CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PHILIPPE LÉGER

apresentadas em 15 de Junho de 2006 1(1)

Processo C‑72/05

Hausgemeinschaft Jörg und Stefanie Wollny

contra

Finanzamt Landshut

[pedido de decisão prejudicial apresentado por Finanzgericht München (Alemanha)]

«Sexta Directiva IVA – Artigo 6.°, n.° 2, alínea a) – Artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c) – Utilização pelo sujeito passivo, para os seus fins privados, de parte de um edifício afecto na totalidade à sua empresa – Equiparação dessa utilização para fins privados a uma prestação de serviços a título oneroso – Determinação da base tributável – Conceito de ‘montante das despesas’ suportadas pelo sujeito passivo na execução dessa prestação de serviços»





1.     O presente processo de reenvio prejudicial tem por objecto a obtenção de esclarecimentos quanto à base tributável do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) devido por um sujeito passivo pela utilização, para fins privados, de parte de um imóvel afecto na totalidade à sua empresa.

2.     Quando um sujeito passivo adquire ou manda construir um imóvel, que opta por afectar na totalidade à sua empresa, mas que pretende utilizar parcialmente para os seus fins privados, tem direito a deduzir integralmente o IVA que pagou a montante sobre o custo dessa aquisição ou construção.

3.     Todavia, quanto à parte desse imóvel utilizada para os seus fins privados, o sujeito passivo encontra‑se numa situação comparável à da de um consumidor final. A Sexta Directiva 77/388/CEE (2) estabelece, neste caso, um mecanismo de recuperação da parte do IVA correspondente e cuja dedução o sujeito passivo obteve.

4.     Para este efeito, a Sexta Directiva criou uma ficção jurídica por força da qual esta utilização privada é equiparada a uma prestação de serviços a título oneroso que o sujeito passivo efectua a si próprio.

5.     No presente processo, o Tribunal de Justiça é convidado a esclarecer qual é a base tributável do IVA para essa prestação de serviços. O Finanzgericht München (Alemanha) pergunta se essa base tributável deve ser determinada unicamente por referência às regras gerais de amortização que reflectem a depreciação progressiva do imóvel ou se pode sê‑lo em função do período de «ajustamento das deduções» em matéria de IVA.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito comunitário

1.      Sexta Directiva

6.     O IVA é um imposto sobre o consumo que se destina a ser aplicado de um modo geral aos bens e aos serviços. O sistema comunitário do IVA consiste em aplicar aos bens e aos serviços um imposto exactamente proporcional ao preço desses bens e desses serviços, exigível em cada transacção ocorrida no âmbito do circuito de produção ou distribuição, mas que só deve onerar o consumidor final.

7.     Para permitir aos sujeito passivos que asseguram a cobrança do imposto não suportar o seu peso, a Sexta Directiva prevê um mecanismo de dedução destinado a assegurar a «neutralidade» do imposto no que lhes diz respeito.

8.     A Sexta Directiva inclui também diversas disposições que se destinam a garantir a aplicação desse sistema quando o sujeito passivo utiliza o mesmo bem simultaneamente para fins profissionais e para os seus fins privados. As disposições mais relevantes para a solução do litígio no processo principal são as seguintes.

9.     O artigo 2.°, n.° 1, da Sexta Directiva, sujeita a IVA «[a]s entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade».

10.   O artigo 6.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), da referida directiva equipara a uma prestação de serviços a título oneroso «[a] utilização de bens afectos à empresa para uso privado do sujeito passivo ou do seu pessoal ou, em geral, para fins estranhos à própria empresa, sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado».

11.   O artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da mesma directiva, que se encontra no centro do presente litígio, precisa qual é a base tributável nesse caso concreto. Dispõe que esta é constituída, «[n]o caso de operações referidas no n.° 2 do artigo 6.°, pelo montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços».

12.   O artigo 17.°, n.° 2, dessa directiva prevê:

«Desde que os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis, o sujeito passivo está autorizado a deduzir do imposto de que é devedor:

a)      O imposto sobre o valor acrescentado devido ou pago no território do país em relação a bens que lhe sejam ou venham a ser entregues e em relação a serviços que lhe sejam ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

[…]»

13.   O artigo 20.° da Sexta Directiva regula o ajustamento das deduções. Este artigo prevê que a dedução do IVA operada inicialmente é ajustada designadamente, por um lado, quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito e, por outro, quando, posteriormente à declaração, se verificarem alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do seu montante.

14.   Este artigo 20.° dispõe também:

«[…]

2.      No que diz respeito aos bens de investimento, o ajustamento deve repartir‑se por um período de cinco anos, incluindo o ano em que os bens tenham sido adquiridos ou produzidos. Anualmente, esse ajustamento é efectuado apenas sobre a quinta parte do imposto que incidiu sobre os bens em questão. Tal ajustamento é realizado em função das alterações do direito à dedução verificadas durante os anos seguintes, em relação ao direito à dedução do ano em que os bens em questão foram adquiridos ou produzidos.

Em derrogação do disposto no parágrafo anterior, os Estados‑Membros podem tomar como base, no momento do ajustamento, um período de cinco anos completos a contar do início da utilização dos bens em questão.

No que se refere aos bens de investimento imobiliário, o período que serve de base ao cálculo dos ajustamentos pode ser aumentado até vinte anos.

3.      No caso de entrega durante o período de ajustamento, os bens de investimento são considerados afectos a uma actividade económica do sujeito passivo até ao termo do período de ajustamento. Presume‑se que esta actividade económica é inteiramente tributada nos casos em que a entrega dos referidos bens é tributada; presume‑se que é totalmente isenta nos casos em que a entrega se encontra isenta. O ajustamento efectua‑se uma única vez relativamente a todo o restante período de ajustamento. […]»

B –    Direito nacional

15.   O § 3, n.° 9a, ponto 1, da Lei relativa ao imposto sobre o volume de negócios (Umsatzsteuergesetz) (3) equipara às prestações efectuadas a título oneroso a utilização, por um sujeito passivo, de bens afectos à empresa para fins alheios a esta, sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto pago a montante.

16.   A base tributável das prestações referidas nesse § 3, n.° 9a, ponto 1, é definida no § 10 da UStG. Na redacção em vigor até 30 de Junho de 2004, o referido § 10 dispunha que a base tributável dessas operações era constituída pelas «despesas resultantes da realização destas operações, desde que confiram direito a uma dedução total ou parcial do imposto pago a montante».

17.   O § 10 da UStG, na redacção que entrou em vigor em 1 de Julho de 2004, prevê:

(4)      A base tributável é constituída:

[...]

2.      [...] pelas despesas resultantes da realização destas operações, desde que confiram direito a uma dedução total ou parcial do imposto; as despesas de aquisição ou de fabrico de um bem estão também compreendidas nestas despesas, desde que o bem esteja afecto à empresa e seja utilizado para a realização das outras prestações. Se as despesas de aquisição ou de fabrico ascenderem a um mínimo de 500 EUR, devem ser proporcionalmente distribuídas por um período correspondente ao período de ajustamento aplicável ao bem nos termos do § 15a;

[…]»

18.   O § 15a da UStG regula o ajustamento das deduções. Enuncia no seu n.° 1:

«Se, em relação a um bem, se modificarem, no prazo de cinco anos a contar da primeira utilização, as condições relevantes para a dedução inicial do imposto pago a montante, deve proceder‑se a uma compensação em relação a cada ano afectado pela modificação, através de um ajustamento da dedução do imposto pago a montante correspondente às despesas de aquisição ou de fabrico. No caso de bens imóveis, incluindo as suas partes essenciais, de direitos a que se apliquem as disposições do direito civil relativas aos bens imóveis e de edifícios construídos sobre solo alheio, o prazo de cinco anos é substituído pelo prazo de dez anos.»

II – Factos

19.   Durante o ano de 2003, a comunhão doméstica de direito alemão (Hausgemeinschaft (4), a seguir «comunhão doméstica» ou «recorrente»), constituída por Jörg e Stefanie Wollny, mandou construir um imóvel que afectou na totalidade à empresa. Este imóvel é ocupado, na proporção de 20,33%, pelos escritórios de uma empresa de consultadoria fiscal, dados de arrendamento a um dos membros da comunhão e, nos 79,67% restantes, pela habitação privada dos dois membros desta. A locação para uso profissional está sujeita a IVA, uma vez que a comunhão doméstica renunciou à isenção das operações de locação (5).

20.   Nas suas declarações periódicas de IVA de Dezembro de 2003 e de Janeiro a Março de 2004, a comunhão doméstica deduziu a totalidade do montante do IVA que lhe tinha facturado sobre as despesas de construção do imóvel.

21.   Para determinar a base tributável do IVA devido pela ocupação para fins privados, a comunhão doméstica baseou‑se no facto de, na legislação alemã relativa ao imposto sobre o rendimento (Einkommensteuergesetz), o período de amortização de um imóvel ser de cinquenta anos. Assim, entendeu que essa base tributável ascendia a um montante mensal igual a 1/12 de 2% das despesas de construção relativas à parte do edifício utilizada para fins privados.

22.   Por seu lado, o Finanzamt Landshut decidiu que a referida base tributável devia ser determinada por referência à duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, estabelecido pelo § 15a da UStG nos termos do disposto no artigo 20.° da Sexta Directiva. Assim, corrigiu o cálculo da recorrente e fixou a base tributável mensal do IVA devido pela utilização privada de parte do imóvel num montante correspondente a 1/12 de 10% das despesas de construção relativas a essa parte.

23.   Uma vez que o Finanzamt Landshut indeferiu as reclamações apresentadas pela comunhão doméstica contra os avisos de liquidação periódica do imposto emitidos de acordo com o cálculo exposto no número anterior, a referida comunhão interpôs recurso para o Finanzgericht München.

III – Questão prejudicial

24.   O Finanzgericht München entende que a solução do litígio que lhe foi submetido depende da determinação da base tributável relativa à utilização privada de um bem imóvel que foi afecto na sua totalidade à empresa. Observa que o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva não define o conceito de «montante das despesas». Refere ter dúvidas quanto ao sentido a dar a este conceito pelas razões seguintes.

25.   Por um lado, no acórdão Enkler (6), o Tribunal de Justiça declarou que, segundo essa disposição, a base tributável deve ser determinada levando em conta unicamente as despesas que se prendem com o próprio bem, como as amortizações da depreciação do bem, ou as despesas efectuadas pelo sujeito passivo que deram lugar a dedução de IVA (7).

26.   Esta afirmação pode reforçar a posição da recorrente de que a utilização privada de parte do imóvel susceptível de depreciação está abrangida pela tributação fraccionada dos custos de construção desta, escalonados em todo o período de amortização. Pode também confirmar a tese da recorrente de que o preço de aquisição do terreno não deve ser incluído na base tributável se tiver conferido direito à dedução do imposto pago a montante, porque o terreno em que o imóvel foi construído não se pode depreciar pelo uso.

27.   Essa análise pode ser também corroborada pelo sentido do termo «despesas», que pressupõe a depreciação do bem devido ao seu uso. Ora, não pode haver lugar à depreciação total de um imóvel em dez anos.

28.   Por outro lado, também foi declarado que o artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva tem por objectivo garantir a igualdade de tratamento entre um sujeito passivo que utiliza um bem da empresa para os seus fins privados e o consumidor final (8). Esta disposição visa, assim, anular os efeitos da dedução do IVA pago a montante relativamente à parte do bem utilizada para fins privados, pois um consumidor final suporta o encargo do IVA correspondente.

29.   Deste modo, a finalidade do artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva leva sobretudo à repartição do montante total dos custos de aquisição ou de construção do bem ao longo do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA aplicável no direito nacional, que no caso vertente é de dez anos. Esta solução permite, com efeito, evitar «consumos finais não tributados», isto é, situações em que a dedução do IVA a montante não fosse integralmente reembolsada.

30.   Com efeito, poderia haver lugar a um consumo final não tributado se, por exemplo, o imóvel fosse objecto de cessão, não sujeita a IVA, no termo desse período de ajustamento de dez anos (9). Em tal caso, se a base tributável for determinada em função da duração da amortização do imóvel, isto é, cinquenta anos, o sujeito passivo só terá reembolsado, ao fim de dez anos, um quinto do IVA cuja dedução obteve. Tal situação é, pois, contrária ao objectivo do artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva.

31.   A finalidade desta disposição justifica também a inclusão, na base tributável, do preço da aquisição do terreno, se o mesmo tiver conferido o direito à dedução do imposto pago a montante, pois o consumidor final suporta também este imposto no momento da aquisição.

32.   Contra esta análise, o Finanzgericht München sublinha, porém, que no acórdão Seeling (10) o Tribunal de Justiça relativizou o alcance dessa finalidade ao declarar que, embora o período de ajustamento previsto no artigo 20.°, n.° 2, da Sexta Directiva só seja susceptível de corrigir parcialmente a dedução do IVA pago a montante, essa situação resulta de uma opção deliberada do legislador comunitário (11).

33.   Face a estas considerações, o Finanzgericht München decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Como deve ser interpretado o conceito de ‘montante das despesas’ do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da [Sexta Directiva]? O montante das despesas relativas a uma habitação utilizada para fins privados que faz parte de um imóvel afecto na totalidade a uma actividade empresarial compreende igualmente (para além das despesas correntes), as amortizações anuais pela depreciação de edifícios, determinadas em conformidade com a legislação nacional, e/ou a parte anual das despesas de aquisição e de construção que deram direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado, calculada por referência ao período nacional de ajustamento das deduções?»

IV – Análise

34.   Uma vez que o IVA constitui um imposto sobre o consumo cobrado pelos sujeitos passivos, mas que só deve onerar o consumidor final, cada sujeito passivo tem direito a deduzir ao montante do imposto cobrado aos seus clientes, e de que é devedor ao Estado, o imposto que ele próprio suportou a montante no âmbito da aquisição dos bens e dos serviços necessários ao exercício da sua actividade económica (12). Por conseguinte, é unicamente na medida em que esses bens e serviços são utilizados para os fins das suas actividades, elas próprias sujeitas a IVA, que o sujeito passivo pode beneficiar dessa dedução.

35.   Quando os bens ou os serviços adquiridos por um sujeito passivo são por este utilizados para efeitos de operações isentas de IVA ou não abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA, não pode existir, em princípio, cobrança do imposto a jusante nem dedução do imposto a montante (13).

36.   Quando um sujeito passivo utiliza um bem de investimento para fins quer profissionais quer privados, pode optar, para efeitos de IVA, por afectar na totalidade esse bem ao património da sua empresa, por conservá‑lo totalmente no seu património particular, excluindo‑o assim por completo do sistema do IVA, ou ainda por integrá‑lo na sua empresa apenas na parte correspondente à utilização profissional efectiva (14).

37.   Se o sujeito passivo optar por afectar inteiramente à sua empresa um bem de investimento utilizado simultaneamente para fins profissionais e fins privados, é jurisprudência assente que o IVA pago a montante sobre a aquisição ou construção desse bem é, em princípio, integral e imediatamente dedutível. O Tribunal de Justiça reiterou várias vezes esta interpretação da Sexta Directiva (15). Confirmou‑a recentemente, julgando em Grande Secção, no acórdão Charles e Charles Tijmens, já referido (16).

38.   Por conseguinte, um sujeito passivo que opta por afectar totalmente um edifício à sua empresa e utiliza parte desse edifício para os seus fins privados tem direito a deduzir o IVA pago a montante sobre a totalidade dos custos de aquisição ou de construção do referido edifício.

39.   Todavia, na medida em que, quanto à parte desse bem utilizada para os seus fins privados, o sujeito passivo se encontra numa situação comparável à de um consumidor final, é obrigado a pagar o IVA correspondente a essa utilização. Esta obrigação está estipulada no artigo 6.°, n.° 2, que prevê que a referida utilização é equiparada a uma prestação de serviços a título oneroso que o sujeito passivo efectua a si próprio.

40.   Como nessa situação não há uma transacção com um terceiro nem uma contrapartida paga por este que possa constituir a base tributável do IVA, o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva prevê que a base tributável é constituída «pelo montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços».

41.   No presente processo, o Finanzgericht München pretende saber se esse conceito deve ser entendido no sentido de que tem em conta, além das despesas correntes, unicamente a depreciação do imóvel, calculada em função da duração da vida habitual do bem, segundo as regras nacionais das amortizações.

42.   Assim, com a sua questão prejudicial o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que obsta a uma legislação nacional por força da qual a base tributável do IVA devido pela utilização privada de parte de um imóvel afecto na totalidade pelo sujeito passivo à sua empresa é fixada anualmente numa fracção dos custos de aquisição ou de construção, determinada em função da duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, estabelecido nos termos do disposto no artigo 20.° da Sexta Directiva.

43.   Os factores subjacentes à questão foram explicados pelo órgão jurisdicional de reenvio da forma a seguir indicada. São três.

44.   O primeiro desses factores é, evidentemente, o montante do IVA pago anualmente pelo sujeito passivo pela utilização privada. Se no montante das despesas só se dever ter em conta apenas a depreciação do imóvel, a tributação em sede de IVA corresponderá anualmente, no caso vertente, a 2% dos custos da construção da parte do edifício utilizada para fins privados, pois o período de amortização estabelecido na legislação nacional é de cinquenta anos. No caso contrário, a base tributável será igual a 10% desses custos, porque o período de ajustamento das deduções em matéria de IVA está fixado, no direito interno, em dez anos.

45.   O segundo factor, que decorre directamente do anterior, é o risco de haver um consumo final não tributado no caso, por exemplo, da venda de um imóvel isenta de imposto no termo do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA. Tal risco não existe se a base tributável for determinada por referência a esse período nacional de ajustamento, pois no seu termo o sujeito passivo terá reembolsado a totalidade do IVA deduzido a montante e que corresponde à parte do imóvel utilizado para os seus fins privados.

46.   O terceiro factor tem a ver com a inclusão ou não, na base tributável, dos custos de aquisição do terreno em que o imóvel foi construído, sempre que essa aquisição tenha sido sujeita a IVA e o sujeito passivo tenha obtido a dedução desse imposto. Se se dever entender que o conceito de «montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços», a que se refere o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva, significa unicamente a depreciação do imóvel, os custos de aquisição do terreno poderão ter de ser excluídos da base tributável, visto que, em princípio, o terreno em que o imóvel está construído não sofre qualquer depreciação.

47.   No âmbito do presente processo há três teses em concurso.

48.   A recorrente sustenta que o montante das despesas a que se refere o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva deve ser entendido no sentido de que, além das despesas correntes, abrange unicamente as amortizações anuais pela depreciação dos edifícios, determinadas segundo as regras nacionais aplicáveis.

49.   A mesma explica que o conceito de «despesas» pressupõe que o sujeito passivo sofre uma diminuição do seu património. Segundo afirma, aquele não sofre tal diminuição no caso de aquisição ou de construção de um imóvel, porque os custos relativos a estas operações são compensados pelo valor do imóvel. Assim, só há diminuição do património e portanto das despesas, na acepção do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva, com a depreciação do bem. Ora esta depreciação ocorre não em função do período de ajustamento previsto no artigo 20.° da Sexta Directiva, mas sim da duração da utilização.

50.   De igual modo, a recorrente sustenta que o custo da aquisição do terreno em que o imóvel é construído não deve ser incluído na base tributável, porque o terreno não se deprecia com o tempo.

51.   Ao invés, os Governos alemão e do Reino Unido sustentam que o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva não obsta a uma legislação como a lei alemã controvertida.

52.   Esses Governos alegam que esta disposição não define com precisão o que é abrangido pelo conceito de «montante das despesas». Daí deduzem que os Estados‑Membros têm uma margem de apreciação para concretizar esse conceito. Sublinham que a legislação nacional em causa é conforme ao objectivo prosseguido através dessa disposição, que é assegurar a igualdade de tratamento entre o sujeito passivo que utiliza um bem da empresa para os seus fins privados e um consumidor final que adquire um bem idêntico.

53.   À luz desta finalidade, o conceito de «despesas» deve ser entendido no sentido de que abrange os custos de aquisição ou de construção do imóvel, bem como, se for caso disso, o preço de aquisição do terreno, quando tenha conferido direito à dedução do IVA. De igual modo, está em consonância com a referida finalidade a repartição do montante dos custos de construção correspondentes à parte do imóvel utilizada para fins privados ao longo do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, pois esta solução evita qualquer risco de consumo final não tributado.

54.   A Comissão das Comunidades Europeias defende, por seu lado, uma posição intermédia. Ao contrário dos Governos alemão e do Reino Unido, sustenta que a repartição dos custos de aquisição ou de construção do imóvel não pode ser efectuada em função das regras nacionais relativas ao ajustamento das deduções em matéria de IVA. Por um lado, segundo essa instituição, nada obriga a aplicar o artigo 20.°, n.° 2, da Sexta Directiva no contexto do artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da mesma. Por outro lado, o alcance do argumento relativo ao risco de um consumo final não tributado foi relativizado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Seeling, já referido.

55.   Porém, contra a tese da recorrente, a Comissão explica que a repartição dos custos de aquisição e de construção também não deve ser determinada em função das regras nacionais das amortizações em matéria de imposto sobre o rendimento, porque essas regras apresentam disparidades significativas na União Europeia. Além disso, as referidas regras obedecem a objectivos especiais, alheios ao sistema comum de IVA. Segundo a Comissão, essa repartição deve ser efectuada segundo critérios contabilísticos objectivos, geralmente reconhecidos e específicos do IVA. A Comissão sustenta, além disso, que a base tributável deve, se for caso disso, incluir os custos de aquisição do terreno.

56.   Por nosso lado, entendemos, tal como os Governos alemão e do Reino Unido, que o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva não obsta a que o montante dos custos de aquisição ou de construção correspondentes à parte do imóvel utilizada pelo sujeito passivo para os seus fins privados seja repartido ao longo da duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, fixado por aplicação do artigo 20.° da Sexta Directiva.

57.   Antes de expormos os motivos que subjazem a esta posição, parece‑nos útil esclarecer brevemente o nexo entre os prazos previstos no artigo 20.°, n.° 2, da Sexta Directiva e o seu artigo 6.°, n.° 2, alínea a).

58.   Como referem a recorrente e a Comissão, não existe, na Sexta Directiva, qualquer fundamento para a obrigação de aplicar a duração do período de ajustamento previsto no artigo 20.°, n.° 2, da referida directiva, no âmbito do seu artigo 6.°, n.° 2, alínea a).

59.   Com efeito, o artigo 20.° da Sexta Directiva diz respeito à situação em que um sujeito passivo, quando utiliza o mesmo bem para fins profissionais e para fins privados, decidiu afectar esse bem à sua empresa unicamente na proporção em que o utiliza para fins profissionais. Nesse caso concreto, esse sujeito passivo apenas obteve uma dedução do imposto pago a montante sobre os custos de aquisição ou de construção do referido bem proporcional à parte deste que é utilizada para fins profissionais.

60.   O referido artigo 20.° tem por objecto permitir corrigir esta dedução em função das alterações verificadas na utilização do bem pelo sujeito passivo posteriormente à declaração inicial deste, ou ainda por a referida dedução ter sido baseada numa declaração errada.

61.   O artigo 20.°, n.° 2, da Sexta Directiva prevê que esse ajustamento só pode ser efectuado durante um período determinado, que em princípio é de cinco anos. O mesmo artigo dispõe, porém, que este período pode ser prolongado no que respeita aos bens imóveis. Na redacção inicial da Sexta Directiva, o referido período podia ser alargado para dez anos. Com a entrada em vigor da Directiva 95/7, pode sê‑lo até vinte anos.

62.   Quando o sujeito passivo tenha optado, como sucede no caso vertente, por afectar totalmente o imóvel à empresa e beneficiar assim da totalidade do imposto pago a montante sobre os custos da sua aquisição ou da sua construção, é o artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva que se aplica. A utilização privada de parte de um imóvel é equiparada, como vimos, a uma prestação de serviços a título oneroso. É com fundamento nesta última disposição que o sujeito passivo reembolsa o IVA sobre os custos de aquisição ou de construção relativos à parte do imóvel que utiliza para os seus fins privados.

63.   Se esta parte do imóvel diminuir ou aumentar ao longo do tempo, o mecanismo de ajustamento previsto no artigo 20.° da Sexta Directiva não é susceptível de se aplicar. Essa alteração será repercutida, relativamente ao período fiscal em causa, na proporção dos custos de aquisição ou de construção tidos em conta na determinação do montante da base tributável referida no artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva.

64.   Porém, se o imóvel afecto na totalidade à empresa for vendido, os prazos previstos no artigo 20.°, n.° 2, da Sexta Directiva são relevantes. Com efeito, nos termos do artigo 20.°, n.° 3, da referida directiva, se essa venda ocorrer durante o período de ajustamento das deduções em matéria de IVA a que se refere o n.° 2 do mesmo artigo, o imóvel é considerado afecto a uma actividade económica do interessado até ao termo desse período e a dedução do IVA sobre os custos de aquisição ou de construção do imóvel pode então ser objecto de um ajustamento a posteriori.

65.   Resulta também dessas disposições, a contrario, que se o imóvel for vendido após o termo desse período, tal ajustamento a posteriori já não é possível. Nesse caso, há portanto um risco de consumo final não tributado.

66.   É, nomeadamente, para evitar tal risco que os Governos alemão e do Reino Unido sustentam que a base tributável do IVA devido pela utilização, para fins privados, de um imóvel afecto na totalidade à empresa deve poder ser calculada em função da duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, estabelecido nos termos do disposto no artigo 20.°, n.° 2, da Sexta Directiva.

67.   Entendemos que a tese desses Governos poderá ser acolhida, pelos motivos seguintes. Em primeiro lugar, o artigo 11.°, A, da Sexta Directiva deixa aos Estados‑Membros uma margem de apreciação para a sua aplicação. Em segundo lugar, a determinação da base tributável controvertida em função da duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA está em consonância com a finalidade do artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva. Em terceiro lugar, essa determinação é também compatível com o objectivo de harmonização da matéria colectável, prosseguido pela referida directiva.

68.   Quanto ao primeiro ponto, o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva prevê, recordê‑mo‑lo, que a base tributável para as operações a que se refere o artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva é constituída pelo «montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços». Como observa o órgão jurisdicional de reenvio, este conceito não está definido na Sexta Directiva.

69.   Não obstante, da letra desse artigo 6.°, n.° 2, podem ser deduzidas as seguintes informações. O termo «despesa» define‑se como um gasto de dinheiro, especialmente para fins diversos do investimento (17). O sentido literal da expressão «montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços» é, por isso, relativamente amplo e impreciso (18). Em nossa opinião, pode ser entendido como a totalidade das despesas que foram e são necessárias para permitir a realização da prestação de serviços. Este conceito pode, pois, ser interpretado no sentido de que designa, além das despesas correntes, a totalidade dos custos de aquisição ou de realização dos bens objecto da prestação.

70.   De seguida, a circunstância de a utilização, pelo sujeito passivo, de um bem da empresa para os seus fins privados ser equiparada a uma prestação de serviços a título oneroso, isto é, a uma operação que se prolonga no tempo, leva logicamente a pensar que a recuperação do IVA sobre esses custos deve também ser escalonada.

71.   Pode também deduzir‑se dessa equiparação e do objectivo prosseguido pelo legislador através do artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva que esse escalonamento é susceptível de ser efectuado ao longo de toda a duração da útil do bem. Com efeito, é jurisprudência assente que esta disposição tem por objecto assegurar a igualdade de tratamento entre o sujeito passivo e o consumidor final (19). Trata‑se de impedir que um sujeito passivo, que deduziu o IVA na aquisição de um bem afecto à sua empresa, se subtraia ao pagamento do IVA quando retira esse bem ao património da sua empresa para o afectar a fins privados, beneficiando assim, indevidamente, de vantagens relativamente ao consumidor normal que adquire o bem pagando IVA (20).

72.   O escalonamento ao longo de toda a duração da vida útil do bem apresenta, assim, a vantagem de permitir adaptar a base tributável em função das eventuais alterações da parte do bem retirada pelo sujeito passivo para os seus fins privados. A base tributável prevista no artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), foi pois interpretada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Enkler, já referido, no sentido de que compreende as despesas que se prendem com o próprio bem, como as amortizações da depreciação do bem (21), como relembra o órgão jurisdicional de reenvio.

73.   A questão que se suscita no presente litígio é saber se essa interpretação do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva é a única compatível com o direito comunitário. Por outras palavras, trata‑se de apreciar se os Estados‑Membros dispõem, para a aplicação desta disposição, de uma margem de apreciação graças à qual podem escalonar o reembolso do IVA relativo à utilização do bem para fins privados num período mais curto, decalcado sobre o do ajustamento das deduções em matéria de IVA.

74.   Entendemos que os Estados‑Membros dispõem dessa margem de apreciação.

75.   É pacífico que, ao contrário de outras disposições da Sexta Directiva (22), o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), não remete para o direito nacional para a determinação do seu sentido e alcance. O conceito de «montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços» constitui pois um conceito autónomo de direito comunitário que não pode ser deixado à discrição de cada Estado‑Membro. (23).

76.   No entanto, a Sexta Directiva não contém todas as indicações que permitam determinar um conteúdo uniforme para este conceito em toda a União. Nem a letra do referido conceito nem a sistemática em que se insere permitem, segundo entendemos, demonstrar com segurança que a repartição dos custos de aquisição ou de construção do bem em causa deve ser efectuada necessariamente ao longo de toda a vida útil deste. Em todo o caso, a Sexta Directiva não estabelece qual a base para se proceder ao cálculo da amortização da depreciação do bem.

77.   Importa, pois, verificar se a determinação da base tributável do IVA controvertido em função da duração do período de ajustamento das deduções é conforme aos objectivos do artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva e desta última.

78.   Quanto à primeira questão, como vimos, este artigo 6.°, n.° 2, visa assegurar a igualdade de tratamento entre o sujeito passivo que retirou um bem da empresa após ter obtido a dedução da totalidade do IVA suportado sobre os custos de aquisição ou de fabrico desse bem e o consumidor final que teria de suportar esse imposto na aquisição ou na construção de um bem idêntico.

79.   A determinação da base tributável do IVA da utilização privada em função da duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, para evitar que, no caso de venda no termo desse período, subsista um consumo final não tributado, é inteiramente conforme a esse objectivo.

80.   Não cremos que o acórdão Seeling, já referido, ponha em causa esta análise.

81.   É certo que, no processo que deu origem a esse acórdão, o Tribunal foi confrontado com o argumento do Governo alemão relativo ao risco de um consumo final não tributado no caso de venda do imóvel com isenção de IVA após o termo do período de ajustamento das deduções. Verifica‑se também que o Tribunal de Justiça referiu que a circunstância de esse período de ajustamento só ser susceptível de corrigir parcialmente a dedução do IVA pago a montante resultava de uma escolha deliberada do legislador comunitário e que a duração desse período para os bens de investimento imóveis fora alargada até vinte anos para ter em conta a duração desses bens numa perspectiva económica (24).

82.   Porém, o alcance dessa resposta deve, em nosso entender, ser apreciado face ao contexto em que foi dada.

83.   À data dos factos do processo Seeling, já referido, a legislação alemã previa que a base tributável do IVA devido pela utilização privada de um imóvel afecto na totalidade à empresa devia ser calculado em função da depreciação do bem. O Governo alemão pretendia pôr em causa a jurisprudência segundo a qual um sujeito passivo que opta por afectar a totalidade de um edifício à sua empresa e utiliza, subsequentemente, uma parte desse edifício para os seus fins privados, tem direito a deduzir o IVA pago a montante sobre a totalidade dos custos de aquisição ou de construção do referido edifício.

84.   O Governo alemão baseou essa pretensão no artigo 13.°, B, alínea b), da Sexta Directiva, por força do qual a locação de um bem imóvel está, em princípio, isenta de IVA, pelo que não permite obter a dedução do IVA pago a montante. Sustentava que, dado o artigo 6.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), dessa directiva equiparar a utilização de um bem de empresa para fins privados a uma prestação de serviços e essa utilização se assemelhar mais, do ponto de vista do uso final, a uma locação, a isenção prevista no artigo 13.°, B, alínea b), da referida directiva era aplicável por analogia.

85.   Para sustentar esta análise, o Governo alemão alegou que a não dedução do imposto a montante tinha a vantagem de evitar um consumo final não tributado no caso de venda do imóvel com isenção do IVA após o termo do período de ajustamento de dez anos.

86.   No acórdão Seeling, já referido, o Tribunal de Justiça rejeitou o argumento do Governo alemão assente na aplicação do artigo 13.°, B, alínea b), da Sexta Directiva. Entendeu que a utilização, para fins privados do sujeito passivo, de uma habitação num edifício que este afectou, na totalidade, à sua empresa não está abrangida por essa disposição, porque não constitui uma verdadeira locação, na acepção da mesma disposição (25).

87.   Foi nesse contexto que o Tribunal de Justiça referiu que, embora o facto de se autorizar um sujeito passivo a afectar um edifício, na totalidade, à sua empresa e, portanto, a deduzir o IVA devido a montante sobre a totalidade dos custos de construção possa ter como efeito os consumos finais não serem tributados, porque o período de ajustamento previsto no artigo 20.°, n.° 2, da Sexta Directiva só é susceptível de corrigir parcialmente a dedução do IVA a montante efectuada no momento da construção de um edifício, tal resulta de uma opção deliberada do legislador comunitário e não pode impor uma interpretação extensiva do artigo 13.°, B, alínea b), dessa directiva.

88.   Tal como os Governos alemão e do Reino Unido, não cremos que no acórdão Seeling, já referido, o Tribunal de Justiça tenha pretendido pôr em causa o alcance do objectivo do artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva.

89.   Entendemos esse acórdão como uma reafirmação da jurisprudência assente segundo o qual um sujeito passivo que opta por afectar a totalidade de um edifício à sua empresa e que utiliza, de seguida, uma parte desse edifício para fins privados tem, por um lado, o direito de deduzir o IVA pago a montante sobre a totalidade das despesas de construção do referido edifício e, por outro, como corolário desse direito, a obrigação de pagar o IVA sobre o montante das despesas suportadas na execução da referida utilização.

90.   Mesmo que, no referido acórdão, reconheça os limites da capacidade desse sistema para assegurar uma igualdade completa entre um sujeito passivo e um consumidor final, o Tribunal de Justiça não põe em causa, em nosso entender, o princípio segundo o qual cabe ao legislador nacional evitar, em toda a medida possível, que os consumos finais sejam não tributados.

91.   Face a estes elementos, não nos parece contestável que a intenção prosseguida pelo Governo alemão de evitar um consumo final não tributado no caso de cessão do bem com isenção de imposto após o termo do período de ajustamento das deduções é inteiramente conforme ao objectivo do artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva.

92.   Poderá objectar‑se a esta análise que, ao reduzir o período de reembolso do IVA à duração do período de ajustamento das deduções, o Governo alemão gera também um risco de consumo final não tributado. Com efeito, esse Governo referiu que, se o interessado continuar a fazer uso privado do imóvel no termo do período de dez anos, os custos de aquisição ou de construção deixam de fazer parte da base tributável. Assim, o uso privado já só será tributado com base nas despesas correntes geradas pelo imóvel.

93.   Esta exclusão dos custos de aquisição ou de construção da base tributável revela‑se inteiramente justificada, pois a dedução do imposto a montante foi totalmente reembolsado. Todavia, esse reembolso foi calculado sobre a parte do imóvel utilizada para fins privados durante o período de dez anos. Se, no termo deste período, o sujeito passivo utilizar, para os seus fins privados, uma parte mais significativa do imóvel, há que pensar que a utilização dessa parte suplementar para fins privados não será tributada. Nesta fase, a questão permanece em aberto.

94.   Não cremos, no entanto, que esta eventual falha do sistema seja susceptível de pôr em causa a compatibilidade da legislação alemã controvertida com o objectivo do artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva.

95.   Com efeito, a determinação da base tributável do IVA em função do período de ajustamento das deduções tem, em nosso entender, outra vantagem a favor da maior igualdade de tratamento entre o sujeito passivo e o consumidor final. Essa vantagem deve‑se ao aumento do montante do IVA pago anualmente pelo sujeito passivo devido à utilização privada. Esse aumento contribui para a redução da desigualdade das situações em presença, causada pela vantagem de tesouraria que o escalonamento da dívida proporciona ao sujeito passivo face ao consumidor final que tem de suportar todo o encargo com o IVA no momento da aquisição ou da construção do bem.

96.   Por último, entendemos que a determinação da base tributável do IVA em função do período de ajustamento das deduções se mantém em limites aceitáveis face ao objectivo da Sexta Directiva.

97.   Esta, como o seu título indica, tem em vista determinar de maneira uniforme e segundo as regras comunitárias a matéria colectável do IVA (26). Porém, o alcance deste objectivo é referido de forma comedida no nono considerando da Sexta Directiva, na sua redacção inicial, nos termos do qual esta tem em vista obter resultados «comparáveis» em todos os Estados‑Membros. Face à margem de apreciação conferida aos Estados‑Membros pelo artigo 20.° da Sexta Directiva, entendemos que a legislação nacional controvertida preenche esta condição.

98.   A referência a este artigo 20.° parece‑nos relevante no âmbito desta apreciação pelos motivos seguintes. Tal como o artigo 20.°, os artigos 6.°, n.° 2, e 11.°, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva são aplicáveis a uma situação em que um bem que conferiu o direito à dedução do IVA suportado sobre os custos da sua aquisição ou da sua construção é, de seguida, afecto a um uso que não confere o direito a tal dedução. Trata‑se de disposições complementares da Sexta Directiva, que regulam situações em que um bem é objecto de uso misto, quer dizer, em que é utilizado simultaneamente para fins profissionais e para fins privados.

99.   Além disso, os mecanismos previstos por estas diferentes disposições têm efeitos económicos comparáveis (27). Trata‑se, nesses dois casos concretos, do reembolso do IVA cuja dedução o sujeito passivo obteve e que, no final, deve continuar a seu cargo.

100. Não se pode deixar de observar que o artigo 20.° da Sexta Directiva reconhece aos Estados‑Membros uma margem de apreciação relativamente ampla na determinação da duração do período de ajustamento das deduções no que respeita aos bens imóveis, pois podem prever uma duração que varia de cinco a vinte anos.

101. Face aos nexos existentes entre o mecanismo do artigo 20.° da Sexta Directiva e o do artigo 6.°, n.° 2, da mesma directiva, a determinação da base tributável do IVA devido pela utilização privada de um imóvel afecto, na totalidade, à empresa em função da duração do período de ajustamento das deduções não nos parece contrária ao objectivo de harmonização da matéria colectável, prosseguido pela Sexta Directiva.

102. É certo que a solução preconizada pela Comissão, que consiste em convidar os Estados‑Membros a fixar regras de amortização ao longo de toda a vida útil dos imóveis com base em critérios objectivos e geralmente reconhecidos, poderia porventura conduzir a uma matéria colectável mais uniforme.

103. Porém, mesmo que tal solução possa afigurar‑se desejável, não nos parece que justifique, face ao conteúdo da directiva, que se ponha em causa a análise segundo a qual a legislação alemã controvertida não excede a margem de apreciação deixada aos Estados‑Membros na determinação da base tributável a que se refere o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da referida directiva.

104. Além disso, a aptidão da solução proposta pela Comissão para atingir uma harmonização maior foi seriamente posta em dúvida na audiência pelo Governo do Reino Unido, que alegou não existirem regras comuns em matéria de amortizações. É certo que, quando examinamos as normas internacionais de contabilidade, adoptadas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia em 2002 (28), com o fim de reforçar a comparabilidade das demonstrações financeiras elaboradas pelas sociedades cujos títulos são negociados publicamente, verificamos que pode ser usada uma variedade de métodos de depreciação para imputar a quantia depreciável de um activo numa base sistemática durante a sua vida útil (29).

105. Para terminar esta análise, importa ainda tomar posição sobre a questão da inclusão ou não, na base tributável, dos custos da aquisição do terreno no qual o imóvel foi construído, quando esses custos tenham sido sujeitos a IVA e o sujeito passivo tiver obtido a dedução desse imposto.

106. Tal como os Governos alemão e do Reino Unido e a Comissão, entendemos que, em tal caso, os custos devem ser incluídos na base tributável do IVA para a utilização privada.

107. Por um lado, não encontramos na letra do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c) da Sexta Directiva um motivo determinante para os excluir. O conceito de «montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços» é susceptível, do ponto de vista literal, de abranger todos os gastos efectuados para poder assegurar essa prestação. Os custos da aquisição do terreno no qual o imóvel em causa foi construído estão a priori incluídos nesses gastos.

108. Por outro lado, é manifesto que a sua exclusão da base tributável iria contra o objectivo do artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva, que visa, como vimos, assegurar a igualdade de tratamento entre o sujeito passivo e o consumidor final. Uma vez que este último suporta o encargo com o IVA no momento da aquisição de um terreno para construção, seria contrário ao referido objectivo libertar o sujeito passivo desse encargo.

109. No âmbito do presente processo, não ficou claramente demonstrado se a aquisição, pela recorrente, do terreno em que o imóvel foi construído está sujeita a IVA e se a mesma obteve a dedução deste imposto. A resposta a esta questão depende de uma apreciação dos factos que é da competência do órgão jurisdicional nacional.

110. Tendo em conta todos estes elementos, propomos que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial que o artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que não obsta a uma legislação nacional por força da qual a base tributável do IVA devido pela utilização privada de parte de um imóvel afecto na totalidade pelo sujeito passivo à sua empresa é fixada anualmente numa fracção dos custos de aquisição ou de construção, determinada em função da duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, estabelecido nos termos do disposto no artigo 20.° da Sexta Directiva. Essa base tributável deve, se for caso disso, incluir o custo de aquisição do terreno em que o imóvel está construído.

V –    Conclusões

111. Face às considerações que antecedem, propomos que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial colocada pelo Finanzgericht München da seguinte forma:

«O artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, na redacção dada pela Directiva 95/7/CE do Conselho, de 10 de Abril de 1995, deve ser interpretado no sentido de que não obsta a uma legislação nacional por força da qual a base tributável do IVA devido pela utilização privada de parte de um imóvel afecto na totalidade pelo sujeito passivo à sua empresa é fixada anualmente numa fracção dos custos de aquisição ou de construção, determinada em função da duração do período de ajustamento das deduções em matéria de IVA, estabelecido nos termos do disposto no artigo 20.° da Sexta Directiva 77/388, na redacção alterada. Essa base tributável deve incluir o custo de aquisição do terreno em que o imóvel está construído, se essa aquisição tiver sido sujeita a IVA e o sujeito passivo tiver obtido a dedução desse imposto.»


1 – Língua original: francês.


2 – Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54), na redacção dada pela Directiva 95/7/CE do Conselho, de 10 de Abril de 1995 (JO L 102, p. 18, a seguir «Sexta Directiva»).


3 – BGBl. 1993 I, p. 565, a seguir «UStG».


4 – Este conceito foi definido pela recorrente, na audiência, como a comunhão constituída entre duas ou mais pessoas que têm uma casa e a arrendam.


5 – Recordemos que, segundo o artigo 13.°, B, alínea b), da Sexta Directiva, a locação de bens imóveis está isenta de IVA, salvo algumas excepções, mas que por força do artigo 13.°, C, primeiro parágrafo, alínea a), da mesma directiva, os Estados‑Membros podem conceder aos seus sujeitos passivos o direito de optar pela tributação dessa operação.


6 – Acórdão de 26 de Setembro de 1996 (C‑230/94, Colect., p. I‑4517).


7 – Idem, n.° 36.


8 – V., nomeadamente, acórdão Enkler, já referido, n.° 35.


9 – O órgão jurisdicional de reenvio não esclarece qual o fundamento dessa isenção. Trata‑se provavelmente do artigo 13.°, B, alínea g), da Sexta Directiva, nos termos do qual os Estados‑Membros isentam, nas condições por eles fixadas, as entregas de edifícios efectuadas após a sua primeira ocupação.


10 – Acórdão de 8 de Maio de 2003 (C‑269/00, Colect., p. I‑4101).


11 – Idem, n.° 54.


12 – Acórdão de 4 de Outubro de 1995, Armbrecht (C‑291/92, Colect., p. I‑2775, n.° 27).


13 – Acórdão de 4 de Outubro de 30 de Março de 2006, Uudenkaupungin kaupunki (C‑184/04, ainda não publicado na Colectânea, n.° 24).


14 – Acórdão de 14 de Julho de 2005, Charles e Charles‑Tijmens (C‑434/03, Colect., p. I‑7037, n.° 23 e jurisprudência referida).


15 – V. acórdão Seeling, já referido, n.° 41 e jurisprudência referida.


16 – N.° 24.


17 – V. Le Petit Robert, Dictionnaire de la langue française, Ed. Dictionnaires Le Robert, Paris, 1996, p. 595.


18 – V., no que respeita à expressão «montante das despesas» nas outras versões linguísticas da Sexta Directiva, «Betrag der Ausgaben», em alemão; «uitgaven», em neerlandês; «the full cost», em inglês; «udgifter», em dinamarquês, e «spese sostenute», em italiano.


19 – Acórdão Enkler, já referido, n.° 35.


20 – Idem, n.° 33.


21 – N.° 36. Neste processo, o Tribunal foi questionado quanto à determinação da base tributável, para o cálculo do IVA, da utilização privada, durante certos períodos ano, de uma autocaravana afecta na totalidade à empresa. O Tribunal decidiu que havia que tomar em conta uma parte das despesas, tal como as definiu no n.° 36, proporcional à relação que existe entre a duração total da utilização efectiva do bem e a duração da utilização efectiva do bem para fins alheios à empresa (n.° 37).


22 – V., a este respeito, artigo 4.°, n.° 3, alínea b), da Sexta Directiva, a propósito do conceito de «terreno para construção», e artigo 13.°, A, n.° 1, alínea c), da mesma directiva no que respeita aos conceitos de «actividades médicas e paramédicas».


23 – V., neste sentido, acórdão de 1 de Fevereiro de 1977, Verbond van Nederlandse Ondernemingen (51/76, Colect., p. 113, n.os 10 e 11).


24 – Acórdão Seeling, já referido, n.os 54 e 55.


25 – Ibidem, n.os 49 a 52.


26 – Acórdão de 8 de Junho de 2000, Breitsohl (C‑400/98, Colect., p. I‑4321, n.° 48).


27 – Acórdão Uudenkaupungin kaupunki, já referido, n.° 30.


28 – Regulamento (CE) n.° 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativo à aplicação das normas internacionais de contabilidade (JO L 243, p. 1).


29 – V., por exemplo, artigos 47.° e 62.° da norma internacional de contabilidade IAS 16, Activos Fixos Tangíveis, que figura em anexo ao Regulamento (CE) n.° 1725/2003 da Comissão, de 21 de Setembro de 2003, que adopta certas normas internacionais de contabilidade, nos termos do Regulamento (CE) n.° 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 261, p. 1).