ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

24 de Janeiro de 2008 ( *1 )

«Acordo de associação CEE-Turquia — Livre circulação de trabalhadores — Decisão n.o 1/80 do Conselho da Associação — Artigo 6.o, n.o 1, primeiro travessão — Trabalhador integrado no mercado regular de trabalho — Autorização de entrada na qualidade de estudante ou de ‘au pair’ — Repercussão no direito de residência»

No processo C-294/06,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido), por decisão de 28 de Junho de 2006, entrado no Tribunal de Justiça em 30 de Junho de 2006, no processo

The Queen, a pedido de:

Ezgi Payir,

Burhan Akyuz,

Birol Ozturk

contra

Secretary of State for the Home Department,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, J. N. Cunha Rodrigues, J. Klučka, P. Lindh (relatora) e A. Arabadjiev, juízes,

advogada-geral: J. Kokott,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 26 de Abril de 2007,

vistas as observações apresentadas:

em representação de E. Payir, por S. Cox, barrister, e R. Despicht, solicitor,

em representação de B. Akyuz e de B. Ozturk, por N. Rogers, barrister,

em representação do Governo do Reino Unido, por C. Gibbs, na qualidade de agente, assistida por P. Saini, barrister,

em representação do Governo alemão, por M. Lumma e C. Schulze-Bahr, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por W. Ferrante, avvocato dello Stato,

em representação do Governo neerlandês, por H. G. Sevenster e C. Wissels, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por G. Rozet e N. Yerrell, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 18 de Julho de 2007,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 do Conselho de Associação, de 19 de Setembro de 1980, relativa ao desenvolvimento da associação (a seguir «Decisão n.o 1/80»). O Conselho de Associação foi instituído pelo Acordo que cria uma Associação entre a Comunidade Económica Europeia e a Turquia, assinado em 12 de Setembro de 1963, em Ankara, pela República da Turquia, por um lado, e pelos Estados-Membros da CEE e pela Comunidade, por outro, e concluído, aprovado e confirmado em nome desta última pela Decisão 64/732/CEE do Conselho, de 23 de Dezembro de 1963 (JO 1964, 217, p. 3685; EE 11 F1 p. 18).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de dois litígios que opõem E. Payir, por um lado, bem como B. Akyuz e B. Ozturk, por outro, ao Secretary of State for the Home Department (a seguir «Secretary of State»), a propósito da recusa por este último de prorrogar as respectivas autorizações de residência.

Quadro jurídico

Regulamentação comunitária

3

O artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 tem a seguinte redacção:

«1.   Sem prejuízo do disposto no artigo 7.o relativamente ao livre acesso ao emprego dos membros da sua família, o trabalhador turco integrado no mercado regular de trabalho de um Estado-Membro:

tem direito nesse Estado-Membro, após um ano de emprego regular, à renovação da sua autorização de trabalho para a mesma entidade patronal, se dispuser de um emprego;

tem direito nesse Estado-Membro, após três anos de emprego regular e sem prejuízo da prioridade a conceder aos trabalhadores dos Estados-Membros da Comunidade, a responder, dentro da mesma profissão, a outra oferta de emprego de uma entidade patronal de sua escolha, feita em condições normais e registada nos serviços de emprego desse Estado-Membro;

beneficia nesse Estado-Membro, após quatro anos de emprego regular, do livre acesso a qualquer actividade assalariada da sua escolha.»

Legislação nacional

4

As disposições pertinentes relativas às pessoas «au pair» estão enunciadas, designadamente, nos n.os 88 a 93 das normas sobre a imigração adoptadas pelo Parlamento do Reino Unido em 1994 (United Kingdom Immigration Rules, House of Commons Paper 395, a seguir «Immigration Rules») nos seguintes termos:

«Definição de trabalho ‘au pair’

88.

Para efeitos das presentes normas, um trabalho ‘au pair’ consiste num acordo nos termos do qual um jovem:

a)

vem para o Reino Unido para aprender a língua inglesa; […]

b)

vive durante um determinado período com uma família anglófona e dispõe de oportunidades adequadas de estudo, e

c)

colabora nas tarefas domésticas durante um período diário não superior a cinco horas e recebe, como contrapartida, uma remuneração razoável, tendo dois dias de descanso por semana.

Condições para obtenção de autorização de entrada [‘leave to enter’] como ‘au pair’

89.

O requerente de uma autorização de entrada no Reino Unido para trabalhar como ‘au pair’ deve preencher as seguintes condições:

i)

pretender entrar no Reino Unido a fim de ocupar um lugar, previamente acordado, que se demonstre enquadrar-se na definição constante do n.o 88, supra; […]

ii)

ter idade compreendida entre 17 e 27 anos ou ter essa idade no momento em que recebe, nessa qualidade, a primeira autorização de entrada; […]

iii)

não ser casado; […]

iv)

não ter pessoas a cargo; […]

v)

ser cidadão de um dos seguintes países: [...] Turquia; [...]

vi)

não pretender ficar no Reino Unido por mais de dois anos como ‘au pair’; […]

vii)

pretender abandonar o Reino Unido no termo da sua estadia como ‘au pair’; […]

viii)

no caso de já ter estado anteriormente no Reino Unido como ‘au pair’, não tentar obter autorização de entrada por um período superior a dois anos a contar da data de obtenção da primeira autorização de entrada no Reino Unido nessa qualidade, e

ix)

ter capacidade de subsistência e de alojamento sem recurso a fundos públicos.

Autorização de entrada como ‘au pair’

90.

O requerente de uma autorização de entrada no Reino Unido para trabalhar como ‘au pair’ pode ser admitido por um período não superior a dois anos, com proibição de trabalho, excepto como ‘au pair’, desde que o funcionário dos serviços de imigração considere estarem preenchidas todas as condições previstas no n.o 89, supra [...]»

5

As disposições em matéria de imigração relativas aos estudantes são enunciadas, designadamente, nos n.os 57 a 62 das Immigration Rules:

«Condições para obtenção de autorização de entrada como estudante

57.

O requerente de uma autorização de entrada no Reino Unido como estudante deve preencher as seguintes condições:

i)

ter sido aceite para frequentar um ciclo de estudos:

a)

num estabelecimento público de ensino pós-secundário ou superior; ou [de certos estabelecimentos de ensino privados elegíveis]; […]

ii)

ter capacidade e pretender frequentar:

a)

ou um ciclo de estudos a tempo inteiro conducente a um diploma universitário reconhecido num estabelecimento público de ensino pós-secundário ou superior; ou [determinados ciclos de estudos a tempo inteiro]; […]

[...]

iv)

pretender abandonar o Reino Unido no fim dos estudos; […]

v)

não pretender exercer uma actividade comercial ou profissional, com excepção de um trabalho a tempo parcial ou de um trabalho de férias para o qual recebeu autorização do Secretary of State for Employment, e

vi)

ter capacidade para prover aos custos dos seus estudos e alojamento e à sua própria subsistência, bem como à de quaisquer pessoas a cargo, sem exercer uma actividade profissional ou comercial ou recorrer a fundos públicos.

Autorização de entrada como estudante

58.

O requerente de uma autorização de entrada no Reino Unido como estudante pode ser autorizado a permanecer por um período adequado em função da duração dos respectivos estudos e dos meios de que dispõe, e com uma condição que restringe a sua liberdade de adquirir um emprego [...]»

6

Nos termos do anexo A, n.o 4, do capítulo 3 das instruções da direcção de imigração do Secretary of State («Immigrations Directorate’s Instructions»):

«Os estudantes com mais de 16 anos que estão sujeitos às condições do código 2 [condição que restringe a sua liberdade de adquirir um emprego] podem trabalhar a tempo parcial ou durante as férias sem necessidade de obter consentimento do centro de emprego local [‘local Jobcentre’]. Da mesma forma, podem ocupar um posto de trabalho no âmbito de um curso universitário que inclua um período de trabalho ou estágios profissionais sem necessidade de obter uma autorização de trabalho [emitida pelas autoridades competentes do Reino Unido]. Os estudantes não podem trabalhar mais de 20 horas por semana durante o período lectivo [...]»

Litígios no processo principal e questões prejudiciais

7

Os litígios dizem respeito, por um lado, a uma jovem «au pair», E. Payir, e, por outro, a dois estudantes, B. Akyuz e B. Ozturk.

8

E. Payir, na altura com 21 anos, obteve uma autorização de entrada no Reino Unido seguida da concessão, em Abril de 2000, de uma autorização de entrada válida até Abril de 2002. Esta autorização de entrada estava sujeita à condição de E. Payir não estar autorizada a exercer qualquer actividade, remunerada ou não, diferente da de «au pair».

9

Desde a sua entrada no Reino Unido, E. Payir foi contratada como «au pair» por uma primeira família, depois, a partir de Março de 2001, por uma segunda família, para a qual trabalhou 15 a 25 horas por semana. Recebia alojamento, alimentação e uma remuneração de 70 GBP (cerca de 103 euros) por semana.

10

Em Abril de 2002, antes da sua autorização de entrada expirar, E. Payir pediu ao Secretary of State que lhe fosse concedida uma autorização de permanência no Reino Unido mais alargada, alegando, com base no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, o facto de ter sido contratada há mais de um ano pelo mesmo empregador e de pretender continuar a trabalhar para o mesmo. O seu pedido foi indeferido mediante decisão de 18 de Agosto de 2004.

11

E. Payir interpôs recurso dessa decisão na High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Administrative Court). Este órgão jurisdicional, que deu provimento ao seu recurso, anulou a referida decisão e ordenou ao Secretary of State a prorrogação da autorização de entrada de E. Payir e a supressão da condição inicial que limitava o acesso da interessada ao mercado de trabalho. A autorização de entrada de E. Payir foi prorrogada até 2 de Agosto de 2006. Em Outubro de 2005, esta última foi contratada como vendedora numa loja.

12

O Secretary of State interpôs recurso da decisão da High Court, apresentando como fundamento o facto de o artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 não se aplicar a pessoas que trabalhem como «au pair».

13

B. Akyuz e B. Ozturk entraram no Reino Unido, respectivamente, em 1999 e em 1997 na qualidade de estudantes com autorizações de entrada, a seguir às quais foram emitidas autorizações de permanência. Estas últimas indicavam que os interessados estavam autorizados a trabalhar no máximo 20 horas por semana durante o período lectivo.

14

Durante os seus estudos, os dois nacionais turcos trabalharam a tempo parcial como empregados de mesa num restaurante, tendo os seus contratos de trabalho sido prolongados pelo seu empregador. Antes de as suas autorizações de entrada ou de permanência na qualidade de estudantes expirarem, B. Akyuz e B. Ozturk solicitaram ao Secretary of State, respectivamente em Julho de 2003 e em Janeiro de 2004, autorizações de residência, baseando-se no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80. Perante o indeferimento dos seus pedidos com data de 18 de Agosto de 2004, os interessados interpuseram recursos de revista na High Court, que foram julgados procedentes. Alegando que o artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 não se aplica aos estudantes, o Secretary of State interpôs recurso das decisões da High Court.

15

Tanto o recurso de E. Payir como os recursos de B. Akyuz e B. Ozturk foram examinados em conjunto pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division).

16

Este órgão jurisdicional declara que esses três nacionais turcos foram considerados, pela High Court, como trabalhadores na acepção que o Tribunal de Justiça conferiu a esse conceito, designadamente, no acórdão de 26 de Novembro de 1998, Birden (C-1/97, Colect., p. I-7747, n.o 24).

17

Apesar de aceitar essa conclusão da High Court, a Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) considera que há igualmente que ter em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual os Estados-Membros podem criar regimes com vocação social. Daqui resulta que, mesmo que impliquem a prossecução de uma actividade na qualidade de trabalhador, esses regimes não conduzem necessariamente a uma integração dos interessados no mercado regular de trabalho desses Estados.

18

Nos processos principais, a Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) tem dúvidas quanto à possibilidade, de que dispõem os nacionais turcos em causa, de invocar as disposições do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80. Nestas condições, este órgão jurisdicional decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Numa situação em que:

foi concedida a uma cidadã turca uma autorização de entrada no Reino Unido por um período dois anos para aí exercer a actividade de ‘au pair’ tal como este conceito está definido [nas Immigration Rules]; […]

a sua autorização de entrada incluía a autorização para trabalhar nessa qualidade; […]

essa cidadã trabalhou ininterruptamente, nessa qualidade, para o mesmo empregador por um período superior a um ano no decurso do período de validade da sua autorização de entrada; […]

esse emprego constituía uma actividade económica real e efectiva, e

esse emprego era exercido em conformidade com a legislação nacional em matéria de emprego e imigração,

consequentemente, durante esse emprego, essa cidadã turca:

era um trabalhador na acepção do artigo 6.o da Decisão n.o 1/80 […]?

estava devidamente registada como pertencendo ao mercado regular de trabalho do Reino Unido na acepção daquele artigo?

2)

Numa situação em que:

foi concedida a um cidadão turco uma autorização de entrada no Reino Unido ao abrigo das [Immigration Rules] a fim de seguir um ciclo de estudos nesse país; […]

a sua autorização de entrada incluía o direito de exercer qualquer actividade no limite máximo de 20 horas de trabalho por semana durante o período lectivo; […]

trabalhou ininterruptamente para o mesmo empregador durante mais de um ano durante o período de validade da sua autorização de entrada;

esse emprego constituía uma actividade económica real e efectiva, e

esse emprego era exercido em conformidade com a legislação nacional em matéria de emprego e imigração,

consequentemente, durante esse emprego, o cidadão turco em causa:

era um trabalhador na acepção do artigo 6.o da Decisão n.o 1/80 […]?

estava devidamente registado como pertencendo ao mercado regular de trabalho do Reino Unido na acepção daquele artigo?»

Quanto às questões prejudiciais

Observações liminares

19

As questões colocadas nos dois processos são idênticas e respeitam, por um lado, a pessoas que trabalham como «au pair» e, por outro, a estudantes.

20

Decorre dessas questões que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a circunstância de um cidadão turco ter sido autorizado a entrar no território de um Estado-Membro na qualidade de «au pair» ou de estudante priva esse cidadão da qualidade de «trabalhador» e o impede de integrar o «mercado regular de trabalho» desse Estado-Membro na acepção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, de modo que não pode invocar essa disposição para obter a renovação da sua autorização de trabalho e beneficiar do correlativo direito de residência.

Observações apresentadas ao Tribunal de Justiça

21

E. Payir, B. Akyuz e B. Ozturk e a Comissão das Comunidades Europeias exprimem pontos de vista convergentes. Segundo eles, os nacionais turcos, como os que estão em causa nos processos principais, preenchem os requisitos para serem qualificados de «trabalhadores» na acepção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80. Eles exerceram, sob a direcção de outra pessoa, prestações efectivas e reais com um valor económico certo, em contrapartida das quais receberam uma remuneração.

22

Esses nacionais turcos integram o mercado regular de trabalho do Estado-Membro de acolhimento. Entraram legalmente no território desse Estado e acederam, do mesmo modo, ao mercado de trabalho desse Estado. Em particular, não cometeram qualquer fraude para obter e efectuar o trabalho que lhes foi confiado. Por conseguinte, a sua situação no mercado de trabalho é estável e não precária.

23

Na medida em que esses nacionais turcos preenchem os requisitos enunciados no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, podem invocar essa disposição para obter a renovação da sua autorização de trabalho e beneficiar do correlativo direito de residência. Não é necessário nem pertinente analisar os motivos que presidiram à concessão, pelo Reino Unido, das autorizações de entrada e de permanência que lhes dizem respeito, a saber, permitir a entrada de jovens unicamente na qualidade de «au pair» ou de estudantes, por um período limitado.

24

O Governo do Reino Unido, bem como os Governos alemão, italiano e neerlandês defendem, pelo contrário, que os motivos da permanência são importantes. O artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 diz respeito, segundo estes governos, ao direito de acesso a um trabalho dos nacionais turcos autorizados a entrar no território de um Estado-Membro na qualidade de trabalhadores. Os nacionais turcos, como E. Payir, B. Akyuz e B. Ozturk, que não tenham entrado no Reino Unido nessa qualidade não podem invocar essa disposição. Consequentemente, ainda que a actividade exercida por esses nacionais possa ser qualificada de actividade económica real e efectiva, de tal não resulta que os interessados tenham a qualidade de trabalhadores nem que integrem o mercado regular de trabalho do Estado-Membro de acolhimento na acepção da referida disposição.

25

O facto de se considerar que os nacionais turcos autorizados a entrar no território de um Estado-Membro na qualidade de «au pair» ou de estudantes podem invocar o disposto no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 tem consequências graves. Daí resultaria, em primeiro lugar, que os Estados-Membros não teriam liberdade para determinar os requisitos de entrada de nacionais turcos no seu território. Além disso, encorajar-se-ia contornar as legislações nacionais, uma vez que as pessoas em causa teriam interesse em apresentar-se como estudantes ou como «au pair» de modo a integrarem o mercado de trabalho do Estado-Membro no território do qual entraram. Por último, os Estados-Membros seriam levados a restringir a sua política de acolhimento de estudantes e de pessoas que trabalham como «au pair» de nacionalidade turca, em detrimento desses dois grupos de interessados.

26

Os Governos alemão e neerlandês acrescentam que a equiparação da situação de estudante ou de «au pair» que efectua um trabalho a tempo parcial à de um trabalhador comum é contrária à abordagem eleita pelo legislador comunitário na Directiva 2004/114/CE do Conselho, de 13 de Dezembro de 2004, relativa às condições de admissão de nacionais de países terceiros para efeitos de estudos, de intercâmbio de estudantes, de formação não remunerada ou de voluntariado (JO L 375, p. 12). Segundo estes governos, a directiva distingue claramente o estudante do trabalhador.

Resposta do Tribunal de Justiça

27

Para responder às questões colocadas tal como reformuladas no n.o 20 do presente acórdão, importa recordar os três requisitos previstos no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80.

28

O primeiro desses requisitos diz respeito à qualidade de trabalhador. Para preencher este requisito, resulta de jurisprudência assente que o nacional turco deve exercer actividades reais e efectivas, com exclusão de actividades de tal maneira reduzidas que se apresentem como puramente marginais e acessórias. A característica essencial da relação de trabalho é a circunstância de uma pessoa realizar, durante um certo tempo, em benefício de outra pessoa e sob direcção desta, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração (v. acórdão Birden, já referido, n.o 25 e jurisprudência aí referida).

29

O segundo requisito consiste na integração no mercado regular de trabalho. O Tribunal de Justiça declarou que este conceito designa o conjunto dos trabalhadores que cumpriram as prescrições legais e regulamentares do Estado-Membro de acolhimento e que têm, assim, o direito de exercer uma actividade profissional no seu território (v. acórdão Birden, já referido, n.o 51).

30

O artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 impõe como terceiro requisito a existência de um trabalho regular, ou seja, uma situação estável e não precária no mercado de trabalho do Estado-Membro de acolhimento e, a este título, a existência de um direito de residência não contestado (v. acórdão de 19 de Novembro de 2002, Kurz, C-188/00, Colect., p. I-10691, n.o 48).

31

Segundo a decisão de reenvio, tanto E. Payir como B. Akyuz e B. Ozturk ofereceram prestações que constituem actividades reais e efectivas. Resulta dos autos que trabalharam sob a direcção de um empregador e que receberam uma remuneração em contrapartida das suas prestações. E. Payir trabalhou entre 15 e 25 horas por semana e B. Akyuz e B. Ozturk trabalharam no máximo 20 horas por semana. Não foi alegado que as actividades exercidas pelos interessados fossem puramente marginais. Assim, segundo a descrição que delas é feita, essas actividades apresentam as características exigidas para permitir, em princípio, aos que as exercem serem qualificados de «trabalhadores» na acepção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80.

32

No que respeita aos dois outros requisitos, o órgão jurisdicional de reenvio indica que E. Payir bem como B. Akyuz e B. Ozturk respeitaram a legislação nacional sobre imigração, tendo, portanto, entrado legalmente no Reino Unido. Esse órgão jurisdicional acrescenta que os interessados ocuparam empregos conformes não só às regras em matéria de imigração mas também ao direito do trabalho, designadamente, que esses empregos respeitavam os requisitos ligados à sua autorização de entrada no território nacional. É pacífico que beneficiaram de uma autorização de permanência não contestada.

33

Por conseguinte, as características dos empregos ocupados pelos três nacionais turcos em causa nos processos principais, tal como são apresentados pelo órgão jurisdicional de reenvio, preenchem igualmente os dois outros requisitos enunciados no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, a saber, a integração no mercado regular de trabalho e a ocupação de um emprego regular.

34

Coloca-se, porém, a questão de saber se a qualidade de «au pair» ou de estudantes de nacionais turcos, cujas actividades exercidas preencham, de resto, os três requisitos enunciados no artigo 6.o, n.o 1, priva esses nacionais da qualificação de trabalhadores e os impede de integrar o mercado regular de trabalho de um Estado-Membro na acepção dessa disposição.

35

A este respeito, há, em primeiro lugar, que sublinhar que a eventual finalidade social da autorização de entrada concedida aos estudantes e aos «au pair», bem como do direito ao trabalho que lhes é reconhecido, nada retira, por si só, ao carácter regular das actividades exercidas pelos interessados e, consequentemente, não os impede de integrar o mercado regular de trabalho do Estado-Membro de acolhimento. O Tribunal de Justiça declarou o n.o 51 do acórdão Birden, já referido, que o conceito de mercado regular de trabalho não pode ser interpretado no sentido de se referir ao mercado geral do trabalho, por oposição a um mercado específico de finalidade social sustentado pelos poderes públicos.

36

Em seguida, importa recordar que a Decisão n.o 1/80 não colide com a competência dos Estados-Membros para regulamentarem tanto a entrada no seu território de nacionais turcos como as condições do seu primeiro emprego, limitando-se a regular, no artigo 6.o, a situação dos trabalhadores turcos já regularmente integrados no mercado de trabalho do Estado-Membro de acolhimento (acórdão de 30 de Setembro de 1997, Ertanir, C-98/96, Colect., p. I-5179, n.o 23).

37

Nos termos de jurisprudência assente, o artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 tem por objectivo a consolidação progressiva da situação dos trabalhadores turcos no Estado-Membro de acolhimento (v., designadamente, acórdão de 10 de Janeiro de 2006, Sedef, C-230/03, Colect., p. I-157, n.o 34).

38

Esta disposição visa, assim, os nacionais turcos que têm a qualidade de trabalhadores no Estado-Membro de acolhimento sem, todavia, exigir que tenham entrado na Comunidade nessa qualidade. Podem ter adquirido essa qualidade depois da sua entrada na mesma. Assim, no processo que deu lugar ao acórdão Birden, já referido, M. Birden, que tinha sido autorizado a entrar no território de um Estado-Membro, esteve desempregado antes de exercer uma actividade assalariada nesse Estado. No processo na origem do acórdão Kurz, já referido, o nacional turco em causa tinha sido autorizado a entrar na Comunidade com a idade de 15 anos não na qualidade de trabalhador, mas para seguir uma formação profissional de canalizador.

39

No termo do seu primeiro ano de trabalho, o nacional turco pode, se preencher os requisitos previstos no artigo 6.o, n.o 1, primeiro travessão, da Decisão n.o 1/80, pedir a renovação da sua autorização de trabalho junto do mesmo empregador e o correlativo direito de residência.

40

Para verificar se os nacionais turcos preenchem estes requisitos, não é tido em conta o objectivo com o qual os interessados foram autorizados a entrar no território do Estado-Membro em causa. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 não subordina o reconhecimento dos direitos que confere aos trabalhadores turcos a nenhuma condição relacionada com o motivo por que lhes foi inicialmente concedido o direito de entrada, de trabalho e de residência (v., acórdão de 30 de Setembro de 1997, Günaydin, C-36/96, Colect., p. I-5143, n.os 51 e 52 e jurisprudência aí referida). Assim, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de um nacional turco ter exprimido a sua intenção de regressar ao seu país de origem depois de viver alguns anos no Estado-Membro de acolhimento não o pode impedir de invocar os direitos conferidos pelo artigo 6.o, n.o 1. Esse nacional só poderia ser privado desta possibilidade se tivesse tentado enganar as autoridades competentes ao declarar uma intenção falsa com o único objectivo de levar essas autoridades a conceder-lhe indevidamente as autorizações exigidas (v., neste sentido, acórdão Günaydin, já referido, n.os 54 e 60).

41

Como resulta do acórdão Günaydin, já referido, a circunstância de esse nacional turco ter sido autorizado a entrar no território de um Estado-Membro para aí seguir um ciclo de estudos e de as suas autorizações de permanência estarem de início acompanhadas de uma proibição de exercer uma actividade assalariada não impede o interessado de invocar as disposição do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, contanto que, de seguida, tenha obtido legalmente um trabalho remunerado e tenha trabalhado durante pelo menos um ano para o mesmo empregador.

42

A eventual limitação no tempo do contrato de trabalho não pode tão-pouco constituir um obstáculo à aplicação do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que, se a natureza temporária assim imposta à relação laboral fosse suficiente para pôr em causa a regularidade do emprego que o interessado ocupa legalmente, os Estados-Membros teriam a possibilidade de privar indevidamente os trabalhadores migrantes turcos, cuja entrada autorizaram no seu território e que nele exerceram uma actividade económica regular, durante um período ininterrupto de pelo menos um ano, do benefício dos direitos que lhe são directamente conferidos pelo referido artigo 6.o, n.o 1 (v. acórdão Birden, já referido, n.o 64).

43

Assim, para determinar se um nacional turco, que entrou legalmente no território de um Estado-Membro, pode, após trabalhar durante um ano nesse território, invocar os direitos conferidos pelo artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, há que verificar se o interessado preenche os requisitos objectivos previstos nessa disposição, sem que seja necessário ter em conta os motivos com base nos quais o direito de entrada no referido território lhe foi inicialmente conferido nem as limitações temporais eventualmente ligadas ao seu direito ao trabalho. Segundo jurisprudência assente, as autoridades nacionais não têm a faculdade de fazer depender tais direitos de condições ou restringir a sua aplicação, sob pena de comprometer o efeito útil da referida decisão (v. acórdãos Günaydin, já referido, n.os 37 a 40 e 50; Birden, já referido, n.o 19; Kurz, já referido, n.o 26; de 21 de Outubro de 2003, Abatay e o., C-317/01 e C-369/01, Colect., p. I-12301, n.o 78, e Sedef, já referido, n.o 34).

44

Por conseguinte, em casos como os que estão em causa nos processos principais, os motivos pelos quais a autorização de entrada foi concedida aos nacionais turcos interessados, ou seja, o exercício de uma actividade «au pair» ou o prosseguimento de estudos, não podem por si só impedir os interessados de invocar as disposições do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80. O mesmo se aplica às declarações de intenção exigidas a esses nacionais, segundo as quais eles não pretendiam permanecer no Estado-Membro de acolhimento mais do que dois anos ou pretendiam sair do mesmo no final dos seus estudos, e às limitações temporais das respectivas autorizações de permanência.

45

Uma vez que os requisitos recordados nos n.os 27 a 30 do presente acórdão estão preenchidos, designadamente, que a realidade do trabalho efectuado pelos nacionais turcos em causa está verificada, não é pertinente a circunstância de estas pessoa terem entrado na qualidade de estudantes para prosseguirem estudos ou na qualidade de «au pair» com o objectivo de dominar a língua do Estado-Membro de acolhimento. Se esses nacionais turcos conseguirem, por mérito próprio, preencher os requisitos previstos nos três travessões do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, não podem ser privados do benefício dos direitos que esta disposição lhes confere de modo gradual, em função da duração do exercício da sua actividade assalariada (v., neste sentido, acórdão Günaydin, já referido, n.o 37).

46

Nestas condições, o argumento invocado pelos Estados-Membros que apresentaram observações, segundo o qual um estudante ou uma pessoa que trabalhe como «au pair» poderia contornar a legislação do Estado-Membro de acolhimento para obter progressivamente um direito de acesso ilimitado ao mercado de trabalho deste último, não pode proceder. Com efeito, não se está perante um contorno da legislação quando os interessados se limitam a exercer um direito expressamente previsto pela Decisão n.o 1/80. Seria diferente se estes últimos tivessem obtido fraudulentamente uma autorização de entrada no território de um Estado-Membro fingindo ter a intenção de prosseguir estudos ou de exercer a actividade de «au pair». Em contrapartida, a partir do momento em que a realidade da sua intenção se verifica mediante o prosseguimento efectivo de um ciclo de estudos ou o exercício da actividade de «au pair», em que obtêm legalmente um emprego no Estado-Membro de acolhimento e em que preenchem os requisitos previstos no artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, os interessados podem invocar sem restrições os direitos que esta disposição lhes confere.

47

Por fim, os Governos alemão e neerlandês fazem referência à Directiva 2004/114. Deduzem da economia dessa directiva que o legislador comunitário entendeu permitir ao estudante ter um emprego e efectuar um determinado número de horas de trabalho sem, todavia, ser considerado um trabalhador assalariado e, por conseguinte, sem poder aceder, por essa via, ao mercado de trabalho do Estado-Membro de acolhimento.

48

Essa directiva não é, porém, pertinente. Em virtude do seu artigo 4.o, n.o 1, alínea a), a referida directiva não prejudica disposições mais favoráveis constantes de acordos bilaterais ou multilaterais celebrados entre a Comunidade ou a Comunidade e os seus Estados-Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro. Consequentemente, como observado pela advogada-geral no n.o 57 das suas conclusões, a Directiva 2004/114 não pode justificar uma leitura restritiva do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80, nem permite interpretar essa disposição.

49

Deste modo, há que responder à questão colocada que a circunstância de um cidadão turco ter sido autorizado a entrar no território de um Estado-Membro na qualidade de «au pair» ou de estudante não o pode privar da qualidade de «trabalhador» nem impedir de integrar o «mercado regular de trabalho» desse Estado-Membro na acepção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80. Esta circunstância não pode, assim, impedir o referido cidadão de invocar essa disposição para obter a renovação da sua autorização de trabalho e beneficiar do correlativo direito de residência.

Quanto às despesas

50

Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

A circunstância de um cidadão turco ter sido autorizado a entrar no território de um Estado-Membro na qualidade de «au pair» ou de estudante não o pode privar da qualidade de «trabalhador» nem impedir de integrar o «mercado regular de trabalho» desse Estado-Membro na acepção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão n.o 1/80 do Conselho de Associação, de 19 de Setembro de 1980, relativa ao desenvolvimento da associação. Esta circunstância não pode, assim, impedir o referido cidadão de invocar essa disposição para obter a renovação da sua autorização de trabalho e beneficiar do correlativo direito de residência.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: inglês.