CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

L. A. GEELHOED

apresentadas em 13 de Julho de 2006 1(1)

Processo C‑265/05

José Perez Naranjo

contra

Caisse régionale d’assurance maladie Nord‑Picardie

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (França) em 21 de Junho de 2005]

«Interpretação dos artigos 4.°, n.° 2A, 10.° A, 19.°, n.° 1, e 95.° B, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, alterado – Legislação nacional que faz a concessão do subsídio suplementar do Fonds national de solidarité depender da residência – Conceito de prestação especial de carácter não contributivo – Inscrição de uma prestação na lista do Anexo II‑A do Regulamento n.° 1408/71»





I –    Introdução

1.     No presente processo, é solicitado ao Tribunal de Justiça que interprete os artigos 4.°, n.° 2A, e 10.° A, em conjugação com o anexo IIA, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de Dezembro de 1996 (2) (a seguir «Regulamento n.° 1408/71»). Em especial, a Cour de Cassation pretende saber se o subsídio complementar do Fonds nationale de solidarité (Fundo nacional de solidariedade) mencionado no anexo II A do Regulamento n.° 1408/71 constitui uma prestação especial de carácter não contributivo referida no n.° 2 A do artigo 4.° deste regulamento.

II – Disposições aplicáveis

A –    Legislação comunitária

2.     O artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71 determina, na parte que releva para o presente processo:

«O presente regulamento aplica‑se a todas as legislações relativas aos ramos de segurança social que respeitam a:

[...]

c)      Prestações de velhice;

[...]»

3.     O artigo 4.°, n.° 2A, introduzido pelo Regulamento (CEE) n.° 1247/92 (3), tem o seguinte teor:

«O presente regulamento aplica‑se às prestações especiais de carácter não contributivo previstas numa legislação ou num regime que não sejam os referidos no n.° 1 ou que sejam excluídos a título do n.° 4, quando tais prestações se destinarem:

a)      Quer a abranger, a título supletivo, complementar ou acessório, as eventualidades correspondentes aos ramos referidos nas alíneas a) a h) do n.° 1;

b)      Quer exclusivamente a garantir a protecção específica dos deficientes.»

4.     O artigo 4.°, n.° 4 prevê, na parte que releva para o presente processo:

«O presente Regulamento não se aplica à assistência social e médica [...].»

5.     O artigo 10.°, n.° 1 que prescreve a supressão da residência, tem o seguinte teor:

«Salvo disposição contrária do presente Regulamento, as prestações pecuniárias de invalidez, velhice ou sobrevivência, as rendas por acidente de trabalho ou doença profissional e os subsídios por morte adquiridos ao abrigo da legislação de um ou de mais Estados‑Membros não podem sofrer qualquer redução, modificação suspensão, supressão ou confisco, pelo facto de o beneficiário residir no território de um Estado‑Membro que não seja aquele em que se encontra a instituição devedora.»

6.     O artigo 10.° A do Regulamento n.° 1408/71 (4) dispõe:

«Prestações especiais de carácter não contributivo

1.      Não obstante o disposto no artigo 10.º e no Título III, as pessoas a quem o presente Regulamento é aplicável beneficiam das prestações especiais pecuniárias de carácter não contributivo referidas no n.° 2A do artigo 4.º exclusivamente no território do Estado‑Membro em que residam e ao abrigo da legislação desse Estado, na medida em que tais prestações sejam mencionadas no Anexo II A. As prestações são pagas pela instituição do local de residência e ficam a cargo desta última.»

7.     O anexo II A, que foi aditado ao Regulamento com a inserção do artigo 4.°, n.° 2A, e do artigo 10.° A, intitula‑se: «Prestações especiais de carácter não contributivo (artigo 10.° A do Regulamento)». Neste anexo é mencionado no ponto «E. França», alínea a):

«O subsídio suplementar do Fundo Nacional de Solidariedade (lei de 30 de Junho de 1956).»

B –    Legislação nacional

8.     Em 1956, foi criado na França um Fonds national de solidarité (a seguir «FNS») com a finalidade de promover uma política geral destinada a oferecer uma maior protecção aos idosos, nomeadamente através da revalorização das pensões, reformas, rendas e prestações de velhice. Em 1 de Janeiro de 1994, o FNS converteu‑se no Fonds de solidarité vieillesse (a seguir «FSV»). Este fundo atribui subsídios complementares aos beneficiários de prestações de velhice ou de invalidez desprovidos de recursos suficientes.

9.     As condições de atribuição destes subsídios constam dos artigos L 815‑1 a 815‑11 do Code de la sécurité social (código da segurança social, a seguir «CSS»). De acordo com estas disposições, o subsídio complementar é atribuído independentemente de o requerente ter sido trabalhador por conta de outrem ou por conta própria. Trata‑se de uma prestação em complemento dos rendimentos, qualquer que seja a sua natureza, incluindo as prestações com base nas contribuições pagas, até ao nível minimamente necessário face ao custo de vida em França. O artigo L 815‑11 dispõe ainda que as pessoas que transfiram a sua residência para fora do território francês perdem o subsídio complementar (5).

III – Matéria de facto e tramitação processual

10.   O recorrente no processo principal, J. Perez Naranjo, nascido em 27 de Setembro de 1931, é cidadão espanhol e reside actualmente em Espanha. O recorrente trabalhou em França entre 1957 e 1964. É beneficiário de uma pensão de reforma por velhice, paga pelo regime francês, desde 1 de Novembro de 1991.

11.   O recorrente requereu que lhe fosse pago o subsídio complementar do Fonds nationale de solidarité, que lhe foi recusado por decisão de 5 de Agosto de 1999. O recorrente interpôs recurso desta decisão de indeferimento. A Cour d’appel negou provimento ao recurso de J. Perez Naranjo pelo facto de o subsídio suplementar controvertido constituir uma prestação especial de carácter não contributivo na acepção do artigo 10.° A do Regulamento n.° 1408/71, que não pode, de acordo com este artigo, ser atribuída a uma pessoa que resida habitualmente noutro Estado‑Membro que não seja a República Francesa.

12.   Posteriormente, o recorrente interpôs recurso na Cour de Cassation, que suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que o subsídio suplementar controvertido, que consta da lista do Anexo II‑A do Regulamento n.° 1408/71, reveste um carácter especial e não contributivo, não podendo assim, em aplicação dos artigos 10.° A e 95.° B do Regulamento n.° 1408/71, ser atribuído ao requerente não residente que, em 1 de Junho de 1992, não preenchia o requisito de idade exigido ou, pelo contrário, deve ser interpretado no sentido de que, constituindo esse subsídio uma prestação de segurança social, deve, nos termos do artigo 19.°, n.° 1 do mesmo regulamento, ser concedido ao interessado que preencha os requisitos de atribuição, independentemente do Estado‑Membro de residência?»

13.   Apresentaram observações escritas o recorrente, os Governos francês, espanhol, finlandês, italiano e do Reino Unido, assim como a Comissão. Os Governos francês, espanhol e do Reino Unido e a Comissão esclareceram a sua posição na audiência de 20 de Junho de 2006.

IV – Observações dos interessados

14.   O recorrente no processo principal alega que o subsídio complementar francês não constitui uma prestação especial de carácter não contributivo referida no n.° 2A do artigo 4.° do presente Regulamento, mas sim uma prestação de segurança social, uma vez que é concedida aos beneficiários, sem se proceder a qualquer apreciação individual e discricionária das necessidades pessoais. O recorrente entende ainda, no que é apoiado pelo Governo espanhol, que o subsídio complementar é indirectamente financiado por contribuições sociais. A prestação é paga pelo fundo de solidariedade de velhice que é financiado sobretudo pela contribuição social geral (contribution sociale généralisée – a seguir «CSG»). O subsídio complementar deve, por conseguinte, ser pago independentemente do local de residência do beneficiário.

15.   O Governo francês entende que a prestação em causa deve ser considerada uma prestação especial de carácter não contributivo na acepção do artigo 4.°, n.° 2A, e do artigo 10.° A do Regulamento.

16.   Segundo este Governo, o subsídio complementar é uma prestação especial porque apresenta características tanto de uma prestação de segurança social como de assistência social.

17.   Em primeiro lugar, a prestação está relacionada com a segurança social. Só é atribuída aos beneficiários de prestações de velhice que atinjam os 65 anos de idade, ou os 60 anos de idade no caso de invalidez. Está relacionada com a prestação de velhice referida no artigo 4.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, uma vez que é concedida em complemento da pensão de reforma. Além disso, o subsídio complementar é concedido aos beneficiários de uma ou mais prestações de velhice, com base num fundamento legalmente definido, a saber o artigo L 815‑2, sem se proceder a qualquer apreciação individual e discricionária das necessidades pessoais.

18.   Em segundo lugar, a prestação está relacionada com a assistência social. Destina‑se a assegurar um mínimo vital ao beneficiário de uma pensão insuficiente. O subsídio é pago às pessoas que atingiram a idade de reforma e cujo rendimento total se situe abaixo de um nível legalmente definido. As condições de concessão abstraem de qualquer exigência relativa ao cumprimento de períodos de actividade profissional ou de contribuição.

19.   O Governo francês entende ainda que a prestação em causa não tem carácter contributivo. Trata‑se de uma prestação de solidariedade financiada por receitas fiscais, que é paga através do FSV. As receitas fiscais são constituídas pela contribution sociale de solidarité à la charge des sociétés (6), pela CSG e por um tributo de 2%. O subsídio complementar é, por conseguinte, financiado exclusivamente pela tributação obrigatória destinada a cobrir a despesa pública.

20.   A Comissão e o Governo italiano manifestaram a mesma opinião que o Governo francês. A Comissão observa ainda que o subsídio complementar é pago pela caixa de previdência, que é posteriormente reembolsada pelo fundo de solidariedade de velhice. Por conseguinte, em última análise é o Fonds que suporta os encargos e não a caixa de previdência. Além disso, o modo de cálculo da prestação e as condições em que esta é atribuída não dependem do pagamento de qualquer prémio ou contribuição pelo beneficiário.

V –    Admissibilidade

21.   O Governo finlandês alegou, nas suas observações escritas, que há motivos para julgar inadmissível a questão prejudicial do órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que a decisão de reenvio não contém uma exposição do enquadramento jurídico das questões colocadas, mas apenas uma remissão para as disposições nacionais em causa. O Governo finlandês chama a atenção para o facto de as informações fornecidas nas decisões de reenvio não servirem apenas para permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis, mas também para dar aos Governos dos Estados‑Membros, bem como às demais partes interessadas, a possibilidade de apresentarem observações nos termos do artigo 20.° do Estatuto do Tribunal de Justiça (7).

22.   A observação do Governo finlandês de que o enquadramento jurídico foi exposto de forma muito sumária na decisão de reenvio, está correcta. O órgão jurisdicional de reenvio apenas refere o número dos artigos em causa. Em especial, não explica as condições nas quais o subsídio complementar é atribuído, não refere o objectivo da prestação e o modo como esta é financiada. Por este motivo, o Tribunal de Justiça solicitou ao órgão jurisdicional de reenvio informações complementares sobre a legislação francesa. Estas informações foram prestadas por carta de 10 de Maio de 2006, tendo as partes interessadas tido a oportunidade de reagir quanto ao seu conteúdo na audiência de 20 de Junho de 2006.

23.   Uma vez que os Governos dos Estados‑Membros e as outras partes interessadas tiveram a possibilidade de reagir às informações adicionais, ainda na audiência, parece‑me não haver motivo para julgar inadmissível a questão prejudicial.

VI – Apreciação jurídica

24.   No presente processo, coloca‑se a questão de saber se o subsídio complementar francês constitui uma prestação especial de carácter não contributivo referida no n.° 2A do artigo 4.° do presente Regulamento. Se a prestação controvertida for considerada uma prestação especial de carácter não contributivo, o direito ao subsídio complementar nos termos artigo 10.° A, n.° 1, do Regulamento poderá ser limitado às pessoas que têm a sua residência no Estado‑Membro, desde que estas prestações sejam mencionadas no anexo IIA do referido Regulamento. Se, em contrapartida, a prestação em causa no presente processo for considerada uma prestação de segurança social, aplicam‑se as regras gerais, ou seja, nos termos do artigo 10 do Regulamento n.° 1408/71, o requisito de residência não se aplica às prestações.

25.   A aplicabilidade do artigo 10.° A depende da questão de saber se a prestação controvertida pode ser considerada uma prestação especial de carácter não contributivo na acepção do artigo 4.°, n.° 2A. Para saber quais as características deste tipo de prestação, importa, em primeiro lugar, analisar o Regulamento n.° 1247/92, que introduziu no Regulamento tanto os artigos 4.°, n.° 2A, e 10.°A como o anexo IIA. O terceiro e quarto considerandos apresentam os antecedentes e os objectivos do Regulamento. Têm o seguinte teor:

«Considerando que é também necessário atender à jurisprudência do Tribunal de Justiça, de acordo com a qual algumas prestações previstas pelas legislações nacionais podem estar simultaneamente abrangidas pela segurança social e pela assistência social, em virtude do seu âmbito de aplicação pessoal, dos seus objectivos e das suas modalidades de execução;

Considerando que o Tribunal de Justiça declarou que, por alguma das suas características, as legislações por força das quais tais prestações são concedidas se aparentam à assistência social, na medida em que a necessidade constitui um critério essencial de aplicação, e em que as condições de concessão abstraem de qualquer exigência relativa à acumulação de períodos de actividade profissional ou de contribuição, aproximando‑se, no entanto, por algumas das suas características, da segurança social, na medida em que há ausência de poder discricionário na forma como tais prestações, tal como estão previstas, são concedidas e na medida em que conferem aos beneficiários uma posição legalmente definida.»

26.   Resulta do preâmbulo do Regulamento n.° 1247/92 que as alterações introduzidas por este regulamento são largamente inspiradas na jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual algumas prestações previstas pelas legislações nacionais podem estar simultaneamente abrangidas pela segurança social (dentro do âmbito de aplicação do Regulamento, por força do seu artigo 4.°, n.° 1) e pela assistência social (fora do âmbito de aplicação do Regulamento, por força do seu artigo 4.°, n.° 4), em virtude do seu âmbito de aplicação pessoal, dos seus objectivos e das suas modalidades de execução. Trata‑se, assim, de uma prestação «mista» ou «híbrida».

27.   Um dos primeiros processos onde o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre prestações mistas foi o processo que deu origem ao acórdão Giletti, de 1987, em que o Tribunal de Justiça analisou a questão de saber se o subsídio complementar francês às pensões de velhice, invalidez e viuvez estava abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1408/71 (8). Neste processo, o Tribunal de Justiça decidiu que a prestação do Fonds national de solidarité – que, por um lado, garante um mínimo de meios de subsistência às pessoas necessitadas e, por outro, assegura um rendimento complementar aos beneficiários de prestações de segurança social insuficientes – se enquadra no âmbito da segurança social, na acepção do Regulamento.

28.   A referida decisão dizia respeito ao subsídio complementar francês às pensões de velhice, invalidez e viuvez – também em causa no presente processo. De resto, este subsídio voltou a ser central numa acção por incumprimento posterior contra a República Francesa (9) que tinha por objecto a manutenção de uma cláusula de residência no âmbito da concessão de um subsídio suplementar francês, destinado a garantir o mínimo de meios de existência na França. Neste acórdão, o Tribunal de Justiça baseou‑se no acórdão Giletti (10) e condenou a França.

29.   Também na sequência destes acórdãos, o Regulamento n.° 1408/71 foi alterado pelo Regulamento n.° 1247/92, que incluiu expressamente as prestações especiais de carácter não contributivo no âmbito de aplicação do Regulamento. Contudo, devido à relação que estas prestações têm com a assistência social, elas são excluídas da regra geral de que as prestações de segurança social são exportáveis.

30.   Conforme já referido no n.° 25, a excepção à exportabilidade das prestações de segurança social só pode aplicar‑se se estiver em causa uma prestação que cumpra as condições do artigo 4.°, n.° 2A, do Regulamento n.° 1408/71, a saber, as prestações devem ser especiais, ser de carácter não contributivo e constar do anexo IIA do presente Regulamento.

31.   Segundo a jurisprudência, uma prestação especial na acepção do artigo 4.°, n.° 2A, do Regulamento n.° 1408/71: «define‑se pela sua finalidade. Deve substituir ou complementar uma prestação de segurança social e apresentar as características de um auxílio social justificado por razões económicas e sociais e decidido por uma regulamentação que fixa critérios objectivos» (11). Uma prestação tem carácter não contributivo se for financiada exclusivamente pela tributação obrigatória destinada a cobrir a despesa pública. O critério determinante na matéria é o do financiamento real da prestação. O Tribunal de Justiça averigua se o financiamento é assegurado directa ou indirectamente por contribuições sociais ou por recursos públicos (12).

32.   Entre as prestações que, após a adopção do Regulamento n.° 1247/92, o Tribunal de Justiça considerou prestações especiais de carácter não contributivo, incluem‑se um subsídio de subsistência para deficientes (13), um subsídio de auxílio para deficientes (14), auxílio ao rendimento (15) e um subsídio compensatório para trabalhadores por conta própria reformados (16). Entre as prestações que o Tribunal de Justiça não reconheceu como prestações especiais de carácter não contributivo, incluem‑se um subsídio de maternidade luxemburguês (17) e um subsídio de assistência austríaco (18).

33.   O subsídio complementar em questão no presente processo consta da lista de prestações especiais de carácter não contributivo na acepção do artigo 4.°, n.° 2A, do Regulamento n.° 1408/71, estabelecida no anexo IIA deste Regulamento.

34.   No caso em apreço não é contestado que o subsídio complementar francês está relacionado com a segurança social. A prestação é atribuída com a finalidade de aumentar as pensões de reforma da segurança social. Está relacionada com a prestação de velhice referida no artigo 4.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71. A prestação confere ainda ao beneficiário uma posição legalmente definida, não dispondo os organismos de segurança social competentes para julgar da sua atribuição de qualquer margem de apreciação discricionária das necessidades ou situações pessoais. Se se verificarem as condições, o interessado tem direito a receber o subsídio complementar.

35.   No entanto, as partes envolvidas têm entendimentos diferentes quanto à questão de saber se o subsídio complementar francês está relacionado com a assistência social. Com excepção do recorrente, todas as partes entendem que sim. O recorrente contesta este entendimento, mas não alegou argumentos em apoio desta posição.

36.   Ao contrário do recorrente, entendo que o subsídio complementar apresenta características de uma medida de assistência social. Visa assegurar um mínimo vital ao beneficiário, no caso de pensão insuficiente. O subsídio é pago às pessoas que atingiram a idade de reforma e cujo rendimento total se situe abaixo de um nível legalmente definido. As condições de concessão abstraem de qualquer exigência relativa ao cumprimento de períodos de actividade profissional ou de contribuição.

37.   Resulta do exposto que o subsídio complementar francês tem uma natureza mista e deve ser considerado uma prestação especial.

38.   Importa averiguar se o subsídio complementar francês é uma prestação de carácter não contributivo.

39.   Refira‑se, preliminarmente, que resulta dos documentos adicionais e das observações apresentadas pelo Governo francês, que o subsídio complementar às pensões de velhice, viuvez e de invalidez é pago em França pelo FSV, por intermédio da Caixa de Previdência e que, deste modo, o subsídio complementar é indirectamente financiado a partir de três fontes. Em primeiro lugar, o financiamento é assegurado pela contribution sociale de solidarité à la charge des sociétés, que se baseia no imposto sobre o volume de negócios das empresas sujeitas a imposto. Em segundo lugar, abrange um tributo de 2% cobrado sobre os rendimentos do património e sobre os rendimentos de capitais das pessoas singulares que têm a sua residência fiscal em França. A terceira fonte de rendimento é constituída pela CSG, a qual é devida sobre os rendimentos do património, sobre os rendimentos de capitais e sobre os montantes apostados ou ganhos em jogos de azar, bem como sobre os rendimentos de actividade e de substituição.

40.   O recorrente no processo principal entende que o subsídio complementar deve ser considerado uma prestação de carácter contributivo, uma vez que indirectamente também é financiado pela CSG. O recorrente refere em seu apoio o acórdão Comissão/França, que dizia respeito à CSG (19).

41.   Neste processo, a Comissão instaurou uma acção por incumprimento devido à aplicação da CSG aos rendimentos da actividade e de substituição dos trabalhadores por conta de outrem e por conta própria que residem em França, mas que não são abrangidos pela legislação francesa de segurança social. O Tribunal de Justiça decidiu que a CSG, ao contrário dos tributos destinados a fazer face aos encargos gerais dos poderes públicos, está específica e directamente afectada ao financiamento da segurança social em França, revertendo as correspondentes receitas a favor da Caisse nationale des allocations familiales, do Fonds de solidarité vieillesse e dos regimes obrigatórios de seguro de doença. De acordo com o Tribunal de Justiça, «[o] objectivo da CSG é, pois, financiar mais especificamente os ramos das prestações de velhice, de sobrevivência, de doença e as prestações familiares a que se refere o artigo 4.º do Regulamento n.° 1408/71».

42.   De acordo com o Governo francês, o Tribunal de Justiça não se pronunciou, no referido acórdão, sobre a questão de saber se a CSG deve ou não ser qualificada como imposto (20). O Tribunal de Justiça apenas decidiu que a CSG apresenta um nexo directo e suficientemente relevante com as leis que regem os ramos de segurança social enumerados no artigo 4.° do Regulamento n.° 1408/71, de modo que pode ser tida como um tributo a que se aplica a proibição de dupla quotização.

43.   Conforme observou correctamente o Governo francês, na sua análise sobre a eventual existência de uma violação do artigo 13.° do Regulamento, no acórdão Comissão/França, o Tribunal de Justiça não averiguou se a imposição em causa devia ser considerada «imposto» ou «contribuição».

44.   Entendo que a CSG não pode ser considerada um prémio ou uma contribuição para o subsídio complementar francês. Os devedores da CSG não têm, nomeadamente, qualquer direito a uma prestação de segurança social em contrapartida dessa contribuição, ao passo que todos os residentes em França, independentemente de exercerem uma actividade profissional, poderão, em função do local da sua residência, beneficiar das prestações sociais financiadas com a CSG que se enquadram no âmbito da solidariedade nacional, a saber as prestações do FSV. Por conseguinte, o pagamento da CSG não dá direito a qualquer contrapartida directa e identificável sob a forma de prestações.

45.   Daqui resulta que o subsídio complementar francês deve ser considerado uma prestação especial de carácter não contributivo na acepção do artigo 4.°, n.° 2A, do Regulamento n.° 1408/71.

46.   A título supletivo, analisarei ainda a alegação da Comissão de que o recorrente poderá eventualmente ter direitos com base nas disposições transitórias contidas no artigo 95.° B, do Regulamento n.° 1408/71 (21).

47.   O artigo 95.° B, n.° 9 dispõe que a aplicação do artigo 1.° do Regulamento (CEE) n.° 1247/92 não pode ter por efeito a rejeição do pedido de uma prestação especial de carácter não contributivo, concedida a título de complemento de uma pensão, apresentado pelo interessado que, antes de 1 de Junho de 1992, preenchesse as condições de concessão da referida prestação, ainda que resida no território de um Estado‑Membro que não seja o Estado competente, desde que o pedido de prestação seja apresentado no prazo de cinco anos a contar de 1 de Junho de 1992.

48.   Resulta da decisão de reenvio que o pedido de subsídio complementar apresentado pelo recorrente foi indeferido porque, em 1 de Junho de 1992, o recorrente não satisfazia o requisito da idade estabelecido pelos artigos L 815‑2 e R 815‑2 do CSS, então aplicáveis. O subsídio complementar é atribuído aos beneficiários de prestações de velhice que atinjam os 65 anos de idade ou os 60 anos de idade no caso de invalidez. O recorrente beneficia desde 1 de Novembro de 1991 de uma pensão de velhice francesa do regime geral e não por incapacidade para o trabalho, aplicando‑se, por conseguinte, o limite de idade de 65 anos.

49.   A Comissão entende que, no caso concreto, deveria ter sido aplicado o limite de idade de 60 anos, em vez de 65 anos. Resulta dos documentos dos autos que o recorrente possui um relatório médico espanhol, segundo o qual o recorrente sofre de incapacidade para o trabalho desde 1991, relatório este que não terá sido reconhecido pelo órgão jurisdicional nacional como um documento válido. A aplicar‑se um limite de idade de 60 anos, o recorrente poderia invocar o artigo 95.° B, n.° 9, do Regulamento n.° 1408/71, uma vez que cumpre as condições de concessão do subsídio complementar, nomeadamente a de ter atingido os 60 anos antes de 1 de Junho de 1992.

50.   Há que recordar a título preliminar que, segundo jurisprudência assente, no âmbito da repartição das funções jurisdicionais entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, o juiz nacional, que é o único a ter um conhecimento directo dos factos da causa, assim como dos argumentos invocados pelas partes, e que deverá assumir a responsabilidade pela decisão judicial a proferir, está melhor colocado para apreciar, com pleno conhecimento de causa, a pertinência das questões de direito suscitadas no litígio que é chamado a decidir e a necessidade de uma decisão a título prejudicial, para poder proferir a sua decisão. Todavia, mantém‑se no âmbito dos poderes do Tribunal de Justiça, perante questões eventualmente formuladas de maneira inadequada ou que ultrapassem as funções que lhe são atribuídas pelo artigo 234.º CE, extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, nomeadamente da fundamentação do acto de reenvio, os elementos de direito comunitário que requerem uma interpretação, tendo em conta o objecto do litígio (22).

51.   Assim, o Tribunal de Justiça, com vista a fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional que lhe apresentou a questão prejudicial, pode ser levado a tomar em consideração disposições do direito comunitário, às quais o órgão jurisdicional nacional não fez referência no enunciado da sua questão. Em contrapartida, é ao órgão jurisdicional nacional que incumbe decidir se a norma comunitária, tal como foi interpretada pelo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 234.° CE, se aplica ou não ao caso submetido à sua apreciação (23).

52.   Tal como observou correctamente a Comissão, o recorrente pode eventualmente invocar o artigo 95.° B do Regulamento n.° 1408/71 e o artigo 51.°, n.° 1, alíneas b) e f), do Regulamento n.° 574/72 do Conselho, de 21 de Março de 1972, que estabelece as modalidades de aplicação do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e suas famílias que se deslocam no interior da Comunidade (24). Esta última disposição tem o seguinte teor:

«Quando um beneficiário, nomeadamente:

[...]

b)      De prestações de velhice concedidas em caso de inaptidão para o trabalho,

[...]

f)      De prestações concedidas com a condição de os rendimentos do beneficiário não excederem um limite prescrito,

tenha estada ou residência no território de um Estado‑Membro que não seja aquele em que se encontra a instituição devedora, o controlo administrativo e médico será efectuado, a pedido desta instituição, pela instituição do lugar de estada ou de residência do beneficiário segundo as modalidades previstas na legislação aplicada por esta última instituição. Todavia, a instituição devedora mantém a faculdade de mandar proceder ao controlo do beneficiário por um médico da sua escolha.»

53.   Além disso, no acórdão Dafeki, o Tribunal de Justiça decidiu que «nos processos que têm por objecto determinar os direitos a prestações sociais por parte de um trabalhador migrante nacional comunitário, as instituições nacionais competentes em matéria de segurança social e os órgãos jurisdicionais nacionais de um Estado‑Membro são obrigados a respeitar as certidões e documentos análogos relativos ao estado civil das pessoas provenientes das autoridades competentes dos outros Estados‑Membros, a menos que a respectiva veracidade seja seriamente afectada por indícios concretos relativos ao caso individual em questão» (25).

54.   Resulta do exposto que um órgão jurisdicional nacional é obrigado a respeitar os documentos relativos ao início e à duração da incapacidade laboral provenientes das autoridades competentes dos outros Estados‑Membros.

55.   Cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar se o artigo 95.° B, n.° 9, do Regulamento n.° 1408/71, conjugado com o artigo 51.° do Regulamento n.° 574/72, são ou não aplicáveis ao caso que lhe foi submetido.

VII – Conclusão

56.   Proponho que seja dada a seguinte resposta à questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio:

«As disposições do artigo 10.°A do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade e do anexo IIA deste Regulamento, devem ser interpretadas no sentido de que o subsídio complementar previsto no Code de la sécurité sociale (código da segurança social) constitui uma prestação especial de carácter não contributivo na acepção do artigo 4.°, n.° 2A, do referido Regulamento.»


1 – Língua original: neerlandês.


2 – JO 1997, L 28, p. 1.


3Regulamento (CEE) do Conselho, de 30 de Abril de 1992, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1408/71, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros das suas famílias que se desloquem no interior da Comunidade (JO L 136, p. 1).


4 – Introduzido pelo Regulamento n.° 1247/92, referido na nota 3.


5 – V. também o relatório para audiência no processo Giletti (379/85, 380/85, 381/85 e 93/86, acórdão de 24 de Fevereiro de 1987, Colect., p. 955), e o acórdão de 12 de Julho de 1990, Comissão/França (236/88, Colect., p. I‑3163).


6 – Contribuição social de solidariedade a cargo das empresas.


7 – Decisão de 2 de Março de 1999, Colonia Versicherung e o. (C‑422/98, Colect. p. I‑1279, n.° 5).


8 – Referido na nota 5, n.° 11.


9 – Acórdão de 12 de Julho de 1990, Comissão/França (C‑236/88, Colect., p. 3163, n.° 6)


10 – O Tribunal de Justiça baseou‑se igualmente no acórdão Biason. Nesta decisão, estava em causa um subsídio suplementar, pago em acréscimo à pensão de invalidez, cujo benefício tinha sido retirado à recorrente no processo principal por esta ter transferido a sua residência para um outro Estado‑Membro. De acordo com o Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros não podem, nos termos do artigo 10.° do Regulamento n.° 1408/71, subordinar a concessão de certas prestações (designadamente, as prestações de velhice e de invalidez) à condição de o beneficiário residir no território do Estado‑Membro que concede a prestação. Acórdão de 9 de Outubro de 1974 (24/74, Recueil, p. 999, Colect., p. 451).


11 – V., nomeadamente, acórdão de 29 de Abril de 2004, Skalka (C‑160/02, Colect., p. I‑5613, n.° 25).


12 – V., nomeadamente, acórdão Skalka, já referido, n.° 28.


13 – Acórdão de 4 de Novembro de 1997, Snares (C‑20/96, Colect., p. I‑6057).


14 – Acórdão de 11 de Junho de 1998, Partridge (C‑297/96, Colect., p. I‑3467).


15 – Acórdão de 25 de Fevereiro de 1999, Swaddling (C‑90/97, Colect., p. I‑1075).


16 – Acórdão Skalka (referido na nota 12).


17 – Acórdão de 31 de Maio de 2001, Leclere e o. (C‑43/99, Colect., p. I‑4265).


18 – Acórdão de 8 de Março de 2001, Jauch (C‑215/99, Colect., p. I‑1901).


19 – Acórdão de 15 de Fevereiro de 2000, Comissão/França (C‑169/98, Colect., p. I‑1049).


20 – Acórdão Comissão/França (C‑169/98, já referido, n.° 32).


21 – Na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) N.° 3095/95 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1995, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1408/71, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros das suas famílias que se desloquem no interior da Comunidade, do Regulamento (CEE) n.° 574/72 que estabelece as modalidades de aplicação do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, do Regulamento (CEE) n.° 1247/92 que altera o Regulamento (CEE) n.° 1408/71 e do Regulamento (CEE) n.° 1945/93 que altera o Regulamento (CEE) n.° 1247/92, JO L 335, p. 1.


22 – V., nomeadamente, acórdão de 29 de Novembro de 1978, Pigs Marketing Board (83/78, Colect., p. 825, n.os 25 e 26), e acórdão de 22 de Junho de 2000, Marca Mode (C‑425/98, Colect., p. I‑4861, n.° 21).


23 – V., nomeadamente, acórdão de 20 de Março de 1986, Tissier (35/85, Colect., p. 1207, n.° 9).


24 – JO L 74, p. 1; EE 05 F1 p. 156.


25 – Acórdão de 2 de Dezembro de 1997 (C‑336/94, Colect., p. I‑6761, n.° 21).