Processo C‑259/04

Elizabeth Florence Emanuel

contra

Continental Shelf 128 Ltd

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela The Person Appointed by the Lord Chancellor under Section 76 of The Trade Marks Act 1994, on Appeal from the Registrar of Trade Marks (Reino Unido), enviado pela High Court of Justice (Inglaterra e País de Gales)]

«Marcas susceptíveis de enganar o público ou de o induzir em erro quanto à natureza, qualidade ou origem geográfica de um produto – Marca cedida pelo titular conjuntamente com a empresa que produz os bens a que a marca está associada – Directiva 89/104/CEE»

Conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer apresentadas em 19 de Janeiro de 2006 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 30 de Março de 2006 

Sumário do acórdão

1.     Questões prejudiciais – Reenvio ao Tribunal de Justiça – Órgão jurisdicional nacional na acepção do artigo 234.° CE – Conceito

(Artigo 234.° CE)

2.     Aproximação das legislações – Marcas – Directiva 89/104 – Recusa de registo ou nulidade – Fundamentos de caducidade da marca – Marcas susceptíveis de enganar o público

[Directiva 89/104 do Conselho, artigos 3.°, n.° 1, alínea g), e 12.°, n.° 2, alínea b)]

1.     Para apreciar se um organismo possui a natureza de órgão jurisdicional na acepção do artigo 234.° CE, questão a resolver exclusivamente no âmbito do direito comunitário, há que ter em conta um conjunto de elementos, como a origem legal do órgão, o seu carácter permanente, o carácter obrigatório das suas decisões, a natureza contraditória do processo, a aplicação pelo órgão das regras do direito e a sua independência. Preenche estes critérios a Pessoa Designada pelo Lord Chancellor nos termos da lei britânica sobre as marcas para decidir em recurso das decisões do registo de marcas. Trata‑se, com efeito, de um órgão permanente que aplica o direito segundo as regras processuais previstas pelo Regulamento de 2000 sobre as marcas. Além disso, o processo é contraditório, tendo as decisões da Pessoa Designada força obrigatória e sendo, em princípio, definitivas, sob reserva da possibilidade excepcional de serem objecto de recurso de fiscalização da legalidade. Por último, durante o exercício do seu mandato, a Pessoa Designada goza das mesmas garantias de independência que os juízes.

(cf. n.os 19, 23‑24)

2.     Uma marca que corresponde ao nome do criador e primeiro fabricante dos produtos que a ostentam não pode, devido apenas a esta particularidade, ser objecto de recusa de registo, não podendo caducar os direitos do seu proprietário, por induzir o público em erro, na acepção do artigos 3.°, n.° 1, alínea g), e 12.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 89/104, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas, especialmente quando o fundo de comércio associado à referida marca, anteriormente registada sob uma forma gráfica diferente, tenha sido cedido com a empresa que fabrica os produtos que ostentam a referida marca.

Com efeito, os casos de recusa de registo e as condições de caducidade visados pelas referidas disposições pressupõem que se possa considerar provada a existência de um engano efectivo ou de um risco suficientemente grave de engano do consumidor. Relativamente a uma marca que corresponde ao nome de uma pessoa, embora um consumidor médio possa ser influenciado no seu acto de compra de um produto com essa marca, imaginando que a pessoa em causa participou na sua criação, as características e as qualidades do referido produto continuam a ser garantidas pela empresa titular da marca.

Em contrapartida, compete ao órgão jurisdicional nacional examinar se, na apresentação da marca, não existe a intenção da empresa que apresentou o pedido de registo de fazer crer ao consumidor que a pessoa cujo nome corresponde à marca continua a ser a criadora dos produtos que ostentam a referida marca ou que participa na sua criação. Com efeito, tratar‑se‑ia, nesse caso, de uma manobra que poderia ser julgada dolosa mas que não pode ser considerada um engano, na acepção do artigo 3.° da Directiva 89/104, e que, por esse facto, não afecta a marca em si própria nem, por consequência, a possibilidade de a registar.

(cf. n.os 47‑48, 50‑51, 53, disp. 1‑2)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

30 de Março de 2006 (*)

«Marcas susceptíveis de enganar o público ou de o induzir em erro quanto à natureza, qualidade ou origem geográfica de um produto – Marca cedida pelo titular conjuntamente com a empresa que produz os bens a que a marca está associada – Directiva 89/104/CEE»

No processo C‑259/04,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pela The Person Appointed by the Lord Chancellor under Section 76 of The Trade Marks Act 1994, on Appeal from the Registrar of Trade Marks (Reino Unido), por decisão de 26 de Maio de 2004, enviado pela High Court of Justice (Inglaterra e País de Gales), entrado no Tribunal de Justiça em 16 de Junho de 2004, no processo

Elizabeth Florence Emanuel

contra

Continental Shelf 128 Ltd,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, J. Malenovský, J.‑P. Puissochet (relator), A. Borg Barthet e U. Lõhmus, juízes,

advogado‑geral: D. Ruiz‑Jarabo Colomer,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 1 de Dezembro de 2005,

vistas as observações apresentadas:

–       em representação de Elizabeth Florence Emanuel, por J. Hill, barrister, H. Evans e C. Daniel, solicitors,

–       em representação da Continental Shelf 128 Ltd, por R. Hacon, barrister,

–       em representação do Governo do Reino Unido, por E. O’Neill, na qualidade de agente, assistida por M. Tappin, barrister,

–       em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por N. B. Rasmussen, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 19 de Janeiro de 2006,

profere o presente

Acórdão

1       O pedido de decisão prejudicial apresentado pela The Person Appointed by the Lord Chancellor under Section 76 of The Trade Marks Act 1994, on Appeal from the Registrar of Trade Marks (Pessoa Designada pelo Lord Chancellor nos termos da Section 76 do Trade Marks Act 1994, para decidir em recurso das decisões do Registrar of Trade Marks, a seguir «Pessoa Designada»), tem por objecto a interpretação dos artigos 3.°, n.° 1, alínea g), e 12.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1).

2       Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a costureira E. Emanuel e a sociedade Continental Shelf 128 Ltd (a seguir «CSL»). Este litígio tem por objecto duas acções intentadas por E. Emanuel contra a referida sociedade, a saber, por um lado, uma oposição ao registo da marca «ELIZABETH EMANUEL», em letras maiúsculas (a seguir «marca ‘ELIZABETH EMANUEL’»), para o vestuário produzido pela CSL e, por outro, um pedido de caducidade da marca «Elizabeth Emanuel», em letras minúsculas com excepção das iniciais, registada em 1997 por outra sociedade que posteriormente a cedeu à CSL (a seguir «marca ‘Elizabeth Emanuel’» ou «marca registada»).

 Quadro jurídico

3       Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 89/104:

«Será recusado o registo ou ficarão sujeitos a declaração de nulidade, uma vez efectuados, os registos relativos:

[…]

g)       [à]s marcas que sejam susceptíveis de enganar o público, por exemplo no que respeita à natureza, à qualidade ou à proveniência geográfica do produto ou do serviço;

[…]»

4       Nos termos do artigo 12.°, n.° 2, da mesma directiva:

«O registo de uma marca fica […] passível de caducidade se, após a data em que o registo foi efectuado:

[…]

b)       no seguimento do uso feito pelo titular da marca, ou com o seu consentimento, para os produtos ou serviços para que foi registada, a marca for propícia a induzir o público em erro, nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

5       E. Emanuel, costureira de renome no domínio da moda para noivas, criou, em 1990, uma empresa com a denominação «Elizabeth Emanuel».

6       Em 1996, E. Emanuel constituiu com a sociedade Hamlet International Plc a sociedade Elizabeth Emanuel Plc (a seguir «EE Plc»). E. Emanuel cedeu a esta última sociedade a sua actividade de criação e de comercialização de vestuário, a totalidade dos activos da empresa, entre os quais a clientela e o pedido de registo da marca «Elizabeth Emanuel», que foi registada em 1997.

7       Em Setembro de 1997, a EE Plc trespassou o seu fundo de comércio, a clientela e a marca registada à sociedade Frostprint Ltd, que imediatamente alterou o seu nome, passando a chamar‑se sociedade Elizabeth Emanuel International Ltd (a seguir «EE International»). A EE International empregou E. Emanuel, que deixou o seu lugar um ano mais tarde.

8       Em Novembro de 1997, a EE International cedeu a marca registada a outra sociedade denominada Oakridge Trading Ltd (a seguir «Oakridge»). Em 18 de Março de 1998, a Oakridge requereu o registo da marca «ELISABETH EMANUEL».

9       Em 7 de Janeiro de 1999, foi deduzida oposição ao pedido. Em 9 de Setembro de 1999, foi apresentado um pedido de caducidade da marca registada «Elizabeth Emanuel».

10     O Hearing Officer, a quem foram apresentadas em primeira instância as acções de oposição e de caducidade, julgou‑as improcedentes por decisão de 17 de Outubro de 2002, com o fundamento de que, embora o público tenha efectivamente sido vítima de engano e de confusão, estes eram legítimos por serem a consequência inevitável da venda de uma empresa e da clientela anteriormente activas sob o nome do seu proprietário originário.

11     Foi interposto recurso dessa decisão para a Pessoa Designada, que não remeteu o processo para a High Court of Justice, não obstante o pedido nesse sentido feito pela CSL, que se tornou, no decurso da instância, cessionária da marca registada e do pedido de registo da marca «ELIZABETH EMANUEL», por força da Section 76 do Trade Marks Act 1994 (Lei das Marcas de 1994, a seguir «Trade Marks Act 1994»), que prevê a possibilidade de tal remessa se a Pessoa Designada entender que o processo suscita uma questão jurídica de relevância geral.

12     A discussão concentrou‑se, tal como perante o Hearing Officer, na questão de saber se os artigos 3.°, n.° 1, alínea g) e 12.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 89/104 podem servir de fundamento às acções contra a CSL.

13     Nestas circunstâncias, a Pessoa Designada decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Uma marca comercial é susceptível de enganar o público, sendo, portanto, passível de ser recusado o seu registo nos termos do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), [da Directiva 89/104] do Conselho, nas seguintes circunstâncias:

–       o fundo de comércio associado à marca foi cedido juntamente com a actividade de fabrico dos produtos que ostentam a marca;

–       antes dessa cessão a marca indicava, para uma parte significativa do público relevante, que uma determinada pessoa estava ligada ao desenho ou à criação dos produtos em que a marca era usada;

–       após a referida cessão o cessionário pediu para registar a marca; e

–       na altura do pedido, uma parte significativa do público relevante pensava erradamente que o uso da marca indicava que a pessoa identificada continuava ligada ao desenho ou à criação dos produtos em que a marca era usada e esta convicção era susceptível de influenciar o comportamento dessa parte do público como comprador?

2)      Caso a resposta à primeira questão não seja claramente afirmativa, que outros elementos devem ser tomados em consideração para determinar se uma marca é susceptível de enganar o público, devendo, portanto, ser recusado o seu registo nos termos do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), [da Directiva 89/104] e, em particular, é relevante que o risco de engano seja susceptível de diminuir com o decurso do tempo?

3)      Uma marca registada é susceptível de induzir o público em erro na sequência do uso feito pelo respectivo titular ou com o seu consentimento, de tal forma que este pode ser privado dos seus direitos por força do artigo 12.°, n.° 2, alínea b) [da Directiva 89/104/CEE], nas seguintes circunstâncias:

–       a marca registada e o fundo de comércio a ela associado foram cedidos juntamente com a actividade de fabrico dos produtos que ostentam a marca;

–       antes dessa cessão a marca indicava, para uma parte significativa do público relevante, que uma determinada pessoa estava ligada ao desenho ou à criação dos produtos em que a marca era usada;

–       após a referida cessão foi apresentado um pedido de caducidade da marca registada; e

–       na altura do pedido, uma parte significativa do público relevante pensava erradamente que o uso da marca indicava que a pessoa identificada continuava ligada ao desenho ou à criação dos produtos em que a marca era usada e esta convicção era susceptível de influenciar o comportamento dessa parte do público como comprador?

4)      Caso a resposta à terceira questão não seja claramente afirmativa, que outros elementos devem ser tomados em consideração para determinar se uma marca é susceptível de induzir o público em erro na sequência do uso feito pelo respectivo titular ou com o seu consentimento, de tal forma que este pode ser privado dos seus direitos por força do artigo 12.°, n.° 2, alínea b), e, em particular, é relevante que o risco de engano seja susceptível de diminuir com o decurso do tempo?»

 Quanto às observações suscitadas pelas conclusões do advogado‑geral

14     Por carta de 22 de Fevereiro de 2006, E. Emanuel apresentou as suas observações sobre as conclusões do advogado‑geral. A recorrente afirma que o advogado‑geral cometeu erros, por um lado, na interpretação dos artigos 3.° e 12.° da Directiva 89/104 e, por outro, na interpretação da jurisprudência do Tribunal de Justiça nos processos anteriores.

15     Uma vez que o Estatuto do Tribunal de Justiça e o seu Regulamento de Processo não prevêem a possibilidade de as partes apresentarem observações sobre as conclusões do advogado‑geral (ver despacho de 4 de Fevereiro de 2000, Emesa Sugar, C‑17/98, Colect., p. I‑665, n.° 2), as observações de E. Emanuel não podem ser aceites.

16     No entanto, o Tribunal de Justiça pode, oficiosamente, sob proposta do advogado‑geral ou ainda a pedido das partes, determinar a reabertura da fase oral, nos termos do artigo 61.° do seu Regulamento de Processo, se considerar que não está suficientemente esclarecido ou que o processo deve ser decidido com base num argumento que não foi debatido entre as partes (v. acórdãos de 19 de Fevereiro de 2002, Wouters e o., C‑309/99, Colect., p. I‑1577, n.° 42; de 14 de Dezembro de 2004, Arnold André, C‑434/02, Colect., p. I‑11825, n.° 27, e Swedish Match, C‑210/03, Colect., p. I‑11893, n.° 25).

17     No caso vertente, o Tribunal de Justiça considera que dispõe de todos os elementos necessários para responder às questões submetidas. Por conseguinte, não há que ordenar a reabertura da fase oral.

 Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais

18     Antes de responder às questões submetidas, importa examinar se a Pessoa Designada deve ser considerada órgão jurisdicional na acepção do artigo 234.° CE.

19     Para apreciar se um organismo possui a natureza de órgão jurisdicional na acepção desta disposição, questão a resolver exclusivamente no âmbito do direito comunitário, o Tribunal de Justiça tem em conta um conjunto de elementos, como a origem legal do órgão, o seu carácter permanente, o carácter obrigatório das suas decisões, a natureza contraditória do processo, a aplicação pelo órgão das regras do direito e a sua independência (v., designadamente, acórdãos de 30 de Junho de 1966, Vaassen‑Göbbels, 61/65, Colect., p. 401; de 17 de Setembro de 1997, Dorsch Consult, C‑54/96, Colect., p. I‑4961, n.° 23, e de 2 de Março de 1999, Nour Eddline El‑Yassini, C‑416/96, Colect., p. I‑1209, n.° 17).

20     A Pessoa Designada foi instituída pelo Trade Marks Act 1994.

21     Em conformidade com as section 76 e 77 deste Act, podem ser submetidos à Pessoa Designada, nomeada pelo Lord Chancellor após consulta ao Lord Advocate, recursos das decisões do Comptroller‑General of Patents, Designs and Trade Marks (também denominado Registrar of Trade Marks). Em Inglaterra e no País de Gales, a Pessoa Designada partilha esta competência com a High Court of Justice e, na Escócia, com a Court of Session.

22     Compete ao recorrente escolher em que órgão jurisdicional vai interpor o recurso. No entanto, a Pessoa Designada pode, em determinados casos, decidir remeter o recurso à High Court, designadamente se entender que o mesmo suscita uma questão de relevância jurídica geral.

23     A Pessoa Designada é um órgão permanente que aplica o direito, nos termos do Trade Marks Act 1994 e segundo as regras processuais previstas nos artigos 63.° a 65.° do Regulamento de 2000 sobre as marcas (Trade Marks Rules 2000). O processo é contraditório. As decisões da Pessoa Designada têm força obrigatória e são, em princípio, definitivas, sob reserva da possibilidade excepcional de serem objecto de recurso de fiscalização da legalidade (judicial review).

24     Durante o exercício do seu mandato, a Pessoa Designada goza das mesmas garantias de independência que os juízes.

25     Resulta do exposto que a Pessoa Designada deve ser considerada um órgão jurisdicional na acepção do artigo 234.° CE, pelo que as questões prejudiciais são admissíveis.

 Quanto às duas primeiras questões

26     Com as suas duas primeiras questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber em que condições pode ser recusado o registo de uma marca por ser susceptível de enganar o público, na acepção do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104, quando o fundo de comércio associado à marca tenha sido cedido juntamente com a empresa que fabrica produtos a que a marca se refere e que a referida marca, que corresponde ao nome do criador e primeiro fabricante dos referidos produtos, tinha sido anteriormente registada sob uma forma gráfica diferente.

 Observações apresentadas ao Tribunal de Justiça

27     O órgão jurisdicional de reenvio é sensível aos argumentos das duas teses em presença. Considera, por um lado, que o interesse geral obriga a que a marca não seja susceptível de induzir em erro o consumidor médio razoavelmente atento e avisado e, por outro, que é, no entanto, conforme ao interesse geral permitir a venda e o trespasse de empresas e de clientela com as marcas que lhes estão associadas.

28     E. Emanuel, recorrente no processo principal, alega que prevalece o interesse geral de protecção do consumidor garantido pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104. Para que este se aplique, basta que exista, pelo menos, um risco real de que a utilização da marca em questão induza em erro o consumidor médio dos produtos ou serviços para os quais o registo de marca foi pedido, no que respeita à sua origem e que influencie as decisões de compra deste consumidor. A existência de tal risco é uma questão de facto, de forma que todas as circunstâncias que tornam o engano possível devem ser tomadas em consideração.

29     A recorrente no processo principal considera, em seguida, que, uma vez que o risco de confusão esteja demonstrado, pouco importa que a clientela e a marca tenham sido cedidas à empresa que crê poder utilizar esta marca.

30     A CSL, recorrida no processo principal, alega que o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/104 não faz nenhuma distinção consoante as marcas correspondam ou não ao nome de uma pessoa. O único critério pertinente consiste em determinar, de forma objectiva, se as marcas são susceptíveis de enganar o público ou de o induzir em erro, especialmente gerando confusão com outros produtos.

31     Segundo a recorrida no processo principal, a tese de E. Emanuel sobre os riscos de confusão para um consumidor médio baseia‑se numa decisão do Tribunal de Justiça relativa a regulamentos específicos que não pode ser transposta para a interpretação da Directiva 89/104.

32     Relativamente à percepção de um consumidor médio de uma marca que corresponde a um nome, a CSL considera que este consumidor sabe, especialmente no domínio da moda, que um nome comercial se mantém ligado ao produto fabricado por uma empresa e que esta pode ser cedida com esse nome. Segundo esta sociedade, esta consideração é igualmente válida para os industriais da panificação, para os produtores de vinho ou para os fabricantes de produtos de luxo. Assim, a transferência de um nome comercial não pode, por si só, gerar uma confusão automática, quer esta transferência seja ou não acompanhada de publicidade.

33     A CSL insiste especialmente no facto de que, se a tese de E. Emanuel fosse acolhida, seria impossível proceder à venda de uma empresa acompanhada da cessão do fundo de comércio e da marca dos produtos que aquela fabrica. Na maior parte dos casos, o valor de cessão de uma empresa baseia‑se essencialmente no valor da marca transferida.

34     Segundo o Governo do Reino Unido, a finalidade do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104 é impedir o registo de marcas que enganem o público, não no que respeita à origem dos produtos ou serviços objecto de registo ou às características dessa origem, mas sobre as características dos próprios produtos ou serviços.

35     Esta disposição não foi concebida com o objectivo de permitir a proibição de uma marca apenas por os produtos em causa não atingirem um nível de qualidade adequado às expectativas do comprador, quer seja devido ao facto de uma pessoa determinada já não intervir na criação e no fabrico destes produtos quer por qualquer outra razão. Embora uma marca deva permitir garantir que os produtos provêem de uma única empresa, que responde pela sua qualidade, geralmente a marca não reflecte por si própria essa qualidade.

36     O Governo do Reino Unido alega que o público sabe que a qualidade dos produtos que ostentam uma determinada marca pode variar, devido a uma decisão do titular da marca, a mudança de proprietário ou de direcção, ou ainda a alterações ocorridas na equipa de concepção ou na fábrica. Por conseguinte, um consumidor médio não pode ser enganado pela mudança de proprietário de uma marca.

37     A Comissão das Comunidades Europeias afirma, antes de mais, que o Tribunal de Justiça ainda não teve ocasião de interpretar o artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104 no que respeita aos casos em que uma marca é susceptível de enganar o público e, em seguida, ainda não identificou o interesse público que esta disposição protege, que pode ser diferente do analisado no que respeita a outros motivos absolutos de recusa de registo como os examinados nos acórdãos de 4 de Maio de 1999, Windsurfing Chiemsee (C‑108/97 e C‑109/97, Colect., p. I‑2779), de 18 de Junho de 2002, Philips (C‑299/99, Colect., p. I‑5475) ou de 6 de Maio de 2003, Libertel (C‑104/01, Colect., p. I‑3793).

38     No entanto, a Comissão recorda que o Tribunal de Justiça identificou a função essencial da marca que é garantir ao consumidor ou ao utilizador final a identidade de origem do produto ou do serviço designado pela marca, permitindo‑lhe distinguir, sem confusão possível, este produto ou serviço de outros que tenham proveniência diversa. Com efeito, para que a marca possa desempenhar o seu papel de elemento essencial do sistema de concorrência leal que o Tratado pretende criar e manter, deve constituir a garantia de que todos os produtos ou serviços que a ostentam foram fabricados ou prestados sob o controlo de uma única empresa à qual pode ser atribuída a responsabilidade pela respectiva qualidade (v., designadamente, acórdão de 12 de Novembro de 2002, Arsenal Footbal Club, C‑206/01, Colect., p. I‑10273, n.° 48).

39     Daqui deduz a Comissão que essa função não significa que o consumidor deva ser capaz de identificar o fabricante através da marca, mas que a marca garante que os bens foram comercializados com o consentimento do seu titular.

40     Alega também que o simples facto de uma marca corresponder ao nome de uma pessoa não significa que esta pessoa esteja ligada ao titular da marca ou que essa relação deva ser presumida e, portanto, não permite concluir pela intervenção da referida pessoa no fabrico dos produtos que exibem essa marca. A Comissão considera que esta tese é confirmada pelo raciocínio do Tribunal de Justiça no acórdão de 16 de Setembro de 2004, Nichols (C‑404/02, Colect., p. I‑8499) segundo o qual nenhuma regra especial do direito das marcas se aplica a um nome de uma pessoa.

41     A Comissão considera ainda que um consumidor médio só pode ser enganado, na acepção do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104, por uma marca que corresponde ao nome de uma pessoa se um argumento de venda consistir em fazer crer que essa pessoa participa no fabrico do produto que exibe a marca em causa quando a verdade é que essa pessoa já não tem nenhuma relação com o titular da referida marca.

42     Por último, todos os interessados que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça consideram que o tempo decorrido desde que a pessoa com o nome a que corresponde a marca deixou de ser titular desta, não tem qualquer incidência no facto de essa marca poder ou não ser susceptível de enganar o consumidor médio.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

43     O artigo 2.° da Directiva 89/104 contém uma lista, qualificada de ilustrativa pelo sétimo considerando desta directiva, dos sinais susceptíveis de constituir uma marca, desde que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas, ou seja, para desempenhar a função de origem da marca. Esta lista refere expressamente os nomes de pessoas (acórdão Nichols, já referido, n.° 22).

44     Como recordou a Comissão, para que a marca possa desempenhar o seu papel de elemento essencial do sistema de concorrência leal que o Tratado pretende criar e manter, deve constituir a garantia de que todos os produtos ou serviços que a ostentam foram fabricados ou prestados sob o controlo de uma única empresa à qual possa ser atribuída a responsabilidade pela respectiva qualidade (v., designadamente, acórdão Arsenal Footbal Club, já referido, n.° 48).

45     Uma marca como «ELIZABETH EMANUEL» pode ter essa função de distinguir os produtos fabricados por uma empresa, nomeadamente quando a referida marca foi cedida a essa empresa e esta última fabrica o mesmo tipo de produtos que os que ostentavam inicialmente a marca em causa.

46     No entanto, tratando‑se de uma marca que corresponde ao nome de uma pessoa, o motivo de ordem pública que justifica a proibição decretada pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104 de registar uma marca susceptível de enganar o público, ou seja, a protecção do consumidor, deve levar a questionar o risco de confusão que essa marca pode gerar no espírito de um consumidor médio, designadamente quando a pessoa cujo nome corresponde à marca personificava originariamente os produtos com essa marca.

47     No entanto, os casos de recusa de registo referidos no artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104 pressupõem que se possa considerar provada a existência de um engano efectivo ou de um risco suficientemente grave de engano do consumidor (acórdão de 4 de Março de 1999, Consorzio per la tutela del formagio Gorgonzola, C‑87/97, Colect., p. I‑1301, n.° 41).

48     No caso vertente, embora um consumidor médio possa ser influenciado no seu acto de compra de uma peça de vestuário com a marca «ELIZABETH EMANUEL» imaginando que a recorrente no processo principal participou na criação dessa peça de vestuário, as características e as qualidades da referida peça de vestuário continuam a ser garantidas pela empresa titular da marca.

49     Consequentemente, não se pode considerar que a denominação Elisabeth Emanuel seja, por si só, susceptível de enganar o público quanto à natureza, qualidade ou proveniência da mercadoria que designa.

50     Em contrapartida, compete ao órgão jurisdicional nacional examinar se, na apresentação da marca «ELIZABETH EMANUEL», não existe a intenção da empresa que apresentou o seu pedido de registo de fazer crer ao consumidor que E. Emanuel continua a ser a criadora dos produtos que ostentam a referida marca ou que participa na sua criação. Com efeito, tratar‑se‑ia, nesse caso, de uma manobra que poderia ser julgada dolosa mas que não pode ser considerada um engano, na acepção do artigo 3.° da Directiva 89/104, e que, por esse facto, não afecta a marca em si própria nem, por consequência, a possibilidade de a registar.

51     Por conseguinte, há que responder às duas primeiras questões que uma marca que corresponde ao nome do criador e primeiro fabricante dos produtos que a ostentam não pode, devido apenas a esta particularidade, ser objecto de recusa de registo por induzir o público em erro, na acepção do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104, especialmente quando o fundo de comércio associado à referida marca, anteriormente registada sob uma forma gráfica diferente, tenha sido cedido com a empresa que fabrica os produtos que ostentam a referida marca

 Quanto às duas últimas questões

52     Através das duas últimas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, conhecer as condições em que o titular de uma marca pode ser privado dos seus direitos devido ao facto de essa marca induzir o público em erro, na acepção do artigo 12.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 89/104, quando o fundo de comércio associado à referida marca tenha sido cedido com a empresa que fabrica os produtos que a ostentam e quando esta marca corresponde ao nome do criador e primeiro fabricante dos referidos produtos.

53     Uma vez que os motivos de caducidade previstos no artigo 12.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 89/104 são idênticos aos motivos de recusa de registo previstos no artigo 3.°, n.° 1, alínea b), da mesma directiva, cuja análise foi objecto da resposta às duas primeiras questões, há que responder às duas últimas questões que o titular de uma marca que corresponde ao nome do criador e primeiro fabricante dos produtos que ostentam essa marca não pode, devido apenas a esta particularidade, ser privado dos seus direitos com o fundamento de que a referida marca induz o público em erro, na acepção do artigo 12.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 89/104, especialmente quando o fundo de comércio associado à referida marca tenha sido cedido com a empresa que fabrica os produtos que a ostentam.

 Quanto às despesas

54     Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      Uma marca que corresponde ao nome do criador e primeiro fabricante dos produtos que a ostentam não pode, devido apenas a esta particularidade, ser objecto de recusa de registo por induzir o público em erro, na acepção do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), da Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas, especialmente quando o fundo de comércio associado à referida marca, anteriormente registada sob uma forma gráfica diferente, tenha sido cedido com a empresa que fabrica os produtos que ostentam a referida marca.

2)      O titular de uma marca que corresponde ao nome do criador e primeiro fabricante dos produtos que ostentam essa marca não pode, devido apenas a esta particularidade, ser privado dos seus direitos com o fundamento de que a referida marca induz o público em erro, na acepção do artigo 12.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 89/104, especialmente quando o fundo de comércio associado à referida marca tenha sido cedido com a empresa que fabrica os produtos que a ostentam.

Assinaturas


* Língua do processo: inglês.