CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 25 de Janeiro de 2007 1(1)

Processo C‑422/05

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Reino da Bélgica

«Transporte aéreo – Restrições de operação relacionadas com o ruído nos aeroportos da Comunidade»





1.     É aos frangos da Carolina do Norte que deve ser atribuído o mérito de ter sido proporcionada – estava‑se em 1946 e tratava‑se do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos (2) – uma primeira reflexão jurisprudencial sobre as consequências do ruído gerado pelas aeronaves e a correspondente adaptação do interesse geral na utilização do espaço aéreo aos direitos de todos aqueles que, de alguma forma, sofrem as consequências das emissões sonoras produzidas à descolagem e à aterragem das aeronaves.

2.     O caso em apreço é relativo à adopção, pelo Reino da Bélgica, do Decreto Real (arrêté royal, a seguir «decreto») de 14 de Abril de 2002, que regula os voos nocturnos de algumas aeronaves subsónicas civis. Segundo a Comissão, a adopção do referido decreto ocorreu com desrespeito pelas obrigações decorrentes da Directiva 2002/30/CE (3), bem como dos artigos 10.°, segundo parágrafo, e 249.°, terceiro parágrafo, do Tratado CE.

3.     O Reino da Bélgica é acusado de não ter respeitado as obrigações comunitárias tal como foram interpretadas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a partir do acórdão Inter‑Environnement Wallonie (4), tendo, no período de que dispunha para transpor a directiva, adoptado medidas «susceptíveis de comprometer gravemente a obtenção do resultado pretendido pela directiva».

I –    Quadro normativo

A –    Direito comunitário

4.     A Directiva 2002/30 foi adoptada com o propósito de estabelecer regras aplicáveis na Comunidade para a introdução de restrições de operação homogéneas nos aeroportos dos Estados‑Membros. Essas restrições têm em vista limitar o ruído produzido pelas aeronaves subsónicas civis.

5.     O artigo 2.°, alínea g), da directiva define a abordagem equilibrada que a legislação comunitária inspira nesta matéria:

«[...] a abordagem segundo a qual os Estados‑Membros avaliam as medidas aplicáveis para resolver o problema do ruído num determinado aeroporto situado no seu território, designadamente, o efeito previsível de uma redução do ruído das aeronaves na fonte, de medidas de ordenamento e de gestão do território, de processos de exploração que permitam reduzir o ruído e de restrições de exploração».

6.     O artigo 4.°, n.° 4, fixa os critérios de valoração das emissões sonoras das aeronaves, como «determinado pelo procedimento de certificação estabelecido em conformidade com o anexo 16, volume 1, terceira edição (Julho de 1993) da Convenção sobre a Aviação Civil Internacional». Os critérios do anexo 16, volume 1, parte II, capítulo 3, da referida convenção também são utilizados na definição de «aeronaves marginalmente conformes» que figura no artigo 2.°, alínea d), da directiva.

7.     A abordagem equilibrada representa o ponto de confluência – definido a nível internacional – destinado a harmonizar as políticas de redução de ruído com as exigências de desenvolvimento da aviação civil (5).

8.     O artigo 15.° da directiva prevê a revogação do anterior Regulamento (CE) n.° 925/1999 do Conselho, de 29 de Abril de 1999, relativo ao registo e operação na Comunidade de certos tipos de aviões civis subsónicos de propulsão por reacção que tenham sido modificados e recertificados como satisfazendo as normas do anexo 16, volume 1, parte II, capítulo 3, terceira edição (Julho de 1993) da Convenção sobre a Aviação Civil Internacional (6).

9.     A superação da regulamentação em vigor, antes de esta produzir todos os efeitos que dela se esperavam, a partir de Abril de 2002 (como previsto no artigo 3.° do referido regulamento (7)), é um dos objectivos do novo instrumento comunitário. Com efeito, a directiva procura harmonizar o quadro normativo europeu com as orientações adoptadas no quadro da ICAO. Essas novas directrizes internacionais estão definidas na Resolução A 33/7 (adoptada por ocasião da 33.ª Assembleia da ICAO), a que essa mesma directiva faz referência no seu considerando 10 (8).

10.   A abordagem da directiva em matéria de restrições de operação ressalva as decisões já tomadas; segundo o disposto no artigo 7.°, excluem‑se do âmbito da directiva:

«a)      [as] restrições de operação já estabelecidas à data da entrada em vigor da presente directiva;

b)      [as] alterações mínimas de ordem técnica às restrições de operação parciais que não tenham implicações significativas em termos de custos para os operadores aéreos de um dado aeroporto comunitário e que tenham sido introduzidas após a entrada em vigor da presente directiva».

Os artigos 8.° e 9.° estabelecem outras derrogações aplicáveis a situações específicas.

11.   A directiva entrou em vigor no dia da sua publicação, em 28 de Março de 2002. De acordo com o previsto no artigo 16.° deste diploma, os Estados‑Membros, para lhe dar cumprimento, são obrigados a pôr em vigor as disposições nacionais de carácter legislativo, regulamentar e administrativo, até 28 de Setembro de 2003. Além disso, são obrigados a informar de imediato a Comissão sobre a referida transposição.

B –    Regulamentação nacional

12.   O Decreto Real de 14 de Abril de 2002 foi publicado no Moniteur belge de 17 de Abril de 2002, no Anexo I.

13.   O artigo 1.° da regulamentação belga estatui que:

«Nos períodos nocturnos compreendidos entre as 23 e as 06 horas locais, só são autorizadas as operações das aeronaves civis a reacção subsónica quando essas aeronaves efectuem voos em configuração plana.»

14.   Em contrapartida, o artigo 2.° prevê:

«O artigo 1.° não é aplicável:

1)      Às aeronaves que sobrevoem o território belga durante um voo cujos pontos de partida e de destino se situem no estrangeiro;

2)      Às aeronaves civis a reacção subsónica que:

a)      estejam equipadas com motores cuja razão de diluição seja igual ou superior a três e satisfaçam as normas do anexo 16 da Convenção sobre a Aviação Civil Internacional, volume 1, parte II, capítulo 3, terceira edição (Julho de 1993), ou normas mais coactivas;

b)      cumpram, desde o início ou sem terem sido recertificadas, as normas indicadas na alínea a), supra, ou normas mais estritas».

15.   O artigo 3.° do decreto estabelece que este se aplica sem prejuízo das disposições do Regulamento (CE) n.° 925/1999.

16.   O artigo 4.° prevê a data de entrada em vigor do Decreto Real, fixando‑a em 1 de Julho de 2003, ou seja, menos de três meses antes do termo do prazo para a transposição da directiva, mais de um ano depois da entrada em vigor desta última.

II – Fase pré‑contenciosa

17.   Em 6 de Junho de 2002, a Comissão solicitou às autoridades belgas informações sobre o Decreto Real de 14 de Abril de 2002. A atenção da Comissão incidiu essencialmente na circunstância de o decreto belga manter a remissão, para efeitos da determinação das restrições de operação, para o critério da «razão de diluição» que figura no Regulamento n.° 925/1999, posto que, à data da publicação do referido decreto, o regulamento já tinha sido revogado e que, por outro lado, este critério não fora incluído na nova regulamentação.

18.   As autoridades belgas responderam por ofício de 28 de Junho de 2002. A Comissão entendeu que esta resposta não era satisfatória, pelo que, em 24 de Outubro de 2002, enviou uma notificação para cumprir baseada no facto de que as medidas tomadas durante o prazo para a transposição da directiva podiam prejudicar o objectivo previsto. No ponto 2.2 da notificação para cumprir, a Comissão sublinhava que o decreto remetia para os conceitos de razão de diluição e de recertificação, ambos estranhos aos conceitos da directiva.

19.   Na sua resposta de 23 de Dezembro de 2003, as autoridades belgas avançaram mais argumentos destinados a demonstrar que o Decreto Real de 14 de Abril de 2002 não representava mais do que o momento de formalização de uma medida já «estabelecida» antes da entrada em vigor da directiva e que, portanto, o seu conteúdo devia ser considerado na acepção do artigo 7.° da mesma directiva.

20.   Como justificação para o atraso na formalização do decreto, o Reino da Bélgica invocou a complexa organização interna do Estado belga e a necessidade de coordenação e concertação entre os vários níveis legislativos com competência em matéria de gestão dos aeroportos e do transporte aéreo.

21.   Não satisfeita com as respostas fornecidas, a Comissão enviou, em 3 de Junho de 2003, um parecer fundamentado, ao qual a Bélgica respondeu por ofício de 3 de Agosto de 2003.

22.   Por fim, por petição apresentada em 28 de Novembro de 2005, a Comissão decidiu intentar uma acção nos termos do artigo 226.° do Tratado CE.

III – Análise

23.   A Comissão sustenta que as medidas adoptadas com o Decreto Real de 14 de Abril de 2002 constituem restrições – que entraram em vigor no decurso do prazo de transposição concedido pela directiva – à operação dos aviões, segundo a definição do artigo 2.°, alínea e), da Directiva 2002/30.

24.   Estas restrições terão sido adoptadas sem ter em conta os artigos 5.° e 6.° da referida directiva. Estes artigos estabelecem uma série de regras relativas à avaliação a efectuar quando da introdução de restrições e da retirada de serviço das aeronaves «marginalmente conformes» aos valores‑limite estabelecidos no volume 1, parte II, capítulo 3, do anexo 16 da ICAO. A definição de aeronaves marginalmente conformes é – como foi dito – fornecida pelo artigo 2.°, alínea d), da directiva.

25.   Além disso, a introdução destas restrições foi levada a cabo sem ter em conta o previsto no artigo 10.° da directiva. Este artigo impõe aos Estados‑Membros, para efeitos da aplicação das restrições a que se referem os artigos 5.° e 6.°, a consulta das partes interessadas, bem como a obrigação de carácter mais geral, de transparência nas escolhas efectuadas.

26.   A Comissão conclui a sua petição, no ponto 43, no sentido de que a adopção do decreto «prejudica de forma duradoura as condições de transposição e de aplicação da directiva, pois, exigindo a retirada de alguns aviões, a avaliação dos problemas decorrentes do ruído, prevista pela directiva, não poderá tomar em consideração as emissões produzidas por todas as aeronaves que estejam em conformidade com as regras do capítulo 3 do anexo 16 da ICAO e, por conseguinte, a melhoria óptima das condições respeitantes ao ruído não poderá ser alcançada de maneira conforme ao previsto pela directiva».

A –    Os efeitos da directiva durante o prazo de transposição

27.   A pretensão da Comissão baseia‑se na jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça, com início no acórdão Inter‑Environnement Wallonie (9).

28.   Segundo o Tribunal, a conjugação do disposto numa directiva vigente e nos artigos 10.°, segundo parágrafo, e 249.°, terceiro parágrafo, do Tratado CE impõe:

«[...] que, durante o prazo de transposição fixado pela directiva para a sua execução, o Estado‑Membro destinatário se abstenha de adoptar disposições susceptíveis de comprometer seriamente a realização do resultado nela prescrito» (10).

29.   A referida jurisprudência, até ao momento, só pôde ser invocada no quadro de pedidos de decisões prejudiciais nos termos do artigo 234.° do Tratado CE. Diferentemente, o presente processo é relativo a uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE.

30.   A consolidação desta jurisprudência está dependente da satisfação do requisito de se apreciar a legalidade das normas internas relativamente às circunstâncias existentes no momento da sua adopção; ou seja, de verificar se as disposições tomadas a nível comunitário, cujo prazo para a respectiva transposição não expirou, obstam a que os Estados‑Membros adoptem medidas legislativas em contradição com as obrigações impostas pelo direito comunitário.

31.   O alcance é evidente.

32.   Importa, antes de mais, distinguir a entrada em vigor de uma directiva do prazo fixado para a respectiva transposição. O Tratado, no artigo 254.°, n.° 1, do Tratado CE, é claro:

«Os regulamentos, directivas e decisões adoptados de acordo com o procedimento a que se refere o artigo 251.° são assinados pelo Presidente do Parlamento Europeu e pelo Presidente do Conselho e publicados no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, entrando em vigor na data por eles fixada ou, na falta desta, no vigésimo dia seguinte ao da publicação.»

33.   No caso da directiva em questão, o seu artigo 17.° prevê:

«A presente directiva entra em vigor no dia da sua publicação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias

Esta publicação ocorreu no dia 28 de Março de 2003.

34.   Foi a partir desta data que a directiva passou a existir e começou a produzir os seus efeitos no ordenamento jurídico comunitário e nos Estados‑Membros, concedendo‑lhes embora um prazo de execução, como está previsto, no presente caso, no seu artigo 16.° Este prazo tem por objectivo, designadamente, conferir aos Estados‑Membros o tempo necessário para a adopção das medidas de transposição (11).

35.   Foi o advogado‑geral G. F. Mancini que pôs a questão relativa à eficácia das directivas durante o prazo de transposição, nas suas conclusões apresentadas no processo 30/85, em 7 de Outubro de 1986 (12):

«[...] mesmo nos casos em que a directiva não contenha uma cláusula de ‘standstill’, a sua notificação gera um ‘efeito de bloqueio’, no sentido de que veda aos Estados a adopção de medidas contrárias às suas disposições.

[...] É óbvio, pois, que, pelo simples facto de ter sido emanada, ela obriga os ditos Estados a absterem‑se de introduzir medidas novas e susceptíveis de acentuar aquelas diferenças.

[...] Porém, como qualquer outra liberdade, também esta está sujeita a limites e, em primeiro lugar, aos limites ditados pela lógica. Assim, não restam dúvidas de que ela implica o poder de manter em vigor normas ou práticas discordantes; mas, como acabo de dizer, é igualmente certo que lhes não é atribuído o poder de agravar a disparidade a que a directiva pretende obviar. Considera‑se, entre outras coisas, que as medidas tomadas durante o decurso do prazo devem necessariamente valorar‑se como medidas destinadas a actuar a directiva comunitária; e tais medidas devem pelo menos não contrariar os preceitos da directiva.»

36.   A jurisprudência do Tribunal de Justiça consagrou este efeito no acórdão Inter‑Environnement Wallonie, já referido. A decisão do Tribunal, embora não aderindo in toto à posição assumida pelo advogado‑geral G. F. Mancini, constitui uma meta importante. A solução vai além do proposto pelo advogado‑geral F. G. Jacobs nas conclusões apresentadas no acórdão já referido (13).

37.   O Tribunal elucidou quais são os efeitos produzidos pelas directivas – durante o prazo de transposição – que têm por objectivo garantir a respectiva eficácia desde o momento da sua entrada em vigor, sem, com isto, impor aos Estados‑Membros qualquer obrigação de actuação antecipada. O Tribunal, por outro lado, não se exprimiu a favor de uma obrigação geral de abstenção do Estado‑Membro nas matérias reguladas pela directiva.

38.   Os artigos 10.°, segundo parágrafo, e 249.°, terceiro parágrafo, do Tratado CE, tal como foram interpretados, impõem aos Estados‑Membros a obrigação de não comprometerem os objectivos da Comunidade, como foram definidos numa directiva. A obrigação de facere do Estado não pode ser controlada antes de expirado o prazo de transposição. Ao mesmo tempo, a directiva comunitária pode impedir, a partir do momento da sua entrada em vigor, a adopção de normas nacionais susceptíveis de comprometer a consecução dos seus objectivos.

39.   Esta lógica inspirada na «boa fé» não está longe do previsto pelo direito internacional; assim, o artigo 18.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de Maio de 1969, prevê:

«Um Estado deve abster‑se de actos que privem um tratado do seu objecto ou do seu fim:

[...]

b)     quando manifestou o seu consentimento em ficar vinculado pelo tratado, no período que precede a entrada em vigor do tratado e com a condição de esta não ser indevidamente adiada» (14).

40.   O Estado‑Membro continua a assumir as respectivas funções legislativas e administrativas; estas funções devem, porém, ser exercidas em conformidade com o previsto na directiva e não podem ser contrárias à mesma ou, pelo menos, não devem ser susceptíveis de complicar o cumprimento dos preceitos estabelecidos a nível comunitário.

41.   O Tribunal, a fim de determinar a eventual violação cometida pelo Estado‑Membro, impõe que se aprecie se a norma nacional é susceptível de «comprometer gravemente» os objectivos da directiva.

42.   O juiz comunitário salientou, a este propósito, que se deve apreciar a legislação nacional, tomando em consideração:

«[...] se as disposições em causa se apresentam como uma transposição completa da directiva, bem como os efeitos concretos da aplicação dessas disposições não conformes com a directiva e a sua duração no tempo» (15).

43.   A circunstância de as normas em questão se apresentarem como uma transposição completa da directiva exige uma apreciação antecipada da adequação da transposição. Será muito difícil que a obrigação possa ser cumprida, e no prazo devido, quando o que já tenha sido expressamente feito para lhe dar cumprimento não se adeqúe ao preceituado.

44.   Simultaneamente, a circunstância de a norma interna examinada não constituir uma medida de transposição não pode subtrair a disposição à apreciação da compatibilidade com a imposição comunitária, pouco importando o facto de a norma de direito nacional, adoptada após a entrada em vigor da directiva, visar ou não a transposição da fonte de direito comunitário (16).

45.   A apreciação dos efeitos concretos da aplicação das disposições nacionais e da sua duração no tempo leva a análise a um plano mais concreto.

46.   Uma regulamentação nacional é susceptível de comprometer gravemente o resultado pretendido por uma directiva, sempre que possa criar, de modo duradouro, uma situação incompatível com os objectivos comunitários.

47.   Esta situação pode surgir através da adopção de uma regulamentação ou mediante a criação de circunstâncias de facto contrárias às finalidades comunitárias e que sejam dificilmente reversíveis.

48.   Pode‑se conjecturar que, durante o período de transposição da directiva comunitária, se impunham, a nível nacional, obrigações susceptíveis de criar uma determinada situação ou de impor escolhas dificilmente reversíveis, que vão além das exigências comunitárias e que sejam substancialmente contrárias a estas.

49.   A legislação nacional pode, por exemplo, impor ónus cujo cumprimento seja susceptível de privar de utilidade a harmonização realizada a nível europeu, ou impor opções que podem subsistir muito depois do prazo de transposição da directiva e de influenciar, por seu turno, a posterior execução das decisões comunitárias.

50.   O caso do decreto belga parece enquadrar‑se nestas hipóteses, já que, em última análise, pode determinar a necessidade de algumas companhias aéreas que operam na Europa procederem à substituição das suas frotas.

51.   A ulterior apreciação a que se deve proceder diz respeito à eventual necessidade transitória das medidas adoptadas. Esta necessidade poderá ser invocada pelo Estado‑Membro, a fim de justificar a adopção de disposições que não estejam em conformidade com a exigência comunitária (17).

B –    Argumentos de defesa do Reino da Bélgica

A questão prévia de inadmissibilidade

52.   Nas suas observações escritas, o Reino da Bélgica refere que a Comissão, na sua petição apresentada nos termos do artigo 226.°, segundo parágrafo, do Tratado CE, vem alegar o facto de que, antes do termo do prazo de transposição, o Governo belga procedeu à execução da directiva em causa mediante a aprovação do Decreto Real de 25 de Setembro de 2003 (18), relativo à adopção das restrições de operação no Aeroporto de Bruxelas‑Nacional, sem, simultaneamente ter revogado ou alterado o decreto em questão.

53.   Nos n.os 20 a 29 da sua contestação, a Bélgica critica a Comissão por ter acrescentado um fundamento ulterior (não invocado no parecer fundamentado), a respeito do comportamento da Bélgica após o termo do prazo de transposição da directiva em causa. Esta acusação não é admissível segundo a jurisprudência constante do Tribunal (19).

54.   Em meu entender, a alegação apresentada em sua defesa pelo Reino da Bélgica é infundada.

55.   Na verdade, não se trata da apresentação de um novo fundamento nem de uma acusação a respeito da transposição da directiva em causa para o direito belga. Não foi formulada nenhuma nova acusação.

56.   O argumento aduzido serve unicamente, segundo a Comissão, para esclarecer que, no termo do prazo de transposição e no próprio acto de transposição, não se procedeu à revogação da medida contestada e que esta não pode ser entendida como uma disposição transitória. Além disso, o Reino da Bélgica, apesar da fase pré‑contenciosa, não procedeu à alteração do ordenamento interno no sentido pretendido pela Comissão e de acordo com as obrigações que considera decorrentes da Directiva 2002/30.

 A restante argumentação apresentada em sua defesa pelo Reino da Bélgica

57.   A defesa do Reino da Bélgica perante os argumentos da Comissão assenta essencialmente – exceptuada a questão relativa à inadmissibilidade da acção – na alegada compatibilidade do Decreto Real com a directiva e no correcto cumprimento dos preceitos comunitários.

58.   O Reino da Bélgica entende que as disposições que constam do Decreto Real de 14 de Abril de 2002 devem ser consideradas restrições de operação em vigor, como previsto no artigo 7.° da directiva.

59.   Segundo a argumentação desenvolvida pela Bélgica, a directiva deve ser interpretada no sentido de que o seu artigo 7.°, ao referir‑se às «restrições de operação já estabelecidas à data da entrada em vigor da presente directiva», ressalva as disposições do Decreto Real de Abril de 2002, embora estas só tenham sido formalizadas após a entrada em vigor da directiva.

60.   A posição do Reino da Bélgica funda‑se na interpretação do termo «estabelecidas». Para este efeito, invoca as diferenças entre o texto adoptado e o previsto na proposta da Comissão, citando em seu apoio também a versão inglesa (20). Esta última utilizava, na primeira versão, o termo «aplicadas» («already in force», na versão inglesa) em vez de «estabelecidas» («established»), termo que figura no texto definitivo.

61.   O Governo belga alega que as decisões adoptadas através do Decreto Real de 14 de Abril de 2002 já tinham sido tomadas pelo Governo central em 11 de Fevereiro de 2000 (em apoio deste facto, é alegada a ampla cobertura mediática da decisão política) e que o atraso na formalização definitiva se ficou a dever à organização interna específica do Estado belga e à repartição das competências entre o Estado central e as entidades federadas.

62.   Esta argumentação não pode ser acolhida. Não é necessário aceitar a interpretação dada pelo Reino da Bélgica, para reconhecer uma diferença entre os termos «aplicadas» e «estabelecidas», cuja utilização se sucede nos textos comparados; o termo «estabelecidas» exprime um conceito claramente distinto daquele que equivale à ideia de decisão política, à qual faz referência a parte demandada.

63.   Deve ainda recordar‑se que a derrogação prevista no artigo 7.°, que constitui uma excepção das normas geralmente aplicáveis constantes da directiva e dos acordos internacionais que estão na sua origem, só pode ser objecto de interpretação estrita (21).

64.   O sentido do artigo 7.° pode ser melhor esclarecido pelo considerando 18 da mesma directiva, segundo o qual:

«É necessário permitir que se continuem a aplicar medidas de gestão do ruído específicas a um aeroporto e a introdução de determinadas alterações técnicas a restrições de funcionamento parciais.»

65.   O «considerando» põe em evidência a exigência de se exceptuarem unicamente as restrições já estabelecidas no momento da entrada em vigor da directiva, referindo‑se a própria letra do artigo 7.° às «restrições de operação já estabelecidas».

66.   O decreto em questão, como qualquer outro acto que prescreve normas jurídicas, passou a existir no ordenamento jurídico a partir do momento da sua aprovação formal segundo as normas internas; a este momento está inseparavelmente ligado o da publicação oficial, ao qual pode ser atribuída a produção dos seus efeitos.

67.   O próprio decreto, publicado no Moniteur belge em 17 de Abril de 2002, refere o dia 14 de Abril como a data da sua adopção. São estes os elementos para os quais o intérprete pode remeter.

68.   A segurança jurídica ficaria comprometida se fosse possível remeter, no estabelecimento de derrogações à aplicação da legislação comunitária, para datas referentes a decisões políticas não submetidas a um regime de publicidade completo.

69.   Acrescente‑se que, segundo jurisprudência constante, o Tribunal considera que os Estados‑Membros não podem invocar circunstâncias internas ou dificuldades de ordem prática para justificar um atraso na transposição (22). Esta jurisprudência também pode ser aplicada, mutatis mutandis, à situação em questão.

70.   A fim de identificar as políticas já estabelecidas por um Estado‑Membro numa certa data, não podem ser invocadas circunstâncias relativas aos procedimentos de aprovação internos. Pelo contrário, deve ser tomado em consideração o momento da adopção da decisão, determinado com base nas leis nacionais e nos actos oficiais de publicação das decisões administrativas ou legislativas.

71.   A derrogação prevista pela directiva no seu artigo 7.° não pode, portanto, ser considerada aplicável às disposições constantes do Decreto Real de 14 de Abril de 2002.

72.   A título subsidiário, o Reino da Bélgica sustenta, para o caso de o Tribunal não se dignar considerar o decreto uma medida já estabelecida antes da directiva, que o referido decreto é coerente com os objectivos prosseguidos pela directiva e que, além disso, procura colmatar uma lacuna legislativa resultante da revogação do Regulamento n.° 925/1999.

73.   Este argumento também não pode ser acolhido.

74.   Há que recordar que entre as finalidades da directiva figura a da superação do regulamento, com o objectivo de alterar a política comunitária na matéria, substituindo o objectivo preexistente por uma abordagem definida como «equilibrada».

75.   Por estas razões, a regulamentação introduzida pelo decreto, posicionando‑se numa perspectiva de continuidade com o regulamento anteriormente vigente, mas adoptada após a sua revogação, é susceptível de comprometer seriamente a consecução dos objectivos previamente previstos na directiva.

76.   Na eventual definição de normas destinadas a produzir efeitos na sequência da revogação do regulamento, deveria ter‑se tido em conta a abordagem efectivamente seguida pela directiva.

77.   Além disso, não se pode acolher a posição do Reino da Bélgica segundo a qual as obrigações comunitárias foram plenamente satisfeitas com a adopção do referido Decreto de 25 de Setembro de 2003.

78.   Nessa altura, a circunstância de que só o Aeroporto de Bruxelas‑Nacional tinha um tráfego superior aos 50 000 voos civis subsónicos por ano e de ter sido efectivamente adoptado um decreto unicamente para o Aeroporto de Bruxelas‑Nacional não permite concluir que o Decreto de 14 de Abril de 2002 não é abrangido pelo âmbito de aplicação da directiva.

79.   O Decreto de 14 de Abril de 2002 tem um alcance geral, não se limitando, de modo algum, aos aeroportos não abrangidos pelo âmbito de aplicação da directiva. Por estes motivos, é susceptível de pôr em perigo o cumprimento das obrigações decorrentes da directiva.

80.   A obrigação de assegurar a transposição da directiva, que incumbe ao Estado belga, é, além do mais, independente da existência, no território do Estado‑Membro, das actividades aeroportuárias abrangidas pelo seu âmbito de aplicação.

81.   É jurisprudência constante do Tribunal – formulada também a respeito da Directiva 2002/30 – que a inexistência, num determinado Estado‑Membro, de uma actividade referida numa directiva não pode isentar o Estado‑Membro em causa da sua obrigação de adoptar medidas legislativas ou regulamentares a fim de assegurar uma transposição adequada de todas as disposições dessa directiva (23).

82.   Também é de rejeitar a argumentação relativa à eventual lacuna jurídica que se terá verificado na sequência da revogação do Regulamento n.° 925/1999. Com efeito, permanecem em vigor as regulamentações nacionais anteriormente vigentes e a Directiva 92/14/CEE (24), e os Estados‑Membros continuam a dispor da faculdade de aprovarem regulamentações nacionais compatíveis com o preceituado pela Directiva 2002/30.

83.   Pelas razões expostas, concluo que o Decreto Real de 14 de Abril de 2002 – ao instituir restrições de operação que não estão em conformidade com a Directiva 2002/30, durante o prazo de transposição da mesma, e ao criar deste modo uma grave limitação à operação de uma certa categoria de aviões – pode comprometer gravemente a consecução dos resultados que a directiva prescreve.

IV – Conclusão

84.   Concluo, pois, propondo que o Tribunal declare que:

«O Reino da Bélgica, ao ter adoptado, no prazo de transposição da Directiva 2002/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Março de 2002, relativa ao estabelecimento de regras e procedimentos para a introdução de restrições de operação relacionadas com o ruído nos aeroportos comunitários, o Decreto Real de 14 de Abril de 2002, que regulamenta os voos nocturnos de determinadas aeronaves civis a reacção subsónica, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 2002/30 e dos artigos 10.°, segundo parágrafo, e 249.°, terceiro parágrafo, do Tratado CE.»


1 – Língua original: português.


2 – United States v. Causby, 328 U. S. 256 (1946).


3 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Março de 2002, relativa ao estabelecimento de regras e procedimentos para a introdução de restrições de operação relacionadas com o ruído nos aeroportos comunitários (JO L 85, p. 40).


4 – Acórdão de 18 de Dezembro de 1997, Inter‑Environnement Wallonie (C‑129/96, Colect., p. I‑7411).


5 – Como claramente resulta do apêndice C da Resolução A 33/7, adoptada por ocasião da 33.ª Assembleia da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO).


6 – JO L 115, p. 1.


7 – Com o referido artigo 3.°, foram introduzidas uma série de proibições estritas à possibilidade de utilização de aviões civis subsónicos «recertificados».


8 – A perspectiva da Resolução A 33/7 no que respeita à abordagem equilibrada foi confirmada pela ulterior Resolução A 35/5, adoptada em 8 de Outubro de 2004.


9 – Já referido.


10 –      Ibidem, n.° 50. Jurisprudência confirmada pelos acórdãos de 8 de Maio de 2003, ATRAL (C‑14/02, Colect., p. I‑4431); de 22 de Novembro de 2005, Mangold (C‑144/04, Colect., p. I‑9981); de 10 de Novembro de 2005, Stichting Zuid‑Hollandse Milieufederatie (C‑316/04, Colect., p. I‑9759); de 4 de Julho de 2006, Adeneler (C‑212/04, ainda não publicado na Colectânea); e de 14 de Setembro de 2006, Stichting Zuid‑Hollandse Milieufederatie (C‑138/05, ainda não publicado na Colectânea).


11 – Acórdãos Inter‑Environnement Wallonie, já referido, n.° 41, e de 5 de Fevereiro de 2004, Rieser Internationale Transporte (C‑157/02, Colect., p. I‑1477, n.° 68).


12 – Conclusões do advogado‑geral G. F. Mancini, apresentadas no processo que culminou no acórdão de 11 de Junho de 1987, Teuling/Bedrijfsvereniging voor de Chemische Industrie (30/85, Colect., p. 2497, n.° 7).


13 – Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo que culminou no acórdão Inter‑Environnement Wallonie, já referido (Colect. 1997, p. I‑7413).


14 – V. acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 22 de Janeiro de 1997, Opel Austria/Conselho (T‑115/94, Colect., p. II‑39, n.° 91 e n.os 76 a 90).


15 –      Acórdão Inter‑Environnement Wallonie, já referido, n.° 47.


16 – Acórdãos, já referidos, ATRAL, n.° 59; Mangold, n.° 60; e Adeneler, n.° 121.


17 – Acórdão Inter‑Environnement Wallonie, já referido, n.° 49.


18 – Moniteur belge de 26 de Setembro de 2003.


19 – Acórdão de 22 de Setembro de 2006, Comissão/Bélgica (C‑221/03, Colect., p. I‑8307, n.° 38).


20 – COM (2001) 695 final.


21 – Acórdãos de 2 de Abril de 2006, ANAV (C‑410/04, Colect., p. I‑3303, n.° 26), e de 11 de Janeiro de 2005, Stadt Halle e RPL Lochau (C‑26/03, Colect., p. I‑1, n.° 46).


22 – Acórdãos de 2 de Agosto de 1993, Comissão/Países Baixos (C‑303/92, Colect., p. I‑4739); de 21 de Janeiro de 1999, Comissão/Portugal (C‑150/97, Colect., p. I‑259); de 22 de Abril de 1999, Comissão/Alemanha (C‑272/97, Colect., p. I‑2175); de 25 de Novembro de 1999, Comissão/Irlanda (C‑212/98, Colect., p. I‑8571); de 13 de Abril de 2000, Comissão/Espanha (C‑274/98, Colect., p. I‑2823); de 6 de Julho de 2000, Comissão/Bélgica (C‑236/99, Colect., p. I‑5657); de 23 de Novembro de 2000, Comissão/França (C‑319/99, Colect., p. I‑10439); de 7 de Dezembro de 2000, Comissão/Itália (C‑423/99, Colect., p. I‑11167); de 5 de Abril de 2001, Comissão/Grécia (C‑494/99, Colect., p. I‑2761); e de 4 de Outubro de 2001, Comissão/Luxemburgo (C‑450/00, Colect., p. I‑7069).


23 – Acórdãos de 8 de Junho de 2006, Comissão/Luxemburgo (C‑71/05, não publicado na Colectânea, n.° 12), e de 13 de Dezembro de 2001, Comissão/Irlanda (C‑372/00, Colect., p. I‑10303, n.° 11).


24 – Directiva do Conselho, de 2 de Março de 1992, relativa à limitação da exploração dos aviões que dependem do anexo 16 da Convenção relativa à Aviação Civil Internacional, volume 1, segunda parte, capítulo 2, segunda edição (1988) (JO L 76, p. 21).