regra, quando é suscitada a questão da expulsão de um nacional turco do território de um Estado‑Membro, tendo a pessoa em causa exercido os seus direitos ao abrigo da Decisão n.° 1/80, é mais fácil recorrer ao artigo 14.° desta decisão como ponto de partida. Afinal, o objectivo dessa disposição consiste exactamente em regular expulsões neste tipo de casos.

75.      As regras sobre aplicabilidade do artigo 14.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80 foram claramente enunciadas pelo Tribunal de Justiça. Segue‑se um breve resumo dessas regras. Quando as autoridades nacionais desejarem expulsar uma pessoa ao abrigo daquele artigo, são obrigadas a proceder a uma apreciação do comportamento pessoal do autor da infracção, bem como do carácter actual, efectivo e suficientemente grave do perigo que representa para a ordem e a segurança púbicas, devendo, além disso, respeitar o princípio da proporcionalidade. Em especial, uma medida de expulsão baseada no artigo 14.°, n.° 1, só pode ser decidida se o comportamento pessoal do interessado revelar um risco concreto de novas perturbações graves da ordem pública. Essa medida não pode ser automaticamente ordenada após uma condenação penal e com finalidade de prevenção geral (48). Um órgão jurisdicional nacional chamado a apreciar a legalidade de uma medida de expulsão nestas circunstâncias deve tomar em consideração os elementos de facto ocorridos após a última decisão das autoridades competentes que possam implicar o desaparecimento ou a diminuição da ameaça actual que constitui, para a ordem pública, o comportamento da pessoa em causa (49).

76.      Todos os requisitos processuais previstos no direito comunitário e no direito nacional devem ser, naturalmente, respeitados.

77.      Neste contexto, a decisão sobre a aplicabilidade do artigo 14.° n.° 1, da Decisão n.° 1/80 aos factos no processo principal, tal como actualmente se apresentam, compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional.

 Conclusão

78.      À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões submetidas pelo Bundesverwaltungsgericht:

(1)      O direito ao emprego e à residência adquirido pelo cônjuge, ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, da Decisão n.° 1/80 do Conselho de Associação CEE‑Turquia, como membro da família de um trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro, mantém‑se mesmo depois do divórcio.

(2)      A invocação do direito de residência decorrente do direito da ex‑mulher, ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, segundo travessão, não constitui abuso de direito, mesmo quando a pessoa em causa, depois de adquirir esse direito, a violou e agrediu e este comportamento foi punido com uma pena suspensa de dois anos de prisão.


1 – Língua original: inglês.


2 – Decisão n.° 1/80, de 19 de Setembro de 1980, relativa ao desenvolvimento da Associação, adoptada pelo Conselho de Associação instituído ao abrigo do Acordo que cria uma Associação entre a Comunidade Económica Europeia e a Turquia, assinado em Ancara, em 12 de Setembro de 1963.


3 – Acordo que cria uma associação entre a CEE e a Turquia, assinado em Ancara, em 12 de Setembro de 1963.


4 – Protocolo adicional assinado em Bruxelas, em 23 de Novembro de 1970, e celebrado, aprovado e confirmado em nome da Comunidade pelo Regulamento (CEE) n.° 2760/72 do Conselho, de 19 de Dezembro de 1972 (JO 1972, L 293, p. 1; EE 11 F1 p. 213).


5 – V., nesta matéria, acórdão de 2 de Junho de 2005, Dörr e Ünal (C‑136/03, Colect., p. I‑4759, n.° 69). As garantias processuais previstas nos artigos 8.° e 9.° da Directiva 64/221/CEE do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1964, para a coordenação de medidas especiais relativas aos estrangeiros em matéria de deslocação e estada justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública (JO 56, p. 850, EE 05 F 1 p. 36) são aplicáveis aos nacionais turcos cuja situação jurídica é definida pelos artigos 6.° ou 7.° da Decisão n.° 1/80. O artigo 9.°, n.° 1, desta directiva estabelece, no essencial, que, salvo quando seja possível recorrer com qualquer fundamento para um órgão jurisdicional e esse recurso tenha efeito suspensivo, e salvo por motivo de urgência, a decisão das autoridades nacionais que recuse a renovação da autorização de residência ou que determine a expulsão do titular de uma autorização de residência só será proferida após a obtenção do parecer prévio de uma autoridade competente do país de acolhimento, perante o qual o interessado deve poder deduzir os seus meios de defesa e fazer‑se assistir ou representar nos termos previstos na legislação nacional. Embora o artigo 9.°, n.° 1, pareça ser aplicável à decisão de expulsão de M. Bozkurt, nunca foi obtido o parecer prévio da autoridade competente, tal como exige esta disposição. A Directiva 64/221/CEE foi revogada pela Directiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 e que revoga as Directivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77, com rectificação no JO 2004, L 229, p. 35), que entrou em vigor em 30 de Abril de 2006.


6 – V., entre muitos outros, acórdãos de 15 de Novembro de 1979, Denkavit Futtermittel (36/79, Recueil, p. 3439, n.° 12), e de 15 de Abril de 2010, Sandström (C‑433/05, ainda não publicado na Colectânea, n.° 35).


7 – V., entre muitos outros, acórdãos de 15 de Dezembro de 1993, Bosman (C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 59), e de 18 de Março de 2010, Gielen (C‑440/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 27).


8 – V., neste sentido, acórdão de 23 de Janeiro de 1997, Tetik (C‑171/95, Colect., p. I‑329, n.° 38).


9 – V. acórdão de 18 de Julho de 2007, Derin (C‑325/05, Colect., p. I‑6495, n.° 47).


10 – Para uma análise mais completa dos antecedentes dos artigos 6.° e 7.° da Decisão n.° 1/80, v. as minhas conclusões no processo Pehlivan (C‑484/07), apresentadas na mesma data que as presentes conclusões, n.° 29 e segs.


11 – V. acórdão de 30 de Setembro de 2004, Ayaz (C‑275/02, Colect., p. I‑8765, n.° 34).


12 – V., entre outros, acórdão de 17 de Abril de 1997, Kadiman (C‑351/95, Colect., p. I‑2133, n.° 29). O raciocínio do Tribunal de Justiça neste acórdão reproduz o seu raciocínio sobre o artigo 6.° da Decisão n.° 1/80 em acórdãos anteriores: v. acórdãos de 20 de Setembro de 1990, Sevince (C‑192/89, Colect., p. I‑3461, n.° 29) e de 16 de Dezembro de 1992, Kus (C‑237/91, Colect., p. I‑6781, n.° 22).


13 – V. acórdão Kadiman, referido na nota supra, n.os 33 e 41. Para uma análise mais completa das condições que um Estado‑Membro de acolhimento pode impor durante o período em causa, v. as minhas conclusões no processo Pehlivan, referido na nota 10 supra, n.° 39 e segs.


14 – V. acórdão Kadiman, referido na nota 12 supra, n.os 35 e 36.


15 – V., neste sentido, acórdão Kadiman, referido na nota 12 supra, n.os 35 e 36.


16 – Acórdão de 16 de Março de 2000 (C‑329/97, Colect., p. I‑1487).


17 – N.os 38 e 39.


18 – N.os 42 e 43.


19 – Acórdão de 22 de Junho de 2000 (C‑65/98, Colect., p. I‑4747).


20 – N.° 28 (itálico nosso).


21 – V. acórdão Ergat, referido na nota 16 supra, n.° 40, e acórdão de 11 de Novembro de 2004, Cetinkaya (C‑467/02, Colect., p. I‑10895, n.° 31).


22 – V. n.° 41. V. também acórdão de 25 de Setembro de 2008, Er (C‑453/07, Colect., p. I‑7299, n.° 27).


23 – V. acórdão de 19 de Novembro de 1998, Akman (C‑210/02, Colect., p. I‑7519, n.° 51).


24 – V. acórdão Er, referido na nota 22 supra, n.° 31, que sublinha que, neste aspecto, o artigo 7.° é diferente do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80. V. ainda acórdão de 7 de Julho de 2005, Aydinli (C‑373/03, Colect., p. I‑6181, n.° 31), e acórdão Derin, referido na nota 9 supra, n.° 56.


25 – V. n.° 71 e segs. infra.


26 – V., entre outros, acórdãos Ergat, referido na nota 16 supra, n.° 48; de 4 de Outubro de 2007, Polat (C‑349/04, Colect., p. I‑8167, n.° 21); e de 18 de Dezembro de 2998, Altun (C‑337/07, Colect., p. I‑10323, n.° 62).


27 – V., entre outros, acórdão Cetinkaya, referido na nota 21 supra, n.° 38.


28 – Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2, EE 05 F 1 p. 77), na redacção actualmente em vigor. Com efeitos a partir de 30 de Abril de 2006, os artigos 10.° e 11.° deste regulamento foram revogados e substituídos pela Directiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 e que revoga as Directivas 64/10/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77, com rectificação no JO 2004, L 229, p. 35).


29 – V. acórdão Ayaz, referido na nota 11 supra, n.° 38.


30 – Acórdão de 17 de Abril de 1986 (59/85, Recueil, p. 1283).


31 – V. n.° 16.


32 – V. n.° 45 supra.


33 – Referido na nota 9 supra.


34 – N.os 62 a 67.


35 – N.° 68.


36 – V. n.° 71 e segs. infra.


37 – V., entre muitos outros, acórdão de 5 de Julho de 2007, Kofoed (C‑321/05, Colect., p. I‑5795, n.° 38).


38 – V., entre outros, acórdãos de 12 de Maio de 1998, Kefalas (C‑367/96, Colect., p. I‑2843, n.° 20); de 23 de Março de 2000, Diamantis (C‑373/97, Colect., p. I‑1705, n.° 33); e de 20 de Setembro de 2005, Tum e Dari (C‑16/05, Colect., p. I‑7415, n.° 64).


39 – V. conclusões do advogado‑geral A. Tizzano no processo Zhu (acórdão de 19 de Outubro de 2004, C‑200/02, Colect., p. I‑9925), n.° 115.


40 – V. n.° 25 e segs. supra.


41 – V., em relação ao Regulamento n.° 1612/68, acórdão de 23 de Setembro de 2003, Akrich (C‑109/01, Colect., p. I‑9607, n.° 61) e, em relação ao artigo 6.° da Decisão n.° 1/80, acórdão de 5 de Junho de 1997, Kol (C‑285/95, Colect., p. I‑3069, n.° 25).


42 – Na minha opinião, mesmo depois do termo dos períodos estabelecidos no artigo 7.° V. as minhas conclusões no processo Pehlivan, referido na nota 10 supra, n.° 89 e segs.


43 – Acórdão de 14 de Dezembro de 2000 (C‑110/99, Colect., p. I‑11569).


44 – V. n.os 52 e 53.


45 – N.° 50. V. também acórdão Kofoed, referido na nota 37 supra, n.° 38, onde o Tribunal de Justiça se refere ao comportamento abusivo em causa como tendo sido adoptado «apenas com o objectivo» de usufruir de um benefício.


46 – Referido na nota 43 supra.


47 – V. n.° 13 e nota 5 supra.


48 – V. acórdão Derin, referido na nota 9 supra, n.° 74.


49 – V. acórdão Cetinkaya, referido na nota 16 supra, n.° 47.