Processo C‑195/05

Comissão das Comunidades Europeias

contra

República Italiana

«Incumprimento de Estado – Ambiente – Directivas 75/442/CEE e 91/156/CEE – Conceito de ‘resíduo’ – Restos de alimentos provenientes da indústria agro‑alimentar destinados à produção de alimentos para animais – Resíduos de preparados culinários destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia»

Conclusões do advogado‑geral J. Mazák apresentadas em 22 de Março de 2007 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 18 de Dezembro de 2007 

Sumário do acórdão

1.     Ambiente – Resíduos – Directiva 75/442 – Conceito de resíduo

[Artigo 174.°, n.° 2, CE; Directiva 75/442 do Conselho, na redacção dada Directiva 91/156, artigo 1.°, alínea a)]

2.     Ambiente – Resíduos – Directiva 75/442 – Âmbito de aplicação

[Directiva 75/442 do Conselho, na redacção dada Directiva 91/156, artigos 1.°, alínea a), e 2.°, n.° 1]

3.     Ambiente – Resíduos – Directiva 75/442 – Conceito de resíduo

[Directiva 75/442 do Conselho, na redacção dada Directiva 91/156, artigo 1.°, alínea a)]

4.     Ambiente – Resíduos – Directiva 75/442 – Âmbito de aplicação

[Directiva 75/442 do Conselho, na redacção dada Directiva 91/156, artigos 1.°, alínea a), e 2.°, n.° 1]

5.     Ambiente – Resíduos – Directiva 75/442 – Âmbito de aplicação

(Directiva 75/442 do Conselho, na redacção dada Directiva 91/156)

1.     A qualificação de «resíduo» de uma substância ou de um objecto na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 75/442 relativa aos resíduos, na redacção dada pela Directiva 91/156, resulta, antes de tudo, do comportamento do detentor e do significado da expressão «se desfazer». Esta expressão deve ser interpretada não só à luz do objectivo essencial da directiva, que, segundo o seu terceiro considerando, é a protecção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos nocivos da recolha, transporte, tratamento, armazenamento e depósito dos resíduos, mas também do artigo 174.°, n.° 2, CE, que dispõe que a política da Comunidade no domínio do ambiente terá por objectivo atingir um nível de protecção elevado e basear‑se‑á nos princípios da precaução e da acção preventiva. Daí resulta que a referida expressão e, portanto, o conceito de resíduo, não podem ser interpretados restritivamente.

(cf. n.os 34, 35)

2.     Não tendo a Directiva 75/442 relativa aos resíduos, na redacção dada pela Directiva 91/156, proposto qualquer critério determinante para se apurar a vontade do detentor de se desfazer de determinada substância ou objecto, os Estados‑Membros, na falta de disposições comunitárias, têm a liberdade de escolha dos meios de prova dos diversos elementos definidos nas directivas que transpõem, desde que isso não prejudique a eficácia do direito comunitário. Assim, os Estados‑Membros podem, por exemplo, definir diferentes categorias de resíduos, nomeadamente para facilitar a organização e o controlo da sua gestão, desde que as obrigações decorrentes da directiva ou de outras disposições de direito comunitário relativas a esses resíduos sejam respeitadas e as eventuais categorias excluídas do âmbito de aplicação dos diplomas aprovados para a transposição das obrigações resultantes da directiva estejam em conformidade com o seu artigo 2.°, n.° 1.

(cf. n.° 43)

3.     A lista das categorias de resíduos que consta do anexo I da Directiva 75/442 relativa aos resíduos, na redacção dada pela Directiva 91/156, e as operações de eliminação e aproveitamento enumeradas nos seus anexos IIA e IIB revelam que o conceito de resíduo não exclui em princípio nenhum tipo de resíduo ou de outras substâncias resultantes do processo de produção.

A existência real de um «resíduo» na acepção do artigo 1.°, alínea a), da referida directiva deve, assim, ser verificada em face de todas as circunstâncias, tendo em conta o objectivo dessa directiva e tendo o cuidado de não prejudicar a sua eficácia. Assim, determinadas circunstâncias podem constituir indícios da existência de uma acção, de uma intenção ou de uma obrigação de alguém «se desfazer» de uma substância ou de um objecto, na acepção da referida disposição. É esse o caso, nomeadamente, quando a substância é um resíduo da produção ou do consumo, isto é, um produto que não se pretendeu como tal, não sendo o método de tratamento ou o modo de utilização de uma substância determinantes para a sua qualificação como resíduo. Além do critério assente na natureza de resíduo de produção ou não de uma substância, o grau de probabilidade de reutilização dessa substância sem uma operação de transformação prévia constitui um critério pertinente para efeitos de se apreciar se a referida substância é ou não um resíduo na acepção da directiva. Se, além da simples possibilidade de reutilização da substância em causa, existir uma vantagem económica do detentor ao fazê‑lo, a probabilidade de uma tal reutilização é grande. Nesse caso, a substância em causa não pode ser vista como um encargo de que o detentor se pretenderá «desfazer», mas sim como um autêntico produto. Acresce que, para que determinados materiais possam ser considerados não como resíduos da produção, mas sim subprodutos de que o detentor, devido à sua vontade manifesta de que eles sejam reutilizados, não se pretende desfazer, é necessário que a reutilização de um bem, de um material ou de uma matéria‑prima, incluindo para as necessidades de operadores económicos diferentes daquele que o produziu, não seja meramente eventual, mas sim certa, não necessite de transformação prévia e ocorra na continuidade do processo de produção ou de utilização. Consequentemente, não se pode inferir apenas do facto de os materiais em questão serem reutilizados que não constituem «resíduos» na acepção da directiva. Com efeito, o que futuramente vier a ser um objecto ou uma substância não é, só por si, decisivo quanto à sua eventual natureza de resíduo, que é determinada, de acordo com o artigo 1.°, alínea a), da directiva, em função da acção, da intenção ou da obrigação de o seu detentor se desfazer deles.

(cf. n.os 36, 37, 40, 42, 44‑46, 48, 49)

4.     O artigo 1.°, alínea a), da Directiva 75/442 relativa aos resíduos, na redacção dada pela Directiva 91/156, não só fornece a definição do conceito de «resíduo», na acepção da directiva, mas determina também, conjuntamente com o seu artigo 2.°, n.° 1, o respectivo âmbito de aplicação. O artigo 2.°, n.° 1, indica quais os tipos de resíduos que estão ou podem estar excluídos do âmbito de aplicação da directiva e em que condições, quando, em princípio, todos os resíduos que correspondam a essa definição estão incluídos. Qualquer disposição de direito interno que limite de uma forma geral o alcance das obrigações resultantes da directiva para além do que permite o seu artigo 2.°, n.° 1, viola necessariamente o âmbito de aplicação da referida directiva.

(cf. n.° 53)

5.     A Directiva 75/442 relativa aos resíduos, na redacção dada pela Directiva 91/156, não se pode considerar com sendo de aplicação residual relativamente à legislação comunitária e nacional sobre segurança alimentar no que diz respeito aos restos alimentares provenientes da indústria agro‑alimentar e aos resíduos provenientes dos preparados culinários de qualquer tipo de alimentos destinados à produção de alimentos para animais. Com efeito, embora os objectivos de certas disposições dessa legislação e os desta directiva possam eventualmente sobrepor‑se parcialmente, continuam sensivelmente diferentes. Acresce que, para além dos casos expressamente referidos no artigo 2.°, n.° 1, da referida directiva, nada nesta é susceptível de indicar que não se aplica cumulativamente com outras legislações.

(cf. n.° 55)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

18 de Dezembro de 2007 (*)

«Incumprimento de Estado – Ambiente – Directivas 75/442/CEE e 91/156/CEE – Conceito de ‘resíduo’ – Restos de alimentos provenientes da indústria agro‑alimentar destinados à produção de alimentos para animais – Resíduos de preparados culinários destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia»

No processo C‑195/05,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 2 de Maio de 2005,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por M. Konstantinidis, na qualidade de agente, assistido por G. Bambara, avvocato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Italiana, representada por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por G. Fiengo, avvocato dello Stato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, U. Lõhmus, J. N. Cunha Rodrigues, A. Ó Caoimh (relator) e P. Lindh, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: J. Swedenborg, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 17 de Janeiro de 2007,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 22 de Março de 2007,

profere o presente

Acórdão

1       Na petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que:

–       ao adoptar instruções operacionais válidas para todo o território nacional, especialmente explicitadas através da circular do Ministério do Ambiente de 28 de Junho de 1999, que fornece esclarecimentos de interpretação sobre o conceito de resíduo (a seguir «circular de Junho de 1999») e da circular do Ministério da Saúde de 22 de Julho de 2002, que contém as linhas orientadoras relativas à disciplina higieno‑sanitária no que respeita à utilização na alimentação animal de materiais e subprodutos provenientes do ciclo produtivo e comercial da indústria agro‑alimentar (GURI n.° 180, de 2 de Agosto de 2002, e rectificativo, GURI n.° 245, de 18 de Outubro de 2002 a seguir «comunicado de 2002»), que excluem do âmbito de aplicação da regulamentação sobre resíduos os restos alimentares provenientes da indústria agro‑alimentar destinados à produção de alimentos para animais, e

–       ao excluir, por meio do artigo 23.° da Lei n.° 179 de 31 de Julho de 2002, que aprova determinadas disposições em matéria de ambiente (GURI n.° 189, de 13 de Agosto de 2002, a seguir «Lei n.° 179/2002»), do âmbito de aplicação da regulamentação sobre resíduos os provenientes dos preparados culinários de qualquer tipo de alimentos sólidos, cozinhados e crus, não entrados no circuito de distribuição, destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia,

a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1975, relativa aos resíduos (JO L 194, p. 39; EE 15 F1 p. 129), na redacção dada Directiva 91/156/CEE do Conselho, de 18 de Março de 1991 (JO L 78, p. 32, a seguir «directiva»).

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

2       Nos termos do seu artigo 1.°, alíneas a) e c), para os efeitos do disposto na directiva, entende‑se por:

«a)      Resíduo: quaisquer substâncias ou objectos abrangidos pelas categorias fixadas no anexo I de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer.

A Comissão, de acordo com o procedimento previsto no artigo 18.°, elaborará, o mais tardar em 1 de Abril de 1993, uma lista dos resíduos pertencentes às categorias constantes do anexo I. Essa lista será reanalisada periodicamente e, se necessário, revista de acordo com o mesmo procedimento;

[...]

c)      Detentor: o produtor dos resíduos ou a pessoa singular ou colectiva que tem os resíduos na sua posse».

3       O artigo 1.°, alíneas e) e f), da directiva define os conceitos de eliminação e de aproveitamento como qualquer das operações previstas nos seus anexos IIA e IIB.

4       O artigo 2.°, n.° 1, alínea b), da directiva enuncia os resíduos excluídos do seu âmbito de aplicação «[s]empre que já abrangidos por outra legislação».

5       O anexo I da directiva, intitulado «Categorias de resíduos», abrange nomeadamente as categorias Q14, «Produtos que não tenham ou deixaram de ter utilidade para o detentor (por exemplo, materiais agrícolas, domésticos, de escritório, de lojas, de oficinas, etc., postos de parte)», Q16 «Qualquer substância, matéria ou produto que não esteja abrangido pelas categorias acima referidas».

6       A Comissão aprovou a Decisão 94/3/CE, de 20 de Dezembro de 1993, que estabelece uma lista de resíduos em conformidade com a alínea a) do artigo 1.° da Directiva 75/442 (JO 1994, L 5, p. 15). Essa lista foi renovada com a Decisão 2000/532/CE da Comissão, de 3 de Maio de 2000, que substitui a Decisão 94/3 e a Decisão 94/904/CE do Conselho, que estabelece uma lista de resíduos perigosos em conformidade com o n.° 4 do artigo 1.° da Directiva 91/689/CEE do Conselho relativa aos resíduos perigosos (JO L 226, p. 3). A lista de resíduos aprovada pela Decisão 2000/532 foi alterada várias vezes, da última vez pela Decisão 2001/573/CE do Conselho, de 23 de Julho de 2001 (JO L 203, p. 18). Esta lista contém uma classificação dos resíduos em função da sua origem. O seu capítulo 2 intitula‑se «Resíduos de produção primária da agricultura, horticultura, silvicultura, caça, pesca e aquacultura, bem como da preparação e do processamento de produtos alimentares».

 Legislação nacional

7       O artigo 6.°, n.° 1, alínea a), do Decreto legislativo n.° 22, que executa as Directivas 91/156/CEE relativa aos resíduos, 91/689/CEE relativa aos resíduos perigosos e 94/62/CE relativa a embalagens e resíduos de embalagens, de 5 de Fevereiro de 1997 (suplemento ordinário à GURI n.° 38, de 15 de Fevereiro de 1997, a seguir «Decreto legislativo n.° 22/97»), tem a seguinte redacção:

«Para efeitos do presente decreto, entende‑se por:

a)      ‘resíduo’: qualquer substância ou objecto abrangido pelas categorias fixadas no anexo A de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer.

[...]»

8       O artigo 8.°, n.° 1, do referido decreto exclui do seu âmbito de aplicação certas substâncias ou certos materiais que sejam objecto de regulamentação específica, nomeadamente, no seu ponto c), «restos de cadáveres e os seguintes resíduos da agricultura: matérias fecais e outras substâncias naturais não perigosas utilizadas na agricultura».

9       O artigo 23.°, n.° 1, alínea b), da Lei n.° 179/2002 introduziu no artigo 8.°, n.° 1, do Decreto legislativo n.° 22/97 um ponto bis c), nos termos do qual estão excluídos do âmbito de aplicação do referido decreto «os resíduos e os excedentes provenientes de preparados culinários de qualquer tipo de alimentos sólidos, cozinhados e crus, não entrados no circuito de distribuição, destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia a que se refere a Lei n.° 281 de 14 de Agosto de 1991, na redacção dada posteriormente, no respeito da legislação em vigor».

10     A circular de Junho de 1999 precisa a definição do termo «resíduo» que consta do artigo 6.° do Decreto legislativo n.° 22/97 e dispõe, no seu terceiro parágrafo, alínea b):

«os materiais, as substâncias e os objectos resultantes de ciclos produtivos ou de pré‑consumo, dos quais o detentor não se desfaz nem tem a intenção ou a obrigação de se desfazer, e que, por isso, não são entregues a sistemas de recolha ou transporte de resíduos nem de gestão de resíduos para efeitos de aproveitamento ou de eliminação, estão sujeitos ao regime das matérias‑primas e não ao regime dos resíduos, desde que apresentem as características das matérias‑primas secundárias a que se refere o decreto ministerial, [relativo à identificação dos resíduos não perigosos sujeitos ao processo de aproveitamento simplificado na acepção dos artigos 31.° e 33.° do Decreto legislativo n.° 22/97], de 5 de Fevereiro de 1998 (suplemento ordinário à GURI n.° 88, de 16 de Abril de 1998), e sejam destinados directamente, de forma objectiva e efectiva, à utilização num ciclo produtivo».

11     O comunicado de 2002 tem a seguinte redacção:

«[...]

Os materiais e os subprodutos resultantes de operações da indústria agro‑alimentar são ‘matérias‑primas para alimentos para animais’ quando, sem prejuízo do cumprimento das regras higieno‑sanitárias, o produtor tencionar utilizá‑los no ciclo alimentar zootécnico.

Nestes casos, os materiais referidos não estão sujeitos à legislação sobre resíduos, mas sim às disposições relativas à produção e comercialização de alimentos para animais e, no caso dos produtos de origem animal ou com ingredientes de origem animal, às normas sanitárias em vigor na matéria [...]

[...]

Na falta das garantias acima referidas sobre o destino efectivo à alimentação animal, os materiais e os subprodutos resultantes do ciclo produtivo e comercial da indústria agro‑alimentar estão sujeitos ao regime jurídico dos resíduos. [...]

[...]»

 Procedimento pré‑contencioso

12     Por ofícios de 11 e 19 de Junho de 2001, 28 de Agosto de 2001 e 10 de Abril de 2002, as autoridades italianas responderam a uma notificação para cumprir de 22 de Outubro de 1999 e a um primeiro parecer fundamentado de 11 de Abril de 2001, nos quais a Comissão afirmava que, ao aprovar instruções operacionais vinculativas relativas à aplicação da legislação italiana relativa aos resíduos que excluíam do âmbito de aplicação dessa legislação certos resíduos e excedentes alimentares – provenientes da indústria agro‑alimentar, de cantinas e restaurantes, e destinados à alimentação de animais –, a República Italiana violava a directiva.

13     À luz das informações transmitidas pelas autoridades italianas, a Comissão entendeu que a adaptação da regulamentação italiana às exigências desse parecer fundamentado impunha alterações substanciais. Por esse motivo, a Comissão enviou, em 19 de Dezembro de 2002, uma notificação para cumprir complementar às autoridades italianas, sobre a qual estas tomaram posição por ofício de 13 de Fevereiro de 2003.

14     A Comissão emitiu seguidamente, em 11 de Julho de 2003, um parecer fundamentado complementar, convidando a República Italiana a dar‑lhe cumprimento no prazo de dois meses a contar da respectiva recepção.

15     Tendo as autoridades italianas, por ofício de 4 de Novembro de 2003, continuado a contestar a tese da Comissão, esta decidiu propor a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

16     Na sua acção, a Comissão alega, no essencial, que a regulamentação nacional controvertida vai além das indicações resultantes da jurisprudência do Tribunal de Justiça quanto aos casos em que não é de considerar resíduo um material resultante de um processo de fabrico que não se destina principalmente à sua produção.

 Quanto aos restos de alimentos provenientes da indústria agro‑alimentar destinados à produção de alimentos para animais

17     A Comissão alega que as instruções operacionais constantes da circular de Junho de 1999 e do comunicado de 2002 levam a excluir do regime nacional de gestão de resíduos os restos de alimentos utilizados na produção de alimentos para animais desde que sejam respeitadas determinadas normas higieno‑sanitárias específicas. De acordo com essas instruções, basta um resíduo da indústria agro‑alimentar ser destinado à produção de alimentos para animais pela vontade manifesta do seu detentor para estar sempre excluído do regime dos resíduos.

18     Ora, segundo a Comissão, o facto de um resíduo de produção poder ser reutilizado sem obrigação de tratamento prévio não pode ser considerado decisivo para excluir a possibilidade de o detentor se desfazer dele ou ter a intenção ou a obrigação de se desfazer dele na acepção da directiva.

19     Entende que é certo que o Tribunal de Justiça reconheceu, unicamente quanto aos subprodutos, que, se o detentor retirar deles um benefício económico, se pode concluir que não «se desfaz» do subproduto na acepção do artigo 1.°, alínea a), da directiva. Contudo, uma vez que o conceito de resíduo deve ser interpretado extensivamente, a exclusão do âmbito de aplicação da directiva só pode ser admitida se estiverem reunidas certas condições que permitam considerar que a reutilização não é simplesmente eventual, mas certa, sem transformação prévia e na continuidade do processo de produção.

20     Segundo a Comissão, há que apreciar ainda o grau de probabilidade de reutilização de um material e, sobretudo, verificar se este é reutilizado no mesmo processo de produção do qual advém. Ora, contrariamente à tese defendida pela República Italiana, não pode existir um processo único de produção quando os resíduos alimentares são efectivamente destinados a utilização como alimentos para animais. O simples facto de esses resíduos serem transferidos pelo operador que os produziu para quem os vai utilizar pressupõe, com efeito, uma série de operações (armazenagem, transformação e transporte) que a directiva visa precisamente controlar.

21     A República Italiana alega que os materiais e os subprodutos da indústria agro‑alimentar são «matérias‑primas para alimentos para animais», na acepção do comunicado de 2002, quando o produtor tencionar utilizá‑los no ciclo alimentar zootécnico, sem prejuízo do respeito de determinadas condições higiénicas e sanitárias. Essa intenção, associada à reutilização certa desses subprodutos, constitui prova suficiente da inexistência de intenção do detentor de «se desfazer» do material em questão, na acepção do artigo 1.°, alínea a), da directiva.

22     Para esse Estado‑Membro, a excepção prevista nas instruções operacionais em nada constitui uma exclusão a priori dos restos de alimentos provenientes da indústria agro‑alimentar do regime nacional dos resíduos, uma vez que, na realidade, essa exclusão está sujeita não só à vontade manifesta do detentor desses restos de os utilizar no ciclo de produção de alimentos para animais, mas também à reutilização certa desses restos.

23     Neste caso, os restos em causa não estão sujeitos à regulamentação sobre os resíduos, mas sim às disposições relativas à produção e à comercialização dos alimentos para animais, nomeadamente ao Regulamento (CE) n.° 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios (JO L 31, p. 1), bem como, nos casos de subprodutos de origem animal, ao Regulamento (CE) n.° 1774/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Outubro de 2002, que estabelece regras sanitárias relativas aos subprodutos animais não destinados ao consumo humano (JO L 273, p. 1).

24     Considera que são também aplicáveis as disposições ditas «HACCP» [hazard analysis and critical control points (análise dos riscos e controlo dos pontos críticos)] aprovadas pelos:

–       Regulamentos (CE) n.os 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios (JO L 139, p. 1), 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, que estabelece regras específicas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal (JO L 139, p. 55), e 854/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, que estabelece regras específicas de organização dos controlos oficiais de produtos de origem animal destinados ao consumo humano (JO L 139, p. 206);

–       Regulamento (CE) n.° 183/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Janeiro de 2005, que estabelece requisitos de higiene dos alimentos para animais (JO L 35, p. 1), e ainda pelo

–       Regulamento (CE) n.° 882/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativo aos controlos oficiais realizados para assegurar a verificação do cumprimento da legislação relativa aos alimentos para animais e aos géneros alimentícios e das normas relativas à saúde e ao bem‑estar dos animais (JO L 165, p. 1, e rectificativo, JO L 191, p. 1).

25     Estes regulamentos relativos aos alimentos, bem como as disposições de direito interno correspondentes visam, tal como a directiva, controlar as operações de armazenagem, de transformação e de transporte e, não deixando de proteger a saúde, podem também proteger o ambiente.

26     No entender da República Italiana, os controlos efectuados no sector alimentar, que visam particularmente garantir a rastreabilidade dos produtos e das matérias‑primas para alimentos para animais desde a unidade de produção, são de tal ordem que há que considerar que todas as actividades desse sector constitui um único processo de produção. Esse Estado‑Membro lembra também que, em Itália, as actividades relativas ao sector agro‑alimentar e ao sector dos alimentos para animais estão sujeitas a uma autorização concedida com base em documentação apropriada que demonstre que tanto as pessoas que a pedem como as estruturas e os meios de transporte preenchem as condições previstas.

27     O referido Estado‑Membro entende que a Comissão pretende fazer a regulamentação sobre os resíduos, que é geral e residual, prevalecer sobre as normas substantivas e específicas que regem a indústria alimentar.

28     Por outro lado, o critério da Comissão tem o efeito de impedir a utilização dos subprodutos alimentares no fabrico de alimentos para animais, pois a legislação italiana em matéria de géneros alimentícios não permite que esses subprodutos, que devem ser qualificados de resíduos e, portanto, transportados em veículos homologados para os resíduos, possam ser fornecidos a uma indústria de alimentos para animais. Assim, a interpretação da Comissão aumentaria a produção e a eliminação de resíduos alimentares ao impedir a sua reutilização como géneros alimentícios.

 Quanto aos resíduos e excedentes provenientes de preparados culinários destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia

29     A Comissão alega que o artigo 23.° da Lei n.° 179/2002 tem o efeito de excluir do âmbito de aplicação do Decreto legislativo n.° 22/97 os «resíduos e os excedentes provenientes de preparados culinários de qualquer tipo de alimentos sólidos, cozinhados e crus, não entrados no circuito de distribuição, destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia». Segundo a Comissão, não se pode alegar que tais resíduos não são objecto de uma intenção do detentor de se desfazer deles, como aliás confirma a sua menção no próprio artigo 8.° do referido decreto legislativo.

30     A República Italiana alega que, também no contexto da regulamentação a que se refere o segundo elemento da acção da Comissão, o detentor deve demonstrar a sua vontade de não se desfazer dos resíduos ou dos excedentes alimentares demonstrando que o seu destino efectivo são as estruturas de acolhimento de animais de companhia autorizadas pela regulamentação nacional. Por outro lado, a exclusão da regulamentação sobre os resíduos respeita sempre, na realidade, a excedentes alimentares e não a «resíduos» de produção. Está para aprovação uma lei que esclarece isso.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

31     É ponto assente que a regulamentação italiana a que se refere a acção exclui, por um lado, os restos de alimentos provenientes da indústria agro‑alimentar e, por outro, os resíduos ou excedentes resultantes de preparados culinários não entrados no circuito de distribuição (a seguir, em conjunto, «materiais em questão») do âmbito de aplicação da regulamentação nacional de transposição da directiva, quando esses materiais se destinem à produção de alimentos para animais ou, directamente, a alimentar animais recolhidos em estruturas de acolhimento para animais de companhia.

32     Através destes dois elementos da sua acção, que devem ser analisados em conjunto, a Comissão alega, no essencial, que a referida regulamentação não respeita, assim, o conceito de «resíduo» tal como definido no artigo 1.°, alínea a), da directiva ao instituir uma derrogação demasiado geral à legislação nacional sobre os resíduos que tem o efeito de excluir automaticamente, e erradamente, os materiais em questão do âmbito de aplicação das disposições relativas à gestão dos resíduos abrangidos pela directiva.

33     A República Italiana responde, no essencial, que, quando as condições de aplicação da regulamentação estiverem preenchidas, os materiais em questão não entrarão no conceito de «resíduo», na acepção da directiva, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça.

34     A esse respeito, o artigo 1.°, alínea a), primeiro parágrafo, da directiva define resíduo como «quaisquer substâncias ou objectos abrangidos pelas categorias fixadas no anexo I [dessa directiva] de que o detentor se desfaz ou tem a intenção [...] de se desfazer». O referido anexo precisa e ilustra essa definição, propondo uma lista de substâncias e objectos que podem ser qualificados de resíduos. Contudo, essa lista tem carácter meramente indicativo, resultando a qualificação como resíduo, antes de tudo, do comportamento do detentor e do significado da expressão «se desfazer» (v., neste sentido, acórdãos de 18 de Dezembro de 1997, Inter‑Environnement Wallonie, C‑129/96, Colect., p. I‑7411, n.° 26; de 7 de Setembro de 2004, Van de Walle e o., C‑1/03, Colect., p. I‑7613, n.° 42, e de 10 de Maio de 2007, Thames Water Utilities, C‑252/05, Colect., p. I‑3883, n.° 24).

35     A referida expressão «se desfazer» deve ser interpretada não só à luz do objectivo essencial da directiva, que, segundo o seu terceiro considerando, é «a protecção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos nocivos da recolha, transporte, tratamento, armazenamento e depósito dos resíduos», mas também do artigo 174.°, n.° 2, CE. Este dispõe que «[a] política da Comunidade no domínio do ambiente terá por objectivo atingir um nível de protecção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da Comunidade. Basear‑se‑á nos princípios da precaução e da acção preventiva [...]». Daí resulta que a expressão «se desfazer» e, portanto, o conceito de «resíduo» na acepção do artigo 1.°, alínea a), da directiva não podem ser interpretados restritivamente (v., neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 15 de Junho de 2000, ARCO Chemie Nederland e o., C‑418/97 e C‑419/97, Colect., p. I‑4475, n.os 36 a 40, e Thames Water Utilities, já referido, n.° 27).

36     Determinadas circunstâncias podem constituir indícios da existência de uma acção, de uma intenção ou de uma obrigação de alguém se desfazer de uma substância ou de um objecto, na acepção do artigo 1.°, alínea a), da directiva (acórdão ARCO Chemie Nederland e o., já referido, n.° 83). É esse o caso, nomeadamente, quando a substância é um resíduo da produção ou do consumo, isto é, um produto que não se pretendeu como tal (v., neste sentido, acórdãos ARCO Chemie Nederland e o., já referido, n.° 84, e de 11 de Novembro de 2004, Niselli, C‑457/02, Colect., p. I‑10853, n.° 43).

37     Por outro lado, o método de tratamento ou o modo de utilização de uma substância não são determinantes para a sua qualificação como resíduo (v. acórdãos ARCO Chemie Nederland e o., já referido, n.° 64, e de 1 de Março de 2007, KVZ retec, C‑176/05, Colect., p. I‑1721, n.° 52).

38     O Tribunal de Justiça precisou, desse modo, por um lado, que a execução de uma das operações de eliminação ou de aproveitamento referidas, respectivamente, nos anexos IIA e IIB da directiva não permite, só por si, qualificar como resíduo uma substância ou um objecto envolvido nessa operação (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Niselli, já referido, n.os 36 e 37) e, por outro lado, que o conceito de resíduo não exclui as substâncias e objectos susceptíveis de reutilização económica (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão de 25 de Junho de 1997, Tombesi e o., C‑304/94, C‑330/94, C‑342/94 e C‑224/95, Colect., p. I‑3561, n.os 47 e 48). Com efeito, o sistema de fiscalização e gestão instituído pela directiva pretende abranger todos os objectos e substâncias dos quais o proprietário se desfaz, mesmo que tenham valor comercial e sejam recolhidos a título comercial para efeitos de reciclagem, recuperação ou reutilização (v., nomeadamente, acórdão de 18 de Abril de 2002, Palin Granit e Vehmassalon kansanterveystyön kuntayhtymän hallitus, C‑9/00, Colect., p. I‑3533, a seguir acórdão «Palin Granit», n.° 29).

39     Contudo, resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, em certas situações, um bem, um material ou uma matéria‑prima resultante de um processo de extracção ou de fabrico que não se destina principalmente à sua produção pode não constituir um resíduo, mas sim um subproduto de que o detentor não se pretende «desfazer», na acepção do artigo 1.°, alínea a), da directiva, mas sim que pretende explorar ou comercializar – incluindo, se for esse o caso, para as necessidades de operadores económicos diferentes daquele que o produziu –, em condições vantajosas para ele, num processo posterior, desde que essa reutilização seja certa, não necessite de transformação prévia e se situe na continuidade do processo de produção ou de utilização (v., neste sentido, acórdãos Palin Granit, já referido, n.os 34 a 36; de 11 de Setembro de 2003, AvestaPolarit Chrome, C‑114/01, Colect., p. I‑8725, n.os 33 a 38; Niselli, já referido, n.° 47, e de 8 de Setembro de 2005, Comissão/Espanha, C‑416/02, Colect., p. I‑7487, n.os 87 e 90, e Comissão/Espanha, C‑121/03, Colect., p. I‑7569, n.os 58 e 61).

40     Portanto, além do critério assente na natureza de resíduo de produção de uma substância, o grau de probabilidade de reutilização dessa substância sem uma operação de transformação prévia constitui um critério pertinente para efeitos de se apreciar se a referida substância é ou não um resíduo na acepção da directiva. Se, além da simples possibilidade de reutilização da substância em causa, existir uma vantagem económica do detentor ao fazê‑lo, a probabilidade de uma tal reutilização é grande. Nesse caso, a substância em causa não pode ser vista como um encargo de que o detentor se pretenderá «desfazer», mas sim como um autêntico produto (v. acórdãos, já referidos, Palin Granit, n.° 37, e Niselli, n.° 46).

41     Contudo, se uma reutilização como essa necessitar de operações de armazenagem que possam ser duradouras, constituindo, assim, um encargo para o detentor e sendo potencialmente causadoras de danos ambientais que a directiva pretende precisamente limitar, não pode ser qualificada como certa e só é previsível a mais ou menos longo prazo, pelo que, em princípio, essa substância deve ser considerada um resíduo (v. neste sentido, acórdãos, já referidos, Palin Granit, n.° 38, e AvestaPolarit Chrome, n.° 39).

42     A existência real de um «resíduo» na acepção da directiva deve, assim, ser verificada em face de todas as circunstâncias, tendo em conta o objectivo dessa directiva e tendo o cuidado de não prejudicar a sua eficácia (v. acórdãos, já referidos, ARCO Chemie Nederland e o., n.° 88, e KVZ retec, n.° 63, bem como despacho de 15 de Janeiro de 2004, Saetti e Frediani, C‑235/02, Colect., p. I‑1005, n.° 40).

43     Não tendo a directiva proposto qualquer critério determinante para se apurar a vontade do detentor de se desfazer de determinada substância ou objecto, os Estados‑Membros, na falta de disposições comunitárias, têm a liberdade de escolha dos meios de prova dos diversos elementos definidos nas directivas que transpõem, desde que isso não prejudique a eficácia do direito comunitário (v. acórdãos, já referidos, ARCO Chemie Nederland e o., n.° 41, e Niselli, n.° 34). Assim, os Estados‑Membros podem, por exemplo, definir diferentes categorias de resíduos, nomeadamente para facilitar a organização e o controlo da sua gestão, desde que as obrigações decorrentes da directiva ou de outras disposições de direito comunitário relativas a esses resíduos sejam respeitadas e as eventuais categorias excluídas do âmbito de aplicação dos diplomas aprovados para a transposição das obrigações resultantes da directiva estejam em conformidade com o seu artigo 2.°, n.° 1 (v., neste sentido, acórdão de 16 de Dezembro de 2004, Comissão/Reino Unido, C‑62/03, não publicado na Colectânea, n.° 12).

44     No caso, a República Italiana considera, no essencial, que, uma vez que as excepções previstas na regulamentação em causa estão, no seu entender, sujeitas não só à vontade manifesta do detentor dos materiais em questão de os destinar à alimentação animal, mas também à reutilização certa desses materiais, aplica‑se a jurisprudência acima referida nos n.os 39 e 40, pelo que esses materiais podem ser considerados não resíduos da produção, mas sim subprodutos de que o detentor, devido à sua vontade manifesta de que eles sejam reutilizados, não se pretende «desfazer», na acepção do artigo 1.°, alínea a), da directiva. De resto, nesses casos, são aplicáveis outras regulamentações, em particular as que têm por objecto a segurança alimentar. Ora, também essas regulamentações se destinam a controlar a armazenagem, a transformação e o transporte dos materiais em questão e são aptas, promovendo a protecção da saúde, a proteger o ambiente de forma análoga à directiva.

45     Há que lembrar desde logo que a lista das categorias de resíduos que consta do anexo I da directiva e as operações de eliminação e aproveitamento enumeradas nos seus anexos IIA e IIB revelam que o conceito de resíduo não exclui em princípio nenhum tipo de resíduo ou de outras substâncias resultantes do processo de produção (v. acórdão Inter‑Environnement Wallonie, já referido, n.° 28).

46     Além disso, tendo em conta a obrigação, lembrada no n.° 35 do presente acórdão, de se interpretar de forma lata o conceito de resíduo e as exigências da jurisprudência referida nos n.os 36 a 41 do presente acórdão, o recurso a uma argumentação como a do Governo italiano, relativa aos subprodutos de que o detentor não se pretende desfazer, deve restringir‑se aos casos em que a reutilização de um bem, de um material ou de uma matéria‑prima, incluindo para as necessidades de operadores económicos diferentes daquele que o produziu, não seja meramente eventual, mas sim certa, não necessite de transformação prévia e ocorra na continuidade do processo de produção ou de utilização.

47     Ora, resulta das explicações da República Italiana referidas no n.° 21 do presente acórdão que a regulamentação objecto da acção prevê a possibilidade de se excluírem os materiais em questão do âmbito de aplicação da legislação nacional relativa aos resíduos mesmo quando esses materiais sejam sujeitos às transformações previstas na regulamentação comunitária ou nacional em vigor.

48     Por outro lado, mesmo admitindo que se possa assegurar a efectiva reutilização dos materiais em questão na alimentação animal – não sendo, porém, equiparável à sua utilização efectiva para esse fim a simples vontade de dar esse destino a tais materiais, mesmo manifestada previamente por escrito –, resulta nomeadamente dos n.os 36 e 37 do presente acórdão que o modo de utilização de uma substância não é determinante para a sua qualificação como resíduo. Consequentemente, não se pode inferir apenas do facto de os materiais em questão serem reutilizados que não constituem «resíduos» na acepção da directiva.

49     Com efeito, o que futuramente vier a ser um objecto ou uma substância não é, só por si, decisivo quanto à sua eventual natureza de resíduo, que é determinada, de acordo com o artigo 1.°, alínea a), da directiva, em função da acção, da intenção ou da obrigação de o seu detentor se desfazer deles (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, ARCO Chemie Nederland e o., n.° 64, e KVZ retec, n.° 52).

50     Verifica‑se, assim, que a regulamentação objecto da acção institui, na realidade, uma presunção de que, nos casos que abrange, os materiais em questão são subprodutos que representam para o detentor, em razão da sua vontade de os destinar à reutilização, um benefício ou um valor económico e não um encargo de que tentará livrar‑se.

51     Ora, mesmo que essa hipótese possa corresponder à realidade em certos casos, não pode existir uma presunção geral de que um detentor dos materiais em questão retira da sua reutilização uma vantagem que vai além da que resulta do simples facto de poder desfazer‑se deles.

52     Por conseguinte, não se pode deixar de observar que a referida regulamentação leva a subtrair à qualificação de resíduo no direito italiano determinados resíduos que no entanto correspondem à definição dada no artigo 1.°, alínea a), da directiva.

53     Esta disposição não só fornece a definição do conceito de «resíduo», na acepção da directiva, mas determina também, conjuntamente com o seu artigo 2.°, n.° 1, o âmbito de aplicação da referida directiva. Com efeito, o referido artigo 2.°, n.° 1, indica quais os tipos de resíduos que estão ou podem estar excluídos do âmbito da directiva e em que condições, quando, em princípio, todos os resíduos que correspondam a essa definição estão incluídos. Ora, qualquer disposição de direito interno que limite de uma forma geral o alcance das obrigações resultantes da directiva para além do que permite o seu artigo 2.°, n.° 1, viola necessariamente o âmbito de aplicação da directiva (v., neste sentido, acórdão Comissão/Reino Unido, já referido, n.º 11), assim prejudicando a eficácia do artigo 174.° CE (v., neste sentido, acórdão ARCO Chemie Nederland e o., já referido, n.° 42).

54     Quanto às legislações comunitárias e nacionais referidas nos n.os 23 a 25 do presente acórdão, nas quais a República Italiana se apoia para alegar, no essencial, que o conjunto do quadro legislativo comunitário e nacional relativo às condições de segurança em matéria de géneros alimentícios e de alimentos para animais impossibilita a qualificação dos materiais em questão como resíduos, basta referir que esses materiais não se identificam, em princípio, com as substâncias e objectos enumerados no artigo 2.°, n.° 1, da directiva, pelo que a excepção à respectiva aplicação prevista nesse preceito não pode dizer respeito a esses materiais. Há que lembrar ainda que nada na directiva indica que esta não respeita às operações de eliminação ou de aproveitamento que fazem parte de um processo de produção industrial quando estas não revelam constituir um perigo para a saúde humana ou para o ambiente (acórdão Inter‑Environnement Wallonie, já referido, n.° 30).

55     Por outro lado, ao contrário do que alega a República Italiana, não se pode considerar que a directiva tem aplicação residual relativamente à legislação comunitária e nacional sobre segurança alimentar. Com efeito, embora os objectivos de certas disposições dessa legislação e os da directiva possam eventualmente sobrepor‑se parcialmente, continuam sensivelmente diferentes. Acresce que, para além dos casos expressamente referidos no artigo 2.°, n.° 1, da directiva, nada neste diploma é susceptível de indicar que não se aplica cumulativamente com outras legislações.

56     Por último, quanto ao argumento da República Italiana de que a aplicação da directiva impede a reutilização de resíduos alimentares na alimentação animal por esses resíduos terem que ser transportados em veículos autorizados a transportar resíduos que não correspondem às regras indispensáveis de higiene, é com razão que a Comissão afirma que a origem dessa situação reside na legislação italiana e não na directiva.

57     Nestas condições, há que julgar procedente a acção da Comissão.

58     Assim, há que declarar que:

–       ao adoptar instruções operacionais válidas para todo o território nacional, especialmente explicitadas através da circular de Junho de 1999 e do comunicado de 2002, que excluem do âmbito de aplicação da regulamentação sobre resíduos os restos alimentares provenientes da indústria agro‑alimentar destinados à produção de alimentos para animais, e

–       ao excluir, por meio do artigo 23.° da Lei n.° 179/2002, do âmbito de aplicação da regulamentação sobre resíduos os provenientes dos preparados culinários de qualquer tipo de alimentos sólidos, cozinhados e crus, não entrados no circuito de distribuição, destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia,

a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 1.°, alínea a), da directiva.

 Quanto às despesas

59     Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Italiana e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:

1)      A República Italiana,

–       ao adoptar instruções operacionais válidas para todo o território nacional, especialmente explicitadas através da circular do Ministério do Ambiente de 28 de Junho de 1999, que fornece esclarecimentos de interpretação sobre o conceito de resíduo e da circular do Ministério da Saúde de 22 de Julho de 2002, que contém as linhas orientadoras relativas à disciplina higieno‑sanitária no que respeita à utilização na alimentação animal de materiais e subprodutos provenientes do ciclo produtivo e comercial da indústria agro‑alimentar, que excluem do âmbito de aplicação da regulamentação sobre resíduos os restos alimentares provenientes da indústria agro‑alimentar destinados à produção de alimentos para animais, e

–       ao excluir, por meio do artigo 23.° da Lei n.° 179 de 31 de Julho de 2002, que aprova determinadas disposições em matéria de ambiente, do âmbito de aplicação da regulamentação sobre resíduos os provenientes dos preparados culinários de qualquer tipo de alimentos sólidos, cozinhados e crus, não entrados no circuito de distribuição, destinados às estruturas de acolhimento de animais de companhia,

não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1975, relativa aos resíduos, na redacção dada pela Directiva 91/156/CEE do Conselho, de 18 de Março de 1991.

2)      A República Italiana é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.