Processos apensos C-402/05 P e C-415/05 P

Yassin Abdullah Kadi e Al Barakaat International Foundation

contra

Conselho da União Europeia

e

Comissão das Comunidades Europeias

«Política externa e de segurança comum (PESC) — Medidas restritivas contra pessoas e entidades ligadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs — Nações Unidas — Conselho de Segurança — Resoluções adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas — Aplicação na Comunidade — Posição Comum 2002/402/PESC — Regulamento (CE) n.o 881/2002 — Medidas que têm por objecto pessoas e entidades incluídas numa lista elaborada por um órgão das Nações Unidas — Congelamento de fundos e de recursos económicos — Comité do Conselho de Segurança criado pelo n.o 6 da Resolução 1267 (1999) do Conselho de Segurança (Comité de Sanções) — Inclusão dessas pessoas e entidades no Anexo I do Regulamento (CE) n.o 881/2002 — Recurso de anulação — Competência da Comunidade — Base jurídica constituída pela conjugação dos artigos 60.o CE, 301.o CE e 308.o CE — Direitos fundamentais — Direito ao respeito da propriedade, direito de audição e direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva»

Conclusões do advogado-geral M. Poiares Maduro apresentadas em 16 de Janeiro de 2008   I - 6363

Conclusões do advogado-geral M. Poiares Maduro apresentadas em 23 de Janeiro de 2008   I - 6387

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 3 de Setembro de 2008   I - 6411

Sumário do acórdão

  1. Actos das instituições — Escolha da base jurídica — Regulamento que institui medidas restritivas contra determinadas pessoas e entidades ligadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs

    [Artigos 57.o, n.o 2, CE, 60.o CE, 133.o CE e 301.o CE; Regulamento n.o 881/2002 do Conselho]

  2. Actos das instituições — Escolha da base jurídica — Actos comunitários que visam objectivos do Tratado UE em matéria de relações externas — Artigo 308.o CE — Inadmissibilidade

    [Artigos 60.o CE, 301.o CE e 308.o CE; Artigo 3.o UE]

  3. Actos das instituições — Escolha da base jurídica — Regulamento que institui medidas restritivas contra determinadas pessoas e entidades ligadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs

    [Artigos 60.o CE, 301.o CE e 308.o CE; Regulamento n.o 881/2002 do Conselho]

  4. Comunidades Europeias — Fiscalização jurisdicional da legalidade dos actos das instituições — Acto que dá execução a resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas — Fiscalização incidental da legalidade das decisões do Conselho de Segurança — Exclusão

    [Artigo 220.o CE; Regulamento n.o 881/2002 do Conselho]

  5. Direito comunitário — Princípios — Direitos fundamentais — Tomada em consideração da Convenção Europeia dos Direitos do Homem

    [Artigos 220.o CE, 307.o CE; Artigo 6.o, n.o 1, UE]

  6. Direito internacional público — Carta das Nações Unidas — Resoluções do Conselho de Segurança adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas

  7. Comunidades Europeias — Fiscalização jurisdicional da legalidade dos actos das instituições — Regulamento que institui medidas restritivas contra determinadas pessoas e entidades ligadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs

  8. Comunidades Europeias — Fiscalização jurisdicional da legalidade dos actos das instituições — Regulamento que institui medidas restritivas contra determinadas pessoas e entidades ligadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs

  9. Comunidades Europeias — Fiscalização jurisdicional da legalidade dos actos das instituições — Regulamento que institui medidas restritivas contra determinadas pessoas e entidades ligadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs

  10. Recurso de anulação — Acórdão de anulação — Efeitos — Limitação pelo Tribunal de Justiça — Regulamento que institui medidas restritivas contra determinadas pessoas e entidades ligadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs

    [Artigo 231.o CE]

  1.  Aceitar a interpretação dos artigos 60.o CE e 301.o CE segundo a qual basta que as medidas restritivas previstas pela Resolução 1390 (2002) do Conselho de Segurança das Nações Unidas e aplicadas pelo Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], visem pessoas ou entidades que se encontrem num país terceiro ou que a ele estejam associadas a outro título, daria um alcance excessivamente amplo a essas disposições e não teria de maneira nenhuma em conta a exigência, decorrente dos seus próprios termos, de as medidas decididas com base nas referidas disposições deverem ser tomadas contra países terceiros.

    Por um lado, a interpretação do artigo 301.o CE segundo a qual este artigo estabelece uma ponte processual entre a Comunidade e a União Europeia, de modo que deve ser interpretado tão amplamente como as competências comunitárias pertinentes, entre as quais as relativas à política comercial comum e à livre circulação de capitais, seria susceptível de reduzir o seu âmbito de aplicação e, por conseguinte, o seu efeito útil, porque esta disposição, tendo em conta os seus próprios termos, visa a adopção de medidas que afectem as relações económicas com países terceiros, potencialmente muito diversificadas, e que, portanto, a priori, não se devem limitar aos domínios cobertos por outras competências materiais comunitárias, como as competências em matéria de política comercial comum ou de livre circulação de capitais. Esta interpretação, de resto, não encontra apoio na redacção do artigo 301.o CE, pois este confere uma competência material à Comunidade cujo alcance é, em princípio, autónomo em relação ao de outras competências comunitárias.

    Por outro lado, tendo em conta a finalidade, o objecto e o conteúdo do referido regulamento, não se pode considerar que o mesmo tenha especificamente por objecto as trocas comerciais internacionais, no sentido de que se destina essencialmente a promover, facilitar ou regular as trocas comerciais e não podia, por conseguinte, basear-se na competência comunitária em matéria de política comercial comum. Com efeito, um acto comunitário só se enquadra na competência em matéria de política comercial comum prevista no artigo 133.o CE quando tiver especificamente por objecto as trocas comerciais internacionais, no sentido de que se destina essencialmente a promover, a facilitar ou a regular as trocas comerciais e tem efeitos directos e imediatos no comércio ou nas trocas comerciais dos produtos em questão. Também não se pode considerar que o referido regulamento se enquadra no âmbito de aplicação das disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais e de pagamentos na medida em que proíbe a transferência de recursos económicos para particulares em países terceiros. No que diz respeito, em primeiro lugar, ao artigo 57.o, n.o 2, CE, as medidas restritivas em causa não se enquadram em nenhuma das categorias de medidas enumeradas nessa disposição. No que respeita, em seguida, ao artigo 60.o, n.o 1, CE, esta disposição também não pode servir de base ao regulamento controvertido, uma vez que o seu âmbito de aplicação é determinado pelo do artigo 301.o CE. No que se refere, por último, ao artigo 60.o, n.o 2, CE, esta disposição não prevê uma competência comunitária para esse efeito, uma vez que se limita a permitir aos Estados-Membros adoptar, por certos motivos excepcionais, medidas unilaterais contra um país terceiro em matéria de movimentos de capitais e de pagamentos, sem prejuízo do poder do Conselho de impor a um Estado-Membro que modifique ou revogue essas medidas.

    (cf. n.os 168, 176-178, 183, 185, 187-191, 193)

  2.  Uma concepção segundo a qual o artigo 308.o CE permitiria, no contexto particular dos artigos 60.o CE e 301.o CE, a adopção de actos comunitários destinados a concretizar não um dos objectivos da Comunidade mas um dos objectivos do Tratado UE em matéria de relações externas, entre os quais figura a política externa e de segurança comum (PESC), conflitua com a própria letra do artigo 308.o CE.

    Embora seja verdade que foi estabelecida uma ponte entre as acções da Comunidade que envolvem medidas económicas ao abrigo dos artigos 60.o CE e 301.o CE e os objectivos do Tratado UE em matéria de relações externas, designadamente da PESC, nem a redacção das disposições do Tratado CE nem a estrutura deste sustentam uma concepção segundo a qual essa ponte é extensiva a outras disposições do Tratado CE, em particular ao artigo 308.o CE.

    O recurso ao artigo 308.o CE exige que a acção que se pretende adoptar, por um lado, tenha que ver com o «funcionamento do mercado comum» e, por outro, tenha em vista alcançar «um dos objectivos da Comunidade». Ora, este último conceito, tendo em conta os seus termos claros e precisos, não pode de modo algum ser entendido no sentido de que inclui os objectivos da PESC.

    A coexistência da União e da Comunidade enquanto ordenamentos jurídicos integrados mas distintos assim como a arquitectura constitucional dos pilares, pretendidas pelos autores dos Tratados actualmente em vigor, constituem, além disso, considerações de natureza institucional que militam contra a extensão da referida ponte a artigos do Tratado CE diferentes daqueles com os quais é expressamente estabelecida uma ligação.

    Por outro lado, o artigo 308.o CE, sendo parte integrante de uma ordem institucional baseada no princípio das competências de atribuição, não pode constituir um fundamento para alargar o domínio das competências da Comunidade para além do quadro geral resultante do conjunto das disposições do Tratado CE, e em particular das que definem as missões e as acções da Comunidade.

    Do mesmo modo, o artigo 3.o UE, em particular o seu segundo parágrafo, não pode servir de base a um alargamento das competências da Comunidade para além dos seus objectivos.

    (cf. n.os 197-204)

  3.  O artigo 308.o CE destina-se a suprir a falta de poderes para agir, conferidos expressa ou implicitamente às instituições comunitárias por disposições específicas do Tratado, na medida em que tais poderes se revelem necessários para que a Comunidade possa exercer as suas funções tendo em vista alcançar um dos objectivos fixados por esse Tratado.

    O Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], na parte em que impõe medidas restritivas de natureza económica e financeira, é manifestamente abrangido pelo âmbito de aplicação ratione materiae dos artigos 60.o CE e 301.o CE. Dado que estes artigos não prevêem, contudo, poderes de acção expressos ou implícitos para impor medidas dessa natureza a destinatários que não tenham ligação nenhuma com o regime dirigente de um país terceiro, como os visados no dito regulamento, essa falta de poder, devida às limitações do âmbito de aplicação ratione personae das referidas disposições, pode ser suprida recorrendo ao artigo 308.o CE enquanto base jurídica do referido regulamento, para além dos dois primeiros artigos que serviam de base a esse acto do ponto de vista do seu alcance material, na condição, todavia, de estarem preenchidos os outros requisitos de que depende a aplicabilidade do artigo 308.o CE.

    Ora, uma vez que o objectivo deste regulamento é impedir as pessoas associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs de disporem de qualquer recurso financeiro e económico, a fim de impedir o financiamento de actividades terroristas, esse objectivo pode corresponder a um dos objectivos da Comunidade, na acepção do artigo 308.o CE. Com efeito, os artigos 60.o CE e 301.o CE, na medida em que prevêem uma competência comunitária para impor medidas restritivas de natureza económica a fim de implementar acções decididas no âmbito da política externa e de segurança comum, são a expressão de um objectivo implícito e subjacente, que consiste em tornar possível a adopção de tais medidas através da utilização eficaz de um instrumento comunitário. Este objectivo pode considerar-se como um objectivo da Comunidade, na acepção do artigo 308.o CE.

    A implementação de tais medidas através da utilização de um instrumento comunitário não extravasa do quadro geral resultante do conjunto das disposições do Tratado, desde que, pela sua natureza, tenham também uma ligação com o funcionamento do mercado comum, constituindo esta ligação outro requisito de aplicação do artigo 308.o CE. Com efeito, se medidas económicas e financeiras como as impostas pelo referido regulamento fossem impostas unilateralmente por cada Estado-Membro, uma proliferação dessas medidas nacionais seria susceptível de afectar o funcionamento do mercado comum.

    (cf. n.os 211, 213, 216, 222, 225-227, 229, 230)

  4.  A Comunidade é uma comunidade de direito, no sentido de que nem os seus Estados-Membros nem as suas instituições escapam ao controlo da conformidade dos seus actos com a carta constitucional de base que é o Tratado, e este estabelece um sistema completo de vias de recurso e de procedimentos destinado a confiar ao Tribunal de Justiça a fiscalização da legalidade dos actos das instituições. Um acordo internacional não pode pôr em causa a ordem das competências estabelecida pelos Tratados e, portanto, a autonomia do sistema jurídico comunitário, cuja observância é assegurada pelo Tribunal de Justiça no exercício da competência exclusiva que lhe é conferida pelo artigo 220.o CE, competência esta que faz parte dos fundamentos da própria Comunidade.

    Tratando-se, de um acto comunitário que, como o Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], se destina a implementar uma resolução do Conselho de Segurança adoptada ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, não compete ao juiz comunitário, no âmbito da competência exclusiva prevista no artigo 220.o CE, fiscalizar a legalidade de tal resolução adoptada por esse órgão internacional, ainda que essa fiscalização se limitasse ao exame da compatibilidade dessa resolução com o jus cogens, mas antes fiscalizar a legalidade do acto comunitário destinado a dar-lhe aplicação.

    Um acórdão de um órgão jurisdicional comunitário no qual fosse decidido que um acto comunitário destinado a implementar tal resolução é contrário a uma norma hierarquicamente superior do ordenamento jurídico comunitário não implicaria pôr em causa a prevalência dessa resolução no plano do direito internacional.

    (cf. n.os 281, 282, 286-288)

  5.  Os direitos fundamentais fazem parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça. Para este efeito, o Tribunal inspira-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros e nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais relativos à protecção dos Direitos do Homem em que os Estados-Membros colaboraram ou a que aderiram. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem reveste, neste contexto, um significado particular. O respeito dos Direitos do Homem constitui assim um requisito da legalidade dos actos comunitários e não se podem admitir na Comunidade medidas incompatíveis com o respeito desses direitos.

    A este respeito, as obrigações impostas por um acordo internacional não podem ter por efeito a violação dos princípios constitucionais do Tratado CE, entre os quais figura o princípio segundo o qual todos os actos comunitários devem respeitar os direitos fundamentais, constituindo este respeito um requisito da sua legalidade que compete ao Tribunal de Justiça fiscalizar no âmbito do sistema completo de vias de recurso estabelecido pelo mesmo Tratado.

    Os princípios que regem o ordenamento jurídico internacional emanado das Nações Unidas não implicam que esteja excluída uma fiscalização jurisdicional da legalidade interna do Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], à luz dos direitos fundamentais pelo facto de esse acto se destinar a implementar uma resolução do Conselho de Segurança adoptada ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Tal imunidade de jurisdição de um acto comunitário, enquanto corolário do princípio da prevalência, no plano do direito internacional, das obrigações emanadas da Carta das Nações Unidas, em particular das relativas à implementação das resoluções do Conselho de Segurança adoptadas ao abrigo do capítulo VII desse diploma, não encontra qualquer fundamento no Tratado CE. O artigo 307.o CE em caso algum poderia permitir que fossem postos em causa princípios que fazem parte dos próprios fundamentos do ordenamento jurídico comunitário, entre os quais os princípios da liberdade, da democracia e do respeito dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais consagrados no artigo 6.o, n.o 1, UE enquanto fundamento da União. Se o artigo 300.o, n.o 7, CE, que prevê que os acordos celebrados nas condições definidas nesse artigo são vinculativos para as instituições da Comunidade e para os Estados-Membros, fosse aplicável à Carta das Nações Unidas, esta prevaleceria sobre os actos de direito comunitário derivado. Todavia, no plano do direito comunitário, essa prevalência não seria extensiva ao direito primário e, em particular, aos princípios gerais de que fazem parte os direitos fundamentais.

    As jurisdições comunitárias devem, portanto, em conformidade com as competências de que estão investidas ao abrigo do Tratado CE, assegurar a fiscalização, em princípio integral, da legalidade de todos os actos comunitários à luz dos direitos fundamentais, incluindo dos actos comunitários que, como o regulamento em causa, se destinam a implementar resoluções adoptadas pelo Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

    (cf. n.os 283-285, 299, 303, 304, 306-308, 326)

  6.  As competências da Comunidade devem ser exercidas com observância do direito internacional e um acto adoptado ao abrigo dessas competências deve ser interpretado, e o respectivo âmbito de aplicação circunscrito, à luz das regras pertinentes do direito internacional.

    No exercício da sua competência para adopção de actos comunitários com base nos artigos 60.o CE e 301.o CE a fim de implementar resoluções adoptadas pelo Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, a Comunidade deve atribuir uma importância especial ao facto de, em conformidade com o artigo 24.o da Carta das Nações Unidas, a adopção, pelo Conselho de Segurança, de resoluções ao abrigo do capítulo VII desse diploma constituir o exercício da responsabilidade principal de que esse órgão internacional está investido para manter a paz e a segurança, à escala mundial, responsabilidade que, no âmbito do referido capítulo VII, inclui o poder de determinar o que constitui uma ameaça à paz e à segurança internacionais, bem como de tomar as medidas necessárias para as manter ou restabelecer.

    Todavia, a Carta das Nações Unidas não impõe a escolha de um modelo pré-determinado para a implementação das resoluções adoptadas pelo Conselho de Segurança ao abrigo do seu capítulo VII, devendo esta implementação ser levada a cabo de acordo com as modalidades aplicáveis nesta matéria no ordenamento jurídico interno de cada membro da ONU. Com efeito, a Carta das Nações Unidas deixa, em princípio, aos membros da ONU a liberdade de escolher entre vários modelos possíveis de recepção dessas resoluções nos respectivos ordenamentos jurídicos internos.

    (cf. n.os 291, 293, 294, 298)

  7.  No que diz respeito aos direitos de defesa, e em particular ao direito de audição, quando estão em causa medidas restritivas como as impostas pelo Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], não se pode exigir às autoridades comunitárias que comuniquem as referidas razões antes da inclusão inicial de uma pessoa ou de uma entidade na referida lista. Com efeito, essa comunicação prévia seria susceptível de comprometer a eficácia das medidas de congelamento de fundos e de recursos económicos impostas por este regulamento. Por motivos igualmente relacionados com o objectivo prosseguido pelo referido regulamento e com a eficácia das medidas nele previstas, as autoridades comunitárias também não estavam obrigadas a proceder à audição dos recorrentes antes da inclusão inicial dos seus nomes na lista reproduzida no Anexo I desse regulamento. Além disso, estando em causa um acto comunitário destinado a dar execução a uma resolução adoptada pelo Conselho de Segurança no âmbito do combate ao terrorismo, considerações imperiosas atinentes à segurança ou à condução das relações internacionais da Comunidade e dos seus Estados-Membros podem opor-se à comunicação de certos elementos aos interessados e, assim, à sua audição sobre esses elementos.

    Todavia, os direitos de defesa, em particular o direito de audição, não são manifestamente respeitados, uma vez que nem o regulamento em causa nem a Posição Comum 2002/402, relativa a medidas restritivas contra [Osama Bin Laden], os membros da organização Al-Qaida e os talibãs, bem como contra outros indivíduos, grupos, empresas e entidades a eles associados, para a qual esse regulamento remete, prevêem um procedimento de comunicação dos elementos que justificam a inclusão dos nomes dos interessados no Anexo I do referido regulamento e de audição destes últimos, quer concomitantemente quer posteriormente a essa inclusão, e que, além disso, o Conselho não comunicou aos recorrentes os elementos de acusação de que dispunha para fundamentar as medidas restritivas que lhes foram impostas, nem lhes concedeu o direito de tomarem conhecimento dos referidos elementos num prazo razoável depois da aplicação dessas medidas.

    (cf. n.os 334, 338, 339, 341, 342, 345,348)

  8.  O princípio da tutela jurisdicional efectiva constitui um princípio geral do direito comunitário, que decorre das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros e que foi consagrado pelos artigos 6.o e 13.o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tendo este princípio, aliás, sido reafirmado no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

    O cumprimento da obrigação de comunicar as razões em que se baseia a inclusão do nome de uma pessoa ou entidade na lista que constitui o Anexo I do Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], é necessário tanto para permitir aos destinatários das medidas restritivas defenderem os seus direitos nas melhores condições possíveis e decidirem com pleno conhecimento de causa se é útil recorrer ao juiz comunitário como para dar a este todas as condições para exercer a fiscalização da legalidade do acto comunitário em causa, que lhe incumbe por força do Tratado.

    Assim, desde o momento em que as referidas pessoas ou entidades não são informadas dos elementos de acusação contra elas formulados, e tendo em conta as relações existentes entre os direitos de defesa e o direito a um recurso jurisdicional efectivo, as mesmas também não podem defender os seus direitos, à luz dos referidos elementos, em condições satisfatórias perante o juiz comunitário, e este não está em condições de proceder à fiscalização da legalidade desse regulamento na medida em que o mesmo diz respeito a essas pessoas ou entidades, pelo que se deve concluir pela violação do referido direito a um recurso jurisdicional efectivo.

    (cf. n.os 335-337, 349, 351)

  9.  A importância dos objectivos prosseguidos por um acto comunitário é susceptível de justificar consequências negativas, mesmo consideráveis, para certos operadores, incluindo os que não têm responsabilidades na situação que levou à aplicação das medidas em causa, mas que são afectados, nomeadamente, no seu direito de propriedade.

    Tendo em conta um objectivo de interesse geral tão fundamental para a Comunidade internacional como o combate por todos os meios, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, contra as ameaças à paz e à segurança internacionais que os actos de terrorismo constituem, o congelamento de fundos, haveres financeiros e outros recursos económicos das pessoas identificadas pelo Conselho de Segurança ou pelo comité de sanções como estando associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos talibãs não pode, por si só, ser considerado inadequado ou desproporcionado. A este respeito, as medidas restritivas impostas pelo Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], constituem restrições ao direito de propriedade que, em princípio, podem ser justificadas.

    Todavia, os procedimentos aplicáveis devem também dar à pessoa ou entidade em questão uma oportunidade adequada de expor a sua causa às autoridades competentes como exige o artigo 1.o do Protocolo n.o 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

    Assim, a imposição das medidas restritivas constantes do referido regulamento a uma pessoa ou entidade, devido à sua inclusão na lista contida no Anexo I do mesmo regulamento, constitui uma restrição injustificada do seu direito de propriedade uma vez que este regulamento foi adoptado sem fornecer nenhuma garantia que permitisse a esta pessoa ou entidade expor a sua causa às autoridades competentes, e isto numa situação em que a restrição dos seus direitos de propriedade deve ser qualificada como considerável, tendo em conta o alcance geral e a duração efectiva das medidas restritivas que lhe foram aplicadas.

    (cf. n.os 361, 363, 366, 368-370)

  10.  Na medida em que um regulamento como o Regulamento n.o 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al-Qaida e aos [talibãs], deve ser anulado, no que diz respeito aos recorrentes, devido a uma violação de princípios aplicáveis no âmbito do procedimento seguido na adopção das medidas restritivas instauradas por esse regulamento, não se pode excluir que, quanto ao mérito, a imposição dessas medidas aos recorrentes possa, ainda assim, ser justificada.

    A anulação deste regulamento com efeitos imediatos, poderia assim afectar de forma grave e irreversível a eficácia das medidas restritivas impostas por este regulamento e às quais a Comunidade tem a obrigação de dar execução, uma vez que, no período de tempo que precede a sua eventual substituição por um novo regulamento, os recorrentes poderiam tomar medidas destinadas a evitar que ainda lhes pudessem ser aplicadas medidas de congelamento de fundos. Nestas circunstâncias, faz-se uma correcta aplicação do artigo 231.o CE mantendo os efeitos do referido regulamento, na medida em que diz respeito aos recorrentes, durante um período que não poderá exceder três meses a contar da data da prolação do acórdão.

    (cf. n.os 373, 374, 376)