ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

21 de Janeiro de 2010 ( *1 )

«Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 1346/2000 — Processos de insolvência — Não reconhecimento por um Estado-Membro da decisão de abertura de um processo de insolvência tomada pelo órgão jurisdicional competente de outro Estado-Membro bem como das decisões relativas à tramitação e ao encerramento desse processo de insolvência»

No processo C-444/07,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pelo Sąd Rejonowy Gdańsk-Północ w Gdańsku (Polónia), por decisão de 27 de Junho de 2007, entrado no Tribunal de Justiça em , no processo de insolvência aberto contra

MG Probud Gdynia sp. z o.o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, E. Levits, A. Borg Barthet, M. Ilešič e J.-J. Kasel (relator), juízes,

advogado-geral: M. Poiares Maduro,

secretário: K. Malaček, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 18 de Junho de 2009,

vistas as observações apresentadas:

em representação de MG Probud Gdynia sp. z o.o., por A. Studziński, radca prawny, e M. Żytny, aplikant radcowski trzeciego roku,

em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, C. Herma e A. Witczak-Słoczyńska, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por M. Lumma e J. Kemper, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por W. Ferrante, avvocato dello Stato,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por S. Petrova e K. Mojzesowicz, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação de determinadas disposições do Regulamento (CE) n.o 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 603/2005 do Conselho, de (JO L 100, p. 1, a seguir «regulamento»).

2

Este pedido foi apresentado no quadro de um processo desencadeado pelo síndico polaco responsável pela liquidação da sociedade MG Probud Gdynia sp. z o.o. (a seguir «MG Probud») e destinado à recuperação, em proveito da massa insolvente, de bens dessa sociedade que foram objecto de um arresto na Alemanha.

Quadro jurídico

Regulamentação comunitária

3

O artigo 3.o do regulamento, sob a epígrafe «Competência internacional», tem a seguinte redacção:

«1.   Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária.

2.   No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.

[…]»

4

O artigo 4.o do regulamento, sob a epígrafe «Lei aplicável», dispõe:

«1.   Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, a seguir designado ‘Estado de abertura do processo’.

2.   A lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. A lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente:

a)

Os devedores que podem ser sujeitos a um processo de insolvência em razão da qualidade dos mesmos;

b)

Os bens de cuja administração ou disposição o devedor está inibido e o destino a dar aos bens adquiridos pelo devedor após a abertura do processo de insolvência;

c)

Os poderes respectivos do devedor e do síndico;

[…]

f)

Os efeitos do processo de insolvência nas acções individuais, com excepção dos processos pendentes;

[…]»

5

Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, do regulamento, «[a] abertura do processo de insolvência não afecta os direitos reais de credores ou de terceiros sobre bens corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis […] pertencentes ao devedor e que, no momento da abertura do processo, se encontrem no território de outro Estado-Membro».

6

O artigo 10.o do regulamento prevê:

«Os efeitos do processo de insolvência nos contratos de trabalho e na relação laboral regem-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro aplicável ao contrato de trabalho.»

7

Inserido no capítulo II do regulamento, sob a epígrafe «Reconhecimento do processo de insolvência», o artigo 16.o, n.o 1, dispõe:

«Qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.o, é reconhecida em todos os outros Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo.

[…]»

8

O artigo 17.o do regulamento, sob a epígrafe «Efeitos do reconhecimento», dispõe:

«1.   A decisão de abertura de um processo referido no n.o 1 do artigo 3.o produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo, salvo disposição em contrário do presente regulamento e enquanto não tiver sido aberto nesse outro Estado-Membro um processo referido no n.o 2 do artigo 3.o

[…]»

9

O artigo 18.o do regulamento, sob a epígrafe «Poderes do síndico», dispõe:

«1.   O síndico designado por um órgão jurisdicional competente por força do n.o 1 do artigo 3.o pode exercer no território de outro Estado-Membro todos os poderes que lhe são conferidos pela lei do Estado de abertura do processo, enquanto nesse outro Estado-Membro não tiver sido aberto qualquer processo de insolvência, nem sido tomada qualquer medida cautelar em contrário na sequência de um requerimento de abertura de um processo de insolvência nesse Estado. O síndico pode, nomeadamente, deslocar os bens do devedor para fora do território do Estado-Membro onde se encontrem, sob reserva do disposto nos artigos 5.o e 7.o

[…]»

10

O artigo 25.o do regulamento tem a seguinte redacção:

«1.   As decisões relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência proferidas por um órgão jurisdicional cuja decisão de abertura do processo seja reconhecida por força do artigo 16.o, bem como qualquer acordo homologado por esse órgão jurisdicional, são igualmente reconhecidos sem mais formalidades. Essas decisões são executadas em conformidade com o disposto nos artigos 31.o a 51.o, com excepção do n.o 2 do artigo 34.o da Convenção [de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32)], alterada pelas convenções relativas à adesão a essa Convenção [(a seguir ‘Convenção de Bruxelas’)].

O primeiro parágrafo é igualmente aplicável às decisões directamente decorrentes do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas, mesmo que proferidas por outro órgão jurisdicional.

O primeiro parágrafo é igualmente aplicável às decisões relativas às medidas cautelares tomadas após a apresentação do requerimento de abertura de um processo de insolvência.

2.   O reconhecimento e a execução de decisões que não as referidas no n.o 1 regem-se pela Convenção referida no n.o 1 do presente artigo, na medida em que esta for aplicável.

3.   Os Estados-Membros não são obrigados a reconhecer ou executar qualquer decisão referida no n.o 1 que possa resultar numa restrição da liberdade individual ou do sigilo postal.»

11

Nos termos do artigo 26.o do regulamento, «[q]ualquer Estado-Membro pode recusar o reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro ou execução de uma decisão proferida no âmbito de um processo dessa natureza, se esse reconhecimento ou execução produzir efeitos manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição».

Legislação nacional

12

Na Polónia, os processos de insolvência são regidos pela Lei da insolvência e do saneamento financeiro (Prawo upadłościowe i naprawcze), de 28 de Fevereiro de 2003 (Dz. U. de 2003, n.o 60, posição 535), conforme alterada.

13

Por força do artigo 146.o, n.os 1 e 2, da referida lei, um processo de execução, seja ele judicial ou administrativo, aberto contra o devedor antes de ser declarado insolvente, é suspenso de pleno direito à data da declaração de insolvência, e as importâncias provenientes de um processo de execução suspenso, que não tenham sido distribuídas, devem ser transferidas para a massa insolvente.

14

Em conformidade com o artigo 146.o, n.o 3, as mesmas disposições são aplicáveis quando tiver sido constituída uma garantia sobre os bens do devedor, no âmbito de uma providência cautelar.

15

Nos termos do artigo 146.o, n.o 4, uma vez aberto o processo de insolvência, já não é possível desencadear processos de execução contra o devedor, relativamente aos bens da massa insolvente.

Matéria de facto no processo principal e questões prejudiciais

16

Decorre da decisão de reenvio que o Sąd Rejonowy Gdańsk-Północ w Gdańsku proferiu, por uma decisão de 9 de Junho de 2005, a abertura de um processo de insolvência contra a MG Probud, empresa do sector da construção, com sede estatutária na Polónia, mas que se dedica, no âmbito das actividades de uma sucursal, a obras de construção na Alemanha.

17

Em 11 de Junho de 2005, a pedido do Hauptzollamt Saarbrücken (Administração Aduaneira de Saarbrücken) (Alemanha), o Amtsgericht Saarbrücken ordenou o arresto dos fundos da conta bancária da referida empresa, no montante de 50683,08 euros, bem como o arresto de diversos créditos seus sobre co-contratantes alemães. Estas medidas foram tomadas na sequência do processo desencadeado pelo Hauptzollamt Saarbrücken contra o director da sucursal alemã da MG Probud, dado que este era suspeito de ter cometido uma infracção à legislação relativa à deslocação dos trabalhadores, em razão do não pagamento da remuneração e das quotizações sociais de vários trabalhadores polacos.

18

Por despacho do Landgericht Saarbrücken de 4 de Agosto de 2005, foi negado provimento ao recurso interposto dessa decisão. Na fundamentação da sua decisão, esse órgão jurisdicional indicava nomeadamente que, tendo em conta a abertura de um processo de insolvência na Polónia, era de recear que os responsáveis da MG Probud cobrassem rapidamente os créditos exigíveis e os transferissem para a Polónia, a fim de impedir as autoridades alemãs de a eles terem acesso. O Landgericht Saarbrücken considerou que a abertura desse processo de insolvência relativo aos bens da MG Probud não obstava a um arresto efectuado na Alemanha. Com efeito, segundo esse órgão jurisdicional, os processos nacionais de insolvência abertos nos outros Estados-Membros devem ser reconhecidos na Alemanha, quando estejam preenchidos os requisitos previstos no artigo 1.o, n.o 1, do regulamento e quando estejam mencionados na lista que figura no Anexo A desse regulamento. Ora, a cópia da decisão junta ao recurso não tinha permitido apreciar se se tratava efectivamente de um processo de insolvência aberto na Polónia, que devia ser reconhecido na Alemanha nos termos desse Anexo A.

19

No âmbito do processo de insolvência, o Sąd Rejonowy Gdańsk-Północ w Gdańsku tem dúvidas quanto à legalidade dos arrestos efectuados pelas autoridades alemãs, dado que o direito polaco, que é a lei aplicável ao processo de insolvência, devido ao facto de a República da Polónia ser o Estado de abertura desse processo, não permitir esses arrestos depois de ser declarada a insolvência da empresa.

20

Nestas condições, o Sąd Rejonowy Gdańsk-Północ w Gdańsku decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Podem as autoridades administrativas de um Estado-Membro decretar o arresto dos fundos que se encontram numa conta bancária de um operador económico depois da declaração da abertura do processo de insolvência noutro Estado-Membro (aplicação de providência cautelar), violando as disposições nacionais do Estado-Membro em que foi desencadeado o processo de insolvência (artigo 4.o do Regulamento […]) — quando não estão preenchidos os requisitos para a aplicação dos artigos 5.o e 10.o deste regulamento — tendo em conta o disposto nos artigos 3.o, 4.o, 16.o, 17.o e 25.o do referido regulamento, ou seja, à luz das normas sobre a competência dos tribunais do Estado em que foi desencadeado o processo de insolvência, do direito aplicável no presente processo e das condições e efeitos do reconhecimento do processo de insolvência?

2)

À luz do artigo 25.o, n.o 1, e seguintes do Regulamento […], podem as autoridades administrativas de um Estado-Membro no qual não foi aberto um processo secundário de insolvência, mas que está sujeito a uma obrigação de reconhecimento nos termos do artigo 16.o do referido regulamento, apoiando-se em disposições nacionais, recusar reconhecer, de acordo com o disposto nos artigos 31.o a 51.o da Convenção de Bruxelas […], as decisões do Estado-Membro em que foi desencadeado o processo relativas à tramitação e encerramento de um processo de insolvência?»

Quanto às questões prejudiciais

21

Através das suas questões, que há que apreciar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta essencialmente se, numa situação como a do processo principal, depois da abertura de um processo principal de insolvência num Estado-Membro, as autoridades competentes de outro Estado-Membro estão autorizadas, em conformidade com a sua legislação, por um lado, a ordenar o arresto de bens do devedor declarado insolvente, situados no território deste último Estado-Membro, e, por outro, a recusar reconhecer e, eventualmente, executar as decisões relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência aberto no primeiro Estado-Membro.

22

Para responder às questões assim reformuladas, é preciso recordar, a título liminar, que o artigo 3.o do regulamento prevê dois tipos de processos de insolvência. O processo de insolvência aberto, nos termos do n.o 1 desse artigo, pelo órgão jurisdicional competente do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor, qualificado de «processo principal», produz efeitos universais na medida em que abrange os bens do devedor situados em todos os Estados-Membros em que o regulamento é aplicável. Se, num momento posterior, puder ser aberto um processo, nos termos do n.o 2 do referido artigo, pelo órgão jurisdicional competente do Estado-Membro onde o devedor possua um estabelecimento, esse processo, qualificado de «processo secundário», produz efeitos limitados aos bens do devedor que se encontrem no território deste último Estado (v. acórdão de 2 de Maio de 2006, Eurofood IFSC, C-341/04, Colect., p. I-3813, n.o 28).

23

O alcance universal do processo principal de insolvência produz também efeitos nos poderes do síndico, dado que, em conformidade com o artigo 18.o, n.o 1, do regulamento, o síndico designado por um órgão jurisdicional competente por força do n.o 1 do artigo 3.o do regulamento pode exercer no território de outro Estado-Membro todos os poderes que lhe são conferidos pela lei do Estado de abertura do processo, enquanto nesse outro Estado-Membro não tiver sido aberto outro processo de insolvência.

24

Daqui decorre que só a abertura de um processo secundário de insolvência pode restringir o alcance universal do processo principal de insolvência.

25

Além disso, por força do artigo 4.o, n.o 1, do regulamento, a lei aplicável é a que resulta da determinação do órgão jurisdicional competente. Com efeito, tanto no que diz respeito ao processo principal de insolvência como ao processo secundário de insolvência, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, denominado «Estado de abertura do processo». A este propósito, o artigo 4.o, n.o 2, do regulamento contém uma enumeração não exaustiva dos diferentes aspectos do processo que são regidos pela lei do Estado de abertura do processo, entre os quais figuram, nomeadamente, na alínea b), os bens que fazem parte da massa insolvente, na alínea c), poderes respectivos do devedor e do síndico, bem como, na alínea f), os efeitos do processo de insolvência nas acções individuais.

26

Além disso, da leitura conjugada dos artigos 16.o, n.o 1, e 17.o, n.o 1, do regulamento decorre que a decisão de abertura de um processo de insolvência num Estado-Membro é reconhecida em todos os outros Estados-Membros, logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo, e produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo. Em conformidade com o artigo 25.o do regulamento, o reconhecimento de todas as decisões diferentes da relativa à abertura do processo de insolvência também é feito de forma automática.

27

Como decorre do vigésimo segundo considerando do regulamento, a regra de prioridade definida no seu artigo 16.o, n.o 1, que prevê que o processo de insolvência aberto num Estado-Membro é reconhecido em todos os Estados-Membros, logo que produza os seus efeitos no Estado de abertura, assenta no princípio da confiança mútua (acórdão Eurofood IFSC, já referido, n.o 39).

28

Com efeito, foi esta confiança mútua que permitiu a instituição de um sistema obrigatório de competências, que todos os órgãos jurisdicionais sujeitos ao âmbito de aplicação do regulamento têm a obrigação de respeitar, e a renúncia correlativa, pelos Estados-Membros, às suas normas internas de reconhecimento e de exequatur, em benefício de um mecanismo simplificado de reconhecimento e de execução das decisões judiciais proferidas no quadro de processos de insolvência (acórdão Eurofood IFSC, já referido, n.o 40, bem como, por analogia, no que diz respeito à Convenção de Bruxelas, acórdãos de 9 de Dezembro de 2003, Gasser, C-116/02, Colect., p. I-14693, n.o 72, e de , Turner, C-159/02, Colect., p. I-3565, n.o 24).

29

O Tribunal de Justiça precisou, a este respeito, que é inerente ao referido princípio da confiança mútua que o órgão jurisdicional de um Estado-Membro chamado a conhecer de um pedido de abertura de um processo principal de insolvência verifique a sua competência à luz do artigo 3.o, n.o 1, do regulamento, isto é, examine se o centro dos interesses principais do devedor se situa nesse Estado-Membro. Em contrapartida, os órgãos jurisdicionais dos outros Estados-Membros reconhecem a decisão que abre um processo principal de insolvência, sem poderem fiscalizar a apreciação que o primeiro órgão jurisdicional levou a cabo sobre a respectiva competência (acórdão Eurofood IFSC, já referido, n.os 41 e 42).

30

Quanto à execução das decisões relativas a um processo de insolvência, há que assinalar que o regulamento não contém regras específicas, mas remete, no seu artigo 25.o, n.o 1, para o sistema de exequatur previsto pelos artigos 31.o a 51.o da Convenção de Bruxelas, embora excluindo os motivos de não reconhecimento previstos por essa Convenção, os quais substitui pelos seus próprios motivos de não reconhecimento.

31

Assim, em conformidade com o vigésimo segundo considerando do regulamento, segundo o qual os motivos de não reconhecimento devem ser reduzidos ao mínimo necessário, só são dois.

32

Por um lado, por força do artigo 25.o, n.o 3, do regulamento, os Estados-Membros não são obrigados a reconhecer ou a executar uma decisão relativa à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência, que possa resultar numa restrição da liberdade individual ou do sigilo postal.

33

Por outro lado, por força do artigo 26.o do regulamento, qualquer Estado-Membro pode recusar o reconhecimento do processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro ou execução de uma decisão proferida no âmbito de um processo dessa natureza, se esse reconhecimento ou execução produzir efeitos manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição.

34

Quanto a este segundo motivo de não reconhecimento, o Tribunal de Justiça já precisou, no contexto da Convenção de Bruxelas, que o recurso à cláusula de ordem pública, que figura no artigo 27.o, n.o 1, dessa Convenção, na medida em que constitui um obstáculo à realização de um dos seus objectivos fundamentais, concretamente, facilitar a livre circulação das decisões judiciais, deve intervir apenas em casos excepcionais (acórdãos de 28 de Março de 2000, Krombach, C-7/98, Colect., p. I-1935, n.os 19 e 21, bem como Eurofood IFSC, já referido, n.o 62). Ora, a jurisprudência relativa ao artigo 27.o, n.o 1, dessa Convenção pode ser aplicada à interpretação do artigo 26.o do regulamento (acórdão Eurofood IFSC, já referido, n.o 64).

35

É à luz destas considerações que há que responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

36

No caso em apreço, está apurado que a sede social da MG Probud se situa na Polónia e que, por uma decisão de 9 de Junho de 2005, foi declarada insolvente por um tribunal polaco.

37

Decorre do artigo 3.o, n.o 1, do regulamento que, para as sociedades, presume-se que o centro dos interesses principais é, até prova em contrário, o local da sede estatutária. A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que a presunção simples prevista pelo legislador comunitário em favor da sede estatutária de uma sociedade só pode ser ilidida se elementos objectivos e determináveis por terceiros permitirem concluir pela existência de uma situação real diferente daquela que a localização da referida sede é suposto reflectir (acórdão Eurofood IFSC, já referido, n.o 34). Tal pode ser, nomeadamente, o caso de uma sociedade que não exerça nenhuma actividade no território do Estado-Membro da sua sede social. Ao invés, quando uma sociedade exerça a sua actividade no território do Estado-Membro onde se situa a respectiva sede social, o facto de as suas decisões económicas serem ou poderem ser controladas por uma sociedade-mãe estabelecida noutro Estado-Membro não é suficiente para ilidir a presunção prevista no regulamento (acórdão Eurofood IFSC, já referido, n.o 37).

38

Ora, dado que os autos à disposição do Tribunal de Justiça não contêm nenhum elemento susceptível de pôr em causa a presunção enunciada no artigo 3.o, n.o 1, do regulamento, verifica-se que o centro dos interesses principais da MG Probud se situa na Polónia.

39

Em conformidade com a redacção do artigo 1.o, n.o 1, do regulamento, os processos de insolvência aos quais este é aplicável devem reunir quatro características. Deve tratar-se de um processo colectivo, fundado na insolvência do devedor, que determine, no mínimo, a inibição parcial desse devedor e provoque a designação de um síndico. Os referidos processos estão enumerados no Anexo A do regulamento e a lista dos síndicos figura no seu Anexo C (acórdão Eurofood IFSC, já referido, n.os 46 e 47).

40

Na medida em que o processo de insolvência aberto em relação à MG Probud está enumerado no Anexo A do regulamento, decorre da aplicação do artigo 3.o do mesmo regulamento que os órgãos jurisdicionais polacos são competentes para abrir um processo principal de insolvência e para tomar todas as decisões relativas à tramitação e ao encerramento desse processo. Além disso, decorre da aplicação do artigo 4.o do regulamento que a lei polaca é aplicável ao referido processo de insolvência e aos seus efeitos.

41

Por outro lado, o síndico designado pelo órgão jurisdicional polaco, na condição de figurar no Anexo C do regulamento, pode, em conformidade com o seu artigo 18.o, exercer no território dos outros Estados-Membros todos os poderes que lhe são conferidos pela lei polaca, nomeadamente, deslocar os bens do devedor para fora do território do Estado-Membro onde se encontrem.

42

Como observaram vários interessados que apresentaram observações escritas ao Tribunal de Justiça, no presente caso, não foi iniciado nenhum processo secundário nem é aplicável, no âmbito do litígio principal, nenhuma das excepções previstas pelos artigos 5.o a 15.o do regulamento e, em especial, nenhuma das que figuram nos seus artigos 5.o e 10.o, expressamente mencionadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

43

Tendo em conta estes elementos e devido ao alcance universal que deve ser atribuído a qualquer processo principal de insolvência, o processo de insolvência aberto na Polónia inclui todos os activos da MG Probud, incluindo os situados na Alemanha, e a lei polaca determina não apenas a abertura do processo de insolvência mas também a sua tramitação e o seu encerramento. Assim, a lei polaca é aplicável ao destino dos bens situados nos outros Estados-Membros bem como aos efeitos do processo de insolvência sobre as medidas de que esses bens possam ser objecto.

44

Dado que a Lei polaca da insolvência e do saneamento financeiro, de 28 de Fevereiro de 2003, conforme alterada, não permite, posteriormente à abertura de um processo de insolvência, desencadear contra o devedor processos de execução relativos aos bens que compõem a massa insolvente, as autoridades alemãs competentes não podiam validamente ordenar, nos termos da legislação alemão, medidas de execução em relação aos bens da MG Probud situados na Alemanha.

45

Com efeito, como decorre dos artigos 16.o e 17.o do regulamento, a decisão de abertura do processo de insolvência proferida na Polónia deve ser automaticamente reconhecida em todos os outros Estados-Membros, sem mais formalidades, com todos os efeitos que lhe atribui a lei polaca.

46

Além disso, na medida em que nenhum elemento dos autos apresentados no Tribunal de Justiça permite concluir que existe um dos motivos de não reconhecimento enunciados nos n.os 32 e 33 do presente acórdão, o órgão jurisdicional alemão era obrigado a reconhecer não apenas a decisão de abertura do processo de insolvência proferida pelo órgão jurisdicional polaco competente mas também todas as outras decisões relativas a esse processo, e não pode, portanto, opor-se à execução destas últimas, nos termos dos artigos 31.o a 51.o da Convenção de Bruxelas.

47

Vistas todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o regulamento, nomeadamente os seus artigos 3.o, 4.o, 16.o, 17.o e 25.o, deve ser interpretado no sentido de que, num processo como o principal, depois da abertura de um processo principal de insolvência num Estado-Membro, as autoridades competentes de outro Estado-Membro, no qual não foi aberto nenhum processo secundário de insolvência, estão obrigadas, sem prejuízo dos motivos de não reconhecimento previstos nos artigos 25.o, n.o 3, e 26.o do regulamento, a reconhecer e executar todas as decisões relativas a esse processo principal de insolvência e, portanto, não podem ordenar, ao abrigo da legislação desse outro Estado-Membro, medidas de execução relativas aos bens do devedor declarado insolvente, situados no território do referido outro Estado-Membro, quando a legislação do Estado de abertura do processo não o permita e quando os requisitos a que está sujeita a aplicação dos artigos 5.o e 10.o do regulamento não estejam preenchidos.

Quanto às despesas

48

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O Regulamento (CE) n.o 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, nomeadamente os seus artigos 3.o, 4.o, 16.o, 17.o e 25.o, deve ser interpretado no sentido de que, num processo como o principal, depois da abertura de um processo principal de insolvência num Estado-Membro, as autoridades competentes de outro Estado-Membro, no qual não foi aberto nenhum processo secundário de insolvência, estão obrigadas, sem prejuízo dos motivos de não reconhecimento previstos nos artigos 25.o, n.o 3, e 26.o deste regulamento, a reconhecer e executar todas as decisões relativas a esse processo principal de insolvência e, portanto, não podem ordenar, ao abrigo da legislação desse outro Estado-Membro, medidas de execução relativas aos bens do devedor declarado insolvente, situados no território do referido outro Estado-Membro, quando a legislação do Estado de abertura do processo não o permita e quando os requisitos a que está sujeita a aplicação dos artigos 5.o e 10.o do regulamento não estejam preenchidos.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: polaco.