CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 26 de Abril de 2007 1(1)

Processo C‑202/06 P

Cementbouw Handel & Industrie BV

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Concorrência – Controlo das operações de concentração de empresas – Artigos 1.°, 2.°, 3.° e 8.°, do Regulamento (CEE) n.° 4064/89 – Aquisição do controlo da CVK e das suas empresas associadas pela Haniel e Cementbouw – Autorização sujeita ao cumprimento de determinados compromissos – Competência exclusiva da Comissão – Princípio da proporcionalidade»





I –    Introdução

1.     O presente processo permite precisar a delimitação das competências da Comunidade e dos Estados‑Membros no controlo das operações de concentração (2), sendo necessário esclarecer qual o período pertinente num caso concreto de concentração, para a determinação da autoridade nacional da concorrência competente. Deve ainda ser apreciado se a referida autoridade pode perder a sua competência na sequência de acontecimentos supervenientes. Estas questões revestem a maior importância prática, tanto para os operadores económicos em causa como também para as autoridades da concorrência responsáveis pelo controlo das operações de concentração, a nível nacional e comunitário.

2.     Na base deste processo está um processo de controlo de uma operação de concentração relativo aos mercados dos materiais de construção para paredes, entre outros, como blocos sílico‑calcários, nos Países Baixos. Em 1999, as empresas Cementbouw (3) e Haniel (4) adquiriram o controlo conjunto da empresa CVK (5) e das empresas associadas desta. Para este efeito, foram celebrados dois grupos de transacções, considerados pela Comissão como uma operação única de concentração. A competência da Comissão para a apreciação do presente caso apenas pôde ser reconhecida, devido ao facto de estes dois grupos de transacções terem sido considerados como uma unidade e, em conjunto, ultrapassarem os limiares do volume de negócios aplicáveis.

3.     No decorrer do processo de controlo da operação de concentração, a Comissão identificou a existência de problemas de concorrência. Para resolver estes problemas, a Haniel e a Cementbouw ofereceram, num primeiro projecto, compromissos, que, no entanto, contemplavam apenas uma renúncia ao segundo grupo de transacções. Tendo considerado que os referidos compromissos não eram adequados para resolver os problemas de concorrência, a Comissão recusou‑os e apenas aprovou a concentração após terem sido apresentados compromissos mais amplos, que incluíam uma renúncia ao primeiro grupo de transacções.

4.     No processo perante o tribunal, a Cementbouw argumentou que a Comissão não podia ter baseado a sua decisão nos referidos compromissos mais amplos. Com efeito, a empresa considerou que a renúncia das empresas ao segundo grupo de transacções inicialmente oferecida, conduziu, desde logo, à supressão de uma parte decisiva da operação de concentração e, que a Comissão perdeu a sua competência para apreciar a operação de concentração, uma vez que o limiar do volume de negócios não foi atingido.

II – Quadro jurídico

5.     O quadro jurídico do presente caso é definido pelo Regulamento (CEE) n.° 4064/89 do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, relativo ao controlo das operações de concentração de empresas (a seguir «regulamento de controlo das concentrações») (6), na redacção dada pelo Regulamento (CE) n.° 1310/97 (7).

6.     O âmbito de aplicação material do regulamento de controlo das concentrações é resumido no seu artigo 1.°, n.° 1:

«O presente regulamento é aplicável a todas as operações de concentração de dimensão comunitária [...]»

O primeiro período do n.° 1 do artigo 22.°, complementando o artigo acima referido, dispõe o seguinte:

«Apenas o presente regulamento é aplicável às operações de concentração definidas no artigo 3.°, [...]»

7.     O artigo 3.° do regulamento de controlo das concentrações contém uma definição do conceito de concentração, que tem resumidamente a seguinte redacção:

«1.      Realiza‑se uma operação de concentração:

a)      Quando uma ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; ou

b)      Quando:

–      uma ou mais pessoas que já detêm o controlo de pelo menos uma empresa, ou

–      uma ou mais empresas

adquirem directa ou indirectamente, por compra de partes de capital ou de elementos do activo, por via contratual ou por qualquer outro meio, o controlo do conjunto ou de partes de uma ou de várias outras empresas.

[...]»

8.     A questão de saber se uma operação de concentração tem dimensão comunitária depende do facto de o volume de negócios total realizado à escala mundial e na Comunidade pelas empresas em causa ultrapassar determinados limiares quantitativos, fixados no artigo 1.°, n.os 2 e 3, do regulamento de controlo das concentrações. O artigo 1.°, n.° 2, do referido regulamento, relevante para o presente caso, dispõe o seguinte:

«Para efeitos da aplicação do presente regulamento, uma operação de concentração é de dimensão comunitária:

a)      Quando o volume de negócios total realizado à escala mundial por todas as empresas em causa for superior a 5 mil milhões de ecus; e

b)      Quando o volume de negócios total realizado individualmente na Comunidade por pelo menos duas das empresas em causa for superior a 250 milhões de ecus,

a menos que cada uma das empresas em causa realize mais de dois terços do seu volume de negócios total na Comunidade num único Estado‑Membro.»

9.     As operações de concentração de dimensão comunitária estão sujeitas a uma proibição de execução e devem ser notificadas à Comissão (artigos 4.° e 7.° do regulamento de controlo das concentrações), que deve apreciar a sua compatibilidade com o mercado comum (artigo 2.°, n.° 1, do regulamento de controlo das concentrações). A aprovação ou a proibição de uma operação de concentração depende do facto de esta criar ou reforçar uma posição dominante de que resultem entraves significativos à concorrência efectiva no mercado comum ou numa parte substancial deste (artigos 2.°, n.° 2, e 3.°, do regulamento de controlo das concentrações).

10.   A proibição pressupõe sempre um processo formal de controlo da operação de concentração (a denominada «fase II»; v. o artigo 6.°, n.° 1, alínea c), e o artigo 8.°, n.° 3, do regulamento de controlo das concentrações). Também uma aprovação pode ser precedida de um processo formal deste tipo – tal como sucedeu no presente caso (8). Para eliminar eventuais problemas de concorrência, a aprovação pode ser subordinada a condições e obrigações. Para este efeito, o artigo 8.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações confere à Comissão os seguintes poderes de decisão:

«Se a Comissão verificar que uma concentração notificada, eventualmente após as alterações introduzidas pelas empresas em causa, preenche o critério do n.° 2 do artigo 2.° [...], tomará a decisão de declarar a concentração compatível com o mercado comum.

A Comissão pode acompanhar a sua decisão de condições e obrigações destinadas a garantir que as empresas em causa respeitem os compromissos perante ela assumidos para tornar a concentração compatível com o mercado comum. [...]» (9).

11.   No artigo 21.°, n.os 1 e 2, do regulamento de controlo das concentrações, as competências para o controlo de operações de concentração são delimitadas da seguinte forma:

«1.      Sob reserva do controlo do Tribunal de Justiça, a Comissão tem competência exclusiva para tomar as decisões previstas no presente regulamento.

2.      Os Estados‑Membros não podem aplicar a sua legislação nacional sobre a concorrência às operações de concentração de dimensão comunitária.

[...]»

12.   A título complementar, o vigésimo nono considerando do regulamento de controlo das concentrações esclarece o seguinte:

«Considerando que as operações de concentração que não são objecto do presente regulamento são em princípio da competência dos Estados‑Membros; [...]»

13.   Em 2004, o regulamento de controlo das concentrações foi alterado em pontos fundamentais. No entanto, de acordo com o disposto no seu artigo 26.°, n.° 1, a nova redacção do regulamento das concentrações comunitárias (10) apenas é aplicável a partir de 1 de Maio de 2004, pelo que não é relevante para o presente caso; aos casos como o presente continuará a aplicar‑se, nos termos do n.° 2 da referida disposição, o regime jurídico anterior.

III – Matéria de facto e tramitação processual

A –    Matéria de facto

14.   Com base nas conclusões do Tribunal de Primeira Instância (11), a matéria de facto do presente caso pode ser resumida da seguinte forma:

15.   A CVK existe desde 1947 e estava inicialmente encarregada da venda da produção das suas empresas associadas, as fabricantes neerlandesas de blocos sílico‑calcários. Em 1989, a CVK foi transformada numa cooperativa de direito neerlandês a fim de melhorar a cooperação entre as suas associadas.

16.   Antes da realização da operação de concentração, que constitui o motivo para o presente processo judicial, das onze empresas associadas da CVK cinco eram filiais da Haniel, três eram filiais da Cementbouw, duas eram filiais da RAG (12), e uma era conjuntamente detida pela Haniel, a Cementbouw e a RAG.

17.   Em 1998, a autoridade neerlandesa em matéria de concorrência, a «NMa» (13), recebeu uma notificação de um projecto de concentração que previa a aquisição por parte da CVK do controlo sobre as empresas suas associadas. O controlo devia ser transferido através da celebração de um «acordo de pooling» e de uma alteração dos estatutos da CVK. Por decisão de 20 de Outubro de 1998, a NMa autorizou o projecto em causa.

18.   Antes de este projecto ser realizado, a RAG tinha, no entanto, decidido alienar à Haniel e à recorrente as participações que detinha nas empresas associadas da CVK. Em Março de 1999, as partes comunicaram as suas intenções à NMa. Por ofício de 26 de Março de 1999, esta informou‑as de que a alienação prevista não constituiria uma operação de concentração na acepção das disposições legais neerlandesas aplicáveis (14), desde que o projecto autorizado pela decisão de 20 de Outubro de 1998 fosse realizado, o mais tardar, até ao momento da referida alienação.

19.   Em 9 de Agosto de 1999, os vários intervenientes celebraram diversos negócios jurídicos, que podem ser classificados em dois grupos: por um lado, a CVK e as suas empresas associadas celebraram o acordo de pooling acima referido (15), tendo os estatutos da CVK sido alterados nesse mesmo dia de modo a ter em conta as disposições do acordo de pooling (primeiro grupo de transacções). Por outro lado, a RAG alienou – também em 9 de Agosto de 1999 – as participações que detinha em três associadas da CVK à Haniel e à Cementbouw, que, além disso, celebraram um acordo de cooperação para regular a sua cooperação na CVK (segundo grupo de transacções).

B –    O procedimento na Comissão, os compromissos e a decisão recorrida

20.   Tendo tomado conhecimento das transacções de 9 de Agosto de 1999 através do exame de duas outras operações de concentração notificadas pela Haniel (16), a Comissão, por ofício de 22 de Outubro de 2001, comunicou à Cementbouw e às outras empresas participantes que a operação lhe tinha de ser notificada. Por conseguinte, em 24 de Janeiro de 2002, a Haniel e a Cementbouw notificaram a operação à Comissão, de acordo com o disposto no artigo 4.° do regulamento de controlo das concentrações.

21.   Em 25 de Fevereiro de 2002, a Comissão deu início ao procedimento de exame formal, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, alínea c), do regulamento de controlo das concentrações, por considerar que a operação de concentração notificada suscitava sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado comum e com o acordo EEE (17).

22.   Após o envio da comunicação de acusações e a audição das partes interessadas pela Comissão, a Haniel e a Cementbouw apresentaram em 28 de Maio de 2002 um projecto de compromissos com concessões relativamente ao segundo grupo de transacções. Este previa, no essencial, que a Haniel e a Cementbouw revogassem o seu acordo de cooperação e alienassem a um terceiro adquirente independente as suas participações em empresas associadas da CVK, adquiridas à RAG em 1999. O acordo de pooling e a alteração dos estatutos da CVK, pelo contrário, deveriam ser mantidos (18). A Comissão considerou que o referido projecto de compromissos era insuficiente para resolver os problemas por si constatados em matéria de concorrência, que estavam relacionados, em última análise, com o acordo de pooling, ou seja, com o primeiro grupo de transacções.

23.   Na sequência desta decisão, em 5 de Junho de 2002, a Haniel e a Cementbouw apresentaram compromissos definitivos, nos quais se vinculavam igualmente, dentro de um determinado prazo, a revogar o acordo de pooling, a anular a alteração dos estatutos da CVK e a dissolver esta última (19).

24.   Em 26 de Junho de 2002, a Comissão, com base no artigo 8.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações, adoptou a decisão recorrida (20), na qual considerou que a concentração notificada era compatível com o mercado comum e com o Acordo EEE, tendo, no entanto, condicionado a referida autorização ao pleno cumprimento dos compromissos definitivos apresentados pela Haniel e pela Cementbouw em 5 de Junho de 2002. A autorização da concentração está particularmente sujeita à condição de a CVK ser dissolvida num prazo determinado, de acordo com os compromissos definitivos da Haniel e da Cementbouw.

C –    O processo judicial

25.   Em 11 de Setembro de 2002, a Cementbouw interpôs recurso para o Tribunal de Primeira Instância da decisão recorrida, pedindo que a referida decisão fosse anulada e a Comissão condenada nas despesas. A Comissão, por seu lado, pediu que fosse negado provimento ao recurso e a Cementbouw condenada nas despesas.

26.   Por acórdão de 23 de Fevereiro de 2006 (a seguir «acórdão recorrido») (21), o Tribunal de Primeira Instância confirmou integralmente a decisão recorrida, tendo negado provimento ao recurso interposto pela Cementbouw e condenado a empresa nas despesas.

27.   No recurso interposto deste acórdão, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 4 de Maio de 2006, a Cementbouw pede

–       a anulação do acórdão recorrido,

–       caso seja necessário, que o processo seja remetido ao Tribunal de Primeira Instância para nova apreciação,

–       a condenação da Comissão nas despesas.

28.   A Comissão, por seu lado, pede

–       que seja negado provimento ao recurso e

–       a condenação da Cementbouw nas despesas.

29.   No âmbito do presente recurso, foram apresentadas no Tribunal de Justiça alegações escritas e, posteriormente, em 22 de Março de 2007, alegações orais.

IV – Apreciação

A –    Observações preliminares

30.   A delimitação das respectivas competências da Comunidade e dos Estados‑Membros não constitui, de forma alguma, apenas uma questão «constitucional», tal como é reiteradamente discutida no âmbito do direito primário, por último, por exemplo, a respeito do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (22). Este problema coloca‑se, pelo contrário, também na prática diária das autoridades a nível comunitário e nacional. O controlo das operações de concentração é disso um exemplo particularmente evidente.

31.   Por princípio, o regulamento de controlo das concentrações adopta uma delimitação clara das competências de acordo com o princípio da dupla exclusividade: as operações de concentração de dimensão comunitária são controladas em exclusivo pela Comissão como autoridade da concorrência da Comunidade, sendo analisadas por esta exclusivamente à luz do regulamento de controlo das concentrações (artigo 21.°, n.os 1 e 2, bem como artigo 22.°, n.° 1, primeiro período, do regulamento de controlo das concentrações).

32.   No entanto, o presente caso evidencia, que no caso concreto pode ser controverso saber qual a autoridade da concorrência na Comunidade competente para a apreciação e aprovação de uma operação de concentração de empresas.

33.   No presente caso, a Comissão declarou‑se competente (23), dado que classificou os dois grupos de transacções, celebrados em 9 de Agosto de 1999 (24), como parte de uma operação única (25), que, no seu conjunto, cumpre os critérios de uma operação de concentração de dimensão comunitária, na acepção do artigo 3.°, n.° 1, em conjugação com o artigo 1.°, n.os 1 e 2, do regulamento de controlo das concentrações, ultrapassando, em particular, o limiar do volume de negócios pertinente. No decorrer do processo, a Comissão insistiu na referida competência, mesmo após as empresas em causa lhe terem apresentado o seu projecto de compromissos de 28 de Maio de 2002, em que se mostravam disponíveis a renunciar a uma parte da sua operação de concentração – o segundo grupo de transacções.

34.   Perante o Tribunal de Primeira Instância, a Cementbouw impugnou a decisão decorrida quanto a ambos os pontos, tendo contestado tanto a competência originária da Comissão como a manutenção desta para a assunção de compromissos mais amplos do que os formulados no projecto de 28 de Maio de 2002. No entanto, o Tribunal manteve, a decisão recorrida em ambos os pontos (26).

35.   O recurso interposto pela Cementbouw já não coloca todas as questões que foram objecto do processo em primeira instância. Neste, a recorrente impugna apenas as considerações do Tribunal em relação à manutenção da competência da Comissão após o projecto de compromissos de 28 de Maio de 2002. Pelo contrário, a Cementbouw não incluiu, em particular no objecto do presente recurso a questão da competência originária da Comissão, que se baseava na consideração global dos dois grupos de transacções de 9 de Agosto de 1999 como operação única.

B –    Quanto ao primeiro fundamento de recurso

36.   Com o seu primeiro fundamento de recurso, a Cementbouw acusa o Tribunal de ter cometido um erro de direito na interpretação e aplicação dos artigos 1.°, 2.° e 3.°, n.° 1, do regulamento de controlo das concentrações (27). O Tribunal de Primeira Instância manteve a decisão recorrida embora os compromissos propostos pelas empresas em causa no seu projecto de compromissos, caso aceites, tivessem desde logo, levado à perda da competência da Comissão. Por conseguinte, a Comissão não podia, por falta de competência ter baseado a sua aprovação da operação de concentração nos compromissos definitivos, mais amplos, apresentados pela Haniel e pela Cementbouw.

37.   No essencial, a Cementbouw argumenta da seguinte forma: a competência da Comissão para a concentração que lhe foi notificada resultou unicamente de uma consideração global de ambos os grupos de transacções; apenas em conjunto estas ultrapassaram os limiares do volume de negócios previstos no artigo 1.° do regulamento de controlo das concentrações e, desta forma, atribuíram à operação de concentração uma dimensão comunitária. No seu projecto de compromissos, a Haniel e a Cementbouw propuseram, no entanto, renunciar à parte da operação de concentração que se baseava no segundo grupo de transacções. Com este tipo de reformulação da operação de concentração, esta situou‑se abaixo dos limiares do volume de negócios constantes do regulamento de controlo das concentrações, sobrando, portanto, apenas a parte relativa ao primeiro grupo de transacções, que, por si só, não tinha dimensão comunitária por não alcançar os limiares do volume de negócios. A competência da Comissão não é determinada apenas com base na operação de concentração notificada, mas também com base na que existe efectivamente.

38.   Para apreciar a validade da referida argumentação, deve, em primeiro lugar, analisar‑se, no controlo das operações de concentração, qual o período pertinente para a determinação da competência da Comissão (v., infra, 1.). Depois, deve verificar‑se se, e, em que medida acontecimentos posteriores ainda podem ter influência sobre a competência já adquirida da Comissão (v., infra, 2.).

1.      O período relevante para a determinação da competência da Comissão

39.   O regulamento de controlo das concentrações não regula de forma expressa qual o período relevante para a determinação da competência da Comissão para a realização de um processo de controlo de operações de concentração. Do referido regulamento resulta, apenas que a Comissão deve analisar atempadamente a sua própria competência e igualmente decidir sobre ela (v. artigo 4.°, n.° 3 e artigo 6.°, n.° 1, do regulamento de controlo das concentrações) (28), mas não em que período – e, assim, em que factos – se deve basear a sua apreciação. Por conseguinte, o referido período relevante deve ser averiguado, tendo em consideração o sentido e a finalidade das normas de competência bem como o contexto normativo das mesmas.

40.   Tal como já foi referido (29), o regulamento de controlo das concentrações assenta no princípio da repartição precisa de competências entre as autoridades nacionais e comunitárias de controlo, competindo exclusivamente à Comissão adoptar as decisões relativas a operações de concentração de dimensão comunitária (30).

41.   Além disso, o sistema criado pelo regulamento de controlo das concentrações caracteriza‑se por um imperativo de celeridade, que é sobretudo concretizado por um regime de prazos preciso e rígido e que visa limitar a duração dos processos de controlo das operações de concentração (31).

42.   Tanto a repartição de competências como o imperativo de celeridade visam a segurança jurídica e expressam como objectivo conciliar as exigências de uma boa administração com as da vida comercial (32). O controlo das operações de concentração por parte da Comissão, como autoridade da concorrência da Comunidade, deve decorrer da forma mais eficiente possível.

43.   O dever de notificação e a proibição de execução da operação, a que estão sujeitas as operações de concentração de dimensão comunitária (artigos 4.° e 7.° do regulamento de controlo das concentrações) também visam assegurar a segurança jurídica bem como a eficiência do controlo comunitário de operações de concentração.

44.   No entanto, para garantir a maior segurança jurídica possível, bem como uma boa e eficiente actividade administrativa dentro de prazos curtos, é necessário que a autoridade da concorrência competente para a apreciação do caso seja definida o mais cedo possível.

45.   Poder‑se‑ia considerar a data da notificação de um projecto de concentração como data de referência para a determinação da competência da Comissão. De uma análise mais aprofundada, resulta, porém, que o referido período não pode ser determinante, uma vez que, caso contrário, as empresas em causa, através de uma notificação anterior ou posterior, poderiam influenciar de forma arbitrária a repartição de competências (33). Além disso, do ponto de vista dos operadores económicos diligentes deve poder determinar‑se objectivamente, já antes do cumprimento efectivo de um eventual dever de notificação, se o seu projecto de concentração é abrangido pelo âmbito de aplicação do regulamento de controlo das concentrações e, por conseguinte, se inclui nas competências da Comissão. Apenas neste caso, os operadores económicos poderão agir correctamente e cumprir de forma segura o seu dever de notificação bem como a proibição de execução, ambos sujeitos a coimas em caso de incumprimento (34).

46.   Por conseguinte, apenas é decisiva a situação de facto existente à data em que se constitui um eventual dever de notificação. Por outras palavras, a competência da Comissão deve ser determinada tendo em conta o dia a partir do qual um projecto de concentração lhe deve, eventualmente, ser notificado (35). Este é o dia em que os operadores em causa se vinculam contratualmente (36) (v. artigo 4.°, n.° 1, do regulamento de controlo das concentrações) (37). Com efeito, já neste momento é possível determinar objectivamente se está em causa uma operação de concentração de dimensão comunitária ou não. Além disso, no referido momento já se aplica aos operadores económicos em causa a proibição de execução prevista pelo regulamento de controlo das concentrações (v. artigo 7.°, n.° 1, do regulamento de controlo das concentrações).

2.      Os efeitos de acontecimentos posteriores sobre a competência da Comissão

47.   Resta apreciar se e em que medida acontecimentos posteriores, principalmente aqueles que se verificam durante um processo de controlo das operações de concentração em curso, ainda podem ter influência sobre a competência já adquirida da Comissão.

48.   É evidente que a Comissão perde a sua competência para analisar uma operação de concentração quando as empresas em causa renunciamcompletamente ao projecto de concentração, ainda não realizado (38). Com efeito, nesse caso o processo de controlo das operações de concentração fica desprovido de objecto (39).

49.   Pelo contrário, o processo não fica, contudo, desprovido de objecto caso as empresas em causa efectuem apenas determinadas alterações na sua operação de concentração, sem renunciar completamente a ela. Mesmo que, designadamente estas alterações tenham grande alcance e, do ponto de vista das empresas em causa, digam respeito ao cerne da sua operação de concentração (40), mantém‑se, no entanto, uma parte da operação de concentração – no presente caso, o primeiro grupo de transacções –, que, de acordo com a vontade das partes, também se deverá manter. Contrariamente ao entendimento da Cementbouw, reside aqui uma diferença qualitativa em relação à renúncia completa da operação de concentração.

50.   Por maioria de razão, o processo não pode ficar desprovido de objecto quando as empresas em causa, como no presente caso, apenas prometem à Comissão proceder a determinadas alterações sem as pôr logo em prática. Com efeito, contrariamente ao entendimento da Cementbouw, estes meros compromissos não alteram directamente a realidade da operação de concentração acordada pelas empresas e os seus efeitos económicos, tanto mais que a mesma já foi executada.

51.   Em termos mais gerais, a mera circunstância de as empresas realizarem ou apenas prometerem realizar determinadas alterações na sua operação de concentração enquanto decorre um processo de controlo de operações de concentração, não pode influenciar a competência já adquirida da Comissão. Caso se pretenda prosseguir a realização da operação de concentração ou manter a operação de concentração já executada (como sucede no presente caso), e isso mesmo com aceitação de reduções essenciais na estrutura da operação de concentração originária, a análise da sua compatibilidade com o mercado comum continua a ser justificada.

52.   Neste sentido aponta também o objectivo que preside à realização ou à promessa deste tipo de alterações a uma operação de concentração durante um processo de controlo de operações de concentração vai neste sentido: o artigo 8.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações (41) esclarece que as alterações e aprovações (e, por conseguinte, os «compromissos») visam configurar uma concentração compatível com o mercado comum. Após uma análise mais aprofundada, apenas visam, por conseguinte, possibilitar à Comissão um exercício eficiente dos seus poderes no âmbito do processo de controlo das concentrações, mas não retirar‑lhe a sua competência num processo.

53.   Se apenas forem realizadas ou prometidas alterações a uma operação de concentração, sem que se renuncie completamente a essa mesma concentração, o objectivo já referido de assegurar a maior segurança jurídica possível, bem como uma boa e eficiente actividade administrativa (42) não perde a sua importância.

54.   A possibilidade de a competência da Comissão ser constantemente posta em causa ou ser sujeita a modificações durante um processo de controlo de operações de concentração em curso não seria compatível com a exigência de segurança jurídica nem com as exigências de uma boa e eficiente actividade administrativa dentro de prazos curtos.

55.   Caso contrário, correr‑se‑ia o risco de um processo ser empurrado sem rumo entre a Comissão e uma ou mais autoridades da concorrência nacionais, o que, além de o sobrecarregar com inúmeras incertezas, iria tornar nitidamente mais lenta e complexa a sua análise em matéria de concorrência, não apenas para as respectivas autoridades, mas também para as empresas em causa e para os mercados. Além disso, não é de excluir a possibilidade de as empresas em causa durante um processo de controlo de operações de concentração em curso, efectuarem deliberadamente alterações ao seu projecto de concentração para retirá‑lo da competência de uma autoridade da concorrência e atribuí‑lo à competência de uma outra autoridade, supostamente mais benévola, criando, deste modo, uma espécie de «forum shopping».

56.   Por conseguinte, o regulamento de controlo das operações de concentração também não exige em momento algum que a Comissão proceda a uma nova análise da sua competência, quando as empresas em causa alteram a sua operação de concentração ou apenas o prometem fazer. A resposta à questão de saber se os limiares dos volumes de negócios, definidos no artigo 1.° do regulamento de controlo de concentrações, foram ultrapassados, deve ser respondida pela Comissão, durante a denominada fase de análise preliminar («Fase I»), antes de dar início ao procedimento formal («Fase II»). A base para tal é apenas a operação de concentração que lhe foi notificada, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, do regulamento de controlo das concentrações. O facto de o artigo 8.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações exigir que se tenha em consideração as alterações posteriores à operação de concentração notificada visa apenas determinar a sua compatibilidade com o mercado comum. O artigo 8.°, n.° 2 (43), do regulamento de controlo das concentrações não prevê, com efeito, ao contrário do disposto no artigo 6.°, n.° 1, do mesmo regulamento, a necessidade de uma nova decisão da Comissão sobre a sua competência (44).

3.      Conclusão provisória

57.   Por conseguinte, como conclusão provisória deve declarar‑se que na determinação da competência da Comissão para a realização de um processo de controlo das concentrações apenas é pertinente o dia a partir do qual deve ser notificado à Comissão um projecto de concentração. Alterações posteriores a uma operação de concentração já não têm qualquer influência sobre a competência da Comissão, a não ser que delas resulte directamente o abandono completo do projecto.

58.   É ponto assente que o projecto de compromissos das empresas Haniel e Cementbouw, de 28 de Maio de 2002, mesmo que tivesse sido concretizado, apenas conduziria a uma renúncia ao segundo grupo de transacções, não alterando, de qualquer modo, o primeiro grupo de transacções.

59.   Neste contexto, o Tribunal de Primeira Instância partiu correctamente do pressuposto de que o referido projecto de compromissos não poderia pôr em causa a existência da operação de concentração (45), de que, por conseguinte, a competência da Comissão se mantinha (46) e de que esta poderia ainda basear a sua aprovação da operação de concentração nos compromissos definitivos apresentados pela Haniel e Cementbouw em 5 de Junho de 2002.

60.   O primeiro fundamento deve ser, portanto, julgado improcedente.

C –    Quanto ao segundo fundamento de recurso

61.   Com o seu segundo fundamento de recurso, a Cementbouw acusa o Tribunal de ter cometido um erro de direito na interpretação e aplicação do artigo 8.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações e de ter violado o princípio da proporcionalidade.

62.   No essencial, a Cementbouw invoca os mesmos argumentos já apresentados no âmbito do seu primeiro fundamento de recurso: o Tribunal de Primeira Instância ignorou o facto de que a Comissão já era obrigada a aceitar o projecto de compromissos apresentado pela Haniel e a Cementbouw, de 28 de Maio de 2002. Com efeito, no entender da Cementbouw, a realização do referido projecto teria, desde logo, retirado à operação de concentração a sua dimensão comunitária. Neste caso, apenas restaria o primeiro grupo de transacções (47), que, por si só, não poderia ser abrangido pela competência da Comissão.

63.   Conforme já referi a respeito do primeiro fundamento de recurso (48), a argumentação apresentada não é convincente. Neste sentido, irei restringir‑me apenas à análise de dois argumentos adicionais apresentados pela Cementbouw no âmbito do seu segundo fundamento de recurso.

1.      Quanto à alegação da violação do princípio da proporcionalidade

64.   Em primeiro lugar, a Cementbouw acusa o Tribunal de Primeira Instância de ter violado o princípio da proporcionalidade. O Tribunal considerou erradamente que a Comissão não devia ter aceite logo o projecto de compromissos de 28 de Maio de 2002, mas apenas os compromissos definitivos de 5 de Junho de 2002.

65.   O princípio da proporcionalidade faz parte dos princípios gerais do direito comunitário (49), que, nos termos da jurisprudência constante, exige que os actos das instituições comunitárias não ultrapassem os limites do que é adequado e necessário à realização dos objectivos legítimos prosseguidos pela regulamentação em causa, entendendo‑se que, quando se proporcione uma escolha entre várias medidas adequadas, deve recorrer‑se à menos limitativa, e que os inconvenientes causados não devem ser desproporcionados relativamente aos objectivos visados (50).

66.   Também as decisões da Comissão em processos de controlo de operações de concentração devem satisfazer as exigências de proporcionalidade e estão, por conseguinte, sujeitas a fiscalização jurisdicional, o que se aplica não apenas a decisões de proibição, nos termos do artigo 8.°, n.° 3, do regulamento de controlo de concentrações, e às decisões de separação, nos termos do artigo 8.°, n.° 4, do regulamento de controlo de concentrações, mas também às decisões de aprovação nos termos do artigo 8.°, n.° 2, do regulamento de controlo de concentrações, desde que sejam acompanhadas de condições e obrigações. Com efeito, as empresas em causa podem ter um interesse real em submeter a fiscalização jurisdicional os elementos das decisões de aprovação que as oneram, com o objectivo de obter uma aprovação livre de condições e obrigações ou, pelo menos, uma aprovação com condições e obrigações de menor alcance (51).

67.   No entanto, a decisão sobre a compatibilidade de uma operação de concentração com o mercado comum exige da Comissão uma apreciação de contextos económicos complexos, na qual dispõe de uma margem de apreciação (52). Esta margem de apreciação deve igualmente abranger a questão de saber se os compromissos propostos à Comissão são adequados para resolver um problema de concorrência por ela identificado.

68.   Compete ao tribunal comunitário verificar não só a exactidão material dos elementos de prova invocados, a sua fiabilidade e a sua coerência, mas também fiscalizar se estes elementos constituem a totalidade dos dados pertinentes que devem ser tomados em consideração para apreciar a situação complexa e se são susceptíveis de fundamentar as conclusões que deles se retiram (53). Não é, no entanto, chamado a substituir pela sua própria apreciação a apreciação da Comissão no que diz respeito à idoneidade dos compromissos.

69.   Na fiscalização jurisdicional da proporcionalidade de uma decisão de aprovação acompanhada de condições e obrigações deve ainda ter‑se em conta que as condições e obrigações se baseiam em compromissos voluntários das empresas em causa. Por conseguinte, existe uma forte presunção de que as próprias empresas consideraram os compromissos por elas apresentados como adequados, necessários e razoáveis para resolver um problema de concorrência identificado pela Comissão, tanto mais que, do ponto de vista das empresas em causa, uma aprovação condicionada representa, em regra, um meio menos restritivo em comparação com a proibição da sua operação de concentração. Neste sentido, é necessário que se verifiquem circunstâncias excepcionais para se supor que uma decisão da Comissão, que se baseia em compromissos voluntários das empresas em causa, não é compatível com o princípio da proporcionalidade.

70.   No presente caso, a Cementbouw considera aparentemente que o Tribunal de Primeira Instância deveria ter presumido a existência de circunstâncias excepcionais deste tipo, dado tratar‑se de uma operação de concentração já realizada, cuja notificação foi obtida pela Comissão «recorrendo à ameaça de coimas» (54). Em particular, o seu poder de ordenar, caso seja necessário, uma separação, nos termos do artigo 8.°, n.° 4, do regulamento de controlo das concentrações, permitiu à Comissão a obtenção de compromissos das empresas em causa, que, de outro modo, não teria obtido.

71.   Este argumento (55) não me convence. O facto de uma operação de concentração, ser realizada, previamente à sua notificação à Comissão, sem ser dispensada da proibição de execução, é da exclusiva responsabilidade das empresas em causa e não é, de forma alguma, adequado a fundamentar circunstâncias excepcionais. Além disso, resulta desde logo do regulamento de controlo de concentrações que no caso de uma operação de concentração realizada de forma ilegal a Comissão pode aplicar coimas e, caso seja necessário, ordenar uma separação (56). A Comissão, ao invocar os mencionados poderes perante as empresas em causa durante o processo, a Comissão apenas remete para o regime jurídico e não está a agir de forma excepcional. Esta situação também não altera o carácter voluntário dos compromissos assumidos pelas empresas.

72.   No seu recurso, a Cementbouw parece, além disso, pretender que decorre do princípio da proporcionalidade que os compromissos das empresas em causa são suficientes e devem ser aceites pela Comissão quando retiram a uma operação de concentração a sua dimensão comunitária, ou seja, quando levam a que esta se situe abaixo dos limiares dos volumes de negócios constantes do artigo 1.° do regulamento de controlo de concentrações; segundo a recorrente a Comissão não pode de modo algum basear a sua decisão em compromissos de maior alcance.

73.   Também este argumento não convence, tendo, de resto, a Cementbouw, na audiência, deixado de insistir nele de forma tão absoluta. A proporcionalidade das condições ou obrigações não depende do facto de que a operação de concentração mantenha a dimensão comunitária após estas terem sido cumpridas, mas sim de que os compromissos assumidos pelas empresas em causa sejam «proporcionais à restrição de concorrência e a eliminem completamente» (57). A imposição de condições e obrigações tem apenas por objectivo legítimo garantir que a concorrência não seja falseada no mercado interno (58), para o qual é necessária uma configuração das concentrações compatível com o mercado comum. As eventuais condições e obrigações da Comissão devem ser adequadas, necessárias e razoáveis unicamente em vista a este objectivo.

74.   Não seria lógico que a Comissão tivesse de aceitar compromissos como os que constam do projecto de 28 de Maio de 2002 apenas devido ao facto de estes retirarem à operação de concentração a sua dimensão comunitária, sem uma análise obrigatória da idoneidade dos referidos compromissos para resolver o problema de concorrência identificado pela Comissão.

75.   Por conseguinte, o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro de direito ao negar que a Comissão tenha violado o princípio da proporcionalidade (59).

2.      Quanto à pertinência das decisões de autoridades da concorrência nacionais

76.   A Cementbouw acusa ainda o Tribunal de Primeira Instância de «não ter explicado» por que razão a Comissão na decisão recorrida pôde chegar a uma conclusão que é diametralmente oposta à da autoridade neerlandesa em matéria de concorrência (NMa). Neste contexto, a Cementbouw remete para a aprovação do acordo de pooling pela NMa (60). O Tribunal de Primeira Instância permitiu, erradamente, que a Comissão ignorasse, sem suficiente fundamentação, a análise aprofundada da situação de concorrência, pertinente no presente caso, realizada por uma autoridade da concorrência nacional (61).

77.   Como a própria Cementbouw admite, as decisões de autoridades da concorrência nacionais não são vinculativas em processos de controlo de operações de concentração. Acrescento que, em regra, um efeito vinculativo deste tipo, não é de todo concebível em virtude da repartição clara de competências contida no regulamento de controlo das concentrações (62): tanto a Comissão como as autoridades nacionais decidem exclusivamente nos respectivos âmbitos de competência que, de resto, não se sobrepõem.

78.   O presente processo distingue‑se, no entanto, pela particularidade de o primeiro grupo de transacções ser relevante tanto no processo na NMa como no processo posterior na Comissão. É certo que, de um ponto de vista formal, os dois processos não tinham o mesmo objecto, dado que o primeiro grupo de transacções foi apreciado isoladamente pela NMa, ao passo que a Comissão o analisou como parte de um projecto global, que, além do primeiro grupo também abrangia o segundo grupo de transacções. No entanto, é correcto que ambas as autoridades apreciaram, no âmbito dos respectivos processos, o primeiro grupo de transacções à luz do direito da concorrência.

79.   Daqui ainda não resulta, contudo, que a Comissão estivesse materialmente vinculada à apreciação anterior do primeiro grupo de transacções por parte da NMa. Contrariamente ao entendimento defendido pela Cementbouw na audiência, a mera existência de uma decisão anterior da NMa também não conduz a uma limitação da margem de apreciação da Comissão.

80.   Pelo contrário, com o aparecimento do segundo grupo de transacções, todo o projecto passou, à luz das regras da concorrência, a pertencer exclusivamente à Comissão. Neste âmbito, apenas são materialmente vinculativos para a Comissão, os critérios que o artigo 2.° do regulamento de controlo das concentrações lhe impõe para a apreciação da compatibilidade de uma operação de concentração com o mercado comum. Com base nestes critérios, a Comissão está obrigada a examinar cada caso de forma exaustiva e a analisar, caso seja necessário, os mesmos factos e problemas de concorrência já examinados pela autoridade nacional numa situação equiparável. Do artigo 2.° do regulamento de controlo das concentrações não resulta, porém, uma obrigação por parte da Comissão de orientar o conteúdo da sua decisão pelo conteúdo da decisão adoptada por uma autoridade nacional.

81.   À luz do exposto, o Tribunal de Primeira Instância não estava, desde o início, obrigado «a explicar» por que razão a Comissão pôde chegar a uma conclusão diferente da da NMa na apreciação do primeiro grupo de transacções à luz das regras da concorrência. O facto de autoridades diferentes, nos respectivos domínios de competência e dentro da margem de apreciação que lhes é concedida, poderem resolver de forma diferente problemas equiparáveis é, pelo contrário, inerente à natureza da questão e não necessita de esclarecimentos mais aprofundados (63).

82.   Apenas para completar a apreciação, é de referir que a Cementbouw não podia, de forma alguma, confiar que apreciação a nível comunitário dos impactos concorrenciais do primeiro grupo de transacções iria no mesmo sentido da apreciação anteriormente realizada pela NMa. Como a Comissão sublinha correctamente, a empresa nunca executou o primeiro grupo de transacções na forma aprovada pela NMa, tendo, pelo contrário, mesmo contribuído para que este apenas fosse concluído e executado em conjunto com um segundo grupo de transacções, ou seja, como parte de uma operação de concentração de maior alcance.

83.   À luz das considerações precedentes, deve igualmente concluir‑se que o segundo fundamento de recurso deve ser julgado integralmente improcedente.

D –    Conclusão provisória

84.   Dado que nenhum dos fundamentos de recurso apresentados pela Cementbouw tem probabilidade de êxito, considero que o recurso deve ser julgado improcedente, na sua totalidade.

V –    Despesas

85.   Por força do artigo 69.°, n.° 2, em conjugação com os seus artigos 118.° e 122.°, n.° 1, do Regulamento de Processo a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da Cementbouw e esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

VI – Conclusão

86.   Com base nas considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que decida do seguinte modo:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Cementbouw Handel & Industrie BV é condenada nas despesas.


1 – Língua original: alemão.


2 – O conceito de controlo de concentrações é geralmente entendido como o controlo das operações de concentração de empresas, quer se trate de fusões na acepção própria do termo ou de outras formas de concentração de empresas.


3 – A Cementbouw Handel & Industrie BV (Cementbouw) exerce as suas actividades nos Países Baixos, no mercado dos materiais de construção e, mais genericamente, nos mercados da construção, da logística e do comércio de matérias‑primas.


4 – A sociedade alemã Franz Haniel & Cie GmbH (Haniel) exerce a sua actividade no sector dos materiais de construção.


5 – Coöperatieve Verkoop‑ en Produktievereniging van Kalkzandsteenproducenten.


6 – JO L 395, p. 1, com nova publicação, no seguimento de rectificações, no JO 1990, L 257, p. 13.


7 – Regulamento (CE) n.° 1310/97 do Conselho, de 30 de Junho de 1997, que altera o Regulamento (CEE) n.° 4064/89 relativo ao controlo das operações de concentração de empresas (JO L 180, p. 1, rectificado por JO 1998, L 3, p. 16, e JO 1998, L 40, p. 17).


8 – Caso uma operação de concentração não suscite sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado comum, como sucede frequentemente na prática, a sua aprovação é concedida após uma análise puramente preliminar, sem que seja iniciado um processo formal de controlo da operação de concentração (a denominada «fase I»). De acordo com o disposto no artigo 6.°, n.° 1, alínea b), do regulamento de controlo das concentrações, nestes casos a Comissão decidirá não se opor a essa operação de concentração e declará‑la‑á compatível com o mercado comum.


9 –      Uma decisão de aprovação adoptada num processo de análise preliminar também pode ser acompanhada de condições e obrigações, de forma a eliminar eventuais problemas de concorrência (artigo 6.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações, na redacção dada pelo Regulamento n.° 1310/97).


10 – Regulamento (CE) n.° 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas («Regulamento das concentrações comunitárias»), JO L 24, p. 1 (a seguir também «Regulamento n.° 139/2004»).


11 – V., em particular, os n.os 4 a 8 do acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 23 de Fevereiro de 2006, Cementbouw Handel & Industrie/Comissão (T‑282/02, Colect., p. II‑319).


12 – RAG AG, Deutschland (anteriormente: Ruhrkohle AG).


13 – Nederlandse Mededingingsautoriteit.


14 – Artigo 27.° da lei de 22 de Maio de 1997 que fixa novas regras relativas à concorrência económica (wet van 22 mei 1997 houdende nieuwe regels omtrent de economische mededinging – Mededingingswet –, Stb. 1997, n.° 242).


15 – V. o n.° 17 das presentes conclusões.


16 – Processos COMP/M.2495 – Haniel/Fels e COMP/M.2568 – Haniel/Ytong.


17 – Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (JO 1994, L 1, p. 3).


18 – N.° 295 do acórdão recorrido e centésimo vigésimo sétimo considerando da decisão recorrida.


19 – N.° 298 do acórdão recorrido e centésimo vigésimo nono considerando da decisão recorrida.


20 – Decisão 2003/756/CE da Comissão, de 26 de Junho de 2002, que declara uma operação de concentração compatível com o mercado comum e com o Acordo EEE [processo COMP/M.2650 – Haniel/Cementbouw/JV (CVK)], notificada com o número C(2002) 2315 (JO 2003, L 282, p. 1, rectificado no JO 2003, L 285, p. 52).


21 – Processo T‑282/02; acórdão já referido na nota 11.


22 – Assinado em 29 de Outubro de 2004 em Roma (JO C 310, p. 1).


23 – V., nomeadamente, os décimo segundo a trigésimo segundo considerandos da decisão recorrida.


24 – V., a este respeito, o n.° 9 das presentes conclusões.


25 – Na doutrina a presente questão foi comentada da seguinte forma: «Cette affaire est‑elle un exemple de l’échec d’un mécano juridique trop subtil sous‑estimant le pouvoir des autorités de la concurrence de s’attacher à la réalité économique plus qu’à la forme juridique d’une opération? Les montages les plus savants sont parfois fragiles [...]» (Cot, Revue des droits de la concurrence 2006, p. 108, 109).


26 – N.os 101 a 149, bem como n.os 293 a 321 do acórdão recorrido.


27 – Na medida em que a Cementbouw critica igualmente no seu segundo recurso uma violação do artigo 8.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações, com base na questão da competência, aplicam‑se de forma correspondente as seguintes considerações.


28 – Quanto ao dever da Comissão de decidir sobre a sua competência, v., igualmente, o acórdão de 25 de Setembro de 2003, Schlüsselverlag J. S. Moser e o./Comissão (C‑170/02 P, Colect., p. I‑9889, n.° 28).


29 – V., supra, o n.° 31 das presentes conclusões.


30 – Acórdãos Schlüsselverlag J. S. Moser e o./Comissão (já referido na nota 28, n.os 32 e 34) e de 22 de Junho de 2004, Portugal/Comissão (C‑42/01, Colect., p. I‑6079, n.os 50 e 53).


31 – Acórdãos Schlüsselverlag J. S. Moser e o./Comissão (já referido na nota 28, n.° 33) e Portugal/Comissão (já referido na nota 30, n.° 51); v., igualmente, o acórdão do Tribunal de Primeira Instância, de 27 de Novembro de 1997, Kaysersberg/Comissão (T‑290/94, Colect., p. II‑2137, n.° 113).


32 – Acórdãos Schlüsselverlag J. S. Moser e o./Comissão (já referido na nota 28, n.os 33 e 34) e Portugal/Comissão (já referido na nota 30, n.os 51 e 53).


33 – Como o presente caso demonstra, é concebível que, apesar do prazo rígido de uma semana previsto para o cumprimento do dever de notificação (artigo 4.°, n.° 1, do regulamento de controlo das concentrações), a notificação efectiva apenas seja efectuada muito tempo após a celebração dos contratos de direito civil. No período intermédio, os volumes de negócios das empresas em causa podem alterar‑se, o que pode ter efeitos decisivos sobre a questão de saber se se situam acima ou abaixo dos limiares estabelecidos no artigo 1.° do regulamento de controlo das concentrações. Por maioria de razão esta situação pode verificar‑se no âmbito de aplicação da nova versão do regulamento de controlo das concentrações (Regulamento n.° 139/2004), cujo artigo 4.°, n.° 1, não prevê qualquer prazo concreto para o cumprimento do dever de notificação.


34 – Artigo 14.°, n.° 1, alínea a) e artigo 2.°, alínea b), do regulamento de controlo das concentrações.


35 – A questão de saber se uma data ainda anterior a esta é pertinente, por exemplo o momento da decisão de celebrar o acordo de fusão (v. artigo 4.°, n.° 1, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 139/2004) não necessita de ser esclarecida no presente caso, uma vez que a possibilidade de uma antecipação voluntária do momento da notificação apenas existe no âmbito da nova redacção do regulamento de controlo das concentrações e não está previsto no Regulamento n.° 4064/89, ainda aplicável ao caso em apreço.


36 – No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal de Primeira Instância, de 28 de Setembro de 2004, MCI/Comissão (T‑310/00, Colect., p. II‑3253, n.° 89): «A competência da Comissão [...] depende, como precisa o artigo 4.° daquele regulamento, ‘da conclusão do acordo’ de concentração». A Comissão, prossegue o acórdão, «não é competente para adoptar uma decisão ao abrigo do Regulamento n.° 4064/89 antes da celebração de tal acordo» (Itálico da autora).


37 – A publicação de uma oferta de compra ou de troca ou a aquisição de uma participação de controlo equiparam‑se ao vínculo contratual (artigo 4.°, n.° 1, do regulamento de controlo de concentrações).


38 – Neste sentido, igualmente o acórdão MCI/Comissão (já referido na nota 36, em particular os n.os 96 e 107).


39 – Na nova versão do regulamento de controlo das concentrações (Regulamento n.° 139/2004), este entendimento encontra‑se expresso no último período da alínea c), do n.° 1, do artigo 6.°


40 – No presente caso, a Cementbouw refere que o projecto de compromissos de 28 de Maio de 2002 teria desde logo conduzido à perda da «essence» ou do «constitutive element» da operação de concentração (v. n.os 11, 13 e 17 do recurso).


41 – O mesmo se aplica às aprovações na fase de análise preliminar («Fase I»), de acordo com o disposto no artigo 6.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações, na redacção dada pelo Regulamento n.° 1310/97.


42 – V., supra, os n.os 40 a 44 das presentes conclusões.


43 – No artigo 6.°, n.° 2, do regulamento de controlo das concentrações, na redacção dada pelo Regulamento n.° 1310/97, encontra‑se uma regulamentação correspondente relativa ao período de análise preliminar.


44 – A Cementbouw fundamenta o seu recurso, entre outros, no acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 24 de Março de 1994, Air France/Comissão, «Dan Air» (T‑3/93, Colect., p. II‑121, n.° 102). No entanto, este acórdão trata da competência da Comissão, no momento da constituição do dever de notificação. O referido acórdão não contém nenhum esclarecimento quanto a uma eventual obrigação, que incumba à Comissão, de apreciar a sua competência na sequência de acontecimentos posteriores.


45 – N.° 301, última frase, do acórdão recorrido.


46 – N.° 302 do acórdão recorrido.


47 – Neste contexto, a Cementbouw realça particularmente o acordo de pooling.


48 – V., em particular, os n.os 39 a 60 das presentes conclusões.


49 – V., entre outros, o acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA (C‑344/04, Colect., p. I‑403, n.° 79).


50 – Neste sentido, especialmente para o caso de uma decisão, o acórdão de 9 de Março de 2006, Zuid‑Hollandse Milieufederatie und Natuur en Milieu (C‑174/05, Colect., p. I‑2443, n.° 28).


51 – Desde que as condições e obrigações estiverem ligadas de forma inseparável – como sucede geralmente – à efectiva aprovação da operação de concentração, a sua impugnação isolada não é admissível (neste sentido, a jurisprudência constante: v., entre outros, o acórdão de 27 de Junho de 2006, Parlamento/Conselho (C‑540/03, Colect., p. I‑5769, n.os 27 e 28). A decisão de aprovação acompanhada de obrigações e condições apenas é impugnável na sua totalidade, com o objectivo de obter uma reavaliação total da operação de concentração pela Comissão, na acepção do artigo 10.°, n.° 5, do regulamento de controlo das concentrações.


52 – Acórdãos de 31 de Março de 1998, França e o./Comissão, «Kali & Salz» (C‑68/94 e C‑30/95, Colect., p. I‑1375, n.os 223 e 224) e de 15 de Fevereiro de 2005, Comissão/Tetra Laval (C‑12/03 P, Colect., p. I‑987, n.os 38 a 40).


53 – Acórdão Comissão/Tetra Laval (já referido na nota 52, n.° 39).


54 – Na língua do processo: «under threat of fines».


55 – A argumentação da Cementbouw relativa ao problema em causa é admissível, na medida em que não questiona a apreciação dos factos e das provas pelo Tribunal de Primeira Instância, mas visa uma qualificação jurídica das circunstâncias do presente caso como excepcionais. Neste caso, trata‑se, por conseguinte, de uma questão jurídica que inclui nas competências do Tribunal de Justiça em sede de recurso; v., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2006, General Motors/Comissão (C‑551/03 P, Colect., p. I‑3173, n.° 51), bem como os acórdãos de 21 de Setembro de 2006, Nederlandse Federatieve Vereniging voor de Groothandel op Elektrotechnisch Gebied/Comissão (C‑105/04 P, Colect., p. I‑8725, n.° 69), e Technische Unie/Comissão (C‑113/04 P, Colect., p. I‑8831, n.° 82).


56 – Quanto às coimas, v. o artigo 14.°, n.° 2, alínea b), do regulamento de controlo das concentrações, quanto à separação, v. o artigo 8.°, n.° 4, do regulamento de controlo das concentrações.


57 – V., a este respeito, o oitavo considerando do Regulamento n.° 1310/97. O mesmo se aplica, aliás, no âmbito de aplicação da nova versão do regulamento de controlo das concentrações (trigésimo considerando do Regulamento n.° 139/2004).


58 – Artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE e primeiro considerando do regulamento de controlo das concentrações (bem como o segundo considerando da nova versão do regulamento de controlo das concentrações).


59 – N.os 303 e segs. do acórdão recorrido.


60 – V., supra, o n.° 17 das presentes conclusões.


61 – V., supra, os n.os 31 e 40 das presentes conclusões.


62 – As autoridades nacionais podem apenas apresentar o seu ponto de vista no processo na Comissão, nos termos do artigo 19.° do regulamento de controlo das concentrações.


63 – Também no âmbito transatlântico, este fenómeno não é, de modo nenhum, desconhecido; neste sentido, no processo COMP/M.2220 – General Electric/Honeywell, a Comissão chegou a uma conclusão sensivelmente diferente da conclusão das autoridades norte‑americanas.