Processo C‑282/05 P

Holcim (Deutschland) AG

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Responsabilidade extracontratual da Comunidade –Artigo 85.° do Tratado CE (actual artigo 81.° CE) – Reembolso das despesas de uma garantia bancária»

Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi apresentadas em 11 de Janeiro de 2007 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 19 de Abril de 2007 

Sumário do acórdão

1.     Acção de indemnização – Prazo de prescrição – Início

(Artigo 288.°, segundo parágrafo, CE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 46.°)

2.     Acção de indemnização – Prazo de prescrição – Interrupção

(Artigo 288.°, segundo parágrafo, CE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 46.°)

3.     Responsabilidade extracontratual – Condições

(Artigo 288.°, segundo parágrafo, CE)

1.     O prazo de prescrição da acção baseada em responsabilidade da Comunidade começa a correr quando se encontrem preenchidos todos os requisitos de que depende a obrigação de indemnização, nomeadamente quando se concretiza o dano a indemnizar. Por conseguinte, nos casos em que a fonte da responsabilidade da Comunidade é um acto normativo, esse prazo de prescrição começa a correr quando os efeitos danosos desse acto se tiverem produzido. Uma solução diferente equivaleria a pôr em causa o princípio da autonomia dos meios processuais, fazendo depender o processo da acção de indemnização do desfecho de um recurso de anulação.

Essa solução pode ser transposta para o contencioso decorrente de actos individuais. Neste contencioso, o prazo de prescrição começa a correr quando a decisão tiver produzido os respectivos efeitos relativamente às pessoas a quem se dirige. Numa situação em que através de uma decisão da Comissão é aplicada uma coima a uma sociedade, os efeitos danosos produzem‑se contra esta sociedade a partir da sua condenação no pagamento da coima. Com efeito, é indiferente, para efeitos do começo da contagem do prazo de prescrição, que a actuação ilegal da Comunidade tenha sido reconhecida por uma decisão judicial.

(cf. n.os 29‑31)

2.     Nos termos do artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, a prescrição interrompe‑se, em matéria de responsabilidade extracontratual, quer pela apresentação do pedido no Tribunal, quer através de pedido prévio que o lesado pode dirigir à instituição competente das Comunidades. Dado que o referido artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça é relativo às acções contra as Comunidades em matéria de responsabilidade extracontratual, o «pedido», na acepção dessa disposição, que aliás é considerado um facto interruptivo da prescrição, é o que se destina a accionar essa responsabilidade, em conformidade com o artigo 288.°, segundo parágrafo, CE. Um recurso de anulação não pode, portanto, ser considerado um «pedido» susceptível de interromper o prazo de prescrição na acepção do artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça.

(cf. n.° 36)

3.     A responsabilidade extracontratual da Comunidade depende do preenchimento de um conjunto de requisitos, entre os quais, quando está em causa a ilegalidade de um acto jurídico, a existência de uma violação suficientemente caracterizada de um norma jurídica destinada a conferir direitos aos particulares. Relativamente a este requisito, o critério decisivo para considerar que uma violação do direito comunitário é suficientemente caracterizada é o da violação manifesta e grave, por uma instituição comunitária, dos limites que se impõem ao seu poder de apreciação. Quando essa instituição dispuser de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infracção do direito comunitário pode ser suficiente para que se verifique uma violação suficientemente caracterizada. A natureza geral ou individual de um acto não é, portanto, determinante para saber se estamos em presença de uma tal violação.

(cf. n.os 47, 48)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

19 de Abril de 2007 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Responsabilidade extracontratual da Comunidade – Artigo 85.° do Tratado CE (actual artigo 81.° CE) – Reembolso das despesas de uma garantia bancária»

No processo C‑282/05 P,

que tem por objecto o recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, nos termos do artigo 56.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, entrado em 12 de Julho de 2005,

Holcim (Deutschland) AG, anteriormente Alsen AG, com sede em Hamburgo (Alemanha), representada por P. Niggemann e F. Wiemer, Rechtsanwälte,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

Comissão das Comunidades Europeias, representada por R. Lyal e G. Wilms, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, P. Kūris, J. Makarczyk, L. Bay‑Larsen e J.‑C. Bonichot (relator), juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de Janeiro de 2007,

profere o presente

Acórdão

1       No presente recurso, a Holcim (Deutschland) AG pede a anulação do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias de 21 de Abril de 2005, Holcim (Deutschland) AG/Comissão das Comunidades Europeias (T‑28/03, Colect., p. II‑1357, a seguir «acórdão recorrido»), que julgou improcedente a acção que intentara para obter o ressarcimento dos danos que alega ter sofrido por ter efectuado despesas ligadas à constituição de uma garantia bancária destinada a diferir o pagamento de uma coima aplicada pela Decisão 94/815/CE da Comissão, de 30 de Novembro de 1994, relativa a um processo de aplicação do artigo 85.° do Tratado CE (Processo IV/33.126 e 33.322 – Cimento) (JO L 343, p. 1, a seguir «decisão cimento»), decisão esta que foi posteriormente anulada por acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Março de 2000, Cimenteries CBR e o./Comissão, dito «cimento» (T‑25/95, T‑26/95, T‑30/95 a T‑32/95, T‑34/95 a T‑39/95, T‑42/95 a T‑46/95, T‑48/95, T‑50/95 a T‑65/95, T‑68/95 a T‑71/95, T‑87/95, T‑88/95, T‑103/95 e T‑104/95, Colect., p. II‑491).

 Antecedentes do litígio

2       Os antecedentes do litígio foram expostos nos n.os 1 a 9 do acórdão recorrido, nos seguintes termos:

«1      A demandante, a sociedade Alsen AG, actual Holcim (Alemanha) AG, cuja sede se situa em Hamburgo (Alemanha), tem por actividade o fabrico de materiais de construção. A Alsen AG provém da fusão, realizada em 1997, entre a Alsen Breitenburg Zement und Kalkwerke GmbH (a seguir ‘Alsen Breitenburg’) e a Nordcement AG (a seguir ‘Nordcement’).

2      Através da [decisão cimento], a Comissão aplicou à Alsen Breitenburg e à Nordcement coimas, respectivamente, de 3,841 milhões e de 1,85 milhões de EUR, por violação do artigo 85.° do Tratado CE (actual artigo 81.° CE).

3      A Alsen Breitenburg e a Nordcement interpuseram recursos de anulação dessa decisão. Estes recursos foram registados sob os números T‑45/95 e T‑46/95 e, de seguida, apensos aos recursos interpostos pelas outras sociedades visadas pela decisão cimento.

4      Na sequência da faculdade concedida pela Comissão, a Alsen Breitenburg e a Nordcement decidiram constituir uma garantia bancária, evitando assim ter de pagar, de imediato, as coimas em causa. A garantia bancária da Alsen Breitenburg foi constituída de 3 de Maio de 1995 a 2 de Maio de 2000 por intermédio do Berenberg Bank, mediante uma comissão anual de 0,45%. A Nordcement constituiu, de 18 de Abril de 1995 a 3 de Maio de 2000, uma garantia bancária por intermédio do Deutsche Bank, mediante uma comissão anual de 0,375% e uma comissão única de estabelecimento de 15,34 EUR. No total, a recorrente pagou aos bancos, para a constituição das garantias bancárias, um montante de 139 002,21 EUR.

5      [Através do acórdão cimento, já referido], o Tribunal de Primeira Instância anulou a decisão cimento no que diz respeito à demandante e condenou a Comissão nas despesas.

6      Ao abrigo do artigo 91.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância e por carta de 28 de Setembro de 2001, a demandante pediu, portanto, à demandada o reembolso, por um lado, das despesas processuais (designadamente, as despesas com o advogado, que ascendem a 545 000 EUR) e, por outro, das despesas resultantes da constituição das garantias bancárias.

7      Por carta de 24 de Janeiro de 2002, a demandada propôs à demandante o reembolso de uma parte das despesas com o advogado (no montante de 130 000 EUR), mas recusou o reembolso das despesas com a garantia bancária, invocando a jurisprudência relativa às despesas, na acepção do artigo 91.° do Regulamento de Processo.

8      Por carta de 5 de Abril de 2002, a demandante convidou de novo a demandada a reembolsar‑lhe a integralidade das despesas com advogados e com a garantia bancária. Para o reembolso das despesas com a garantia bancária, a recorrente baseou‑se, desta vez, no artigo 288.°, segundo parágrafo, CE, no artigo 233.° CE e no acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 10 de Outubro de 2001, Corus UK/Comissão (T‑171/99, Colect., p. II‑2967), que foi, entretanto, proferido.

9      Por mensagem de correio electrónico de 30 de Maio de 2002, a demandada propôs o pagamento das despesas com advogados, no montante de 200 000 EUR. Quanto às despesas com a garantia bancária, recusou‑se, de novo, a proceder ao seu reembolso, considerando que a possibilidade de suspender o pagamento da coima mediante a constituição de uma garantia bancária é uma simples opção e que, por isso, não pode ser considerada responsável pelas despesas provocadas pela decisão das empresas de recorrer a esta possibilidade.»

 Acção no Tribunal de Primeira Instância e acórdão recorrido

3       Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 31 de Janeiro de 2003, a ora recorrente pediu:

–       a condenação da Comissão no pagamento do montante de 139 002,21 EUR, acrescido de juros de mora à taxa anual de 5,75% a contar de 15 de Abril de 2000;

–       a condenação da Comissão nas despesas.

4       Por sua vez, a ora recorrida pediu ao Tribunal de Primeira Instância:

–       que julgasse a acção inadmissível, na parte em que se baseava no artigo 233.° CE;

–       que a acção fosse julgada, na parte em que se baseava no artigo 288.° CE:

–       inadmissível ou, a título subsidiário, improcedente, na parte em que dizia respeito às despesas com a garantia bancária efectuadas antes de 31 de Janeiro de 1998;

–       improcedente quanto ao demais;

–       que condenasse a demandada nas despesas.

5       Nas suas observações, a ora recorrente pediu, consequentemente, que o Tribunal de Primeira Instância se dignasse:

–       declarar a acção admissível, na parte em que se baseava no artigo 233.° CE;

–       a título subsidiário, considerar que a acção, na parte em que se baseava no artigo 233.° CE, era um recurso de anulação ou uma acção por omissão;

–       condenar a demandada nas despesas.

6       Através do acórdão recorrido, proferido depois de ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal de Primeira Instância na audiência de 10 de Junho de 2004, este julgou a acção parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente.

7       Em primeiro lugar, julgou a acção inadmissível na parte em que se baseava no artigo 233.° CE.

8       Para chegar a essa conclusão, o Tribunal de Primeira Instância considerou que, no âmbito do Tratado CE, os meios processuais de que as partes dispõem para fazer valer os seus direitos estão taxativamente enumerados. Ora, uma vez que o artigo 233.° CE, relativo às obrigações que a execução de um acórdão do Tribunal de Justiça envolve, não prevê um desses meios processuais, não pode servir de base, de modo autónomo, a um pedido destinado a obter o reembolso de despesas relativas a garantias bancárias. Por outro lado, o Tribunal de Primeira Instância recusou‑se a considerar a petição como a de um recurso de anulação ou de uma acção por omissão, depois de ter declarado que o seu objecto inicial era um pedido de indemnização (n.° 46 do acórdão recorrido).

9       Em segundo lugar, o Tribunal de Primeira Instância considerou que a acção, na parte em que se baseava no artigo 288.° CE, devia ser julgada em parte inadmissível e em parte improcedente.

10     O Tribunal de Primeira Instância considerou, de acordo com as alegações da demandada, que a acção de indemnização era parcialmente inadmissível por ter prescrito por força do artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça. Recordou que o prazo de prescrição da acção baseada em responsabilidade extracontratual não começa a correr antes de se encontrarem preenchidos todos os requisitos de que depende a obrigação de indemnização (n.° 59 do acórdão recorrido). Considerou, no caso concreto, que esses requisitos se encontravam preenchidos a partir da constituição das garantias bancárias, na medida em que a ora recorrente, considerando ilegal a decisão cimento, podia suscitar a responsabilidade extracontratual da Comunidade (n.° 63 do acórdão recorrido). Por conseguinte, o prazo de prescrição só foi interrompido pela apresentação da petição no Tribunal de Primeira Instância em 31 de Janeiro de 2003. Aplicando as disposições do artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, o Tribunal de Primeira Instância considerou que a acção de indemnização tinha prescrito no que dizia respeito às despesas da garantia bancária efectuadas antes de 31 de Janeiro de 1998 (n.° 74 do acórdão recorrido).

11     O Tribunal de Primeira Instância conheceu do mérito da acção no que diz respeito às despesas efectuadas posteriormente a essa data. Numa primeira fase, procurou verificar se a actuação da Comissão constituía uma violação caracterizada do direito comunitário. Recordou que ele próprio tinha declarado a ilegalidade da decisão cimento no acórdão cimento, já referido. No entanto, concluiu que essa ilegalidade não constituía uma violação caracterizada do direito comunitário. É certo que reconheceu que a Comissão não dispunha, no caso, de um poder de apreciação alargado e que, nessas circunstâncias, a inobservância do direito comunitário podia ser considerada uma violação caracterizada (n.os 95 a 100 do acórdão recorrido). Recordou, porém, que os factos que estiveram na origem da decisão cimento eram de extrema complexidade. Nessas condições, o Tribunal de Primeira Instância decidiu que a violação do direito comunitário não era, no caso concreto, suficientemente caracterizada (n.os 101 a 116 do acórdão recorrido).

12     Numa segunda fase, o Tribunal de Primeira Instância procurou um eventual nexo de causalidade entre a actuação da Comissão e o dano invocado. Considerou que esse nexo não tinha sido demonstrado na medida em que a constituição de uma garantia bancária resultou da livre escolha da demandante, e não da ilegalidade da decisão da Comissão (n.os 119 a 131 do acórdão recorrido).

13     Consequentemente, o Tribunal de Primeira Instância considerou inútil pronunciar‑se sobre o dano sofrido e julgou a acção improcedente.

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

14     A ora recorrente mantém os pedidos formulados em primeira instância e conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–       anular o acórdão recorrido;

–       condenar a recorrida a pagar à recorrente o montante de 139 002,21 EUR, acrescido de juros de mora à taxa anual de 5,75% a contar de 15 de Abril de 2000;

–       subsidiariamente, baixar o processo ao Tribunal de Primeira Instância para que este profira nova decisão, tendo em conta a apreciação jurídica do Tribunal de Justiça;

–       condenar a recorrida na totalidade das despesas;

15     A ora recorrida conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–       negar provimento ao recurso;

–       condenar a recorrente nas despesas;

 O presente recurso

16     O recurso baseia‑se em três fundamentos. O primeiro é relativo a um erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância, por ter considerado parcialmente prescrita a acção de indemnização baseada nos artigos 235.° CE e 288.° CE. O segundo é relativo a um erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância, por considerar que a responsabilidade da Comunidade dependia da existência de uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário. O terceiro fundamento é relativo ao erro cometido pelo Tribunal de Primeira Instância, por considerar que não tinha sido demonstrado, no caso concreto, um nexo de causalidade entre a ilegalidade da decisão cimento e as despesas da garantia.

 Quanto ao primeiro fundamento

 Argumentos das partes

17     A recorrente contesta a apreciação feita pelo Tribunal de Primeira Instância da aplicação das normas relativas à prescrição, previstas no artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça. Considera que o prazo de prescrição só começou a correr depois de decretada a anulação da decisão cimento. Baseia o seu raciocínio no acórdão de 27 de Janeiro de 1982, Birra Wührer e o./Comissão (256/80, 257/80, 265/80, 267/80 e 5/81, Recueil, p. 85, n.° 10), do qual resulta que o prazo de prescrição não pode começar a correr antes de estarem preenchidos todos os requisitos de que depende a obrigação de indemnização, nomeadamente, antes de o dano a ressarcir estar concretizado.

18     Ora, segundo a recorrente, a anulação da decisão cimento era, no caso em apreço, um requisito da obrigação de indemnização.

19     A recorrente considera que, ao constituir as garantias bancárias, deu cumprimento a uma obrigação jurídica que só cessou com a decisão de anulação. Considera também que o dano se encontra estreitamente ligado à interposição do recurso de anulação, uma vez que foi por causa desse recurso e pelo facto de o mesmo não ter carácter suspensivo que as garantias bancárias foram constituídas.

20     Além disso, afirma que o Tribunal de Primeira Instância desenvolveu um raciocínio errado com base no acórdão de 2 de Junho de 1976, Kurt Kampffmeyer e o./Comissão e Conselho (56/74 a 60/74, Colect., p. 315), ao considerar que a recorrente podia ter intentado uma acção de indemnização a partir do momento da constituição das garantias bancárias. Com efeito, entende que tal utilização da acção prevista no artigo 288.° CE teria constituído um desvio de processo destinado a contornar os requisitos de admissibilidade do recurso de anulação impostos pelo artigo 230.° CE.

21     A recorrente observa por último que, contrariamente ao que considerou o Tribunal de Primeira Instância, o prejuízo não foi contínuo, mas que se concretizou plenamente com a constituição das garantias bancárias. Salienta que foi celebrado um único contrato de garantia com os bancos. Acresce que esse contrato era limitado ratione temporis à duração do processo judicial e as taxas de juro aplicáveis eram anuais. Assim, não era efectuada uma facturação diária das comissões bancárias correspondentes a essas garantias.

22     A título subsidiário, a recorrente sustenta que o prazo de prescrição foi interrompido pela interposição do recurso de anulação no Tribunal de Primeira Instância. Segundo afirma, os factos do caso vertente só ficaram definitivamente assentes no âmbito desse recurso e a propositura da acção de indemnização dependia essencialmente do desfecho do processo de anulação.

23     A recorrida considera, por sua vez, que o Tribunal de Primeira Instância aplicou correctamente as normas relativas à prescrição. Sustenta, nomeadamente, que a decisão ilegal é o facto constitutivo da responsabilidade.

24     Considera que a constituição das garantias bancárias não pode ser analisada como uma obrigação jurídica, na medida em que resulta da livre escolha da recorrente, que também podia decidir pagar a coima. Consequentemente, ao anular a decisão cimento, o Tribunal de Primeira Instância não pode ter posto termo a uma obrigação inexistente. A anulação não é, por conseguinte, o facto na origem da responsabilidade, que é antes a própria decisão cimento.

25     A recorrida salienta igualmente que a recorrente podia, como referiu o Tribunal de Primeira Instância, intentar uma acção de indemnização a partir do momento da constituição das garantias. A recorrida considera que assistiu razão ao Tribunal de Primeira Instância quando aplicou a jurisprudência do acórdão Kampffmeyer e o./Comissão e Conselho, já referido, sendo os meios processuais previstos nos artigos 230.° CE e 288.° CE autónomos.

26     Assim sendo, a recorrida considera que o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro de direito ao decidir que o prazo de prescrição começou a correr a partir do momento da constituição das garantias bancárias.

27     A recorrida sustenta também que a interposição do recurso de anulação não interrompeu o prazo de prescrição, alegando que o artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça prevê expressamente a interrupção desse prazo pela propositura de uma acção de indemnização. Um recurso de anulação não interrompe, assim, o referido prazo.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

28     O primeiro fundamento subdivide‑se em três partes.

 Quanto à primeira parte, relativa à apreciação do momento a partir do qual começa a correr o prazo de prescrição

29     O prazo de prescrição da acção baseada em responsabilidade da Comunidade começa a correr quando se encontram preenchidos todos os requisitos de que depende a obrigação de indemnização, nomeadamente, quando se concretiza o dano a indemnizar. Por conseguinte, nos casos em que a fonte da responsabilidade da Comunidade é um acto normativo, esse prazo de prescrição começa a correr quando os efeitos danosos desse acto se tiverem produzido.

30     Uma solução diferente equivaleria a pôr em causa o princípio da autonomia dos meios processuais, fazendo depender o processo da acção de indemnização do desfecho de um recurso de anulação. Essa solução pode ser transposta para o contencioso decorrente de actos individuais. Neste contencioso, o prazo de prescrição começa a correr quando a decisão tiver produzido os respectivos efeitos relativamente às pessoas a quem se dirige.

31     Ora, no caso em apreço, os efeitos danosos da decisão cimento produziram‑se contra os predecessores da sociedade recorrente, a partir da sua condenação no pagamento de uma coima. Essas condenações incluíam a faculdade, para evitar o pagamento imediato das coimas, de se constituírem garantias bancárias. Contrariamente ao que sustenta a recorrente, os efeitos danosos da decisão cimento não se produziram, portanto, no momento da anulação dessa decisão pelo Tribunal de Primeira Instância. Com efeito, é indiferente, para efeitos do começo da contagem do prazo de prescrição, que a actuação ilegal da Comunidade tenha sido reconhecida por uma decisão judicial.

32     Os predecessores da sociedade recorrente podiam, por conseguinte, em conformidade com a solução adoptada pelo Tribunal de Justiça no n.° 6 do acórdão Kampffmeyer e o./Comissão e Conselho, já referido, intentar uma acção destinada a ver reconhecida a responsabilidade extracontratual da Comunidade a partir do momento em que a causa do dano se tinha tornado certa, ou seja, no caso em apreço, a partir da constituição das garantias bancárias. Contrariamente ao que alega a recorrente, isso não constituiria um desvio de processo, sendo a acção de indemnização autónoma em relação ao recurso de anulação.

33     O Tribunal de Primeira Instância, no n.° 68 do acórdão recorrido, cometeu um erro de direito ao considerar que o prazo de prescrição começava a correr a partir da data da constituição das garantias bancárias. Com efeito, embora a acção baseada em responsabilidade pudesse sem dúvida ser intentada a partir da constituição das garantias, uma vez que, nessa data, a existência do dano causado pela decisão impugnada da Comissão era certa e que a sua extensão podia ser avaliada, a prescrição só podia correr a partir do momento em que o prejuízo pecuniário se tivesse efectivamente verificado, ou seja, o momento a partir do qual, no caso em apreço, tinham começado a surgir as despesas da garantia bancária. Mas, independentemente da data tomada em conta, é certamente anterior à da prolação do acórdão cimento, já referido, que a recorrente entende ser a data a partir da qual começou a correr o prazo de prescrição. A primeira parte do primeiro fundamento não deve ser acolhida.

 Quanto à segunda parte, relativa ao carácter contínuo do dano

34     O dano alegado pela recorrente é constituído pelas quantias que teve de pagar aos bancos para a constituição de garantias. Como resulta dos autos no Tribunal de Primeira Instância e do processo que nele correu os seus termos, essas despesas bancárias eram calculadas proporcionalmente ao número de dias durante os quais as garantias bancárias estiveram em vigor.

35     Assim, o montante do dano alegado aumentava na proporção do número de dias decorridos. A recorrente, por conseguinte, não tem razão ao sustentar que o dano tem carácter imediato e se limita à constituição das garantias bancárias. Assim, o Tribunal de Primeira Instância considerou correctamente, no n.° 69 do acórdão recorrido, que o dano invocado pela recorrente tinha carácter contínuo. Em consequência, a segunda parte do primeiro fundamento não deve ser acolhida.

 Quanto à terceira parte, relativa à interrupção do prazo de prescrição

36     Nos termos do artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, a prescrição interrompe‑se, em matéria de responsabilidade extracontratual, quer pela apresentação do pedido no Tribunal de Justiça quer através do pedido prévio que o lesado pode dirigir à instituição competente das Comunidades. Sendo o artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça relativo às acções contra as Comunidades em matéria de responsabilidade extracontratual, o «pedido», na acepção dessa disposição, que, aliás, é considerado um facto interruptivo da prescrição, é o que se destina a accionar essa responsabilidade, em conformidade com o artigo 288.°, n.° 2, CE. Um recurso de anulação não pode, portanto, ser considerado um «pedido» susceptível de interromper o prazo de prescrição, na acepção do artigo 46.° do Estatuto do Tribunal de Justiça. Assim, a recorrente não tem razão quando sustenta, na última parte do primeiro fundamento, que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao considerar que a interposição de um recurso de anulação não interrompeu o prazo de prescrição.

37     Resulta do exposto que o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente na íntegra.

 Quanto ao segundo fundamento

 Argumentos das partes

38     A recorrente considera que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao procurar uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário como requisito da obrigação de indemnização da Comunidade.

39     Sustenta que o critério da violação suficientemente caracterizada só é aplicável quando está em causa a função legislativa da Comunidade. Ora, no caso em apreço, é no contexto jurídico criado pela anulação de uma medida individual de carácter administrativo que se encontra a responsabilidade da Comunidade. Assim, o Tribunal de Primeira Instância não devia, segundo a recorrente, averiguar a existência de uma violação suficientemente caracterizada, bastando a mera verificação da existência de uma ilegalidade para fundamentar a obrigação de indemnização.

40     Acrescenta que o critério da violação suficientemente caracterizada é exigido no âmbito dos actos legislativos para evitar os contenciosos de massa, contenciosos que são menos prováveis quando estão em causa actos individuais, como é o caso presente.

41     A título subsidiário, a recorrente pede ao Tribunal de Justiça que declare que, no caso em apreço, houve uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário. Para esse efeito, baseia‑se na jurisprudência que considera que há violação suficientemente caracterizada quando uma instituição viola de modo manifesto e grave os limites do seu poder de apreciação, bastando uma simples infracção quando esse poder é já de si reduzido (v. acórdão de 23 de Maio de 1996, Hedley Lomas, C‑5/94, Colect., p. I‑2553). A recorrente considera que a margem de apreciação da recorrida, no caso em apreço, era reduzida e, neste aspecto, partilha da apreciação do Tribunal de Primeira Instância (v. n.° 100 do acórdão recorrido). Ao invés, considera que o Tribunal de Primeira Instância levou erradamente em conta a complexidade dos factos e as dificuldades de aplicação do direito comunitário para determinar a existência de uma violação suficientemente caracterizada, não permitindo a referida jurisprudência, segundo afirma, basear o acórdão recorrido nesses fundamentos.

42     Por último, a recorrente alega que os factos do caso concreto não eram, no que lhe diz respeito, complexos e que a extensão do acórdão cimento, já referido, se explica tão‑só pelo facto de a recorrida e o Tribunal de Primeira Instância terem preferido apensar diferentes processos conexos em vez de tratar num acórdão separado os casos das sociedades Alsen Breitenburg e Nordcement.

43     A recorrida considera, por sua vez, que o Tribunal de Primeira Instância agiu correctamente ao averiguar da existência de uma violação suficientemente caracterizada.

44     Sustenta, nomeadamente, que a distinção feita pela recorrente entre actos legislativos e actos individuais não é pertinente. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a natureza dos actos não é, efectivamente, um critério determinante para identificar os limites do poder de apreciação das instituições (v. acórdão de 4 de Julho de 2000, Bergaderm e Goupil/Comissão, C‑352/98 P, Colect., p. I‑5291, n.os 40 e 42). Considera que, para apreciar a extensão desse poder de apreciação, é necessário colocarmo‑nos no momento da tomada de decisão. Nestas circunstâncias, há que levar em conta a situação específica da Comissão nesse momento e, consequentemente, ter em consideração a complexidade dos factos na origem do processo. Considera, além disso, que a inexistência de complexidade dos factos, alegada pela recorrente, é uma questão que escapa à competência do Tribunal de Justiça em sede de recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância.

45     A título subsidiário, a recorrida alega que a avaliação da complexidade dos factos não se pode limitar apenas à situação da recorrente no âmbito do presente recurso, devendo também ter em conta todas as situações que levaram a Comissão a adoptar a decisão cimento.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

46     O segundo fundamento subdivide‑se em três partes.

 Quanto à primeira parte, relativa ao facto de o Tribunal de Primeira Instância não dever procurar uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário

47     A responsabilidade extracontratual da Comunidade depende do preenchimento de um conjunto de requisitos, entre os quais, quando está em causa a ilegalidade de um acto jurídico, a existência de uma violação suficientemente caracterizada de um norma jurídica destinada a conferir direitos aos particulares. Relativamente a este requisito, o critério decisivo para considerar que uma violação do direito comunitário é suficientemente caracterizada é o da violação manifesta e grave, por uma instituição comunitária, dos limites que se impõem ao seu poder de apreciação. Quando essa instituição apenas dispuser de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infracção do direito comunitário pode ser suficiente para que se verifique uma violação suficientemente caracterizada (acórdão Bergaderm e Groupil/Comissão, já referido, n.os 43 e 44).

48     A natureza geral ou individual de um acto não é, portanto, determinante para saber se estamos em presença de uma tal violação (acórdãos Bergaderm e Goupil/Comissão, já referido, n.° 46, e de 10 de Julho de 2003, Comissão/Fresh Marine, C‑472/00 P, Colect., p. I‑7541, n.° 27).

49     A recorrente, por conseguinte, não tem razão quando sustenta que o critério da violação suficientemente caracterizada de uma norma jurídica só é aplicável quando está em causa a função legislativa da Comunidade e que está excluída quando, como no caso em apreço, está em causa um acto individual. O Tribunal de Primeira Instância não podia, assim, contrariamente ao alegado, limitar‑se a declarar a existência de uma simples ilegalidade, antes devendo, como aliás fez correctamente, adoptar o critério da existência de uma violação suficientemente caracterizada. Consequentemente, o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro de direito ao averiguar se havia, no caso, uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário. Assim, a primeira parte do segundo fundamento não deve ser acolhida.

 Quanto à segunda parte, relativa aos critérios a que recorreu o Tribunal de Primeira Instância para concluir pela existência de violação suficientemente caracterizada do direito comunitário

50     O regime decorrente da jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade extracontratual da Comunidade leva em conta, nomeadamente, a complexidade das situações a resolver, as dificuldades de aplicação ou de interpretação dos diplomas e, mais especificamente, a margem de apreciação de que dispõe o autor do acto posto em causa (v. acórdãos, já referidos, Bergaderm e Goupil/Comissão, n.° 40, e Comissão/Fresh Marine, n.° 24).

51     No acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância levou em conta não só o poder de apreciação da recorrida mas também a complexidade dos factos e as dificuldades na aplicação do direito comunitário para averiguar se estava demonstrada uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário. Os critérios a que recorreu para averiguar da existência dessa violação do direito comunitário não estão viciados, consequentemente, por erro de direito. A segunda parte do segundo fundamento não deve, portanto, ser acolhida.

 Quanto à terceira parte, destinada a obter a declaração pelo Tribunal de Justiça, a título subsidiário, de que os factos do caso concreto não eram complexos

52     A recorrente apresenta dois argumentos para sustentar a afirmação de que os factos não eram complexos. Alega, em primeiro lugar, que o Tribunal de Primeira Instância só concluiu pela complexidade dos factos devido à extensão do acórdão cimento, já referido, que se deve tão‑só à circunstância de o Tribunal de Primeira Instância ter decidido, nesse acórdão, apensar vários processos conexos, quando teria podido, sem dificuldade, proferir um acórdão distinto apenas para as sociedades Alsen Breitenburg e Nordcement.

53     Todavia, contrariamente ao que é defendido, o Tribunal de Primeira Instância, no acórdão recorrido, não inferiu a complexidade dos factos da especial extensão do acórdão cimento, já referido. Foi à luz de todas as circunstâncias do processo cimento que o Tribunal de Primeira Instância considerou, no n.° 114 do acórdão recorrido, que a ora recorrida se encontrava perante situações complexas de resolver. Por conseguinte, a recorrente não tem razão quando sustenta que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao extrair da extensão do acórdão cimento, já referido, extensão que se explica tão‑só pela apensação de diversos processos, a conclusão de que os factos do caso concreto eram complexos.

54     Em segundo lugar, relativamente à questão de saber se os factos do caso concreto eram complexos, há que recordar que resulta do artigo 225.°, n.° 1, segundo parágrafo, CE e do artigo 58.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça que o recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância é limitado às questões de direito.

55     Como foi recordado no n.° 50 do presente acórdão, o regime da responsabilidade, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça, exige que seja levado em conta, nomeadamente, o grau de complexidade do processo que a administração comunitária teve de apreciar. A questão de saber se os factos em causa numa acção de responsabilidade têm essa complexidade é uma questão que apenas cabe apreciar ao Tribunal de Primeira Instância e que não pode ser discutida em sede de recurso de uma decisão do mesmo Tribunal, excepto se tiver havido desvirtuação dos elementos de prova, o que não foi invocado no caso em apreço. Por conseguinte, esta parte do fundamento é inadmissível.

56     Sendo a terceira parte do segundo fundamento parcialmente improcedente e parcialmente inadmissível, o segundo fundamento improcede na íntegra.

57     Resulta do exposto que a recorrente não demonstrou que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao considerar que não havia, no caso em apreço, uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário, sendo certo que só tal violação seria susceptível de dar origem à responsabilidade extracontratual da Comunidade. Tendo em conta o carácter cumulativo dos requisitos de que essa responsabilidade depende, esta consideração é suficiente para negar provimento ao presente recurso, pelo que não é necessário analisar o terceiro fundamento, relativo à existência de um nexo de causalidade entre a actuação imputada à Comunidade e o dano alegado.

 Quanto às despesas

58     Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, aplicável aos recursos de decisões do Tribunal de Primeira Instância por força do artigo 118.º do mesmo regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Holcim (Deutschland) AG é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.