ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

8 de Setembro de 2009 ( *1 )

«Recurso de anulação — Regulamento (CE) n.o 1013/2006 — Transferência de resíduos — Escolha da base jurídica — Artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE»

No processo C-411/06,

que tem por objecto um recurso de anulação nos termos do artigo 230.o CE, entrado em 2 de Outubro de 2006,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por G. Valero Jordana, M. Huttunen e M. Konstantinidis, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Parlamento Europeu, representado por I. Anagnostopoulou e U. Rösslein, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

Conselho da União Europeia, representado por M. Moore e K. Michoel, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorridos,

apoiados por:

República Francesa, representada por G. de Bergues, A. Adam e G. Le Bras, na qualidade de agentes,

República da Áustria, representada por E. Riedl, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por E. Jenkinson, E. O’Neil e S. Behzadi-Spencer, na qualidade de agentes, assistidas por A. Dashwood, barrister,

intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans (relator), A. Rosas, K. Lenaerts, A. Ó Caoimh e J.-C. Bonichot, presidentes de secção, E. Juhász, G. Arestis, A. Borg Barthet, U. Lõhmus, L. Bay Larsen e P. Lindh, juízes,

advogado-geral: M. Poiares Maduro,

secretário: M.-A. Gaudissart, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 13 de Janeiro de 2009,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 26 de Março de 2009,

profere o presente

Acórdão

1

Na sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que anule o Regulamento (CE) n.o 1013/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Junho de 2006, relativo a transferências de resíduos (JO L 190, p. 1, a seguir «regulamento impugnado»), na medida em que se funda não nos artigos 175.o, n.o 1, CE e 133.o CE, mas apenas no artigo 175.o, n.o 1, CE.

Quadro jurídico

Convenção de Basileia

2

O preâmbulo da Convenção sobre o controlo dos movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua eliminação, assinada em Basileia, em 22 de Março de 1989, aprovada, em nome da Comunidade, através da Decisão 93/98/CEE do Conselho, de 1 de Fevereiro de 1993 (JO L 39, p. 1, a seguir «Convenção de Basileia»), enuncia no seu oitavo a décimo considerandos:

«Certas de que os resíduos perigosos e outros resíduos devem, na medida em que tal seja compatível com uma gestão ambientalmente racional e eficaz, ser eliminados no Estado em que foram produzidos,

Conscientes também de que os movimentos transfronteiriços desses resíduos, desde o Estado da sua produção até qualquer outro Estado, apenas devem ser permitidos quando realizados em condições que não ponham em perigo a saúde humana e o ambiente, devendo essas condições respeitar o disposto na presente Convenção,

Considerando que um maior controlo dos movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e de outros resíduos actuará como incentivo para uma gestão ambientalmente racional desses resíduos e a redução do volume dos movimentos transfronteiriços correspondentes,».

3

O artigo 2.o, n.o 4, dessa Convenção define o conceito de «eliminação» no sentido de abranger «qualquer operação especificada no anexo IV desta Convenção». O referido anexo IV inclui uma lista dos diversos tipos de operações de eliminação, designadamente, na secção B, a categoria das «operações que podem conduzir à recuperação, reciclagem, regeneração, reutilização directa ou usos alternativos de resíduos».

Regulamento impugnado

4

O regulamento impugnado foi aprovado com vista à substituição e actualização das disposições do Regulamento (CEE) n.o 259/93 do Conselho, de 1 de Fevereiro de 1993, relativo à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos no interior, à entrada e à saída da Comunidade (JO L 30, p. 1). Este regulamento, fundado no artigo 130.o-S do Tratado CEE (que passou a artigo 130.o-S do Tratado CE, o qual, por sua vez, passou, após alteração, a artigo 175.o CE), foi aprovado, designadamente, para dar cumprimento às obrigações decorrentes da Convenção de Basileia.

5

Resulta do quinto considerando do regulamento impugnado que este diploma também se propõe integrar o conteúdo da Decisão C(2001) 107/final do Conselho da Organização para a Cooperação Económica e Desenvolvimento (OCDE), relativa à revisão da Decisão C(1992) 39/final sobre o controlo dos movimentos transfronteiriços de resíduos destinados a operações de valorização (a seguir «decisão OCDE»), a fim de harmonizar as listas de desperdícios com a Convenção de Basileia e rever determinados outros requisitos. Além disso, como resulta do segundo considerando do regulamento impugnado, nessa ocasião, foi decidido, por uma questão de clareza, integrar num único diploma diversas alterações que foram sendo introduzidas no Regulamento n.o 259/93.

6

O primeiro considerando do regulamento impugnado refere que «[o] principal e mais predominante objectivo e elemento [deste] regulamento é a protecção do ambiente, sendo os seus efeitos no comércio internacional meramente secundários».

7

Nos termos do seu trigésimo terceiro considerando, «[d]everão ser tomadas as medidas necessárias para assegurar que […] os resíduos transferidos dentro da Comunidade e para ela importados sejam geridos durante todo o período de transferência, incluindo a valorização ou eliminação no país de destino, sem perigo para a saúde humana e sem a utilização de processos ou métodos que possam prejudicar o ambiente. No que diz respeito às exportações para fora da Comunidade que não sejam proibidas, é necessário desenvolver esforços para assegurar que os resíduos sejam geridos de uma forma ambientalmente racional durante todo o período de transferência, incluindo a sua valorização ou eliminação no país terceiro de destino […]».

8

O quadragésimo segundo considerando do referido regulamento enuncia, a propósito da conformidade deste diploma com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, que, «[a]tendendo a que o objectivo do presente regulamento, nomeadamente assegurar a protecção do ambiente quando se verifica a transferência de resíduos, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados-Membros e pode, pois, devido à escala e efeitos da acção proposta, ser mais bem alcançado ao nível comunitário, a Comunidade pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade […]. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade […], o presente regulamento não excede o necessário para atingir aquele objectivo».

9

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, do regulamento impugnado, este diploma «estabelece procedimentos e regimes de controlo relativos a transferências de resíduos, de acordo com a origem, o destino e o itinerário dessas transferências, o tipo de resíduos transferidos e o tipo de tratamento a aplicar aos resíduos no seu destino».

10

Nos termos do artigo 1.o, n.o 2, do regulamento impugnado:

«O presente regulamento é aplicável a transferências de resíduos:

a)

Entre Estados-Membros, no interior da Comunidade ou com trânsito por países terceiros;

b)

Importados de países terceiros para a Comunidade;

c)

Exportados da Comunidade para países terceiros;

d)

Em trânsito na Comunidade, em proveniência de países terceiros ou a eles destinados.»

11

O artigo 2.o do regulamento impugnado inclui definições, entre as quais figuram nomeadamente as seguintes:

«30)

‘Importação’, qualquer entrada de resíduos na Comunidade, com exclusão do trânsito através da Comunidade;

31)

‘Exportação’, o acto de fazer sair os resíduos da Comunidade, com exclusão do trânsito através da Comunidade;

32)

‘Trânsito’, a transferência de resíduos efectiva ou prevista efectuada através de um ou mais países com excepção do país de expedição ou de destino;

33)

‘Transporte’, o transporte rodoviário, ferroviário, aéreo, marítimo ou fluvial de resíduos;

34)

‘Transferência’, o transporte de resíduos com vista à valorização ou à eliminação, que se efectue ou esteja previsto:

a)

Entre dois países; ou

b)

Entre um país e países e territórios ultramarinos ou outras áreas sob a protecção do primeiro; ou

c)

Entre um país e qualquer área que não faça parte de qualquer país ao abrigo do direito internacional; ou

d)

Entre um país e o Antárctico; ou

e)

A partir de um país transitando por qualquer uma das áreas supramencionadas; ou

f)

No interior de um país, transitando por qualquer uma das áreas supramencionadas e que tenha origem e se conclua no mesmo país; ou

g)

Numa área geográfica não sujeita à jurisdição de qualquer país, com destino a um país.»

12

O título II do regulamento impugnado, no qual se integram os artigos 3.o a 32.o, é relativo às transferências no interior da Comunidade, com ou sem trânsito por países terceiros. Este título define o regime de base do regulamento, estabelecendo regras circunstanciadas no que respeita às obrigações de notificação, à tramitação do procedimento e ao controlo em matéria de transferências de resíduos. Por força do artigo 3.o, n.o 1, do regulamento, estão sujeitas ao procedimento prévio de notificação e consentimento escrito, nos termos do título II do mesmo, as transferências dos resíduos destinadas a operações de eliminação e, designadamente, as destinadas a operações de valorização constantes do anexo IV do regulamento impugnado («lista laranja»). Este anexo também inclui os resíduos enumerados nos anexos II e VIII da Convenção de Basileia.

13

No âmbito do procedimento prévio de notificação e consentimento escrito, o notificador deve nomeadamente fornecer, por força do disposto nos artigos 4.o, n.o 4, e 5.o do regulamento impugnado, prova da existência de um contrato celebrado entre si e o destinatário, no que respeita à valorização ou eliminação dos resíduos notificados, e, por força do disposto nos artigos 4.o, n.o 5, e 6.o desse mesmo regulamento, prova da constituição de uma garantia financeira ou seguro equivalente que cubra os custos de transporte, das operações de valorização ou eliminação e de armazenagem dos resíduos em causa. Em caso de notificação de uma transferência prevista de resíduos, as autoridades competentes podem, com base em motivos relacionados fundamentalmente com a protecção do ambiente, enumerados nos artigos 11.o e 12.o desse regulamento, estabelecer condições para autorizarem a referida transferência ou apresentar objecções fundamentadas a essa transferência.

14

Os artigos 22.o a 25.o do regulamento impugnado consagram uma obrigação de retoma dos resíduos, quando uma transferência não possa ser concluída ou em caso de transferência ilegal, e definem regras no que respeita aos custos de retoma. Os artigos 31.o e 32.o definem regras específicas aplicáveis às transferências no interior da Comunidade, com trânsito por países terceiros.

15

O procedimento prévio de notificação e consentimento escrito não se aplica às transferências de resíduos não perigosos, enumerados, nomeadamente, no anexo III do regulamento impugnado («lista verde»), e destinados a valorização. Estas transferências apenas são objecto, nos termos dos artigos 3.o, n.o 2, e 18.o, n.o 1, desse regulamento, de uma exigência de informação geral. Todavia, em conformidade com o disposto no artigo 18.o, n.o 2, do dito regulamento, o contrato entre a pessoa que trata da transferência e o destinatário, com vista à valorização dos resíduos, produz efeitos no momento do início da transferência, devendo a prova da existência desse contrato poder ser fornecida.

16

O título III do regulamento impugnado diz respeito às transferências de resíduos feitas exclusivamente no interior dos Estados-Membros. Por força do artigo 33.o, n.o 1, desse regulamento, «[o]s Estados-Membros devem criar um sistema apropriado de fiscalização e controlo das transferências de resíduos realizadas exclusivamente no território sob a sua jurisdição. Esse sistema deve tomar em consideração a necessidade de assegurar a coerência com o sistema comunitário estabelecido nos títulos II e VII […]».

17

O título IV do regulamento impugnado diz respeito ao regime relativo às exportações de resíduos da Comunidade para países terceiros. O artigo 34.o, n.os 1 e 2, desse regulamento proíbe todas as exportações da Comunidade de resíduos destinados a eliminação, com excepção das exportações de resíduos destinados a serem eliminados nos países da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) que também sejam partes na Convenção de Basileia. Neste caso, em conformidade com o disposto no artigo 35.o do regulamento, aplicam-se as disposições do título II do mesmo regulamento, relativas ao procedimento prévio de notificação e consentimento escrito, mutatis mutandis, sem prejuízo de eventuais adaptações e disposições adicionais. Encontram-se igualmente proibidas as exportações da Comunidade de resíduos que integrem as categorias referidas no artigo 36.o, n.o 1, do regulamento impugnado, entre os quais se incluem os resíduos perigosos destinados a valorização em países onde a decisão da OCDE não se aplica. No que respeita à exportação de resíduos não perigosos («lista verde») destinados a valorização nestes últimos países, o artigo 37.o deste regulamento determina que a Comissão deve obter informações sobre os procedimentos aplicáveis. Quanto à exportação de resíduos perigosos e não perigosos destinados a valorização em países onde se aplica a decisão da OCDE, por força do artigo 38.o do referido regulamento, as disposições do título II são também aplicáveis, mutatis mutandis, sem prejuízo de eventuais adaptações e disposições adicionais.

18

O título V do regulamento impugnado regula as importações para a Comunidade provenientes de países terceiros. Nos termos do seu artigo 41.o, são proibidas as importações para a Comunidade de resíduos destinados a eliminação, com excepção das provenientes de países que sejam partes na Convenção de Basileia ou de outros países com os quais a Comunidade ou a Comunidade e os seus Estados-Membros tenham celebrado acordos ou convénios bilaterais ou multilaterais compatíveis com a legislação comunitária e que cumpram o disposto no artigo 11.o dessa Convenção. Nesses casos, por força do disposto nos artigos 41.o, n.o 3, e 42.o do mesmo regulamento, aplicam-se as disposições do título II do referido regulamento, mutatis mutandis, sem prejuízo de eventuais adaptações e disposições adicionais. Nos termos do artigo 43.o, n.o 1, do regulamento impugnado, são proibidas todas as importações de resíduos destinados a valorização, excepto as provenientes de países abrangidos pela decisão da OCDE ou de outros países que sejam partes na Convenção de Basileia, ou de outros países com os quais a Comunidade ou a Comunidade e os seus Estados-Membros tenham celebrado acordos ou convénios bilaterais ou multilaterais compatíveis com a legislação comunitária e que cumpram o disposto no artigo 11.o da Convenção de Basileia. Nesses casos, por força do disposto nos artigos 43.o, n.o 3, 44.o, n.o 1, e 45.o do regulamento, conjugados com o seu artigo 42.o, aplicam-se as disposições do título II, mutatis mutandis, sem prejuízo de eventuais adaptações e disposições adicionais.

19

O título VI do regulamento impugnado define as regras aplicáveis ao trânsito, pela Comunidade, de resíduos com proveniência em e destino a países terceiros, as quais, nos termos dos artigos 47.o e 48.o do regulamento, conjugados com os artigos 42.o e 44.o, também se inspiram no título II do referido regulamento.

20

O título VII do regulamento impugnado inclui outras disposições relativas à sua própria aplicação, no que respeita, designadamente, às sanções, à designação das autoridades competentes e aos relatórios a apresentar pelos Estados-Membros. Entre essas disposições, o artigo 49.o do regulamento institui obrigações de carácter geral no que respeita à protecção do ambiente, nos seguintes termos:

«1.   O produtor, o notificador e outras empresas envolvidas numa transferência e/ou na valorização ou eliminação de resíduos devem tomar as medidas necessárias para garantir que quaisquer resíduos por si transferidos sejam geridos sem pôr em perigo a saúde humana e de uma forma ambientalmente correcta durante todo o período de transferência e durante a operação de valorização e [de] eliminação. […]

2.   No caso de exportações da Comunidade, a autoridade competente de expedição na Comunidade deve:

a)

Exigir e procurar garantir que todos os resíduos exportados sejam geridos de forma ambientalmente correcta durante todo o período de transferência, incluindo a eliminação, referida no artigo 34.o, ou a valorização referida nos artigos 36.o e 38.o, no país terceiro de destino;

b)

Proibir uma exportação de resíduos para países terceiros se tiver motivos para crer que os resíduos não serão geridos de acordo com os requisitos da alínea a).

[…]

3.   No caso de importações para a Comunidade, a autoridade competente de destino na Comunidade deve:

a)

Exigir e tomar as medidas necessárias para que todos os resíduos transferidos para a área sob a sua jurisdição sejam geridos sem pôr em perigo a saúde humana e sem utilização de processos ou métodos que possam prejudicar o ambiente, de acordo com o artigo 4.o da Directiva 2006/12/CE e com a legislação comunitária em matéria de resíduos, durante todo o período de transferência, incluindo a valorização ou a eliminação no país de destino;

b)

Proibir uma importação de resíduos de países terceiros se tiver motivos para crer que os resíduos não serão geridos de acordo com os requisitos da alínea a).»

Pedidos das partes e tramitação processual

21

A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

Anular o regulamento impugnado;

Declarar que subsistem os efeitos do regulamento anulado, até que sejam substituídos, dentro de um prazo razoável, por um acto aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia, assente na base jurídica correcta dos artigos 175.o, n.o 1, CE, e 133.o CE e justificado de forma correspondente nos considerandos; e

Condenar o Parlamento e o Conselho nas despesas.

22

O Parlamento conclui pedindo que o Tribunal se digne:

Julgar globalmente improcedente o recurso e

Condenar a Comissão nas despesas.

23

O Conselho, no caso de o recurso ser julgado admissível, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

Julgá-lo globalmente improcedente e

Condenar a Comissão nas despesas.

24

Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2007, a República Francesa, a República da Áustria e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte foram admitidos a intervir em apoio dos pedidos do Parlamento e do Conselho.

25

Na sequência de um pedido do Parlamento e do Conselho, apresentado ao abrigo do artigo 44.o, n.o 3, segundo parágrafo, do regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, o processo foi distribuído à Grande Secção.

Quanto ao recurso

Quanto à admissibilidade

26

O Conselho suscita uma questão prévia de admissibilidade relativa ao facto de a Comissão não especificar, na sua petição, contrariamente ao exigido pelo artigo 38.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento de Processo, as disposições do regulamento impugnado que, em sua opinião, se deviam basear no artigo 133.o CE e as que se deviam fundar no artigo 175.o, n.o 1, CE, bem como, eventualmente, as disposições que, simultaneamente, se deviam basear nesses dois artigos.

27

Segundo o artigo 38.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento de Processo, a petição inicial deve indicar o objecto do litígio e a exposição sumária dos fundamentos invocados. Estas indicações devem ser suficientemente claras e precisas para permitir ao demandado preparar a sua defesa e ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização. Daqui resulta que os elementos essenciais de facto e de direito em que se funda uma acção devem decorrer, de forma coerente e compreensível, do texto da própria petição (acórdãos de 26 de Abril de 2007, Comissão/Finlândia, C-195/04, Colect., p. I-3351, n.o 22, e de 21 de Fevereiro de 2008, Comissão/Itália, C-412/04, Colect., p. I-619, n.o 103).

28

A este respeito, cabe observar que a Comissão, ao indicar na petição que o regulamento impugnado se devia basear nos artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE e ao expor as razões pelas quais considera estarem satisfeitas as condições do recurso a essa dupla base jurídica, cumpriu as exigências decorrentes do artigo 38.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento de Processo. Com efeito, é óbvio que a petição permitiu que os recorridos e os Estados-Membros intervenientes apresentassem a sua posição respectiva com conhecimento de causa. Contrariamente ao que o Conselho sustenta, não é necessário que a petição de um recurso que põe em causa a base jurídica de um acto comunitário, pela razão de que este se devia ter fundado numa dupla base jurídica, especifique as partes ou as disposições do acto impugnado que estão abrangidas por uma ou outra das bases jurídicas invocadas, ou simultaneamente pelas duas.

29

Por conseguinte, o recurso da Comissão é admissível.

Quanto ao mérito

Argumentos das partes

30

A Comissão apresenta um único fundamento, relativo à violação do Tratado CE por o Parlamento e o Conselho terem optado utilizar como base jurídica do regulamento impugnado apenas o artigo 175.o, n.o 1, CE, e não os artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE, como aquela instituição havia proposto. A opção por uma base jurídica dupla impunha-se devido ao facto de esse regulamento englobar, tanto no que respeita à sua finalidade como ao seu conteúdo, duas componentes indissociáveis, uma de política comercial comum e a outra de protecção do ambiente, que não podem ser consideradas subsidiárias ou indirectas entre si.

31

A Comissão recorda que, segundo jurisprudência constante, o âmbito de aplicação da política comercial comum deve ser entendido em sentido lato e que uma medida destinada a reger as trocas com países terceiros não deixa de ser uma medida de política comercial pela simples razão de também servir objectivos que fazem parte de domínios não comerciais, como a protecção do ambiente. Neste contexto, refere o artigo 6.o CE, por força do qual as exigências em matéria de protecção do ambiente devem ser integradas na definição e na execução das políticas e acções da Comunidade previstas no artigo 3.o CE.

32

No que respeita ao nexo existente entre o regulamento impugnado e a política comercial comum, a Comissão alega que a letra do artigo 1.o, n.o 2, desse regulamento revela que este não se destina apenas a regular as transferências de resíduos na Comunidade com fins puramente ambientais, mas que também se aplica às importações, para a Comunidade, de resíduos provenientes de países terceiros, às exportações de resíduos da Comunidade para países terceiros e ao trânsito, na Comunidade, de resíduos provenientes de países terceiros ou a eles destinados. Acrescenta que, como os resíduos são «mercadorias» para efeitos da livre circulação de mercadorias na Comunidade, não restam dúvidas de que a importação, a exportação e o trânsito dessas mercadorias, que se regem especificamente pelos títulos IV a VI do referido regulamento, fazem parte da política comercial comum.

33

Dado que o carácter ambiental do regulamento impugnado resulta dos objectivos de protecção do ambiente prosseguidos pela Convenção de Basileia, a Comissão, sublinhando embora que essa convenção possui uma dimensão importante de política comercial, como de resto resulta do facto de ter sido considerada no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), observa que o regulamento tem um alcance muito superior ao da referida convenção. Com efeito, esta apenas se aplica aos movimentos de resíduos perigosos destinados a ser eliminados, enquanto o regulamento impugnado abrange todos os resíduos, quer sejam perigosos ou não e quer se destinem à eliminação ou à valorização.

34

Quanto à possibilidade de um regulamento ter uma dupla base jurídica constituída pelos artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE, a Comissão refere que o Tribunal de Justiça aceitou, no seu acórdão de 10 de Janeiro de 2006, Comissão/Parlamento e Conselho (C-178/03, Colect., p. I-107), respeitante à base jurídica do Regulamento (CE) n.o 304/2003 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2003, relativo à exportação e importação de produtos químicos perigosos (JO L 63, p. 1), que, tanto no plano das finalidades que prossegue como no do seu conteúdo, esse regulamento possui componentes comerciais e ambientais de tal forma indissociáveis que se impunha o recurso a essa dupla base jurídica.

35

Neste contexto, a Comissão remete para diferentes actos comunitários aprovados com uma base jurídica dupla, constituída pelos artigos 113.o do Tratado CEE (que passou a artigo 113.o do Tratado CE, o qual, por sua vez, passou, após alteração, a artigo 133.o CE) e 130.o-S do Tratado CEE, a saber, designadamente, o Regulamento (CEE) n.o 3254/91 do Conselho, de 4 de Novembro de 1991, que proíbe a utilização de armadilhas de mandíbulas na Comunidade, bem como a introdução na Comunidade de peles e produtos manufacturados de certas espécies de animais selvagens originárias de países que utilizam para a sua captura armadilhas de mandíbulas ou métodos não conformes com as normas internacionais de armadilhagem sem crueldade (JO L 308, p. 1), a Decisão 98/392/CE do Conselho, de 23 de Março de 1998, relativa à celebração pela Comunidade Europeia da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 10 de Dezembro de 1982 e do Acordo de 28 de Julho de 1994 relativo à aplicação da parte XI da convenção (JO L 179, p. 1), e o Regulamento (CE) n.o 1420/1999 do Conselho, de 29 de Abril de 1999, que estabelece regras e procedimentos comuns aplicáveis às transferências de determinados tipos de resíduos para certos países não membros da OCDE (JO L 166, p. 6). Assim, o Conselho já tinha admitido a possibilidade de aprovar actos com a referida dupla base jurídica. Na medida em que o regulamento impugnado prevê normas análogas às enunciadas no Regulamento n.o 1420/1999, a Comissão considera que o Conselho, caso não aceite que todo o regime das transferências de resíduos destinados à valorização, para países não membros da OCDE, se deve fundar na dupla base jurídica proposta, entra em contradição com o que aceitou ao aprovar este último regulamento.

36

Segundo a Comissão, o artigo 176.o CE não obsta à aplicação conjugada dos artigos 133.o CE e 175.o CE como base jurídica de um acto comunitário. Com efeito, se esse acto se destinasse a regular mais circunstanciadamente uma certa matéria, a possibilidade de os Estados-Membros manterem ou aprovarem medidas de protecção reforçadas ficaria necessariamente comprometida. Além disso, resulta do segundo período do artigo 176.o CE que essas medidas devem ser compatíveis com as outras disposições do Tratado, incluindo o artigo 133.o CE.

37

A Comissão sublinha que a questão da base jurídica não pode ser considerada como sendo de natureza puramente formal, dado que a escolha entre os artigos 133.o CE e 175.o CE acarreta importantes consequências no que respeita à repartição de competências entre a Comunidade e os seus Estados-Membros, pois o primeiro reconhece uma competência exclusiva à Comunidade e o segundo competências partilhadas. A opção pelo artigo 175.o, n.o 1, CE como base jurídica exclusiva do regulamento impugnado implicaria que os Estados-Membros fossem competentes para regulamentar as exportações e as importações de resíduos, o que inevitavelmente teria por efeito falsear a concorrência entre as empresas dos Estados-Membros nos mercados externos e criar perturbações no mercado interno da Comunidade.

38

O Parlamento e o Conselho entendem que da análise da estrutura e do conteúdo do regulamento impugnado resulta claramente que este prossegue um objectivo principal, que é a protecção do ambiente. Enquanto o primeiro e o quadragésimo segundo dos seus considerandos referem claramente esse objectivo, os outros não incluem referência alguma à prossecução dos objectivos da política comercial comum. Estas instituições sublinham que o referido regulamento prossegue o mesmo objectivo principal e adopta a mesma estrutura de base que o Regulamento n.o 259/93, que se funda exclusivamente no artigo 130.o-S do Tratado CEE. A vocação ambiental do regulamento impugnado resulta igualmente do facto de, tal como o anterior Regulamento n.o 259/93, pretender dar cumprimento às obrigações resultantes da Convenção de Basileia, que a OMC classificou como acordo multilateral em matéria de ambiente e que foi concluída, em nome da Comunidade, através da Decisão 93/98, aprovada com base no artigo 130.o-S do Tratado CEE.

39

No que respeita ao conteúdo do regulamento impugnado, o Parlamento e o Conselho afirmam que o regime previsto no seu título II, que abrange as principais disposições que regulam as transferências de resíduos, se aplica mutatis mutandis aos seus títulos IV a VI, que regem as transferências extracomunitárias de resíduos. Estas instituições sublinham que as objecções eventualmente formuladas a respeito das transferências de resíduos só se podem basear em motivos de ordem ambiental. Além disso, insistem na importância da obrigação geral de protecção do ambiente, prevista no artigo 49.o do regulamento impugnado, que também se aplica às importações e às exportações. O referido regulamento constitui, assim, um conjunto coerente de normas destinadas a proteger o ambiente, que em nada facilitam as trocas comerciais, mas que, pelo contrário, as impede.

40

Segundo estas instituições, a posição da Comissão, nos termos da qual a base jurídica correcta para as transferências intracomunitárias de resíduos, que se regem pelo título II do regulamento impugnado, seria o artigo 175.o CE, sendo que o artigo 133.o CE seria para as transferências de resíduos entre a Comunidade e países terceiros, as quais se regem pelos títulos IV a VI do mesmo regulamento, não está em consonância com a opção de aplicar o mesmo regime, constante do título II do regulamento impugnado, tanto às transferências intracomunitárias de resíduos como às extracomunitárias. Além disso, essa posição privaria a política comunitária em matéria de ambiente da capacidade de intervir no exterior sempre que mercadorias pudessem ser afectadas.

41

No que respeita à evocação, pela Comissão, do acórdão Comissão/Parlamento e Conselho, já referido, o Parlamento sublinha que essa instituição não demonstrou em que medida o regulamento impugnado é comparável com o Regulamento n.o 304/2003 em causa no processo que esteve na origem desse acórdão, nem que os objectivos e os conteúdos desses regulamentos possuem características idênticas, susceptíveis de permitir uma conclusão análoga quanto às respectivas bases jurídicas.

42

Por seu lado, o Conselho considera que o referido acórdão implica, logicamente, que as partes do regulamento impugnado que versam sobre as transferências de resíduos entre a Comunidade e os países terceiros devem ser fundadas numa base jurídica dupla, constituída pelos artigos 133.o CE e 175.o CE, e que as outras partes devem, pelo contrário, basear-se apenas no artigo 175.o CE. Ora, este resultado dificilmente seria conciliável com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao critério da finalidade preponderante, dado que a Comissão parece ter aceite que essas outras partes do regulamento impugnado foram validamente aprovadas com base no artigo 175.o CE. Mesmo admitindo que as partes desse regulamento relativas às transferências de resíduos entre a Comunidade e os países terceiros prosseguem um objectivo ligado à política comercial comum, a verdade é que esse objectivo, atenta a finalidade e o conteúdo do dito regulamento, considerados «conjuntamente», é manifestamente secundário em relação ao seu objectivo principal.

43

O Parlamento e o Conselho manifestam dúvidas sérias quanto à possibilidade de os artigos 133.o CE e 175.o CE constituírem conjuntamente a base jurídica de um acto comunitário, porquanto, no domínio da política comercial, a competência da Comunidade é exclusiva e, no domínio da política do ambiente, é partilhada com os Estados-Membros. Nestas circunstâncias, dificilmente entendem como é que o artigo 176.o CE poderia ser aplicado no quadro de um acto baseado simultaneamente no artigo 133.o CE e no artigo 175.o CE. Se isso fosse possível, seria posta em causa a intenção manifesta dos autores do Tratado.

44

Os Estados-Membros intervenientes apresentam, no essencial, uma argumentação semelhante à do Parlamento e do Conselho.

Apreciação do Tribunal

45

Importa recordar, a título preliminar, que, segundo jurisprudência constante, a escolha da base jurídica de um acto comunitário deve fundar-se em elementos objectivos susceptíveis de fiscalização jurisdicional, entre os quais figuram, nomeadamente, a finalidade e o conteúdo do acto (v. acórdãos Comissão/Parlamento e Conselho, já referido, n.o 41, e de 6 de Novembro de 2008, Parlamento/Conselho, C-155/07, Colect., p. I-8103, n.o 34).

46

Se o exame de um acto comunitário demonstrar que este prossegue duas finalidades ou que tem duas componentes, e se uma dessas finalidades ou dessas componentes for identificável como principal ou preponderante, ao passo que a outra apenas é acessória, o acto deve assentar numa única base jurídica, a saber, a exigida pela finalidade ou pela componente principal ou preponderante (v. acórdãos, já referidos, Comissão/Parlamento e Conselho, n.o 42, e Parlamento/Conselho, n.o 35).

47

Excepcionalmente, se se demonstrar, em contrapartida, que o acto em causa prossegue simultaneamente vários objectivos ou que tem várias componentes, que se encontram ligados de forma indissociável, sem que um seja secundário e indirecto relativamente ao outro, esse acto deve assentar nas diferentes bases jurídicas correspondentes (v. acórdãos de 11 de Setembro de 2003, Comissão/Conselho, C-211/01, Colect., p. I-8913, n.o 40, e Comissão/Parlamento e Conselho, já referido, n.o 43).

48

No presente caso, não é contestado que o regulamento impugnado prossegue um objectivo de protecção do ambiente e que, por conseguinte, foi, pelo menos em parte, validamente fundado no artigo 175.o, n.o 1, CE. O litígio é apenas relativo à questão de saber se esse regulamento também prossegue um objectivo de política comercial comum e inclui componentes dessa política que são indissociavelmente ligados a componentes que visam a protecção do ambiente, de tal importância que esse acto deveria ser baseado numa dupla base jurídica, que são os artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE.

49

Nestas condições, há que examinar se o objectivo e as componentes do regulamento impugnado relativos à protecção do ambiente devem ser considerados principais ou preponderantes.

50

É o que efectivamente se verifica.

51

No que respeita, em primeiro lugar, ao objectivo do regulamento impugnado, o seu primeiro considerando sublinha que «[o] principal e mais predominante objectivo e elemento [deste] regulamento é a protecção do ambiente». Embora contestada pela Comissão, esta afirmação é retomada no seu quadragésimo segundo considerando, que constava da proposta da Comissão relativa a esse regulamento e que enuncia que o objectivo do regulamento impugnado é «assegurar a protecção do ambiente quando se verifica a transferência de resíduos».

52

Os outros considerandos do regulamento impugnado confirmam a sua vocação ambiental. Como o advogado-geral referiu no n.o 18 das suas conclusões, com excepção do décimo sexto e décimo nono considerandos desse regulamento, que dizem respeito ao bom funcionamento do mercado interno, todos os seus considerandos revelam, de forma mais ou menos directa, preocupações ambientais.

53

A título exemplificativo, o trigésimo terceiro considerando do regulamento impugnado salienta que, no que diz respeito aos resíduos transferidos dentro da Comunidade e aos resíduos para ela importados, deverão ser tomadas as medidas necessárias para assegurar que os referidos resíduos sejam geridos durante todo o período de transferência, incluindo a valorização ou eliminação no país de destino, «sem perigo para a saúde humana e sem a utilização de processos ou métodos que possam prejudicar o ambiente», e que, no que diz respeito às exportações para fora da Comunidade, é necessário «desenvolver esforços para assegurar que os resíduos sejam geridos de uma forma ambientalmente racional durante todo o período de transferência, incluindo a sua valorização ou eliminação no país terceiro de destino».

54

Em contrapartida, como, de resto, observaram o Parlamento e o Conselho, o preâmbulo do regulamento impugnado nada diz a respeito da prossecução de objectivos que fazem parte da política comercial comum.

55

No que respeita, em segundo lugar, ao conteúdo do regulamento impugnado, o artigo 1.o enuncia que esse regulamento «estabelece procedimentos e regimes de controlo relativos a transferências de resíduos, de acordo com a origem, o destino e o itinerário dessas transferências, o tipo de resíduos transferidos e o tipo de tratamento a aplicar aos resíduos no seu destino». Como resulta do resumo constante dos n.os 12 a 19 do presente acórdão, o principal instrumento instituído pelo regulamento é constituído pelo procedimento prévio de notificação e consentimento escrito, cujas regras se encontram circunstanciadamente expostas no título II do mesmo regulamento, relativo às transferências de resíduos no interior da Comunidade. Este procedimento é aplicável, nos termos do seu artigo 3.o, n.o 1, às transferências intracomunitárias dos resíduos destinados a operações de eliminação, bem como às das categorias especificadas de resíduos destinados a serem valorizados.

56

O procedimento prévio de notificação e consentimento escrito caracteriza-se por diversos elementos destinados a garantir que as transferências de resíduos se processarão no respeito da protecção do ambiente. Assim, no âmbito desse procedimento, por força do disposto nos artigos 4.o, n.o 4, 5.o e 22.o a 24.o do regulamento impugnado, o notificador de uma transferência de resíduos deve fazer prova da existência de um contrato entre si e o destinatário, que inclua obrigações respeitantes à valorização ou à eliminação dos resíduos notificados, bem como a obrigação de o notificador retomar os resíduos caso a transferência não seja concluída como previsto ou caso tenha sido efectuada ilegalmente.

57

Além disso, nos termos dos artigos 4.o, n.o 5, e 6.o do regulamento impugnado, o notificador deve constituir uma garantia financeira ou um seguro equivalente que cubra os custos do transporte, das operações de valorização ou eliminação e de armazenagem dos resíduos em causa.

58

No que respeita à efectivação de uma transferência de resíduos notificada, as autoridades competentes, quando utilizem a faculdade, prevista nos artigos 9.o a 12.o do regulamento impugnado, de subordinarem a condições o seu consentimento a uma transferência notificada ou de formularem objecções fundamentadas a essa transferência, devem invocar, principalmente, razões atinentes ao cumprimento da regulamentação em matéria de protecção do ambiente.

59

Donde se conclui que, como no procedimento de consentimento prévio fundamentado instituído pelo Protocolo de Cartagena sobre Segurança Biológica, o procedimento prévio de notificação e consentimento escrito previsto no regulamento impugnado pode ser qualificado de instrumento característico da política ambiental (v., neste sentido, parecer 2/00, de 6 de Dezembro de 2001, Colect., p. I-9713, n.o 33).

60

Como foi referido nos n.os 17 e 18 do presente acórdão, o procedimento prévio de notificação e consentimento escrito, previsto no título II do regulamento impugnado e aplicável às transferências intracomunitárias de resíduos, aplica-se também, mutatis mutandis, sem prejuízo de eventuais adaptações e disposições adicionais previstas nas disposições pertinentes do regulamento, às transferências de resíduos entre a Comunidade e países terceiros, quando as exportações a partir da Comunidade ou as importações para a Comunidade não sejam proibidas nos termos das disposições dos títulos IV e V desse regulamento. É o que ocorre, por força do disposto nos artigos 35.o e 42.o do mesmo regulamento, com as exportações da Comunidade, para os países da EFTA partes na Convenção de Basileia, de resíduos destinados a eliminação, e com as importações, para a Comunidade, de resíduos desse tipo provenientes de países que são partes nessa convenção. O mesmo se passa, segundo os seus artigos 38.o e 44.o, com as exportações e importações de resíduos destinados a valorização entre a Comunidade e os países a que se aplica a decisão da OCDE. Este regime também se aplica, por força dos artigos 47.o e 48.o desse regulamento, em conjugação com os artigos 42.o e 44.o, que se incluem no seu título VI, às transferências de resíduos que transitam pela Comunidade com proveniência de e destino a países terceiros.

61

Cabe ainda pôr em evidência a obrigação, que o artigo 49.o do regulamento impugnado impõe ao produtor, ao notificador e às outras empresas envolvidas numa transferência e/ou na valorização ou eliminação de resíduos, de «tomar as medidas necessárias para garantir que quaisquer resíduos por si transferidos sejam geridos sem pôr em perigo a saúde humana e de uma forma ambientalmente correcta durante todo o período de transferência e durante a operação de valorização e a eliminação». Esta obrigação, de carácter geral, abrange todas as transferências de resíduos, tanto no interior da Comunidade como, mutatis mutandis, nos termos do referido artigo 49.o, n.os 2 e 3, entre a Comunidade e os países terceiros.

62

Por conseguinte, desta análise do regulamento impugnado decorre que este visa principalmente, tanto devido ao seu objectivo como ao seu conteúdo, a protecção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos potencialmente nefastos das transferências transfronteiriças de resíduos.

63

Especificamente, na medida em que o procedimento prévio de notificação e consentimento escrito prossegue claramente um objectivo de protecção do ambiente no domínio da transferência de resíduos entre Estados-Membros e, por conseguinte, foi correctamente baseado no artigo 175.o, n.o 1, CE, seria incoerente considerar que este mesmo procedimento, quando se aplica às transferências de resíduos entre os Estados-Membros e os países terceiros, com o mesmo objectivo de protecção do ambiente, como o confirma o trigésimo terceiro considerando do regulamento impugnado, seja um instrumento da política comercial comum e deva, por essa razão, basear-se no artigo 133.o CE.

64

Esta conclusão é confirmada pela análise do contexto legislativo em que se inscreve o regulamento impugnado.

65

Por um lado, este regulamento substitui o Regulamento n.o 259/93, o qual, ao prever nos seus títulos IV a VI um regime análogo ao previsto nos títulos IV a VI do regulamento impugnado para as importações e as exportações de resíduos entre a Comunidade e os países terceiros, bem como para o trânsito, pela Comunidade, de resíduos provenientes de países terceiros, foi aprovado com base no artigo 130.o-S do Tratado CEE. A escolha desta base jurídica foi confirmada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 28 de Junho de 1994, Parlamento/Conselho (C-187/93, Colect., p. I-2857), por oposição à constituída pelo artigo 100.o-A do Tratado CEE (que passou a artigo 100.o-A do Tratado CE, o qual, por sua vez passou, após alteração, a artigo 95.o CE). Cabe acrescentar que o Tribunal de Justiça também chegou à conclusão de que o controlo e a fiscalização instituídos pelo Regulamento n.o 259/93 têm em vista proteger o ambiente, não apenas na Comunidade mas também nos países terceiros para onde esta exporta os resíduos (v. acórdão de 21 de Junho de 2007, Omni Metal Service, C-259/05, Colect., p. I-4945, n.o 30).

66

Por outro lado, o regulamento impugnado visa, como aquele que o precedeu — o Regulamento n.o 259/93 — tal como decorre do seu terceiro considerando, dar cumprimento às obrigações decorrentes da Convenção de Basileia. Ora, a vocação ambiental dessa convenção infere-se claramente do seu preâmbulo, que afirma que «os movimentos transfronteiriços [dos resíduos perigosos e outros], desde o Estado da sua produção até qualquer outro Estado, apenas devem ser permitidos quando realizados em condições que não ponham em perigo a saúde humana e o ambiente», e sublinha a necessidade de «uma gestão ambientalmente racional desses resíduos». De acordo com esses objectivos, essa Convenção, que, como o Parlamento e o Conselho observaram, foi qualificada de acordo multilateral pela OMC, foi aprovada pela Comunidade através da Decisão 93/98, adoptada com base apenas no artigo 130.o-S do Tratado CEE.

67

Quanto ao argumento da Comissão segundo o qual o regulamento impugnado tem um alcance mais lato do que a Convenção de Basileia, uma vez que se aplica a todos os resíduos destinados a operações de eliminação e de valorização, ao passo que a Convenção só se refere aos resíduos perigosos destinados a serem eliminados, sendo esta diferença reveladora de que o regulamento possui uma dimensão de política comercial, importa sublinhar que resulta do artigo 2.o, n.o 4, da Convenção, conjugado com o seu anexo IV, secção S, que o termo «eliminação» aí utilizado inclui «operações que podem conduzir à recuperação, reciclagem, regeneração, reutilização directa ou usos alternativos de resíduos». Como foi referido pelo advogado-geral no n.o 33 das conclusões, o facto de o regulamento impugnado também se aplicar a resíduos não perigosos e a resíduos que se destinam a ser valorizados não lhe pode imprimir carácter comercial e diminuir a sua dimensão ambiental, uma vez que o carácter nocivo para o ambiente é inerente à própria natureza dos resíduos, sejam eles quais forem (v., neste sentido, acórdão de 18 de Abril de 2002, Palin Granit e Vehmassalon kansanterveystyön kuntayhtymän hallitus, C-9/00, Colect., p. I-3533, n.os 36 e 45 a 51).

68

A análise que precede não é infirmada pela argumentação da Comissão, segundo a qual os títulos IV a VI do regulamento impugnado, relativos às exportações, às importações e ao trânsito dos resíduos, se devem fundar no artigo 133.o CE, porque os resíduos são mercadorias que podem ser transaccionadas e porque o conceito de política comercial comum deve ser interpretado de forma lata, visto abranger medidas comerciais que prosseguem também objectivos noutros domínios, entre os quais a protecção do ambiente. Também não pode ser posta em causa pelo facto de, segundo a terminologia utilizada no artigo 1.o, n.o 2, do dito regulamento, as transferências de resíduos entre a Comunidade e os países terceiros serem qualificadas de «importações» e «exportações».

69

A este propósito, cabe recordar que o procedimento prévio de notificação e consentimento escrito se aplica a todas as transferências de resíduos, independentemente do contexto eventualmente comercial em que ocorram. O conceito de «transferência» encontra-se definido no artigo 2.o, n.o 34, do regulamento impugnado, de forma neutra, como «o transporte de resíduos com vista à valorização ou à eliminação […]». O conceito de «transporte», por seu lado, está definido no seu artigo 2.o, n.o 33, como «o transporte rodoviário, ferroviário, aéreo, marítimo ou fluvial de resíduos». Quanto aos conceitos de «importação» e de «exportação», também se encontram definidos, no artigo 2.o, n.os 30 e 31, do mesmo regulamento, em termos neutros, como sendo, respectivamente, «qualquer entrada de resíduos na Comunidade […]» e «o acto de fazer sair os resíduos da Comunidade […]». Assim, o regulamento impugnado dá mais ênfase à deslocação dos resíduos com vista ao seu tratamento do que ao seu transporte para fins comerciais. Mesmo admitindo que é no quadro de trocas comerciais que os resíduos são transferidos, não deixa de ser verdade que o procedimento prévio de notificação e consentimento escrito visa prevenir exclusivamente os riscos que para a saúde humana e o ambiente resultam dessas transferências, e não promover, facilitar ou regular as trocas comerciais (v., por analogia, parecer 2/00, já referido, n.os 37 e 38).

70

Além disso, uma interpretação lata da noção de política comercial comum não é susceptível de pôr em causa a conclusão de que o regulamento impugnado é um instrumento fundamentalmente de política de protecção do ambiente. Como o Tribunal de Justiça já declarou, é possível um acto comunitário integrar esse domínio, embora as medidas nele previstas possam afectar as trocas comerciais (v., neste sentido, parecer 2/00, já referido, n.o 40).

71

Com efeito, um acto comunitário só se insere na competência exclusiva em matéria de política comercial comum prevista no artigo 133.o CE, quando verse especificamente sobre as trocas comerciais internacionais, na medida em que se destine essencialmente a promover, a facilitar ou a regular as trocas comerciais e tenha efeitos directos e imediatos no comércio ou nas trocas comerciais dos produtos em questão (v. acórdão de 12 de Maio de 2005, Regione autonoma Friuli-Venezia Giulia e ERSA, C-347/03, Colect., p. I-3785, n.o 75 e jurisprudência aí indicada).

72

Obviamente que não é isto que se passa no presente caso. Efectivamente, do mesmo modo que o anterior, o regulamento impugnado não pretende definir as características que os resíduos devem ter para poderem circular livremente no mercado interno ou no âmbito das trocas comerciais com países terceiros, mas sim instituir um sistema harmonizado de procedimentos através dos quais a circulação dos resíduos possa ser circunscrita a fim de se assegurar a protecção do ambiente (v., neste sentido, acórdão de 28 de Junho de 1994, Parlamento/Conselho, já referido, n.o 26).

73

Quanto ao argumento da Comissão segundo o qual o Tribunal de Justiça deveria, no caso vertente, aplicar a solução que adoptou no acórdão Comissão/Parlamento e Conselho, já referido, importa sublinhar que não se pode comparar o Regulamento n.o 304/2003, aí em causa, relativo à exportação e à importação de produtos químicos perigosos, com o regulamento impugnado.

74

O Regulamento n.o 304/2003 tem como principal objectivo aplicar a Convenção de Roterdão relativa ao Procedimento de Prévia Informação e Consentimento para determinados Produtos Químicos e Pesticidas Perigosos no Comércio Internacional, aprovada, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2003/106/CE do Conselho, de 19 de Dezembro de 2002 (JO 2003, L 63, p. 27; a seguir «Convenção de Roterdão»). Ora, tendo em conta a evidente convergência entre as disposições desta Convenção e as do regulamento que aplica esta Convenção no plano comunitário, o Tribunal de Justiça considerou que se impunha uma identidade de base jurídica entre a decisão de aprovação dessa Convenção e o referido regulamento (v. acórdão Comissão/Parlamento e Conselho, já referido, n.os 45 e 47).

75

A este respeito, o Tribunal de Justiça concluiu, no acórdão de 10 de Janeiro de 2006, Comissão/Conselho (C-94/03, Colect., p. I-1, n.o 43), após uma análise detalhada da Convenção de Roterdão, que esta também tinha por objectivo promover a responsabilidade partilhada e os esforços de cooperação no comércio internacional de determinados produtos químicos perigosos e que foi efectivamente através da adopção de medidas de natureza comercial, relativas às trocas de certos produtos químicos ou pesticidas perigosos, que as partes nesta Convenção pretendiam atingir o objectivo de protecção da saúde humana e do ambiente. O Tribunal de Justiça concluiu que as componentes comerciais dessa Convenção não podem ser consideradas meramente acessórias relativamente ao objectivo de protecção do ambiente que ela prossegue (v., neste sentido, acórdão de 10 de Janeiro de 2006, Comissão/Conselho, já referido, n.os 37 e 42) e que as duas componentes que se inserem uma na política comercial comum e a outra na política de protecção da saúde humana e do ambiente, que essa convenção comporta, estão ligadas de modo indissociável, sem que uma possa ser considerada secundária ou indirecta em relação à outra. A decisão que aprova esta Convenção em nome da Comunidade deve, portanto, assentar nos artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE, em conjugação com as disposições pertinentes do artigo 300.o CE (v. acórdão de 10 de Janeiro de 2006, Comissão/Conselho, já referido, n.o 51). Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça considerou que o Regulamento n.o 304/2003, que dá execução à Convenção de Roterdão, devia fundar-se nos artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE (acórdão Comissão/Parlamento e Conselho, já referido).

76

Como resulta da análise exposta nos n.os 51 a 67 do presente acórdão, o regulamento impugnado não inclui componentes de política comercial que obriguem à utilização de uma dupla base jurídica. Assim, a Comissão nunca se podia basear no acórdão Comissão/Parlamento e Conselho, já referido, para justificar uma conclusão contrária.

77

Além disso, a argumentação da Comissão destinada a demonstrar, reportando-se aos actos comunitários referidos no n.o 35 do presente acórdão, a existência de uma prática de adopção de actos assentes numa dupla base jurídica constituída pelos artigos 133.o CE e 175.o, n.o 1, CE não pode ser acolhida. Com efeito, a determinação da base jurídica de um acto deve ser feita tendo em atenção a sua finalidade e o seu conteúdo próprios, e não à luz da base jurídica escolhida para a adopção de outros actos comunitários que tenham, eventualmente, características semelhantes (v. acórdão de 10 de Janeiro de 2006, Comissão/Parlamento e Conselho, já referido, n.o 55 e jurisprudência aí indicada).

78

Atento o conjunto das considerações que precedem, o recurso da Comissão deve ser julgado improcedente.

Quanto às despesas

79

Nos termos do artigo 69.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Parlamento e o Conselho pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que a condenar nas despesas. Por força do disposto no n.o 4, primeiro parágrafo, do mesmo artigo, os intervenientes devem suportar as respectivas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

 

1)

É negado provimento ao recurso.

 

2)

A Comissão das Comunidades Europeias é condenada nas despesas.

 

3)

A República Francesa, a República da Áustria e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte suportam as suas próprias despesas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: inglês.