CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

CHRISTINE STIX‑HACKL

apresentadas em 3 de Outubro de 2006 1(1)

Processo C‑370/05

Anklagemyndigheden

contra

Uwe Kay Festersen

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Veste Landsret (Dinamarca)]

«Livre circulação de capitais – Aquisição de propriedades agrícolas – Obrigação de residência»





I –    Introdução

1.     Com as duas questões prejudiciais que submeteu ao Tribunal de Justiça por despacho de 5 de Outubro de 2005, o Vestre Landsret dinamarquês pretende essencialmente saber se é compatível com as disposições do Tratado em matéria de liberdade de estabelecimento (artigo 43.° CE) e de livre circulação de capitais (artigo 56.° CE) que um Estado‑Membro sujeite a aquisição de uma propriedade agrícola à condição de o comprador nela fixar a sua residência permanente.

2.     Essas questões foram colocadas num processo penal contra Uwe Kay Festersen, um cidadão alemão, por incumprimento da obrigação de fixar residência permanente dentro do prazo de seis meses na propriedade por ele comprada.

3.     De entre a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre as condições estabelecidas nas legislações nacionais para a aquisição da propriedade fundiária, reveste especial relevância para o presente processo o acórdão Ospelt (2), no qual, como no caso vertente, estavam especificamente em causa as condições de aquisição de propriedades agrícolas.

II – A legislação dinamarquesa em matéria de aquisição de propriedades agrícolas

4.     Aos factos controvertidos no processo principal é aplicável a lei relativa à agricultura (landbrugslov), na versão de 1999 (texto consolidado n.° 598 de 15 de Julho de 1999, a seguir «landbrugslov»).

5.     Nos termos do artigo 2.° da landbrugslov, as propriedades agrícolas estão sujeitas a uma obrigação de exploração, considerando‑se propriedade agrícola uma propriedade inscrita como tal no registo cadastral.

6.     Nos termos do artigo 7.° da landbrugslov, uma propriedade agrícola deve ser mantida como uma exploração autónoma e estar provida de uma casa de habitação, a partir da qual os seus habitantes exploram as terras.

7.     As condições para a aquisição de propriedades agrícolas são reguladas no artigo 16.° da referida lei, designadamente, nos seguintes termos:

«(1)      A aquisição de uma propriedade agrícola situada em zona rural e cuja área exceda 30 hectares está sujeita à condição de:

         […]

4.      O adquirente estabelecer a sua residência permanente na mesma no prazo de seis meses a contar da sua aquisição, […]

(2)      A aquisição de uma propriedade agrícola cuja área não exceda 30 hectares está sujeita à condição de o adquirente preencher os requisitos previstos no n.° 1, pontos 1 a 4 […]»

8.     As propriedades agrícolas cuja área seja inferior a 30 hectares não estão sujeitas a uma obrigação de exploração pelos seus proprietários.

9.     Resulta dos artigos 18.°‑B, n.° 1, e 4.° do texto consolidado n.° 627 de 26 de Julho de 1999, sobre as exigências de formação e de residência no contexto da landbrugslov (a seguir «texto consolidado n.° 627»), que a obrigação de residência deve ser entendida no sentido de que o interessado deve residir com carácter fixo e permanente na propriedade em causa, que constitui simultaneamente a sua residência principal para efeitos fiscais. O interessado deve ainda estar inscrito no registo da população do município como residente na propriedade em causa. Nos termos do artigo 4.°, n.° 2, do texto consolidado n.° 627, o adquirente deve cumprir a obrigação de residência durante os oito anos seguintes à aquisição do imóvel.

10.   Em determinados casos, são possíveis derrogações da obrigação de residência. Assim, o artigo 18.° da landbrugslov prevê, designadamente, o seguinte:

«(1) Sem prejuízo dos casos previstos nos artigos 16.°, 17.° e 17.°‑A, a aquisição de uma propriedade agrícola numa zona rural depende da autorização do Ministro da Alimentação, da Agricultura e das Pescas.

[…]

(4)      O Ministro pode autorizar a aquisição de uma propriedade agrícola quando

1.      A aquisição tenha por fim a utilização prevista no artigo 4.°, n.° 1, ponto 1, e se possa prever que a propriedade será afecta num futuro próximo à finalidade em causa,

2.      A aquisição tenha por fim uma utilização não agrícola com fins lucrativos, que, além disso, deve ser considerada desejável com base num interesse social geral,

3.      A aquisição tenha uma finalidade específica, designadamente a utilização para fins de carácter científico, didáctico, social, sanitário ou recreativo,

4.      A aquisição tenha por fim a criação de prados húmidos, a recuperação da natureza ou fins análogos, ou

5.      Outras circunstâncias especiais o aconselhem […]»

11.   O artigo 62.°, n.° 1, da circular relativa à aplicação da landbrugslov dispõe o seguinte a esse respeito:

«Só em casos excepcionais pode ser concedida a autorização prevista no artigo 18.° da landbrugslov para a aquisição de propriedades agrícolas com dispensa da obrigação de residência sem limite de tempo (v. artigo 16.°, n.° 1, ponto 4, da landbrugslov). Isto aplica‑se, por exemplo, quando, devido a razões relativas à situação do prédio, for fisicamente impossível cumprir a obrigação de residência durante uma grande parte do ano. Esta disposição deve ser aplicada restritivamente […]»

III – Matéria de facto, processo principal e questões prejudiciais

12.   O arguido no processo principal, o cidadão alemão Uwe Kay Festersen, adquiriu, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1998, a propriedade de um imóvel sito na Jutlândia do Sul. Esse imóvel é constituído por um terreno urbanizado com uma área de 0,24 ha que está situado em zona urbana e por um terreno de pasto com uma área de 3,29 ha que está situado em zona rural. O imóvel no seu todo está inscrito no registo cadastral como propriedade agrícola.

13.   Uma vez que U. Festersen não estabeleceu a sua residência permanente nessa propriedade, tal como era exigido pela landbrugslov, a comissão para a agricultura da Jutlândia do Sul (Jordbrugskommission for Sønderjyllands Amt) dirigiu‑lhe, em 8 de Setembro de 2000, uma intimação para que harmonizasse a sua situação com a legislação aplicável. Dado que isto não aconteceu, dirigiu‑lhe uma nova intimação a este respeito em 16 de Julho de 2001.

14.   U. Festersen estabeleceu a sua residência na propriedade em questão em 12 de Junho de 2003 e está inscrito no registo da população com essa morada desde 12 de Setembro de 2003.

15.   Entretanto, tinha sido instaurado um processo penal contra U. Festersen no Ret Gråsten (tribunal de primeira instância). Por sentença do Ret Gråsten de 18 de Agosto de 2003, U. Festersen foi condenado por não ter dado cumprimento à intimação da comissão para a agricultura de 8 de Setembro de 2000. Foi‑lhe aplicada como pena uma multa no montante de 5 000 DKK. Foi‑lhe ainda aplicada uma sanção pecuniária compulsória no montante de 5 000 DKK por cada mês decorrido se não desse cumprimento à intimação da comissão para a agricultura de 8 de Setembro de 2000 até ao dia 1 de Dezembro de 2003.

16.   No processo principal, cabe ao Vestre Landsret decidir o recurso interposto por U. Festersen da sentença do Ret Gråsten.

17.   No presente processo, as partes estão em desacordo quanto à questão de saber se a exigência de residência imposta pela landbrugslov é compatível com o direito comunitário e em que medida o acórdão Ospelt (3) é aplicável à presente situação. Por conseguinte, no entender do tribunal de reenvio, a resolução do processo penal nele pendente depende, à luz dessa jurisprudência, designadamente, da interpretação do artigo 43.° CE, relativo à liberdade de estabelecimento, e do artigo 56.° CE, relativo à livre circulação de capitais.

18.   Consequentemente, o Vestre Landsret submeteu ao Tribunal de Justiça as duas questões seguintes para decisão a título prejudicial:

«1)      O artigo 43.° CE e o artigo 56.° CE opõem‑se a que um Estado‑Membro imponha, como condição para a aquisição de uma propriedade agrícola, que o adquirente fixe residência nessa propriedade?

2)      É relevante para a resposta à primeira questão o facto de a propriedade não poder constituir uma unidade de exploração directa e de a casa de habitação estar situada numa zona urbana?»

IV – Resposta às questões prejudiciais

A –    Quanto à primeira questão prejudicial

19.   Com a sua primeira questão, o tribunal de reenvio pretende saber se o direito comunitário, mais precisamente a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento garantidas pelo Tratado CE, se opõe a uma exigência de residência como a prevista pela landbrugslov para a aquisição de propriedades agrícolas.

20.   Esta questão é respondida em sentido afirmativo por U. Festersen, ao passo que os Governos dinamarquês e norueguês e a Comissão concordam no essencial sobre a compatibilidade da regulamentação controvertida com o direito comunitário. A Comissão apenas manifestou dúvidas quanto ao respeito do princípio da proporcionalidade pelo facto de a landbrugslov prever possibilidades muito limitadas de derrogação e, baseando‑se no acórdão Ospelt (4), considera que a obrigação de residência controvertida é conforme com o direito comunitário na condição de não ser imposta em todos os casos de aquisição de propriedades agrícolas.

21.   No presente caso, o Tribunal de Justiça pode basear‑se num grande número de acórdãos sobre as condições de aquisição de imóveis em diversos Estados‑Membros, na maioria dos quais estavam em causa regulamentações nacionais sobre a aquisição de terrenos para construção que prosseguiam determinados objectivos de ordenamento do território – em sentido lato – como o de impedir o estabelecimento de residências secundárias (5).

22.   Maior relevância para o presente caso têm, porém, os acórdãos proferidos no processo já mais antigo Fearon (6) e, em especial, no processo Ospelt (7), que foi discutido em pormenor pelas partes, nos quais estavam em causa regimes ou condições de aquisição de propriedades agrícolas que se destinavam a proteger interesses gerais especificamente agrícolas como a conservação de uma determinada estrutura produtiva e demográfica no domínio agrário.

23.   No entanto, é necessário proceder com cautela mesmo que se pretenda generalizar ou transpor para a presente situação a decisão adoptada no processo Ospelt, uma vez que as regulamentações dos Estados‑Membros em matéria de aquisição da propriedade fundiária diferem umas das outras quanto à sua configuração concreta e aos seus objectivos e que, no presente caso, a compatibilidade com o direito comunitário é principalmente decidida, como as partes alegaram unanimemente, no quadro do exame da proporcionalidade, ou seja, depende da relação concreta entre os fins e os meios.

24.   Deve ainda observar‑se que, na maioria dos referidos acórdãos, foi analisada a compatibilidade com o direito comunitário de condições processuais ou formais para a aquisição de terrenos, em especial a exigência de autorização prévia. No acórdão Ospelt, também foram, porém, analisadas as condições materiais estabelecidas na regulamentação em causa sobre a aquisição da propriedade fundiária, designadamente uma obrigação de exploração pelos próprios proprietários e – tal como anteriormente no acórdão Fearon – uma obrigação de residência (8).

25.   Ao invés, no caso em apreço, não é controvertido o processo de aquisição da propriedade fundiária. A landbrugslov dinamarquesa não prevê – pelo menos para a aquisição de propriedades inferiores a 30 ha, como a que está concretamente em causa – qualquer obrigação de obter uma autorização. Também não é necessário examinar a compatibilidade da obrigação de exploração pelos próprios proprietários estabelecida na landbrugslov, uma vez que esta também só é válida para áreas superiores a 30 ha e não é, por conseguinte, aplicável na situação em causa no processo principal. Para essas áreas de terreno inferiores a 30 ha, vigora uma simples obrigação de exploração.

26.   Sendo assim, no que se refere à conformidade da exigência de residência, tal como prevista na landbrugslov, com o direito comunitário, há que precisar, antes de mais, os critérios de apreciação.

27.   Fundamentalmente, há que observar que as legislações nacionais sobre a aquisição da propriedade fundiária devem obviamente respeitar todas as disposições do Tratado CE relativas às liberdades fundamentais, apesar de, até ao momento, o Tribunal de Justiça apenas ter feito referência nesta matéria à livre circulação de capitais e à liberdade de estabelecimento (9).

28.   Outra questão, que também foi abordada pelas partes, é saber qual é (quais são) a liberdade fundamental (as liberdades fundamentais) em causa ou aplicável (aplicáveis) no caso concreto. Até ao presente, o Tribunal de Justiça apreciou sempre as regulamentações sobre a aquisição da propriedade fundiária à luz da livre circulação de capitais, não obstante o tribunal de reenvio ter igualmente feito referência, por exemplo, à liberdade de estabelecimento, à semelhança do acórdão Konle (10). Neste contexto, o Tribunal de Justiça afirmou que o direito de adquirir, explorar e alienar bens imóveis no território de outro Estado‑Membro constitui o complemento necessário da liberdade de estabelecimento e que os movimentos de capitais abrangem as operações pelas quais os não residentes efectuam investimentos imobiliários no território de um Estado‑Membro (11).

29.   O acórdão Fearon, muito anterior, que, do ponto de vista dos factos a ele subjacentes, está, no entanto, claramente relacionado com a liberdade de estabelecimento, constitui uma excepção a esse método.

30.   No presente caso, não decorre do despacho de reenvio nem dos autos em que contexto e com que finalidade U. Festersen adquiriu o imóvel controvertido e se preenche concretamente as condições necessárias para ser abrangido pela liberdade de estabelecimento ou inclusivamente pela liberdade de circulação dos trabalhadores. Todavia, tendo em conta que, como será ainda explicado, a regulamentação controvertida também tem justamente como finalidade impedir simples investimentos e especulações imobiliários e estabelece, nesta medida, uma restrição à livre circulação de capitais, também me parece ser conveniente recorrer no caso em apreço, em primeira linha, à livre circulação de capitais enquanto critério de apreciação. De resto, à semelhança da Comissão, entendo que as considerações seguintes, em especial o exame da proporcionalidade, também são válidas no que diz respeito à liberdade de estabelecimento.

31.   O facto de a regulamentação controvertida, que prevê uma exigência de residência como condição para a aquisição de terrenos e para a realização dos respectivos investimentos imobiliários, restringir a livre circulação de capitais pelo seu próprio objecto também é essencialmente pacífico entre as partes e, como já foi afirmado, foi até em parte pretendido como objectivo da landbrugslov.

32.   Segundo jurisprudência assente, esse tipo de restrições podem, no entanto, ser admissíveis se, com as medidas em questão, se prosseguir de um modo não discriminatório um objectivo de interesse geral e se as mesmas forem conformes com o princípio da proporcionalidade, isto é, se forem adequadas para garantir a realização do objectivo prosseguido e não ultrapassarem o necessário para o atingir (12).

33.   Em primeiro lugar, no que se refere ao requisito da prossecução de um objectivo de interesse geral, a landbrugslov assenta num conjunto de objectivos de política agrícola. Segundo as indicações fornecidas pelo tribunal de reenvio e pelo Governo dinamarquês, a landbrugslov tem por base o velho princípio da agricultura dinamarquesa segundo o qual as unidades agrícolas devem, tanto quanto possível, ser habitadas e exploradas pelos seus proprietários. Pretende‑se evitar a especulação imobiliária e assegurar, tendo em conta a escassez dos solos agrícolas, que os verdadeiros agricultores possam adquirir as terras agrícolas que lhes servem de base de produção. A landbrugslov tem por objectivo impedir concentrações excessivas no domínio da propriedade agrícola e conservar um certo nível de ocupação do espaço rural. Por fim, o Governo dinamarquês assinalou – embora, tal como salientou na audiência, apenas como argumento adicional – que a medida controvertida também tem como objectivo acessório impedir o estabelecimento de residências secundárias e, por conseguinte, transpor o Potocolo n.° 16 anexo ao Tratado CE, relativo à aquisição de bens imóveis na Dinamarca.

34.   No acórdão Ospelt, o Tribunal de Justiça reconheceu como objectivos de interesse social alguns objectivos de política agrícola como a manutenção da população agrícola, a conservação de uma repartição da propriedade fundiária que permita o desenvolvimento de explorações viáveis e a manutenção harmoniosa do espaço e das paisagens e o favorecimento de uma utilização razoável das terras disponíveis através da luta contra a pressão no mercado fundiário e a prevenção dos riscos naturais (13). No mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça observou que estes objectivos correspondem aos da política agrícola comum, política que tem por objectivo assegurar um nível de vida equitativo à população agrícola e cuja organização deve ter em conta a natureza particular da actividade agrícola (14).

35.   À luz das considerações precedentes, entendo que os objectivos prosseguidos pela regulamentação controvertida também devem ser considerados objectivos legítimos de interesse geral, susceptíveis de justificar restrições às liberdades fundamentais. No que se refere especialmente ao princípio segundo o qual o solo deve, na medida do possível, pertencer àqueles que o trabalham («a terra a quem a trabalha»), o Tribunal de Justiça já considerou no acórdão Fearon que este objectivo é legítimo (15). Por fim, segundo jurisprudência assente, as restrições ao estabelecimento de residências secundárias que, prosseguindo objectivos de ordenamento do território, se destinam a manter uma população permanente também devem, em princípio, ser consideradas medidas que contribuem para um objectivo de interesse geral (16).

36.   Uma vez que os objectivos descritos da exigência de residência prevista na legislação dinamarquesa em matéria de aquisição de propriedades agrícolas são, por conseguinte, de interesse geral, há que examinar, no sentido da jurisprudência acima referida, se esses objectivos são prosseguidos de uma forma não discriminatória, mais precisamente, se não está, na realidade, em causa o princípio «a terra dinamarquesa aos dinamarqueses». Esta tese é defendida por U. Festersen, que remete, a este respeito, para determinadas declarações feitas no ano de 1963 no quadro dos debates parlamentares relativos à adesão da Dinamarca à Comunidade.

37.   Concordo com a opinião da Comissão de que esses elementos do discurso político, cujo peso e consequências efectivas são, em última instância, difíceis de avaliar, não são determinantes para a verificação do carácter discriminatório da medida controvertida, que, ao invés, deve ser apreciada em função do seu teor objectivo e dos seus efeitos. Assim, na linha do acórdão Ospelt, entre outros, há que concluir que a exigência da residência controvertida, que foi instituída no quadro de um regime legal sobre a aquisição de propriedades agrícolas e com os referidos objectivos de política agrícola, não distingue entre cidadãos nacionais e cidadãos de outros Estados‑Membros e, por conseguinte, não tem, a priori, carácter discriminatório (17).

38.   Mais problemática é a questão de saber se a landbrugslov não é aplicada de uma forma discriminatória. Uma das razões pelas quais o Tribunal de Justiça negou a admissibilidade das medidas em causa nos acórdãos Konle e Salzmann foi precisamente porque estas medidas deixavam às autoridades uma ampla margem de apreciação que se assemelhava muito a um poder discricionário e que existia, por isso, o risco de discriminação (18).

39.   Como o Governo dinamarquês alegou, as isenções à obrigação de residência previstas no artigo 18.° da landbrugslov são substancialmente limitadas pela circular sobre a landbrugslov e devem ser aplicadas restritivamente. Em meu entender, não se está em presença de uma margem de apreciação semelhante a um poder discricionário. Além disso, há que ter em conta que até é necessária uma certa flexibilidade, que pode ser introduzida mediante a previsão de possibilidades de derrogação – ainda que estritamente definidas –, tendo em vista a proporcionalidade das restrições decorrentes da obrigação de residência. Por fim, U. Festersen também não alegou nem demonstrou que a landbrugslov era aplicada de forma discriminatória.

40.   Face ao exposto, não se verifica que a exigência de residência prevista na landbrugslov seja aplicada de forma discriminatória.

41.   Por conseguinte, há que proceder à apreciação dos requisitos de que depende a proporcionalidade da exigência de residência.

42.   Em primeiro lugar, penso que não se pode negar que a exigência de residência prevista na landbrugslov é, em princípio, adequada para promover os objectivos prosseguidos com esta medida, que devem ser considerados no seu contexto. A exigência rigorosa de residência garante plenamente que as propriedades agrícolas não possam servir de meros objectos de especulação ou para investimentos de capital. Por força dessa exigência, as propriedades agrícolas também não entram em linha de conta como possíveis residências de fim‑de‑semana ou de férias. Isto diminui de forma significativa a atractividade desses imóveis, a qual fica circunscrita às pessoas que pretendem fixar a sua residência permanente nos mesmos e, pelo menos, assegurar a sua exploração. Desta forma, é, sem dúvida, diminuída a pressão dos preços sobre as propriedades agrícolas, pelo que se promove outro objectivo relevante, a saber, o de manter essas propriedades economicamente acessíveis aos próprios agricultores e contribuir desta forma para a concretização da política tradicional dinamarquesa segundo a qual as explorações agrícolas devem, na medida do possível, ser habitadas e exploradas pelos respectivos proprietários.

43.   No entanto, importa ainda verificar se uma exigência de residência como a prevista na landbrugslov não excede o que é necessário para atingir os objectivos prosseguidos ou se estes objectivos não poderiam ser atingidos de forma igualmente eficaz utilizando meios menos restritivos (19).

44.   A este respeito, há que observar que, por exemplo, a exploração das terras agrícolas também poderia ser assegurada sem a obrigação de residência. Para esse efeito, seria plenamente suficiente a obrigação de exploração em vigor. Todavia, os objectivos da landbrugslov vão substancialmente mais além, na medida em que abrangem, nomeadamente, a prevenção da utilização de quintas como residências de férias e, relacionada com esta, a prevenção da pressão dos preços sobre as propriedades agrícolas. Com efeito, enquanto tais, os imóveis continuariam a ser atractivos e utilizáveis, uma vez que a sua exploração poderia, por exemplo, ser assegurada através de arrendatários. Desta forma, aumentaria o risco de que os agricultores deixassem de ter possibilidades económicas de adquirir a propriedade da sua base de produção, as terras agrícolas.

45.   Uma supressão da obrigação de residência até uma determinada área, por exemplo 30 ha, restringiria naturalmente a eficácia da política descrita, até porque, segundo indicações do Governo dinamarquês, cerca de 75% das terras agrícolas são inferiores a 30 ha.

46.   O facto de, como resulta dos autos e das observações das partes, ser, de qualquer forma, possível observar um processo de concentração na agricultura dinamarquesa, caracterizado pelo facto de áreas cada vez maiores serem exploradas por um número cada vez mais reduzido de agricultores, o que está igualmente associado a uma certa diminuição da população rural, não constitui, por si só, um argumento contra a proporcionalidade da exigência de residência.

47.   Os objectivos políticos raramente podem ser alcançados plenamente. Como o Governo dinamarquês afirmou com razão, o governo ou o legislador têm quase sempre de harmonizar e ponderar vários interesses e objectivos parcialmente contraditórios. Por conseguinte, também há que dar razão ao Governo norueguês quando afirma que, nesta ponderação complexa de objectivos distintos e na escolha dos meios adequados para os atingir, deve ser reconhecida ao legislador nacional uma certa margem de apreciação. Nesta perspectiva, a regra que impõe uma obrigação de residência durante os oito anos seguintes à aquisição da propriedade não é, em qualquer caso, manifestamente desproporcionada.

48.   Por último, no que se refere à decisão consagrada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Ospelt, segundo a qual as normas sobre a livre circulação de capitais proíbem que a autorização para a aquisição de terrenos agrícolas seja, «em qualquer circunstância», recusada pelo facto de o adquirente não explorar ele próprio os terrenos em questão no quadro de uma exploração agrícola e não ter a sua residência na mesma, essa decisão deve, na minha opinião, ser entendida à luz das circunstâncias particulares desse caso. Com efeito, a exploração agrícola que estava em causa nesse acórdão já era explorada por um agricultor arrendatário antes da respectiva cessão a uma fundação. A cessão à fundação não alterou em nada esta situação, uma vez que esta se obrigou a manter as condições de exploração do terreno pelo mesmo arrendatário. Uma vez que, nesse caso, o Tribunal de Justiça se baseou no objectivo da medida controvertida nesse processo, que consistia em garantir a afectação agrícola e a continuidade da exploração dos terrenos – por agricultores ou pessoas colectivas como associações de agricultores –, recusar a autorização controvertida com fundamento no incumprimento por parte da fundação da obrigação de exploração pelos próprios proprietários e da obrigação de residência iria para além do necessário para atingir o referido objectivo (20).

49.   No entanto, estas considerações não são inteiramente transponíveis para o presente caso, desde logo porque, tal como já afirmei, os objectivos da landbrugslov não se limitam ao de garantir a exploração dos terrenos agrícolas.

50.   Face ao exposto, há que responder à primeira questão prejudicial que as regras sobre a livre circulação de capitais não se opõem a uma obrigação de residência como a prevista na landbrugslov.

B –    Quanto à segunda questão prejudicial

51.   A situação e a afectação concreta das duas parcelas de terreno adquiridas por U. Festersen estão na origem da segunda questão prejudicial. O tribunal de reenvio pretende saber se, para efeitos da conformidade com o direito comunitário, é relevante a circunstância de a obrigação de residência também ser aplicável quando a propriedade não pode constituir uma unidade de exploração auto-suficiente e a respectiva casa de habitação está situada em zona urbanizada.

52.   Contrariamente a U. Festersen, os Governos dinamarquês e norueguês e a Comissão defendem que estes factores são irrelevantes para a conformidade da obrigação de residência prevista na landbrugslov com o direito comunitário.

53.   Em meu entender, há que dar‑lhes razão, uma vez que as considerações que justificam a obrigação de residência são igualmente válidas para propriedades que, embora estejam parcialmente situadas em zona urbana, ainda têm uma afectação agrícola. Como o Governo dinamarquês observou, essas intersecções são frequentemente explicadas pela estrutura das populações locais e pelo alargamento das aldeias e cidades. Não penso que, por isso, essas áreas devam ser sistematicamente excluídas da política seguida pela landbrugslov. Não me parece que o facto de uma superfície agrícola não ser auto-suficiente possa ser invocado a favor da tese de que os interesses prosseguidos pela landbrugslov não abrangem essas áreas agrícolas.

54.   Por conseguinte, sou de opinião de que o direito comunitário não se opõe a que uma obrigação de residência como a prevista na landbrugslov também seja aplicável quando uma propriedade agrícola não constitua uma unidade de exploração auto-suficiente e a respectiva casa de habitação esteja situada em zona urbanizada.

V –    Decisão quanto às despesas

55.   As despesas efectuadas pelos Governos dinamarquês e norueguês e pela Comissão não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

VI – Conclusão

56.   Face ao exposto, proponho que seja dada a seguinte resposta às questões prejudiciais:

As regras sobre a livre circulação de capitais não se opõem a uma condição de residência como a prevista na landbrugslov. Isto é válido independentemente da questão de saber se uma propriedade agrícola pode constituir uma unidade de exploração auto-suficiente ou se a casa de habitação de uma propriedade agrícola está situada em zona urbanizada.


1 – Língua original: alemão.


2 – Acórdão de 23 de Setembro de 2003 (C‑452/01, Colect., p. I‑9743).


3 – Acórdão já referido na nota 2.


4 – Acórdão já referido na nota 2.


5 – V. acórdãos de 1 de Junho de 1999, Konle (C‑302/97, Colect., p. I‑3099); de 5 de Março de 2002, Reisch e o. (C‑515/99 e C‑527/99 a 540/99, Colect., p. I‑2157); de 15 de Maio de 2003, Salzmann (C‑300/01, Colect., p. I‑4899); e de 1 de Dezembro de 2005, Burtscher (C‑213/04, Colect., p. I‑10309).


6 – Acórdão de 6 de Novembro de 1984 (182/83, Recueil, p. 3677).


7 – Acórdão já referido na nota 2.


8 – V. acórdão Ospelt (já referido na nota 2, n.os 46, 49, 51 e 54) e acórdão Fearon (já referido na nota 6, n.os 9 e 10).


9 – V., designadamente, acórdãos Fearon (já referido na nota 6, n.° 7); Konle (já referido na nota 5, n.° 22); Reisch (já referido na nota 5, n.° 28); Ospelt (já referido na nota 2, n.° 24); e Burtscher (já referido na nota 5, n.° 39).


10 – V. acórdão Konle (já referido na nota 5, n.os 39 e segs).


11 – V. acórdãos Konle (já referido na nota 5, n.° 22) e Reisch (já referido na nota 5, n.os 29 e 30).


12 – V., neste sentido, acórdãos Konle (já referido na nota 5, n.° 40); de 22 de Janeiro de 2002, Canal Satélite Digital (C‑390/99, Colect., p. I‑607, n.° 33); Reisch e o. (já referido na nota 5, n.° 33); Salzmann (já referido na nota 5, n.° 42); Ospelt (já referido na nota 2, n.° 34); e Burtscher (já referido na nota 5, n.° 44).


13 – V. acórdão Ospelt (já referido na nota 2, n.° 39).


14 – Ibidem, n.° 40.


15 – Acórdão Fearon (já referido na nota 6, n.os 3 e 10).


16 – V. acórdãos Konle (já referido na nota 5, n.° 40); Reisch (já referido na nota 5, n.° 34); e Salzmann (já referido na nota 5, n.° 44).


17 – Acórdão Ospelt (já referido na nota 2, n.° 37); v. também acórdão Burtscher (já referido na nota 5, n.os 48 e 49).


18 – V. acórdãos Salzmann (já referido na nota 5, n.os 46 e 47) e Konle (já referido na nota 5, n.° 41).


19 – V., designadamente, acórdãos Reisch (já referido na nota 5, n.° 33) e Ospelt (já referido na nota 2, n.° 46).


20 – A este respeito, v., em especial, n.° 51 do acórdão Ospelt (já referido na nota 2).