CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 5 de Dezembro de 2006 1(1)

Processo C‑367/05

Norma Kraaijenbrink

«Artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (CAAS) – Princípio ‘ne bis in idem’ – Conceito de ‘mesmos factos’ – Artigo 56.° da CAAS – Tomada em consideração de condenações anteriores – Factos punidos num Estado‑Membro – Direito de punir crimes acessórios cometidos noutro Estado‑Membro»





1.        Em que medida o dolo único é relevante para determinar, no contexto do branqueamento de proventos resultantes do tráfico de droga, se os factos pelos quais um arguido foi punido em dois Estados‑Membros distintos são os «mesmos factos» para efeitos do artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (a seguir «CAAS») (2)? Os factos que eram desconhecidos da acusação ou do tribunal do julgamento no primeiro Estado‑Membro estão abrangidos por esse conceito? E se tiver lugar novo processo‑crime no segundo Estado‑Membro, que culmine numa condenação, o tribunal que profere a sentença deve levar em conta a sentença proferida no primeiro Estado‑Membro? Estas são, no essencial, as questões colocadas ao Tribunal de Justiça pelo Hof van Cassatie da Bélgica (tribunal de cassação).

 Normas relevantes

 A CAAS

2.        De acordo com o artigo 1.° do Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia (3) (a seguir «Protocolo»), treze Estados‑Membros ficam autorizados a estabelecer entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos pelo denominado «acervo de Schengen».

3.        O anexo do Protocolo define o «acervo de Schengen» como incluindo o Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen em 14 de Junho de 1985 (4) (a seguir «acordo de Schengen»), e, em particular, a CAAS.

4.        O Protocolo estabelece que, desde a data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, isto é, 1 de Maio de 1999, o acervo de Schengen se aplica imediatamente aos treze Estados‑Membros referidos no artigo 1.° do Protocolo, incluindo os Países Baixos e a Bélgica (5).

5.        Os artigos 54.° a 58.° da CAAS constituem o capítulo 3, denominado «Aplicação do princípio ne bis in idem», do título III, referente à «Polícia e Segurança».

6.        O artigo 54.° estabelece que «aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida».

7.        O artigo 55.°, n.° 1, permite a uma parte contratante, «no momento da ratificação, aceitação ou aprovação da presente convenção, declarar que não está vinculada pelo artigo 54.°» quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham ocorrido, no todo, ou em parte, no seu território, constituam crime contra a segurança do Estado ou de outros interesses igualmente essenciais dessa parte contratante e/ou tenham sido praticados por um funcionário dessa parte contratante em violação dos deveres do seu cargo.

8.        O artigo 56.° estabelece que, «se uma nova acção judicial for intentada por uma parte contratante contra uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um tribunal de uma outra parte contratante, será descontado na sanção que venha a ser eventualmente imposta qualquer período de privação de liberdade cumprido no território desta última parte contratante por esses factos. Serão igualmente tidas em conta, na medida em que as legislações nacionais o permitam, sanções diferentes das privativas de liberdade que tenham já sido cumpridas».

9.        O artigo 58.° estabelece que «o disposto nos artigos anteriores não prejudica a aplicação das disposições nacionais mais amplas relativas ao efeito ne bis in idem associado às decisões judiciais proferidas no estrangeiro».

10.      De acordo com o artigo 71.°, n.° 1, que figura no capítulo 6 da CAAS, intitulado «Estupefacientes», as partes contratantes comprometem‑se «a adoptar, em conformidade com as convenções das Nações Unidas existentes, todas as medidas necessárias à prevenção e à repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas». Nos termos do artigo 71.°, n.° 2, «as partes contratantes comprometem‑se a prevenir e a reprimir, através de medidas administrativas e penais», a exportação ilícita, a cessão, o fornecimento e a entrega de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas. De acordo com o artigo 71.°, n.° 5, «as partes contratantes envidarão os maiores esforços para prevenir e lutar contra os efeitos negativos desta procura ilícita» de estupefacientes e substâncias psicotrópicas de qualquer natureza.

 A Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes

11.      A Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes, alterada pelo Protocolo de 1972 (a seguir «Convenção Única»), integra o acervo da União Europeia de acordo com o título VI do Tratado da União Europeia. Os Estados‑Membros são parte da mesma ou tornam‑se parte ao aderir à União Europeia.

12.      O artigo 36.°, n.° 1, alínea a), da Convenção Única, sob a epígrafe «Disposições penais», estabelece que, sob reserva das suas disposições constitucionais, cada parte adoptará as medidas necessárias para assegurar que um conjunto de infracções relacionadas com estupefacientes, incluindo a venda, a distribuição ou qualquer outro acto que, na opinião dessa parte, seja contrário às disposições da Convenção Única, constituam infracções puníveis quando cometidas intencionalmente e para que as infracções graves sejam passíveis de sanção adequada, nomeadamente, de penas de prisão ou de outras penas privativas da liberdade.

13.      Nos termos do artigo 36.°, n.° 2, alínea a), i) e ii), sob reserva das disposições constitucionais de cada parte, do seu sistema jurídico e da sua legislação nacional, cada uma dessas infracções será considerada como uma infracção distinta, caso sejam cometidas em países diferentes, e as operações financeiras intencionalmente executadas, relativas a essas infracções, constituirão também infracções passíveis de sanção nos termos do artigo 36.°, n.° 1.

 O direito nacional

14.      O Governo dos Países Baixos declarou em audiência que, à data dos factos, não existia no Código Penal neerlandês uma norma específica relativa ao crime de branqueamento de capitais. Porém, até 2002, o branqueamento de proventos do tráfico de droga estava abrangido pelo artigo 416.° do Código Penal neerlandês, nos termos do qual constitui infracção a detenção de bens roubados ou de proventos resultantes dos mesmos. Para ser condenada por essa infracção, a pessoa que detém os bens ou os proventos deles resultantes deve ter conhecimento de que os mesmos foram obtidos através da prática de crime grave. O tráfico ilícito de drogas é considerado uma infracção dessa natureza.

15.      O artigo 505.° do Código Penal belga proíbe o tráfico, a aquisição, a posse, a detenção ou o comércio dos bens definidos, nos termos do artigo 42.°, n.° 3, do Código, como tendo sido obtidos através de conduta criminal. Nessa base, a detenção e o branqueamento de proventos resultantes do tráfico ilícito de drogas estão proibidos na Bélgica.

16.      O artigo 65.° do Código Penal belga estabelece o seguinte:

«Quando uma mesma conduta configurar vários tipos de crime, ou quando diferentes infracções submetidas simultaneamente ao mesmo tribunal constituam a manifestação sucessiva e contínua da mesma intenção delituosa, apenas será proferida sentença pelo crime mais grave.

Quando um tribunal verificar que crimes já anteriormente objecto de uma decisão definitiva e outros factos que lhe estão a ser submetidos e que – pressupondo‑os provados – ocorreram antes da referida decisão constituem a manifestação sucessiva e contínua da mesma intenção delituosa, terá em conta, para a determinação da pena, as penas já aplicadas. Se estas lhe parecerem suficientes para a justa repressão do conjunto das infracções, deve pronunciar‑se sobre a culpa e remeter, na sua decisão, para as penas já aplicadas. O total das penas aplicadas em conformidade com este artigo não pode exceder a pena mais grave» (6).

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17.      Em Dezembro de 1998, N. Kraaijenbrink, cidadã neerlandesa, foi condenada pelo arrondissementsrechtbank te Middelburg (tribunal distrital de Middelburg), Países Baixos, a uma pena suspensa de seis meses de prisão, pela prática, entre Outubro de 1994 e Maio de 1995, nos Países Baixos, de diversos crimes de receptação e detenção de proventos resultantes do tráfico de droga, nos termos do artigo 416.° do Código Penal neerlandês (7).

18.      Em Abril de 2001, o Correctionele Rechtbank te Gent (tribunal criminal de Gand), Bélgica, condenou N. Kraaijenbrink, nos termos do artigo 505.° do Código Penal belga, a uma pena de dois anos de prisão pela prática de vários crimes, correspondentes ao câmbio, na Bélgica, de capitais provenientes do tráfico de estupefacientes nos Países Baixos, entre Novembro de 1994 e Fevereiro de 1996. Essa decisão foi confirmada pela secção criminal do Hof van Beroep te Gent (tribunal de recurso de Gand) em Março de 2005.

19.      Reportando‑se ao artigo 71.° da CAAS e ao artigo 36.°, n.° 2, alínea a), i) e ii), da Convenção Única, ambos os tribunais belgas consideraram que a recorrente não podia invocar o artigo 54.° da CAAS. Entenderam que os crimes de receptação e detenção de proventos do tráfico de estupefacientes praticado nos Países Baixos e os crimes, praticados na Bélgica, relacionados com o câmbio de capitais resultantes do tráfico de estupefacientes nos Países Baixos devem ser vistos como crimes distintos. E isso, não obstante o dolo único subjacente aos crimes de branqueamento de capitas nos Países Baixos e na Bélgica.

20.      Posteriormente, em recurso para o Hof van Cassatie, N. Kraaijenbrink alegou que o princípio ne bis in idem do artigo 54.° da CAAS obstava à instauração de um processo penal na Bélgica.

21.      O Hof van Cassatie decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial, as seguintes questões:

«1)      O artigo 54.° da [CAAS], conjugado com o artigo 71.° da mesma convenção, deve ser interpretado no sentido de que factos puníveis que consistem na obtenção, detenção ou transferência de somas de dinheiro em divisas estrangeiras, provenientes do tráfico de estupefacientes (factos esses objecto de acção penal e subsequente condenação, nos Países Baixos, por receptação prevista e punida pelo artigo 416.° do Código Penal), que são distintos dos factos puníveis que consistem na conversão, em agências de câmbio na Bélgica, de capitais provenientes do tráfico de estupefacientes nos Países Baixos (factos esses objecto de acção penal na Bélgica, por receptação e outras operações relativas a bens provenientes de actividades ilícitas, previstas e punidas pelo artigo 505.° do Código Penal), constituem também os ‘mesmos factos’ na acepção do referido artigo 54.°, quando o juiz decide que estão ligados por uma unidade de intenção delituosa e por isso constituem um facto único do ponto de vista jurídico?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

A expressão ‘não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial’ que consta do artigo 54.° da [CAAS] deve ser interpretada no sentido de que, caso se entenda que o conceito de ‘mesmos factos’ abrange igualmente factos distintos mas ligados por uma unidade de intenção delituosa e que constituem, por isso, um facto único, esse entendimento implica que um arguido acusado de crimes de branqueamento de capitais na Bélgica deixa de poder ser objecto de uma acção penal a partir do momento em que é condenado nos Países Baixos por outros crimes cometidos com a mesma intenção delituosa, independentemente de todos estes outros crimes terem sido praticados durante o mesmo período, mas só terem sido detectados ou objecto de acção penal na Bélgica após prolação da sentença estrangeira quando esta deixa de ser recorrível, ou deve antes ser interpretada no sentido de que, neste caso, o órgão jurisdicional competente para julgar a acção penal pode condenar estes outros crimes a título acessório tendo em conta as penas já aplicadas, excepto se entender que estas últimas constituem a justa punição de todos os crimes cometidos, e sem que o total das penas aplicadas exceda o limite máximo da pena mais grave aplicável?»

22.      N. Kraaijenbrink, a Áustria, a República Checa, a Grécia, a Polónia, a Espanha e a Comissão apresentaram observações escritas. Na audiência de 4 de Julho de 2006, N. Kraaijenbrink, a Áustria, a Grécia, a Espanha e a Comissão apresentaram alegações orais. Os Países Baixos limitaram‑se a fazer alegações em audiência. Tal como no processo Kretzinger (8), as observações escritas foram apresentadas antes do acórdão no processo Van Esbroeck (9). Porém, a audiência teve lugar depois do acórdão naquele processo ter sido proferido.

 Apreciação

 Observações preliminares

23.      Em primeiro lugar, resulta dos autos que a arguida foi condenada por receptação e branqueamento de proventos resultantes do tráfico ilícito de drogas, tanto na Bélgica como nos Países Baixos. Porém, como diversas partes salientaram, não resulta claro do despacho de reenvio se os capitais detidos e branqueados em ambos os países resultavam das mesmas operações de tráfico ilícito de drogas ou faziam parte dos mesmos proventos de origem criminosa.

24.      Em segundo lugar, o tribunal de reenvio refere que, uma vez que «a conversão [na Bélgica], em agências de câmbio […], de importâncias provenientes do tráfico de estupefacientes e a recepção nos [Países Baixos] de importâncias provenientes do tráfico de estupefacientes […] estão ligad[a]s pela unidade do dolo», esses factos constituem um facto único nos termos do artigo 65.° do Código Penal belga. Por outras palavras, se a conduta em que se basearam as condenações nos Países Baixos e na Bélgica fosse apreciada, unicamente, de acordo com o direito belga, seria caracterizada como facto único em virtude do dolo único que lhe está subjacente.

 A primeira questão

25.      Com a sua primeira questão, o tribunal de reenvio pergunta, no essencial, se dois crimes distintos, cometidos em dois Estados‑Membros diferentes, ligados por uma intenção criminal comum, integram, em virtude dessa circunstância, a definição de «mesmos factos» do artigo 54.° da CAAS. Também pretende saber se a resposta a esta questão é influenciada pelo artigo 71.° da CAAS e pela Convenção Única, a que este último se refere indirectamente, respeitante às obrigações dos Estados‑Membros em matéria de combate ao tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

26.      O despacho de reenvio refere «factos puníveis» em vez de factos. No acórdão Van Esbroeck, o Tribunal de Justiça declarou que o interesse jurídico protegido ou a qualificação jurídica dos factos é irrelevante para efeitos do artigo 54.° da CAAS. Assim sendo, importa reformular a primeira questão e perguntar em que medida o dolo único é relevante para determinar se os factos pelos quais um arguido foi objecto de acções judiciais em dois Estados‑Membros diferentes são os «mesmos factos» para efeitos do artigo 54.° da CAAS.

 Apreciação

–       Os «mesmos factos»

27.      Conforme referimos nas nossas conclusões no processo Kretzinger (10), as questões levantadas pela primeira pergunta já foram solucionadas no acórdão Van Esbroeck (11), tal como foi confirmado por jurisprudência posterior (12). Resulta dessa jurisprudência que apenas a identidade dos factos materiais, entendida como «a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si» (13), é relevante para determinar se o artigo 54.° da CAAS tem aplicação. De acordo com o Tribunal de Justiça, essa apreciação implica «determinar se os factos materiais em causa constituem um conjunto de factos indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto» (14).

28.      Nesta base, concordamos com a maioria das partes que apresentaram observações no sentido de que a unidade do dolo subjacente aos factos materiais não é, em si mesma, suficiente para os classificar como «mesmos factos», nos termos do artigo 54.° da CAAS. Conforme referimos nas nossas conclusões no processo Kretzinger (15), o dolo único pode, efectivamente, ser um factor a ter em conta. Mas os factos também têm que estar ligados no tempo e no espaço.

29.      Como o Tribunal de Justiça também deixou claro no acórdão Van Esbroeck (16), compete aos tribunais nacionais determinar, com base nos factos apurados no caso concreto, se os factos em causa estão indissociavelmente ligados. Contudo, pode ser útil para o processo principal que o Tribunal de Justiça dê alguma orientação a esse respeito.

30.      A natureza sucinta do despacho de reenvio não torna essa tarefa particularmente simples. O tribunal de reenvio refere que, no processo principal, não ficou suficientemente provado se os capitais branqueados na Bélgica provinham do tráfico de narcóticos nos Países Baixos, pela recepção e posse de cujos proventos N. Kraaijenbrink foi condenada no tribunal neerlandês. Porém, quanto às conclusões dos tribunais de primeira instância belgas, N. Kraaijenbrink insiste que as operações de branqueamento de capitais nos Países Baixos e na Bélgica dizem respeito ao mesmo dinheiro, proveniente do mesmo tráfico ilícito.

31.      Em geral, o branqueamento de capitais envolve uma cadeia de transacções financeiras, destinadas a camuflar a origem ilícita do dinheiro e a repô‑lo em circulação como moeda legal. Habitualmente, o branqueamento de uma quantia em dinheiro é feito através de diversas transacções, algumas das quais podem incluir o câmbio de moeda em pequenas quantidades, em sítios distintos. Muitas vezes, a quantia resultante do branqueamento é inferior à quantia inicial e pode ser em moeda diferente.

32.      Estamos de acordo com a Comissão no sentido de que, se as operações de branqueamento de capitais na Bélgica disseram respeito a quantias em dinheiro indissociavelmente ligadas às quantias em dinheiro detidas nos Países Baixos, por cuja receptação ou detenção N. Kraaijenbrink foi condenada nesse país, essas operações integram o conceito de «mesmos factos» nos termos do artigo 54.° da CAAS. Será esse o caso, por exemplo, quando o dinheiro branqueado no segundo Estado‑Membro fizer parte dos proventos originais resultantes do tráfico ilícito de droga efectuado no primeiro Estado‑Membro, mas numa fase mais avançada da cadeia de branqueamento. A acrescentar à unidade do dolo que esses factos partilham, também estariam materialmente ligados no espaço e no tempo.

33.      Se, pelo contrário, o dinheiro «sujo» que N. Kraaijenbrink branqueou na Bélgica não estiver relacionado com o dinheiro «sujo» detido nos Países Baixos, esses factos não estão indissociavelmente ligados, apesar de ambos estarem relacionados com operações ilícitas de tráfico de droga e partilharem uma unidade de dolo, nomeadamente, o benefício financeiro de proventos com origem criminosa. Seria este o caso, por exemplo, se os proventos resultantes de crimes relacionados com tráfico de droga praticados em diferentes lugares e em diferentes épocas fossem receptados ou branqueados em épocas suficientemente diferentes para quebrar a ligação temporal.

34.      No processo Van Straaten (17), o tribunal de reenvio perguntou, no essencial, se duas situações de posse de heroína, em dois Estados‑Membros, constituíam «os mesmos factos» nos termos do artigo 54.° da CAAS, quando a primeira situação dissesse respeito a uma pequena parte de uma remessa maior de heroína de cuja posse o autor da infracção era acusado num segundo Estado‑Membro e quando os alegados cúmplices desses factos nos dois Estados‑Membros fossem pessoas diferentes.

35.      O Tribunal de Justiça considerou que, «no que respeita aos crimes relacionados com estupefacientes, não se exige que as quantidades de droga em causa nos dois Estados contratantes ou as pessoas que alegadamente participaram nos factos nos dois Estados sejam idênticas» para aplicação do artigo 54.° da CAAS (18). É, portanto, possível que, uma situação em que não existe essa identidade, envolva, não obstante, um conjunto de factos que, pela sua própria natureza, estão indissociavelmente ligados (19).

36.      Importa começar por salientar que a aplicação literal destas declarações a qualquer crime de tráfico de droga poderia acarretar resultados indesejáveis. Na nossa perspectiva, uma condenação por posse ou detenção de uma pequena quantidade de droga num Estado‑Membro não deveria impedir, automaticamente, outros processos‑crime por posse ou detenção de quantidades substancialmente maiores da mesma droga noutro Estado‑Membro, independentemente de fazer parte da mesma remessa (20). Parece‑nos melhor interpretar as declarações do acórdão Van Straaten que acabámos de citar como uma aplicação ad hoc da regra geral segundo a qual a completa identidade de factos materiais – neste caso, representada pela quantidade de droga e pela identidade dos cúmplices – não é um requisito de aplicação do artigo 54.° da CAAS. Ao invés, essas declarações atribuem ao tribunal nacional uma discricionariedade na determinação do que, perante as circunstâncias do caso, constitui os mesmos factos.

37.      Tendo em mente essas qualificações, o acórdão Van Straaten defende a perspectiva de que uma diferença entre as quantidades detidas nos Países Baixos e na Bélgica não impede, por si só, que os factos sejam considerados os mesmos para efeitos do artigo 54.° da CAAS. Porém, como já dissemos, essa «ligação indissociável» é uma questão a ser decidida pelo tribunal de reenvio, com base nos meios de prova disponíveis no processo principal.

38.      Por uma questão de rigor, resta acrescentar que, de acordo com o artigo 58.° da CAAS, os Estados‑Membros estão autorizados a aplicar, na lei nacional, uma interpretação mais ampla do princípio ne bis in idem. Consequentemente, não seria contrário ao artigo 54.° da CAAS interpretar o direito nacional no sentido de que os factos em questão devem ser tratados como os mesmos factos pelos quais N. Kraaijenbrink foi processada nos Países Baixos, em virtude de partilharem o mesmo dolo, embora não se baseiem nos mesmos factos materiais para efeitos do artigo 54.° da CAAS.

–       Artigo 71.° da CAAS e artigo 36.°, n.° 2, da Convenção Única

39.      No que diz respeito ao artigo 71.° da CAAS e ao artigo 36.°, n.° 2, da Convenção Única, a maioria das partes alegou que nenhum deles é relevante para efeitos da interpretação do artigo 54.° da CAAS. Estamos de acordo.

40.      É verdade que o artigo 36.°, n.° 2, da Convenção Única, a que se refere o artigo 71.° da CAAS, implica que as infracções que integram o seu âmbito, se cometidas em países diferentes, sejam consideradas infracções distintas. Porém, admitindo que o branqueamento de proventos resultantes do tráfico de drogas é uma infracção que integra o âmbito do artigo 36.°, n.° 2, da Convenção Única (21), o Tribunal de Justiça já declarou expressamente no acórdão Van Esbroeck que «o artigo 71.° da [CAAS] não contém nenhum elemento que limite o âmbito de aplicação do referido artigo 54.°» (22). Na perspectiva do Tribunal de Justiça, «daqui resulta que a referência feita no artigo 71.° da CAAS às convenções das Nações Unidas existentes não pode ser entendida como um obstáculo à aplicação do princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.° da CAAS, que impede apenas que uma pessoa seja objecto de diferentes acções penais devido aos mesmos factos, sem que isso leve a uma despenalização no espaço Schengen» (23).

41.      Na nossa perspectiva, essas declarações também se aplicam neste processo. O artigo 71.° da CAAS, que está redigido em termos muitos genéricos e impõe às partes contratantes uma obrigação geral de punir todas as infracções relacionadas com tráfico de droga, não prevê qualquer derrogação do princípio ne bis in idem nessa matéria, nem permite que uma infracção relacionada com droga seja punida duas vezes no contexto Schengen.

42.      No que diz respeito à Convenção Única, foi adoptada em 1961 por uma convenção intergovernamental e destinava‑se a ser aplicada a Estados soberanos independentes. A Comissão argumenta, na nossa opinião de forma convincente, que seria incongruente aplicar a Convenção Única ao espaço Schengen, o qual foi criado cerca de 30 anos depois e se destinava a alcançar uma maior integração no campo da cooperação policial e judicial entre as partes contratantes (24).

43.      Num espaço integrado dessa natureza, que se baseia no princípio de confiança mútua (25) e no qual medidas de combate ao tráfico de droga devem ser adoptadas progressivamente, mais a um nível supranacional do que nacional (26), a obrigação prevista no artigo 36.° da Convenção Única de considerar distintas as infracções cometidas em diferentes países perde a sua razão de ser. Na nossa perspectiva, a obrigação, prevista no artigo 71.° da CAAS, de as partes contratantes adoptarem as medidas necessárias para combater o tráfico de droga, de acordo com as convenções existentes das Nações Unidas, só se pode aplicar na medida em que essas convenções forem relevantes para os objectivos dos acordos de Schengen.

44.      Consequentemente, consideramos que a expressão «mesmos factos» dos artigos 54.° e 56.° da CAAS se refere à identidade material dos factos, entendida como um conjunto de circunstâncias concretas que estão indissociavelmente ligadas entre si no tempo e no espaço e pelo seu objecto. A existência de uma unidade do dolo pode ser relevante para aferir se esses critérios estão reunidos, mas não é, em si mesma, um critério. Esta interpretação não sai prejudicada pelo artigo 71.° da CAAS ou pelo artigo 36.°, n.° 2, da Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes.

 A segunda questão

45.      A segunda questão só se coloca na eventualidade de a primeira questão obter resposta (afirmativa) no sentido de que o dolo único é, por si só, uma condição suficiente para que as infracções sejam classificadas como «mesmos factos» nos termos do artigo 54.° da CAAS. Já referimos que entendemos não ser esse o caso. Não obstante, sugerimos uma análise resumida da segunda questão, para o caso de o Tribunal de Justiça decidir responder afirmativamente à primeira questão.

46.      A redacção da segunda questão é pouco precisa e dá azo a diversas interpretações. Tal como a lemos, é composta por duas partes.

47.      Na primeira parte, o tribunal de reenvio pretende saber se, admitindo que o conceito de «mesmos factos» do artigo 54.° da CAAS abrange factos diferentes, mas ligados pela mesma intenção criminal, essa noção pode ser alargada por forma a abranger outras infracções cometidas no mesmo período, que sejam acessórias ou complementares da infracção punida no primeiro julgamento, mas que se tenham tornado conhecidas ou em relação às quais o procedimento criminal tenha sido instaurado no segundo Estado‑Membro depois do primeiro julgamento, ou se o tribunal no segundo Estado‑Membro pode aplicar uma pena adicional a esses outros crimes.

48.      Neste último caso, o tribunal de reenvio pergunta, na segunda parte da sua questão, se, ao aplicar a pena de acordo com o seu direito nacional, o tribunal do segundo Estado‑Membro tem que tomar em consideração a pena já aplicada no primeiro Estado‑Membro.

49.      Na nossa perspectiva, a resposta à primeira parte desta questão tem que seguir o raciocínio que utilizamos na resposta à primeira questão. Aplicando o acórdão Van Esbroeck, se os factos na origem das infracções subsidiárias estiverem indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto aos factos subjacentes à condenação no primeiro Estado‑Membro, aplica‑se o artigo 54.° da CAAS, desde que todas as outras condições estejam verificadas (27). Se tal não acontecer, o tribunal nacional pode julgar o arguido pelas infracções acessórias, dado que os alegados factos não se incluem na noção de «mesmos factos» de acordo com aquela norma.

50.      A circunstância de os factos acessórios não serem conhecidos à época ou não terem sido considerados no decurso do processo no primeiro Estado‑Membro não põe em causa essa conclusão. Nada na jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao conceito de «mesmos factos» do artigo 54.° da CAAS refere que o seu âmbito está limitado aos factos que eram conhecidos à época relevante pela acusação ou pelo tribunal do julgamento no primeiro Estado‑Membro. Por consequência, nada impede o tribunal do segundo Estado‑Membro de entender que esses factos estão «indissociavelmente ligados» aos que foram objecto do procedimento anterior e, nessa medida, de os considerar como «mesmos factos».

51.      Pelo contrário, no acórdão Van Straaten (28), o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 54.° da CAAS não exige que todos os factos materiais levados em conta nos dois processos sejam idênticos. Nesse caso, circunstâncias que não tinham sido consideradas pelo tribunal no primeiro Estado‑Membro, mas foram consideradas pelo tribunal no segundo (29), não impediram o Tribunal de Justiça de entender que os factos em questão eram susceptíveis de constituir os mesmos factos de acordo com o artigo 54.° da CAAS.

52.      Idêntico raciocínio pode ser usado no presente processo. Factos acessórios ou adicionais dos factos principais que compõem o objecto do primeiro processo, mas que não foram em si mesmos considerados nesse processo, integram o conceito de «mesmos factos» para efeitos do artigo 54.° da CAAS se todos eles estiverem indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto. Se esse é o caso dos factos em questão, compete ao tribunal nacional decidir.

53.      Na segunda parte da questão pergunta‑se, no essencial, se o tribunal no qual corre o segundo processo tem que levar em conta as penas aplicadas no primeiro processo pelos mesmos factos, caso decida aplicar uma pena ao arguido relativamente aos factos acessórios ou adicionais.

54.      Obviamente, se os factos acessórios ou adicionais forem considerados os mesmos factos no sentido do artigo 54.° da CAAS e se todas as outras condições estiverem verificadas, o tribunal no qual corre o segundo processo está impedido de prosseguir a acusação e, por maioria de razão, de condenar o arguido.

55.      A situação será diferente se, não obstante os factos acessórios ou adicionais serem considerados os mesmos factos, as outras condições de aplicação do artigo 54.° da CAAS não estiverem preenchidas (30). Neste caso, a resposta à segunda parte da questão tem que ser encontrada à luz quer do princípio geral de compensação quer do artigo 56.° da CAAS. Salientamos que o artigo 56.° da CAAS determina que, se for intentada uma nova acção judicial por uma parte contratante contra uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um tribunal de outra parte contratante, seja descontado na sanção que venha a ser eventualmente imposta qualquer período de privação de liberdade cumprido no território desta última parte contratante por esses factos. Essa norma estabelece igualmente que, na medida em que as legislações nacionais o permitam, os Estados‑Membros devem ter em conta sanções diferentes das privativas de liberdade.

56.      Na audiência, a Comissão deixou claro que, na sua perspectiva, o artigo 56.° da CAAS reflectia um princípio geral de direito criminal, a saber, o princípio da proporcionalidade, que se aplica a todas as situações às quais o princípio ne bis in idem do artigo 54.° da CAAS não se aplique.

57.      Esse argumento foi veementemente contestado pelos Países Baixos. Estes alegaram que o princípio da compensação contido no artigo 56.° da CAAS se restringe aos casos em que se aplicam as derrogações ao artigo 55.°, n.° 1, da mesma CAAS. Em qualquer outro caso, a aplicabilidade desse princípio é uma questão de direito nacional. Aceitar o argumento da Comissão equivaleria a uma harmonização velada do direito penal nacional, iludindo as disposições da CAAS.

58.      Não vislumbramos qualquer nexo literal ou lógico entre os artigos 55.° e 56.° da CAAS que permita suportar essa interpretação. Fundamentalmente, concordamos com a perspectiva da Comissão no sentido de que existe um princípio geral de compensação (31) no direito da União Europeia de acordo com o qual as penas anteriores devem ser tidas em conta se o infractor for condenado num segundo processo pelos mesmos factos (32).

59.      Tanto quanto pudemos apurar, não só o direito penal de cada Estado‑Membro contém variantes desse princípio (33) como o próprio Tribunal de Justiça já reconheceu a sua existência no contexto da aplicação simultânea de sanções nacionais e comunitárias em direito da concorrência. No acórdão Wilhelm, o Tribunal de Justiça declarou que, «se a possibilidade de um processo duplo conduzir a um cúmulo de sanções [pelos mesmos factos], uma exigência geral de equidade [...] implica que sejam tomadas em conta todas as decisões condenatórias anteriores na determinação de uma eventual sanção» (34). Esta jurisprudência foi confirmada mais tarde no acórdão Boehringer Mannheim, em que o Tribunal de Justiça declarou que «a Comissão, ao fixar o valor da multa, tem a obrigação de tomar em conta sanções, que já teriam sido impostas à mesma empresa devido ao mesmo facto, quando se trata de sanções aplicadas por infracção ao direito das ententes de um Estado‑Membro e, consequentemente, praticadas no território comunitário» (35). O Tribunal de Primeira Instância seguiu fielmente esta jurisprudência (36).

60.      Embora a jurisprudência quanto a este ponto ainda não esteja assente (37), entendemos que o princípio da compensação pode ser interpretado como um princípio geral de direito penal em todos os Estados‑Membros e, extensivamente, como princípio geral de direito comunitário decorrente dos imperativos de equidade e do princípio da proporcionalidade em justiça penal (38).

61.      O princípio da compensação é, na nossa perspectiva, conceptualmente distinto do princípio ne bis in idem, não obstante ambos serem manifestações de imperativos gerais de equidade ou justiça nos procedimentos penais (39). Por definição, o princípio da compensação só é relevante quando o princípio ne bis in idem não é, por qualquer razão, aplicável, apesar de os factos que integram a base do processo serem os mesmos (40). De outro modo, o tribunal onde seja intentado o segundo processo penal tem que pôr‑lhe termo por violação do princípio ne bis in idem.

62.      Resulta do que antecede que o artigo 56.° da CAAS se limita a codificar o princípio da compensação para efeitos dos acordos de Schengen. Se estivermos certos, resultam duas consequências desta conclusão. Em primeiro lugar, para além do artigo 56.° da CAAS, o princípio da compensação continuaria a aplicar‑se como princípio geral do direito comunitário. Em segundo lugar, como princípio geral de direito, é superior ao artigo 56.° da CAAS na hierarquia das normas. Como resultado, o facto de a finalidade dessa norma se limitar às penas privativas da liberdade é suplantado pelo âmbito mais alargado de um princípio geral: todas as penas aplicadas e cumpridas pelos mesmos factos no primeiro Estado‑Membro devem ser tidas em conta no processo no segundo Estado‑Membro.

63.      Assim, exclusivamente no âmbito do direito comunitário, quando o princípio ne bis in idem não se aplica, os tribunais criminais nacionais estão obrigados, aquando da condenação, a ter em conta as penas que já tenham sido aplicadas e cumpridas (ou por qualquer outra forma satisfeitas) pelo arguido noutro Estado‑Membro pelos mesmos factos, quer envolvam privação da liberdade, quer não. Será esse o caso quando se aplique uma das derrogações previstas no artigo 55.° da CAAS mas também quando tenha sido proferida sentença no primeiro Estado‑Membro, mas não estejam preenchidas as condições previstas no artigo 54.° da CAAS (41).

64.      Apesar de o Tribunal de Justiça não aceitar a existência de um princípio geral de compensação, na nossa perspectiva é evidente que o artigo 56.° da CAAS se aplica em qualquer caso. Os Estados‑Membros que são parte do acordo de Schengen estão obrigados a descontar, em todas as penas privativas da liberdade aplicadas no contexto Schengen, qualquer período prévio de privação de liberdade cumprido pelo arguido noutro Estado‑Membro.

65.      A este respeito, discordamos da interpretação restritiva do artigo 56.° da CAAS feita pelo Governo neerlandês. Nada na redacção desta norma indica que a sua finalidade se limite aos casos em que o artigo 55.°, n.° 1, da CAAS se aplica. Pelo contrário, uma interpretação literal sugere claramente que se deve aplicar aos casos em que, por qualquer razão, seja intentada uma acção contra um arguido num Estado‑Membro, não obstante o facto de ter sido julgado pelos mesmos factos noutro Estado‑Membro (42).

66.      Obviamente que a análise que antecede se aplica quando o arguido está a ser julgado e condenado pelos mesmos factos segunda vez noutro Estado‑Membro e não possa invocar o artigo 54.° da CAAS. Se se concluir que os factos não são os mesmos, nenhuma obrigação resulta do artigo 56.° da CAAS nem, como dissemos, do princípio geral da compensação.

67.      Por uma questão de rigor, acrescentamos que o direito comunitário não impede o tribunal nacional, perante o qual o segundo processo é intentado, de aplicar regras nacionais mais generosas na condenação, em situações em que o artigo 54.° ou o artigo 56.° da CAAS – ou os princípios neles contidos – não se apliquem por os factos submetidos ao tribunal nacional não serem considerados os «mesmos factos» que os conhecidos pelo tribunal onde foi intentado o primeiro processo.

68.      Esta conclusão resulta dos princípios gerais de subsidiariedade e de atribuição de competências. Acresce que, como a Comissão salienta, os artigos 56.°, parte final, e 58.° da CAAS permitem, explicitamente, aos Estados‑Membros aplicar a lei nacional que contenha uma interpretação mais lata dos princípios ne bis in idem e da compensação no contexto do acervo de Schengen.

69.      Consequentemente, consideramos que o conceito de «mesmos factos» dos artigos 54.° e 56.° da CAAS abrange factos acessórios ou adicionais dos factos principais que constituem o objecto do processo no primeiro Estado‑Membro, mas que não foram, eles próprios, considerados nesse processo, se estiverem indissociavelmente ligados entre si no tempo, no espaço e pelo seu objecto. Nada no direito comunitário impede os Estados‑Membros de aplicarem a um infractor normas penais mais favoráveis do que as estabelecidas pelos artigos 54.° a 57.° da CAAS.

 Conclusão

70.      Em face das considerações que antecedem, propomos que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais colocadas pelo Hof van Cassatie da seguinte forma:

–        A expressão «mesmos factos» dos artigos 54.° e 56.° da CAAS refere‑se à identidade de factos materiais, entendida como um conjunto de circunstâncias concretas que estão indissociavelmente ligadas entre si no tempo, no espaço e pelo seu objecto. O artigo 71.° da CAAS ou o artigo 36.°, n.° 2, da Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes não prejudicam esta interpretação.

–        A existência de uma unidade do dolo pode ser relevante para aferir se esses três critérios estão reunidos, mas não é, em si mesma, um critério.

–        Os factos acessórios ou adicionais dos factos principais que constituem o objecto do processo no primeiro Estado‑Membro, mas que não foram, eles próprios, considerados nesse processo, integram o conceito de «mesmos factos» para efeitos dos artigos 54.° e 56.° da CAAS, se estiverem indissociavelmente ligados entre si no tempo, no espaço e pelo seu objecto.

–        Em qualquer caso, o direito comunitário não impede um Estado‑Membro de aplicar a um infractor normas penais mais favoráveis do que as estabelecidas pelos artigos 54.° a 57.° da CAAS.


1 – Língua original: inglês.


2 – JO 2000, L 239, p. 19.


3 – Anexado pelo Tratado de Amesterdão ao Tratado da União Europeia (TUE) e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia.


4 – JO 2000, L 239, p. 13.


5 – Artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo. O Tribunal de Justiça tem competência para interpretar as disposições da CAAS, nos termos do artigo 35.° do Tratado da União Europeia.


6 – Tradução nossa. No texto original pode ler‑se: «Lorsque un même fait constitue plusieurs infractions ou lorsque différentes infractions soumises simultanément au même juge du fond constituent la manifestation successive et continue de la même intention délictueuse, la peine la plus forte sera seule prononcée.


Lorsque le juge de fond constate que des infractions ayant antérieurement fait l'objet d'une décision définitive et d'autres faits dont il est saisi et qui, à les supposer établis, sont antérieurs à ladite décision et constituent avec les premières la manifestation successive et continue de la même intention délictueuse, il tient compte, pour la fixation de la peine, des peines déjà prononcées. Si celles‑ci lui paraissent suffire à une juste répression de l'ensemble des infractions, il se prononce sur la culpabilité et renvoie dans sa décision aux peines déjà prononcées. Le total des peines prononcées en application de cet article ne peut excéder le maximum de la peine la plus forte».


7 – No mesmo julgamento, N. Kraaijenbrink foi também condenada por violação intencional da lei neerlandesa dos estupefacientes, entre Outubro de 1994 e Fevereiro de 1997.


8 – Processo C‑288/05, pendente no Tribunal de Justiça, no qual também apresentamos as nossas conclusões hoje.


9 – Acórdão de 9 de Março de 2006 (C‑436/04, Colect., p. I‑2333).


10 – Já referido na nota 8, supra, n.os 35 a 37.


11 – Já referido na nota 8, supra. V., também, n.° 22 supra.


12 – V. acórdãos de 28 de Setembro de 2006, Van Straaten (C‑150/05, Colect., p. I‑0000) e Gasparini e o. (C‑467/04, Colect., p. I‑0000).


13 – N.° 36.


14 – N.° 38.


15 – N.° 39.


16 – N.° 38.


17 – Já referido na nota 12 supra.


18 – N.° 49.


19 – N.° 50.


20 – Aliás, temos dúvidas que a detenção de 50 g de heroína num Estado‑Membro e de 5 kg da mesma droga noutro Estado‑Membro devam automaticamente ser tratadas como o mesmo facto, ainda que os dois lotes façam parte da mesma remessa.


21 – A Comissão defende que não é esse o caso. Considerando a larga abrangência do artigo 36.°, n.° 2, da Convenção Única (v. n.° 11 supra), é difícil conceber como tal entendimento pode estar correcto.


22 – N.° 40.


23 – N.° 41.


24 – No mesmo sentido, v. conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Van Esbroeck, já referido na nota 9 supra, n.os 53 a 58.


25 – V. acórdão de 11 de Fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge (C‑187/01 e C‑385/01, Colect., p. I‑1345, n.os 32 e 33).


26 – V. artigos 70.° e 71.°, n.° 3, da CAAS, que obrigam as partes contratantes a incrementar os seus esforços no sentido da cooperação no combate ao tráfico ilícito de droga.


27 – Quanto às outras condições de aplicação do artigo 54.° da CAAS, nomeadamente, que o julgamento seja definitivo (a condição de «definitividade») e, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em execução ou já não possa ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida (a condição de «coação»), v. as nossas conclusões no processo Kretzinger, já referido na nota 8 supra, e no processo Gasparini e o., já referido na nota 12 supra.


28 – Já referido na nota 12 supra.


29 – Nomeadamente, a posse de mais 4 kg de heroína e a participação de outro cúmplice.


30 – V. nota 27 supra.


31 – Este princípio também é conhecido como princípio «taking into account» (v., por exemplo, Fletcher, M. – «Some developments to the ne bis in idem principle in the EU: Criminal proceedings against Hüssein Gözütok and Klaus Brügge» [2003] 66 Modern Law Review 769, nota 5) ou «accounting principle» (v. Vervaele, J. – «The transnational ne bis in idem principle in the EU: Mutual Recognition and equivalent protection of human rights» (2005), Utrecht Law Review, vol. I, tomo 2 (Dezembro), p. 100, em especial, pp. 106 e 107).


32 – Ao fazer esta afirmação, devemos deixar claro que entendemos e concordamos com a preocupação fundamental dos Países Baixos de que o direito penal não deve ser harmonizado pela porta das traseiras (v., neste sentido, nossas conclusões no processo Gasparini e o., referido na nota 12 supra). Como explicamos mais abaixo, parece‑nos que as origens, no direito comunitário, de um princípio geral de compensação resultam de imperativos de equidade que remontam a 1969 e ao acórdão do Tribunal de Justiça no processo Wilhelm (14/68, Colect. 1969‑1970, p. 1).


33 – V., também, n.os 64 a 70 das nossas conclusões no processo Kretzinger, já referido na nota 8.


34 – Já referido na nota 32 supra, n.° 11.


35 – Acórdão de 14 de Dezembro de 1972 (7/72, Colect., p. 447, n.° 3).


36 – V., por exemplo, acórdão de 9 de Julho de 2003, Archer Daniels Midland/Comissão (T‑224/00, Colect., p. II‑2597, n.° 87 e jurisprudência aí referida). V., também, acórdão de 27 de Setembro de 2006, Roquette Frères/Comissão (T‑322/01, Colect., p. II‑0000, n.os 279 a 292).


37 – Não obstante as referências feitas, em anterior jurisprudência, aos imperativos de «equidade», que, na nossa perspectiva, implicariam, necessariamente, que o princípio de compensação seja de aplicação universal, o Tribunal de Justiça tem sido relutante em aceitar explicitamente que esse princípio obrigue a Comissão a compensar uma sanção aplicada por um país terceiro, ao determinar uma sanção de acordo com as regras comunitárias de direito da concorrência. Em dois recentes processos objecto de recurso, o Tribunal de Justiça não confirmou nem negou a natureza universal do princípio de compensação, tendo resolvido os processos com base noutros fundamentos. V. acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, Archer Daniels Midland/Comissão (C‑397/03 P, Colect., p. I‑4429, n.° 52); idêntica abordagem foi feita pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 29 de Junho de 2006, no processo SGL Carbon/Comissão (C‑308/04 P, Colect., p. I‑5977, n.° 27). No n.° 33 desse acórdão, o Tribunal de Justiça parece, contudo, rejeitar implicitamente a natureza universal do princípio da compensação.


38 – Este princípio está incluído, como direito fundamental, no artigo II‑109, n.° 3, do projecto de Constituição da União Europeia, isto é, como parte integrante da Carta dos Direitos Fundamentais da União. Esta disposição, que tem a epígrafe «Princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas», prevê que «as penas não devem ser desproporcionadas em relação à infracção».


39 – No mesmo sentido, v. conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Van Straaten, referido na nota 12 supra, n.° 58. Essa é, também, a posição que o Tribunal de Justiça parece ter implicitamente seguido nos acórdãos SGL Carbon e Archer Daniels Midland, ambos referidos na nota 37 supra. A afinidade entre esses dois princípios também pode explicar a razão pela qual o artigo 56.° da CAAS está incluído, juntamente com o artigo 54.°, no capítulo 3 do título III da CAAS, sob a epígrafe «Aplicação do princípio ne bis in idem». Porém, conforme sugerimos na nota 29 das nossas conclusões no processo Kretzinger, isso não deve alterar a conclusão de que os mesmos constituem dois princípios autónomos do direito comunitário. V., também, de la Cuesta, J.‑L. – «Concurrent national and international criminal jurisdicition and the principle ne bis in idem – general Report [of the XVII International Congress of Penal Law]», International Review of Penal Law, vol. 73, 2002/3‑4, p. 707, em especial, pp. 717 e 724.


40 – V. n.° 63 infra.


41 – V. nossas conclusões no processo Kretzinger, já referido na nota 8 supra, n.° 72.


42 – V. n.° 63 supra.