Processo C‑406/04

Gérald De Cuyper

contra

Office national de l'emploi

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal du travail de Bruxelles)

«Livre circulação e livre permanência no território da União Europeia – Subsídios de desemprego – Condição de residência efectiva no território nacional»

Conclusões do advogado‑geral L. A. Geelhoed apresentadas em 2 de Fevereiro de 2006 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 18 de Julho de 2006 

Sumário do acórdão

1.     Segurança social dos trabalhadores migrantes – Regulamentação comunitária – âmbito de aplicação material – Prestações abrangidas e prestações excluídas

(Regulamento n.° 1408/71 do Conselho)

2.     Cidadania da União Europeia – Direito de livre circulação e livre permanência no território dos Estados‑Membros – Vantagens sociais

(Artigo 18.° CE)

1.     Uma prestação pode ser considerada uma prestação de segurança social se for concedida, sem se proceder a qualquer apreciação individual e discricionária das necessidades pessoais, aos beneficiários com base numa situação legalmente definida e em que se relacione com um dos riscos enumerados expressamente no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71.

A este propósito, o subsídio concedido aos desempregados com mais de 50 anos, cuja concessão não tem natureza discricionária, que se destina a segurar o risco ligado à perda involuntária de emprego quando o beneficiário mantém a sua capacidade para trabalhar, e cujos beneficiários estão sujeitos às mesmas condições que os outros trabalhadores candidatos a um subsídio de desemprego, deve ser considerado um subsídio de desemprego abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1408/71, ainda que na sequência de uma medida nacional o beneficiário seja dispensado de se inscrever como candidato a emprego.

(cf. n.os 22, 29, 34)

2.     A liberdade de circulação e de permanência reconhecida a qualquer cidadão da União Europeia pelo artigo 18.° CE não se opõe a uma cláusula de residência imposta a um desempregado com mais de 50 anos, dispensado da obrigação de demonstrar a sua disponibilidade no mercado de trabalho, como condição da manutenção do seu direito ao subsídio de desemprego. Embora esta medida constitua uma restrição às liberdades reconhecidas pelo artigo 18.° CE a qualquer cidadão da União, a mesma é justificada pela necessidade de controlar a situação profissional e familiar dos desempregados. Com efeito, a referida cláusula permite aos serviços de inspecção das autoridades nacionais poderem verificar se a situação do beneficiário do subsídio de desemprego não sofreu alterações susceptíveis de influenciarem a prestação concedida. Esta justificação baseia‑se, consequentemente, em considerações objectivas de interesse geral independentes da nacionalidade das pessoas em causa. Medidas menos rigorosas, como a apresentação de documentos ou de atestados, retiram ao controlo o seu carácter fortuito tornando‑o consequentemente menos eficaz de modo que a medida em causa é apta para a realização do objectivo prosseguido e não vai além do necessário para o atingir

(cf. n.os 39, 41‑43, 45‑48 e disp.)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

18 de Julho de 2006 (*)

«Livre circulação e livre permanência no território da União Europeia – Subsídios de desemprego – Condição de residência efectiva no território nacional»

No processo C‑406/04,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo tribunal du travail de Bruxelles (Bélgica), por decisão de 8 de Setembro de 2004, entrado no Tribunal de Justiça em 23 de Setembro de 2004, no processo

Gérald De Cuyper

contra

Office national de l’emploi,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas e J. Malenovský, presidentes de secção, N. Colneric, S. von Bahr, J. N. Cunha Rodrigues, R. Silva de Lapuerta (relatora), G. Arestis, A. Borg Barthet, M. Ilešič e J. Klučka, juízes,

advogado‑geral: L. A. Geelhoed,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 23 de Novembro de 2005,

vistas as observações apresentadas:

–       em representação de G. De Cuyper, por A. de le Court e N. Dugardin, avocats,

–       em representação do Office national de l’emploi, por R. Dupont e M. Willemet, avocats,

–       em representação do Governo belga, por E. Dominkovits e M. Wimmer, na qualidade de agentes,

–       em representação do Governo alemão, por C. Schulze‑Bahr, na qualidade de agente,

–       em representação do Governo francês, por G. de Bergues e O. Christmann, na qualidade de agentes,

–       em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels, na qualidade de agente,

–       em representação do Governo do Reino Unido, por S. Moore, barrister,

–       em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por D. Martin e M. Condou, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 2 de Fevereiro de 2006,

profere o presente

Acórdão

1       O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 17.° CE e 18.° CE e do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de Dezembro de 1996 (JO 1997, L 28, p. 1), na redacção dada pelo Regulamento n.° 1606/98 do Conselho, de 29 de Junho de 1998 (JO L 209, p. 1, a seguir «Regulamento n.° 1408/71»).

2       Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe G. De Cuyper ao Office national de l’emploi (a seguir «ONEM») relativamente à decisão de retirar ao beneficiário o direito ao subsídio de desemprego a partir de 1 de Abril de 1999.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3       O artigo 1.°, alínea a), i), do Regulamento n.° 1408/71 prevê:

«a)      As expressões ‘trabalhador assalariado’ e ‘trabalhador não assalariado’ designam respectivamente qualquer pessoa:

i)       que esteja abrangida por um seguro obrigatório ou facultativo continuado contra uma ou mais eventualidades correspondentes aos ramos de um regime de segurança social aplicável aos trabalhadores assalariados ou não assalariados ou de um regime especial dos funcionários públicos».

4       O artigo 2.°, n.° 1, do referido regulamento dispõe:

«O presente regulamento aplica‑se aos trabalhadores assalariados ou não assalariados que estejam ou tenham estado sujeitos à legislação de um ou vários Estados‑Membros e sejam nacionais de um dos Estados‑Membros, ou sejam apátridas ou refugiados residentes no território de um dos Estados‑Membros, bem como aos membros e membros sobrevivos da sua família.»

5       Nos termos do artigo 10.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71:

«Salvo disposição contrária do presente regulamento, as prestações pecuniárias de invalidez, velhice ou sobrevivência, as rendas por acidente de trabalho ou doença profissional e os subsídios por morte adquiridos ao abrigo da legislação de um ou de mais Estados‑Membros não podem sofrer qualquer redução, modificação suspensão, supressão ou confisco, pelo facto de o beneficiário residir no território de um Estado‑Membro que não seja aquele em que se encontra a instituição devedora.»

6       Nos termos do artigo 69.°, n.° 1, deste regulamento:

«1.      O trabalhador assalariado ou não assalariado em situação de desemprego completo que preencha as condições exigidas pela legislação de um Estado‑Membro para ter direito às prestações e que se desloque a outro ou outros Estados‑Membros, para aí procurar emprego, mantém o direito a essas prestações, nas condições e nos limites a seguir indicados:

a)      Antes da partida, o trabalhador deve ter estado inscrito como candidato a um emprego e ter permanecido à disposição dos serviços de emprego do Estado competente durante pelo menos quatro semanas após o início do desemprego. Todavia, os serviços ou instituições competentes podem autorizar a sua partida antes do termo daquele prazo;

b)      O trabalhador deve inscrever‑se como candidato a um emprego nos serviços de emprego de cada um dos Estados‑Membros para onde se deslocar e submeter‑se ao controlo aí organizado. Considera‑se que esta condição fica preenchida em relação ao período anterior à inscrição se o interessado se inscrever no prazo de sete dias a contar da data em que deixou de estar à disposição dos serviços de emprego do Estado donde partiu. Em casos excepcionais, este prazo pode ser prolongado pelos serviços ou instituições competentes;

c)      O direito às prestações mantém‑se no máximo durante um período de três meses, a contar da data em que o interessado deixou de estar à disposição dos serviços de emprego do Estado donde partiu, sem que a duração total de concessão das prestações possa exceder a duração das prestações a que tem direito por força da legislação do referido Estado. Se se tratar de um trabalhador sazonal essa duração será, além disso, limitada ao período de tempo que faltar para o termo da estação para que foi contratado.»

7       Finalmente, o artigo 71.°, n.° 1, do referido regulamento dispõe:

«1.      O trabalhador assalariado em situação de desemprego, que, no decurso do último emprego residia no território de um Estado‑Membro que não seja o Estado‑Membro competente, beneficia das prestações em conformidade com as disposições seguintes:

a) i) O trabalhador fronteiriço, em situação de desemprego parcial ou acidental na empresa que o emprega, beneficia das prestações em conformidade com as disposições da legislação do Estado competente, como se residisse no território deste Estado; tais prestações são concedidas pela instituição competente,

ii)      O trabalhador fronteiriço, em situação de desemprego completo, beneficia das prestações em conformidade com as disposições da legislação do Estado‑Membro em cujo território reside, como se tivesse estado sujeito a essa legislação no decurso do último emprego; tais prestações são concedidas pela instituição do lugar de residência e a seu cargo;

b) i) O trabalhador assalariado, que não seja trabalhador fronteiriço, em situação de desemprego parcial acidental ou completo e que continue à disposição da respectiva entidade patronal ou dos serviços de emprego no território do Estado competente, beneficia das prestações, em conformidade com as disposições da legislação deste Estado, como se residisse no seu território; tais prestações são concedidas pela instituição competente,

ii)      O trabalhador assalariado, que não seja trabalhador fronteiriço, em situação de desemprego completo e que se ponha à disposição dos serviços de emprego no território do Estado‑Membro em que reside ou que regressa a este território, beneficia das prestações, em conformidade com as disposições da legislação deste Estado, como se nele tivesse exercido o último emprego; tais prestações são concedidas pela instituição do lugar de residência e a seu cargo. Todavia, se esse trabalhador assalariado tiver beneficiado das prestações a cargo da instituição competente do Estado‑Membro a cuja legislação esteve sujeito em último lugar, beneficia das prestações nos termos do artigo 69.° O benefício das prestações da legislação do Estado da residência é suspenso durante o período em que o desempregado, nos termos do disposto no artigo 69.°, puder habilitar‑se às prestações da legislação a que esteve sujeito em último lugar.»

 Legislação nacional

8       O artigo 44.° do Decreto real de 25 de Novembro de 1991, que regulamenta o desemprego (Moniteur belge de 31 de Dezembro de 1991, p. 29888), na redacção em vigor à data dos factos do processo principal, dispunha que, «para poder beneficiar do subsídio, o desempregado deve estar privado de trabalho e de remuneração na sequência de circunstâncias independentes da sua vontade». Os artigos 45.° e 46.° do referido decreto precisavam, respectivamente, quais as actividades que se devia considerar constituírem trabalho e o conceito de remuneração.

9       Nos termos do artigo 66.° do referido decreto real:

«Para beneficiar dos subsídios, o desempregado deve ter a sua residência principal na Bélgica; além disso, deve residir efectivamente na Bélgica.»

10     O artigo 89.°, n.os 1 e 3, do mesmo decreto real, na versão resultante do artigo 25.° do Decreto real de 22 de Novembro de 1995 (Moniteur belge de 8 de Dezembro de 1995, p. 33144), dispunha:

«1.      O desempregado, em situação de desemprego completo, que tenha completado, no mínimo, 50 anos de idade, pode ser dispensado, a seu pedido, da aplicação dos artigos 48.°, n.° 1, 2, 51.°, n.° 1, segundo parágrafo, 3 a 6, 56.° e 58.°, se tiver recebido, no mínimo, 312 prestações de subsídio como desempregado em situação de desemprego completo durante os dois anos que antecedem esse pedido [...]

[…]

3.      Por derrogação do artigo 45.°, primeiro parágrafo, 1, o desempregado que beneficie da dispensa referida nos n.os 1 e 2 pode exercer, por sua própria conta e sem finalidade lucrativa, qualquer actividade que respeite a bens próprios.»

11     No âmbito deste regime, o desempregado que tivesse obtido uma dispensa de marcação de ponto deixava de estar sujeito à obrigação de estar disponível no mercado de trabalho e de aceitar qualquer emprego adequado, à obrigação de se apresentar no serviço de emprego, ou ainda à obrigação de participar num plano de acompanhamento. Estava ainda dispensado da obrigação de inscrição como candidato a emprego. No entanto, o pagamento do referido subsídio era incompatível com o exercício de uma actividade remunerada e tinha natureza temporária.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

12     G. De Cuyper, cidadão belga nascido em 1942, exerceu uma actividade por conta de outrem na Bélgica. Foi‑lhe concedido o subsídio de desemprego em 19 de Março de 1997.

13     Em 1 de Abril de 1998, foi dispensado, nos termos da legislação nacional então aplicável, de se submeter ao controlo municipal normalmente imposto aos desempregados pelo Decreto real de 25 de Novembro de 1991.

14     Em 9 de Dezembro de 1999, apresentou ao organismo que garante o pagamento dos seus subsídios de desemprego uma declaração na qual se descreveu que era «solteiro» e que residia efectivamente na Bélgica.

15     Em Abril de 2000, os serviços do ONEM procederam a uma averiguação de rotina para verificar a exactidão das declarações prestadas pelo beneficiário. No decurso dessa averiguação, G. De Cuyper reconheceu que já não residia efectivamente na Bélgica desde Janeiro de 1999, mas sim em França. Precisou que regressava à Bélgica sensivelmente uma vez por trimestre, que mantinha um quarto mobilado num município belga e que não tinha comunicado esta alteração de residência ao organismo que garante o pagamento dos seus subsídios de desemprego.

16     Com base nesta averiguação, o ONEM notificou G. De Cuyper, em 25 de Outubro de 2000, da decisão que lhe retirou o direito ao subsídio de desemprego, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1999, por, a partir desta data, ter deixado de preencher a condição de residência efectiva imposta pelo artigo 66.° do Decreto real de 25 de Novembro de 1991. Na mesma ocasião, o ONEM exigiu ao beneficiário o reembolso dos subsídios pagos desde essa data, ou seja, o equivalente em francos belgas a 12 452,78 EUR.

17     G. De Cuyper recorreu desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio.

18     Nestas condições, o tribunal du travail de Bruxelles decidiu suspender a instância e colocar a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça:

«A obrigação de residir efectivamente na Bélgica, da qual o artigo 66.° do Decreto real de 25 de Novembro de 1991, que contém disposições legais relativas ao desemprego, faz depender a concessão do subsídio de desemprego, aplicada a um desempregado com mais de 50 anos de idade que, com base no artigo 89.° do mesmo decreto real, goza de uma dispensa de marcação de ponto que implica a dispensa da condição de estar disponível no mercado de trabalho, constitui um obstáculo à liberdade de circulação e de permanência reconhecida a qualquer cidadão europeu pelos artigos 17.° [CE] e 18.° [CE]?

A referida obrigação de residência no território nacional do Estado competente para a concessão do subsídio de desemprego, justificada no direito interno pelas necessidades do controlo da observância dos requisitos legais para o pagamento do subsídio aos desempregados, satisfaz a exigência de proporcionalidade a que deve obedecer a prossecução do referido objectivo de interesse geral, na medida em que constitui uma limitação à liberdade de circulação e de permanência reconhecida a qualquer cidadão europeu pelos 17.° [CE] e 18.° [CE]?

A referida obrigação de residência tem como efeito criar uma discriminação entre os cidadãos europeus nacionais do Estado‑Membro competente para garantir a concessão do subsídio de desemprego ao reconhecer este direito àqueles que não exercem o direito de livre circulação e de permanência reconhecidos pelos artigos 17.° [CE] e 18.° [CE], e ao negá‑lo aos que pretendem exercê‑lo, através do efeito dissuasor que a referida restrição implica?»

 Quanto à questão prejudicial

19     Através da questão colocada, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se os artigos 17.° CE e 18.° CE, que reconhecem aos cidadãos da União Europeia o direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, se opõem a uma disposição de direito nacional que subordina o direito a um subsídio como o da lide principal à obrigação de residir efectivamente no Estado‑Membro em causa, atendendo ao facto de o referido subsídio ser atribuído a desempregados com mais de 50 anos dispensados da obrigação de estarem inscritos como candidatos a emprego.

20     A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio qualifica o referido subsídio como «prestação de desemprego» e o recorrente no processo principal como «trabalhador assalariado» na acepção do artigo 1.°, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71. No entanto, a Comissão das Comunidades Europeias alega que o referido subsídio pode constituir não uma prestação de desemprego abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1408/71, mas sim uma prestação de pré‑reforma análoga à que esteve em causa no processo que deu origem ao acórdão de 11 de Julho de 1996, Otte (C‑25/95, Colect., p. I‑3745), ou mesmo uma prestação sui generis. Nesse caso, o subsídio é susceptível de ser abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77), enquanto vantagem social.

21     É assim necessário determinar, a priori, a natureza do referido subsídio a fim de determinar se constitui uma prestação de segurança social à qual é aplicável o Regulamento n.° 1408/71.

 Quanto à natureza do subsídio

22     Em matéria de prestações de segurança social, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se, diversas vezes, sobre os elementos a tomar em conta para determinar a natureza jurídica das referidas prestações. Assim, o Tribunal precisou que uma prestação pode ser considerada uma prestação de segurança social se for concedida, sem se proceder a qualquer apreciação individual e discricionária das necessidades pessoais, aos beneficiários com base numa situação legalmente definida e em que se relacione com um dos riscos enumerados expressamente no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71 (v., designadamente, acórdãos de 27 de Março de 1985, Hoeckx, 249/83, Recueil, p. 973, n.os 12 a 14, e de 16 de Julho de 1992, Hughes, C‑78/91, Colect., p. I‑4839, n.° 15).

23     No processo principal, no que se refere ao conceito de concessão da prestação sem que seja feita qualquer apreciação individual e discricionária das necessidades pessoais, há que referir que a atribuição da concessão está sujeita a condições taxativamente enumeradas nos artigos 44.° e seguintes do Decreto real de 25 de Novembro de 1991, sem que as autoridades competentes disponham de uma margem de apreciação relativamente a esta concessão. É certo que o montante deste subsídio pode variar em função da situação pessoal do desempregado. Todavia, exceptuado o facto de este elemento estar relacionado com as modalidades de cálculo do referido subsídio, trata‑se de um critério objectivo e legalmente definido que atribui o direito a esta prestação sem que a autoridade competente possa tomar em consideração outras circunstâncias pessoais. A concessão dessa prestação não depende portanto de uma apreciação individual das necessidades pessoais do requerente, característica da assistência social (v. acórdão de 2 de Agosto de 1993, Acciardi, C‑66/92, Colect., p. I‑4567, n.° 15).

24     Quanto à condição de a prestação em causa dever relacionar‑se com um dos riscos expressamente enumerados no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71, este está cumprido na medida em que o referido subsídio abranja o risco ligado à perda involuntária de emprego quando o trabalhador mantém a sua capacidade para trabalhar.

25     O Tribunal já declarou que, para serem qualificadas como prestações de segurança social, deve‑se considerar que as prestações, independentemente das características específicas das diferentes legislações nacionais, são da mesma natureza quando o seu objecto e a sua finalidade, bem como a sua base de cálculo e as suas condições de concessão, sejam idênticos. Em contrapartida, as características puramente formais não devem ser consideradas elementos constitutivos para efeitos da classificação das prestações (v., neste sentido, acórdão de 5 de Julho de 1983, Valentini, 171/82, Recueil, p. 2157, n.° 13).

26     À luz do que precede, há que examinar o subsídio em causa no processo principal para determinar se deve ser considerado uma prestação de desemprego.

27     No que se refere à sua finalidade, o referido subsídio destina‑se a permitir aos trabalhadores em causa proverem às suas necessidades na sequência da perda involuntária do seu emprego, quando ainda dispõem de capacidade para trabalhar. A este respeito, para distinguir as diferentes categorias de prestações de segurança social, há que tomar em consideração o risco segurado por cada prestação. Assim, uma prestação de desemprego cobre o risco ligado à perda de rendimentos sofrida pelo trabalhador na sequência da perda do seu emprego, quando ainda está apto para trabalhar. Uma prestação concedida na sequência da concretização deste risco, ou seja a perda do emprego, e que deixa de ser devida por cessar esta situação, por o interessado passar a exercer uma actividade remunerada, deve ser considerada uma prestação de desemprego.

28     Quanto à determinação do montante do subsídio pago a G. De Cuyper, a base de cálculo utilizada pelo serviço de emprego belga é idêntica à que é utilizada relativamente a todos os desempregados, sendo este subsídio calculado segundo as regras dos artigos 114.° e seguintes do Decreto real de 25 de Novembro de 1991. Estas regras prevêem um montante de base, fixado em 40% da remuneração diária média, majorada de um complemento de adaptação, fixado em 15% da referida remuneração. Este montante tem de ter em conta circunstâncias específicas do desempregado, predeterminadas pela lei.

29     Finalmente, quanto às condições de concessão da prestação, há que recordar, como o ONEM sublinhou na audiência, que G. De Cuyper está sujeito às mesmas condições que os outros trabalhadores candidatos a um subsídio de desemprego. Em especial, para ter direito a este subsídio, para além do facto de estar privado de trabalho e de remuneração na sequência de circunstâncias independentes da sua vontade, o trabalhador tem de demonstrar ter trabalhado durante 624 dias de trabalho ou dias equiparados durante os 36 meses que precedem o seu pedido de subsídio e a sua actividade tem de ter dado origem ao pagamento de contribuições de segurança social para que seja tomada em conta para efeitos do cálculo do montante do referido subsídio.

30     Além disso, há que recordar que o subsídio em causa no processo principal é um subsídio sujeito ao regime belga das prestações de desemprego. O facto de um desempregado numa situação como a de G. De Cuyper ser dispensado da obrigação de se inscrever como candidato a emprego e, consequentemente, da obrigação de estar à disposição do mercado de trabalho em nada afecta as características essenciais do subsídio tal como foram enunciados nos n.os 27 e 28 do presente acórdão.

31     Por outro lado, a obtenção desta dispensa não implica que o desempregado fique isento da obrigação de permanecer à disposição do instituto de emprego, na medida em que, ainda que esteja dispensado de se inscrever como candidato a emprego e aceitar qualquer emprego adequado, tem sempre de ficar à disposição do referido instituto para efeitos de controlo da sua situação profissional e familiar.

32     Nestas condições, a posição da Comissão, segundo a qual o subsídio que G. De Cuyper recebe constitui uma prestação de pré‑reforma, análoga à do processo que deu origem ao acórdão Otte, já referido, ou uma prestação sui generis, não pode ser aceite.

33     Com efeito, no processo que deu origem ao acórdão Otte, já referido, estava em causa um subsídio de adaptação concedido, sob a forma de subvenção não obrigatória, a mineiros com determinada idade que perderam o seu emprego na sequência da reestruturação da indústria mineira alemã, entre a data do seu despedimento e a idade da reforma, sendo o recebimento da referida prestação compatível com o exercício de uma actividade remunerada.

34     Há que concluir, portanto, que uma prestação como a recebida por G. De Cuyper, cuja concessão não tem natureza discricionária e que se destina a segurar o risco ligado à perda involuntária de emprego quando o beneficiário mantém a sua capacidade para trabalhar, deve ser considerada um subsídio de desemprego abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1408/71, ainda que na sequência de uma medida nacional o beneficiário seja dispensado de se inscrever como candidato a emprego.

 Quanto ao artigo 18.° CE

35     Nos termos do artigo 18.° CE, «[q]ualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas no presente Tratado e nas disposições adoptadas em sua aplicação».

36     Segundo esta redacção, o direito de permanecer no território dos Estados‑Membros, directamente reconhecido a qualquer cidadão da União pelo artigo 18.° CE, não é incondicional. Só é reconhecido sob reserva das limitações e condições previstas no Tratado e nas disposições adoptadas em sua aplicação (acórdão de 7 de Setembro de 2004, Trojani, C‑456/02, Colect., p. I‑7573, n.os 31 e 32).

37     Neste sentido, há que examinar em primeiro lugar o Regulamento n.° 1408/71. Segundo o artigo 10.° do referido regulamento, salvo se este último dispuser em sentido contrário, «as prestações pecuniárias de invalidez, velhice ou sobrevivência, as rendas por acidente de trabalho ou doença profissional e os subsídios por morte adquiridos ao abrigo da legislação de um ou de mais Estados‑Membros não podem sofrer qualquer redução, modificação suspensão, supressão ou confisco, pelo facto de o beneficiário residir no território de um Estado‑Membro que não seja aquele em que se encontra a instituição devedora». A enumeração constante do referido artigo não engloba as prestações de desemprego. Daqui resulta que esta disposição não proíbe que a legislação de um Estado‑Membro sujeite o direito a um subsídio de desemprego a uma cláusula de residência no território desse Estado.

38     A este propósito, o Regulamento n.° 1408/71 prevê apenas duas situações em que o Estado‑Membro competente tem que permitir aos beneficiários de um subsídio de desemprego que residam no território de outro Estado‑Membro sem deixarem de manter o seu direito ao referido benefício. Por um lado, a situação prevista no artigo 69.° desse regulamento, que permite aos desempregados que se desloquem para outro Estado‑Membro diferente do Estado competente, «para aí procurar[em] emprego», manterem o seu direito à prestação de desemprego. Por outro, a situação visada no artigo 71.° do referido regulamento, que diz respeito a desempregados que no período do último emprego residiam no território de um Estado‑Membro diferente do Estado competente. Resulta claramente da decisão de reenvio que a situação de G. De Cuyper não é abrangida por nenhum destes artigos.

39     Está assente que uma legislação nacional como a que está em causa no presente processo, que coloca numa situação de desvantagem determinados cidadãos nacionais pelo simples facto de terem exercido a sua liberdade de circular e de permanecer noutro Estado‑Membro, constitui uma restrição às liberdades reconhecidas pelo artigo 18.° CE a qualquer cidadão da União (v., neste sentido, acórdãos de 11 de Julho de 2002, D’Hoop, C‑224/98, Colect., p. I‑6191, n.° 31, e de 29 de Abril de 2004, Pusa, C‑224/02, Colect., p. I‑5763, n.° 19).

40     Tal restrição só pode ser justificada, à luz do direito comunitário, se se basear em considerações objectivas de interesse geral independentes da nacionalidade das pessoas em causa e se for proporcional ao objectivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional.

41     No presente caso, a aprovação de uma cláusula de residência responde à necessidade de controlar a situação profissional e familiar dos desempregados. Com efeito, a referida cláusula permite aos serviços de inspecção do ONEM poderem verificar se a situação do beneficiário do subsídio de desemprego não sofreu alterações susceptíveis de influenciarem a prestação concedida. Esta justificação baseia‑se, consequentemente, em considerações objectivas de interesse geral independentes da nacionalidade das pessoas em causa.

42     Uma medida é proporcional quando, sendo apta para a realização do objectivo prosseguido, não vai além do necessário para o atingir.

43     As autoridades belgas justificaram a existência, no presente caso, de uma cláusula de residência pela necessidade de os serviços de inspecção do ONEM controlarem o cumprimento das condições legais fixadas para a manutenção do direito ao subsídio de desemprego. Deste modo, deve designadamente permitir aos referidos serviços verificarem se a situação de uma pessoa que se declarou solteira e sem emprego não sofreu alterações susceptíveis de influenciarem a prestação concedida.

44     No que se refere, no processo principal, à eventual existência de disposições que contêm medidas de controlo menos imperativas, como as que foram invocadas por G. De Cuyper, não ficou demonstrado que estas fossem susceptíveis de garantir a realização do objectivo prosseguido.

45     Deste modo, tratando‑se dos mecanismos de controlo que, como os que foram instituídos no presente caso, se destinam a verificar a situação familiar do desempregado em causa e a eventual existência de fontes de rendimentos não declaradas por ele, a sua eficácia repousa, em larga medida, no carácter fortuito do controlo e na possibilidade de este último ser realizado in loco, devendo os serviços competentes poder verificar a concordância dos dados fornecidos pelo desempregado com os que resultam da realidade dos factos. A este propósito, há que referir que o controlo a efectuar em matéria de subsídio de desemprego apresenta uma especificidade que justifica a implementação de mecanismos mais rigorosos do que os que são impostos por ocasião dos controlos relativos a outras prestações.

46     Daqui resulta que medidas menos rigorosas, como a apresentação de documentos ou de atestados, retiram ao controlo o seu carácter fortuito tornando‑o consequentemente menos eficaz.

47     Nestas condições, há que considerar que a obrigação de residência no Estado‑Membro em que se encontra a instituição devedora, justificada no direito interno pelas necessidades do controlo da observância das condições legais para o pagamento do subsídio aos desempregados, respeita a exigência de proporcionalidade.

48     Atendendo às considerações que precedem, há que responder à questão colocada que a liberdade de circulação e de permanência reconhecida a qualquer cidadão da União pelo artigo 18.° CE não se opõe a uma cláusula de residência, como a que foi aplicada no processo principal, imposta a um desempregado com mais de 50 anos, dispensado da obrigação de demonstrar a sua disponibilidade no mercado de trabalho, como condição da manutenção do seu direito ao subsídio de desemprego.

 Quanto às despesas

49     Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

A liberdade de circulação e de permanência reconhecida a qualquer cidadão da União Europeia pelo artigo 18.° CE não se opõe a uma cláusula de residência, como a que foi aplicada no processo principal, imposta a um desempregado com mais de 50 anos, dispensado da obrigação de demonstrar a sua disponibilidade no mercado de trabalho, como condição da manutenção do seu direito ao subsídio de desemprego.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.