ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

9 de Outubro de 2008 ( *1 )

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Decisão-Quadro 2001/220/JAI — Estatuto das vítimas em processo penal — Acusador particular em substituição do Ministério Público — Depoimento da vítima como testemunha»

No processo C-404/07,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 35.o UE, apresentado pelo Fővárosi Bíróság (Hungria), por decisão de 6 de Julho de 2007, entrado no Tribunal de Justiça em , no processo penal iniciado por

Győrgy Katz

contra

István Roland Sós,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, J. N. Cunha Rodrigues (relator), J. Klučka, P. Lindh e A. Arabadjiev, juízes,

advogada-geral: J. Kokott,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 19 de Junho de 2008,

vistas as observações apresentadas:

em representação de G. Katz, por L. Kiss, ügyvéd,

em representação de I. Sós, por L. Helmeczy, ügyvéd,

em representação do Governo húngaro, por J. Fazekas, R. Somssich e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por E. Riedl, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por R. Troosters e B. Simon, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 10 de Julho de 2008,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 2.o e 3.o da Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal (JO L 82, p. 1, a seguir «decisão-quadro»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal iniciado contra I. Sós, acusado de burla por G. Katz, que actua como acusador particular substituto.

Quadro jurídico

Direito da União Europeia

3

De acordo com o quarto considerando da decisão-quadro:

«Os Estados-Membros devem aproximar as suas disposições legislativas e regulamentares na medida do necessário para realizar o objectivo de garantir um nível elevado de protecção às vítimas do crime, independentemente do Estado-Membro em que se encontrem.»

4

Para efeitos da decisão-quadro, nos termos do seu artigo 1.o, entende-se por:

«a)

‘Vítima’: a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, directamente causadas por acções ou omissões que infrinjam a legislação penal de um Estado-Membro;

[…]»

5

O artigo 2.o da decisão-quadro refere:

«1.   Cada Estado-Membro assegura às vítimas um papel real e adequado na sua ordem jurídica penal. Cada Estado-Membro continua a envidar esforços no sentido de assegurar que, durante o processo, as vítimas sejam tratadas com respeito pela sua dignidade pessoal e reconhece os direitos e interesses legítimos da vítima, em especial no âmbito do processo penal.

2.   Cada Estado-Membro assegura às vítimas particularmente vulneráveis a possibilidade de beneficiar de um tratamento específico, o mais adaptado possível à sua situação.»

6

O artigo 3.o da decisão-quadro dispõe:

«Cada Estado-Membro garante à vítima a possibilidade de ser ouvida durante o processo e de fornecer elementos de prova.

Cada Estado-Membro toma as medidas adequadas para que as suas autoridades apenas interroguem a vítima na medida do necessário para o desenrolar do processo penal.»

7

Nos termos do artigo 5.o da decisão-quadro:

«Cada Estado-Membro toma as medidas necessárias, em condições comparáveis às aplicadas ao arguido, para minimizar tanto quanto possível os problemas de comunicação, quer em relação à compreensão, quer em relação à intervenção da vítima na qualidade de testemunha ou parte num processo penal nos diversos actos determinantes desse processo.»

8

O artigo 7.o da decisão-quadro prevê:

«Cada Estado-Membro proporciona, em conformidade com as disposições nacionais aplicáveis à vítima que intervenha na qualidade de parte ou testemunha, a possibilidade de ser reembolsada das despesas em que incorreu em resultado da sua legítima participação no processo penal.»

9

De acordo com a Informação sobre as declarações da República Francesa e da República da Hungria sobre a sua aceitação da jurisdição do Tribunal de Justiça para decidir, a título prejudicial, sobre os actos referidos no artigo 35.o do Tratado da União Europeia, publicada no Jornal Oficial da União Europeia em 14 de Dezembro de 2005 (JO L 327, p. 19), a República da Hungria declarou que aceitava a jurisdição do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em conformidade com os acordos fixados no artigo 35.o, n.o 3, alínea a), UE.

10

Contudo, nos termos da Decisão do Governo húngaro (kormányhatározat) 2088/2003 (V. 15.), relativa a uma declaração sobre o processo de submissão de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, de 15 de Maio de 2003, «a República da Hungria declara, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, UE, aceitar a competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias nos termos do artigo 35.o, n.o 3, alínea b), UE».

11

Resulta da Informação sobre as declarações da República da Hungria, da República da Letónia, da República da Lituânia e da República da Eslovénia sobre a sua aceitação da competência do Tribunal de Justiça para decidir, a título prejudicial, sobre os actos a que se refere o artigo 35.o do Tratado da União Europeia, publicada no Jornal Oficial da União Europeia em 14 de Março de 2008 (JO L 70, p. 23), que a República da Hungria retirou a sua anterior declaração e «declarou que aceita a competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias nos termos do disposto no n.o 2 e na alínea b) do n.o 3 do artigo 35.o do Tratado da União Europeia».

Legislação nacional

12

O artigo 28.o, n.o 7, da Lei n.o XIX de 1998, lei do processo penal (Büntetőeljárásról szóló 1998 évi XIX. törvény), dispõe:

«Nas condições previstas na presente lei, o Ministério Público instaura a acção penal e, salvo nos casos de acusação particular ou de acusação particular em substituição do Ministério Público, exerce-a em juízo ou decide submetê-la ao processo de mediação, suspender o processo ou arquivá-lo parcialmente. O Ministério Público pode arquivar o processo ou prossegui-lo com outra base. Pode examinar os autos na fase judicial. Tem o poder de intervir sobre qualquer questão suscitada no processo.»

13

O artigo 31.o, n.o 1, da mesma lei prevê:

«Não pode agir em processo penal como membro do Ministério Público quem:

[…]

b)

for ou tiver sido parte no processo na qualidade de […] vítima, acusador particular, acusador particular em substituição do Ministério Público, assistente ou denunciante, como representante de alguma dessas pessoas ou ainda qualquer pessoa próxima de alguma delas.

c)

quem participar ou tiver participado no processo como testemunha, perito ou especialista,

[…]»

14

O artigo 51.o, n.o 1, da referida lei define a vítima como a pessoa cujos direitos ou interesses legítimos tenham sido postos em causa pela infracção penal. Nos termos do n.o 2 do mesmo artigo, a vítima tem o direito de:

«a)

salvo disposição da presente lei em contrário, estar presente nas diligências do processo e examinar os respectivos autos,

b)

apresentar requerimentos e observações em qualquer fase do processo,

c)

receber do tribunal, do Ministério Público e da autoridade de instrução todos os esclarecimentos sobre os seus direitos e deveres no processo penal,

d)

exercer quaisquer meios processuais nos casos previstos na presente lei.»

15

Nos termos do artigo 53.o, n.o 1, da Lei n.o XIX de 1998:

«A vítima pode constituir-se acusador particular em substituição do Ministério Público nos casos previstos na presente lei quando:

a)

o Ministério Público ou a autoridade de instrução tenham proferido decisão de arquivamento ou de não pronúncia,

b)

o Ministério Público tenha arquivado parcialmente,

c)

o Ministério Público tenha desistido da acção penal,

d)

o Ministério Público não tenha apurado a existência de uma infracção que justifique a acção pública no termo do processo de instrução e, portanto, não tenha exercido a acção penal ou tenha — no termo da instrução ordenada no âmbito de um processo com acusação particular — decidido não exercer por si próprio a acção penal,

e)

o Ministério Público tenha desistido da acção penal durante a discussão da causa por entender que a infracção não justifica a acção pública.»

16

O artigo 236.o da referida lei enuncia:

«Salvo disposição da presente lei em contrário, o acusador particular em substituição do Ministério Público exerce em juízo os poderes conferidos ao Ministério Público, incluindo o de promover medidas de coacção privativas ou restritivas da liberdade do arguido. O acusador particular em substituição do Ministério Público não pode promover a inibição do exercício do poder paternal do arguido.»

17

O artigo 343.o, n.o 5, da mesma lei dispõe:

«O acusador particular em substituição do Ministério Público não pode alargar o objecto da acção penal.»

Factos e questão prejudicial

18

No âmbito de uma acção penal instaurada no Fővárosi Bíróság (Tribunal de Budapeste) por G. Katz, na qualidade de acusador particular substituto, são imputados a I. Sós actos constitutivos do crime de burla, previstos no artigo 318.o, n.o 1, do Código Penal húngaro (Büntető törvénykönyv), e que causaram a G. Katz danos significativos, na acepção do n.o 6, alínea a), desse artigo. A referida acção foi instaurada na sequência de uma decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Público nesse mesmo processo.

19

Entende que a acção pública instaurada pelo acusador particular substituto constitui um modo especial de exercício da acção pública previsto nas normas de processo penal húngaras. Além da acção instaurada por iniciativa do Ministério Público, o direito húngaro permite à vítima de certos crimes menores dar início e prosseguir a acção penal: trata-se da «acusação particular» («magánvád»). A «acusação particular substitutiva» («pótmagánvád»), em causa no litígio no processo principal, é um terceiro meio de acção pública que permite à vítima de uma infracção intervir, nomeadamente quando o Ministério Público arquiva um processo que instaurou. A acusação particular e a acusação particular substitutiva não devem ser confundidas com a constituição de assistente.

20

O requerimento de G. Katz no sentido de, como vítima, ser ouvido na qualidade de testemunha no âmbito da acusação particular substitutiva em causa foi indeferido pelo Fővárosi Bíróság, que decidiu sobre essa oferta de prova e encerrou a discussão quanto a esse ponto.

21

Nas suas alegações no órgão jurisdicional de reenvio, G. Katz sustenta que, ao não ouvir a vítima, que é também acusador, como testemunha, o órgão jurisdicional de reenvio violou os princípios do direito a um processo equitativo e da igualdade das armas consagrados na Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «CEDH»). Alegou ainda já ter sido prejudicado na instrução pelo facto de a autoridade de instrução não ter respeitado a sua obrigação de apurar os factos apesar de a figura legal do acusador particular substituto permitir precisamente resolver essa situação a fim de que, graças ao depoimento presencial da vítima, possa ser apurada a verdade e esta possa obter uma reparação do seu dano. Segundo G. Katz, se assim não for, a vítima está desfavorecida relativamente ao arguido.

22

Em posterior audiência, realizada em 6 de Julho de 2007, o órgão jurisdicional de reenvio reabriu o processo de instrução. Referiu que, embora o artigo 236.o da Lei n.o XIX de 1998 derrogue a proibição de um acusador particular substituto agir como membro do Ministério Público, nenhuma disposição da mesma lei derroga a proibição, prevista no seu artigo 31.o, n.o 1, de uma testemunha agir como membro do Ministério Público. O Fővárosi Bíróság infere daí que um acusador particular substituto não pode ser ouvido como testemunha num processo penal deste tipo. Quanto ao processo de acusação particular, a referida lei contém uma disposição expressa segundo a qual o acusador particular pode ser ouvido como testemunha. Embora os processos de acusação particular e de acusação particular substitutiva sejam de natureza indubitavelmente semelhante, não se pode, não havendo qualquer remissão de um para o outro, aplicar as mesmas regras a esses dois tipos distintos de processos.

23

O Fővárosi Bíróság verifica que o próprio legislador húngaro reconheceu que o instituto da acusação particular substitutiva é um instrumento importante que permite suprir a inacção das autoridades judiciárias. Também não existe qualquer dúvida de que esse instituto jurídico implica que se reconheça à vítima uma possibilidade real de obter, por meio de um processo vinculativo, uma decisão judicial. Ora, pode ser difícil, ou mesmo impossível, atingir esse resultado se a vítima que actua como acusador particular substituto não tiver a possibilidade de ser ouvida como testemunha e se, por causa do seu depoimento, não puder apresentar elementos de prova, apesar de, na maior parte das vezes, ser a vítima quem tem conhecimento dos factos a demonstrar.

24

Contudo, há que reconhecer também que, ao dispor das competências atribuídas ao Ministério Público, o acusador particular substituto tem direitos bastante consideráveis. Tendo em conta o seu poder de intervenção, tem a possibilidade de apresentar meios de prova. Tem ainda a faculdade de apresentar observações.

25

O Fővárosi Bíróság interroga-se sobre o significado dos conceitos de papel «real e adequado» da vítima e de «possibilidade» de esta «ser ouvida durante o processo e […] fornecer elementos de prova», previstos, respectivamente, nos artigos 2.o e 3.o da decisão-quadro, e pergunta se há que incluir nesses conceitos a possibilidade de o órgão jurisdicional nacional ouvir como testemunha a vítima de uma infracção num processo de acusação particular substitutiva.

26

Nestas condições, o Fővárosi Bíróság, decidindo em primeira instância, decidiu sobrestar na decisão e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 2.o e 3.o da [d]ecisão-[q]uadro […] devem ser interpretados no sentido de que o órgão jurisdicional nacional deve ter a possibilidade de ouvir, como testemunha, a vítima de uma infracção também no âmbito de um processo em que esta se tenha constituído acusador particular substituto?»

Quanto à admissibilidade

27

Como resulta do n.o 10 do presente acórdão, a República da Hungria, através da Decisão governamental 2088/2003 de 15 de Maio de 2003, declarou aceitar a competência do Tribunal de Justiça para decidir sobre a validade e a interpretação dos actos a que se refere o artigo 35.o UE, nos termos previstos no n.o 3, alínea b), desse artigo. É pacífico que a presente decisão de reenvio foi apresentada de acordo com essa declaração, de modo que o Fővárosi Bíróság é um dos órgãos jurisdicionais que podem submeter o processo ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 35.o UE.

28

O Governo húngaro entende, porém, que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível por ser hipotético. Na sua opinião, o Fővárosi Bíróság afirma erradamente que o direito húngaro não permite que o acusador particular substituto seja ouvido como testemunha em processo penal. Em apoio da sua argumentação, esse governo invoca nomeadamente o parecer n.o 4/2007 da secção penal do Legfelsöbb Bíróság (Supremo Tribunal), de 14 de Maio de 2007, que declara que, «em processo penal, não há qualquer impedimento legal a que a vítima que actua como acusador particular substituto seja inquirida como testemunha». G. Katz também considera que não há qualquer dúvida de que o direito húngaro autoriza o acusador particular substituto a ser inquirido como testemunha em processo penal.

29

Importa lembrar que, nos termos do artigo 46.o, alínea b), UE, as disposições do Tratado CE relativas à competência do Tribunal de Justiça e ao exercício dessa competência, entre as quais consta o artigo 234.o CE, são aplicáveis às disposições do título VI do Tratado UE, nas condições previstas no artigo 35.o UE. Daí resulta que o regime instituído pelo artigo 234.o CE é aplicável à competência prejudicial do Tribunal de Justiça baseada no artigo 35.o UE, sem prejuízo das condições previstas neste último artigo (v., nomeadamente, acórdão de 12 de Agosto de 2008, Santesteban Goicoechea, C-296/08 PPU, Colect., p. I-6307, n.o 36 e jurisprudência aí referida).

30

À semelhança do artigo 234.o CE, o artigo 35.o UE sujeita a competência prejudicial do Tribunal de Justiça à condição de o órgão jurisdicional nacional «considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa», pelo que a jurisprudência relativa à admissibilidade das questões prejudiciais apresentadas ao abrigo do artigo 234.o CE é, em princípio, transponível para os pedidos de decisão prejudicial apresentados ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 35.o UE (v., nomeadamente, acórdão de 28 de Junho de 2007, Dell’Orto, C-467/05, Colect., p. I-5557, n.o 39 e jurisprudência aí referida).

31

Daí resulta que a presunção de pertinência das questões apresentadas a título prejudicial pelos órgãos jurisdicionais nacionais só pode ser afastada em casos excepcionais, quando for manifesto que a interpretação pedida das disposições do direito da União Europeia referidas nessas questões não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto da lide principal ou quando o problema for de natureza hipotética ou o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto ou de direito necessários para dar uma respostas útil às questões que lhe são submetidas. Com excepção desses casos, o Tribunal de Justiça é obrigado, em princípio, a decidir sobre as questões prejudiciais relativas à interpretação dos actos a que se refere o artigo 35.o, n.o 1, UE (acórdão Dell’Orto, já referido, n.o 40 e jurisprudência aí referida).

32

Como resulta dos n.os 18 a 25 do presente acórdão, a decisão de reenvio expõe os principais factos na origem do litígio no processo principal e as disposições do direito nacional aplicável directamente em causa, além de explicar por que razões o órgão jurisdicional de reenvio pede a interpretação da decisão-quadro e a ligação entre esta última e a legislação nacional aplicável na matéria.

33

Contrariamente ao que alega o Governo húngaro, não é manifesto que, no processo principal, o problema colocado seja de natureza hipotética, quanto mais não seja visto que é pacífico que o órgão jurisdicional de reenvio indeferiu o requerimento de G. Katz no sentido de ser ouvido como testemunha no processo de acusação particular substitutiva em causa no processo principal com o fundamento de o direito húngaro não o prever expressamente nessa situação.

34

De resto, não cabe ao Tribunal de Justiça pronunciar-se, em sede de reenvio prejudicial, sobre a interpretação das disposições nacionais nem decidir se a interpretação que lhes é dada pelo órgão jurisdicional de reenvio é correcta (v., nomeadamente, a propósito do artigo 234.o CE, acórdão de 14 de Fevereiro de 2008, Dynamic Medien, C-244/06, Colect., p. I-505, n.o 19).

35

Assim sendo, cumpre responder ao pedido de decisão prejudicial.

36

Em contrapartida, não há que deferir o pedido de G. Katz no sentido de que o Tribunal de Justiça amplie a questão submetida, de forma a apreciar também se a decisão-quadro implica que certos poderes de instrução reconhecidos ao Ministério Público pelo direito húngaro sejam extensivos ao acusador particular substituto.

37

Com efeito, nos termos do artigo 35.o UE, cabe ao órgão jurisdicional nacional, e não às partes no processo principal, a apresentação do pedido ao Tribunal. Estando, portanto, a faculdade de determinar as questões a submeter ao Tribunal reservada ao órgão jurisdicional nacional, as partes não podem modificar o seu conteúdo (v. acórdão Santesteban Goicoechea, já referido, n.o 46).

38

Por outro lado, responder às questões formuladas por G. Katz seria incompatível com o papel conferido ao Tribunal de Justiça pelo artigo 35.o UE e com a obrigação de este assegurar aos governos dos Estados-Membros e às partes interessadas a possibilidade de apresentarem observações nos termos do artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça, tendo em conta que, por força desta última disposição, só as decisões de reenvio são notificadas às partes interessadas (acórdão Santesteban Goicoechea, já referido, n.o 47).

Quanto à questão prejudicial

39

É indiscutível que uma pessoa na situação de G. Katz constitui uma vítima, na acepção do artigo 1.o, alínea a), da decisão-quadro, disposição segundo a qual a vítima é a pessoa singular que sofreu um dano directamente causado por acções ou omissões que infrinjam a legislação penal de um Estado-Membro.

40

Como resulta dos artigos 5.o e 7.o da decisão-quadro, esta tem em vista a situação da vítima, quer esta actue como testemunha quer actue como parte no processo.

41

Nenhuma disposição da decisão-quadro se destina a excluir do seu âmbito de aplicação a situação em que, em processo penal, a vítima exerce, como no processo principal, as funções de acusador em vez da autoridade pública.

42

Resulta do quarto considerando da decisão-quadro que se deve garantir às vítimas de infracções penais um nível elevado de protecção.

43

De acordo com o artigo 2.o, n.o 1, da decisão-quadro, os Estados-Membros asseguram às vítimas um papel real e adequado na sua ordem jurídica penal e reconhecem os direitos e interesses legítimos da vítima, em especial no âmbito do processo penal.

44

O artigo 3.o, n.o 1, da decisão-quadro dispõe, em termos gerais, que os Estados-Membros garantem às vítimas a possibilidade de serem ouvidas durante o processo e de fornecerem elementos de prova.

45

Por conseguinte, embora uma vítima que actua como acusador particular substituto possa reivindicar o benefício do estatuto das vítimas tal como previsto na decisão-quadro, não deixa de ser verdade que nem o seu artigo 3.o, n.o 1, nem qualquer outra disposição da decisão-quadro fornecem esclarecimentos sobre o regime da prova aplicável às vítimas em processo penal.

46

Não se pode, pois, deixar de observar que a decisão-quadro, não deixando de impor aos Estados-Membros, por um lado, que assegurem às vítimas um nível elevado de protecção e um papel real e adequado na sua ordem jurídica penal e, por outro, que reconheçam os seus direitos e interesses legítimos e garantam às vítimas a possibilidade de serem ouvidas durante o processo e de fornecerem elementos de prova, deixa às autoridades nacionais um amplo poder de apreciação quanto à forma concreta de prossecução desses objectivos.

47

Contudo, sob pena de se deixar o artigo 3.o, n.o 1, da decisão-quadro sem efeito útil e de não se cumprir as obrigações previstas no seu artigo 2.o, n.o 1, essas disposições implicam, de qualquer forma, que a vítima possa depor no processo penal e que esse depoimento possa ser tomado em consideração como elemento de prova.

48

Importa acrescentar que a decisão-quadro deve ser interpretada de forma a que sejam respeitados os direitos fundamentais, entre os quais se deve referir, em particular, o direito a um processo equitativo, tal como previsto no artigo 6.o da CEDH (v., nomeadamente, acórdão de 16 de Junho de 2005, Pupino, C-105/03, Colect., p. I-5285, n.o 59).

49

Cabe, pois, ao órgão jurisdicional de reenvio assegurar-se mais em particular de que a produção da prova em processo penal, considerada no seu conjunto, não põe em causa a equidade do processo, na acepção do artigo 6.o da CEDH, tal como interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (v., nomeadamente, acórdãos de 10 de Abril de 2003, Steffensen, C-276/01, Colect., p. I-3735, n.o 76, e Pupino, já referido, n.o 60).

50

Nestas condições, há que responder à questão submetida que os artigos 2.o e 3.o da decisão-quadro devem ser interpretados no sentido de que não obrigam um órgão jurisdicional nacional a autorizar a vítima de uma infracção a depor como testemunha num processo de acusação particular substitutiva como o em causa no processo principal. Contudo, na falta dessa possibilidade, a vítima deve poder ser autorizada a prestar um depoimento que possa ser tomado em consideração como elemento de prova.

Quanto às despesas

51

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

Os artigos 2.o e 3.o da Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, devem ser interpretados no sentido de que não obrigam um órgão jurisdicional nacional a autorizar a vítima de uma infracção a depor como testemunha num processo de acusação particular substitutiva como o em causa no processo principal. Contudo, na falta dessa possibilidade, a vítima deve poder ser autorizada a prestar um depoimento que possa ser tomado em consideração como elemento de prova.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: húngaro.