Processo C‑145/04

Reino de Espanha

contra

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte

«Parlamento Europeu – Eleições – Direito de voto – Cidadãos da Commonwealth residentes em Gibraltar e que não possuem a cidadania da União»

Conclusões do advogado‑geral A. Tizzano apresentadas em 6 de Abril de 2006 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 12 de Setembro de 2006 

Sumário do acórdão

Parlamento – Eleições – Direito de voto e de elegibilidade – Beneficiários

(Artigos 17.º CE, 19.º CE, 189.º CE e 190.º CE)

No estádio actual do direito comunitário, a determinação dos titulares do direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu faz parte da competência de cada Estado‑Membro no respeito do direito comunitário. Os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE não se opõem a que os Estados‑Membros concedam esse direito de voto e de elegibilidade a determinadas pessoas que têm vínculos estreitos com esses Estados, que não sejam os seus próprios nacionais ou cidadãos da União residentes no seu território.

Efectivamente, nem os artigos 189.° CE e 190.° CE nem o acto relativo à eleição dos membros do Parlamento Europeu por sufrágio universal directo referem de modo explícito e preciso quais são os titulares do direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu. Quanto aos artigos 17.° CE e 19.° CE, relativos à cidadania da União, só a última destas disposições trata especificamente, no seu n.° 2, do direito de voto para o Parlamento Europeu. Ora, este artigo limita‑se a aplicar o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade ao exercício desse direito.

Acresce que, no que se refere à eventual existência de um vínculo entre a cidadania da União e o direito de voto e de elegibilidade, que impõe que este direito seja sempre reservado aos cidadãos da União, nenhuma conclusão clara a este respeito pode ser retirada dos artigos 189.° CE e 190.° CE, relativos ao Parlamento Europeu, que referem que este é composto por representantes dos povos dos Estados‑Membros. Com efeito, o termo «povos», que não está definido, pode ter diferentes significados consoante os Estados‑Membros e as línguas da União. Quanto aos artigos do Tratado relativos à cidadania da União, não se pode deles deduzir o princípio segundo o qual os cidadãos da União são os únicos beneficiários de todas as outras disposições do Tratado, o que implicaria que os artigos 189.° CE e 190.° CE só se aplicariam a estes cidadãos. Com efeito, embora o artigo 17.°, n.° 2, CE preveja que os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos no Tratado, este último reconhece direitos que não estão ligados à qualidade de cidadão da União, nem mesmo de nacional de um Estado‑Membro. Quanto ao artigo 19.°, n.° 2, CE, embora este implique que os nacionais de um Estado‑Membro beneficiam do direito de voto e de elegibilidade no seu próprio país e imponha aos Estados‑Membros o reconhecimento desses direitos aos cidadãos da União que residem no seu território, não pode daí deduzir‑se que um Estado‑Membro esteja impedido de conceder o direito de voto e de elegibilidade a determinadas pessoas que têm um vínculo estreito com esse Estado sem, no entanto, terem a qualidade de nacional desse Estado‑Membro ou de um outro Estado‑Membro.

Por outro lado, dado que o número de representantes eleitos em cada Estado‑Membro está fixado no artigo 190.°, n.° 2, CE e que, no estádio actual do direito comunitário, as eleições para o Parlamento Europeu são organizadas em cada Estado‑Membro para os representantes eleitos nesse Estado, uma extensão, por um Estado‑Membro, do direito de voto para essas eleições a outras pessoas que não os seus próprios nacionais ou a cidadãos da União que residem no seu território afecta apenas a escolha dos representantes eleitos nesse Estado‑Membro e não produz efeitos na escolha nem no número de representantes eleitos nos outros Estados‑Membros.

Daqui resulta que o Reino Unido não violou os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE ao adoptar uma lei que prevê, no que diz respeito a Gibraltar, que os nacionais da Commonwealth residentes no território, que não têm a qualidade de cidadão comunitário, têm o direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu.

(cf. n.os 65-66, 70-73, 76-78, 80)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

12 de Setembro de 2006 (*)

«Parlamento Europeu – Eleições – Direito de voto – Cidadãos da Commonwealth residentes em Gibraltar e que não possuem a cidadania da União»

No processo C‑145/04,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 227.° CE, entrada em 18 de Março de 2004,

Reino de Espanha, representado por N. Díaz Abad, F. Díez Moreno e I. del Cuvillo Contreras, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por R. Caudwell, na qualidade de agente, assistida por P. Goldsmith, D. Wyatt e D. Anderson, QC, bem como por M. Chamberlain, barrister, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandado,

apoiado por:

Comissão das Comunidades Europeias, representada por C. Ladenburger, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

interveniente,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas (relator), K. Schiemann e J. Makarczyk, presidentes de secção, J.‑P. Puissochet, P. Kūris, E. Juhász, E. Levits e A. Ó Caoimh, juízes,

advogado‑geral: A. Tizzano,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 5 de Julho de 2005,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de Abril de 2006,

profere o presente

Acórdão

1       Na sua petição, o Reino de Espanha pede ao Tribunal de Justiça que declare que o Reino Unida da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, ao ter adoptado a Lei de 2003 relativa à representação eleitoral nas eleições para o Parlamento Europeu [European Parliament (Representation) Act 2003, a seguir «EPRA 2003»], violou as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE, bem como por força do acto relativo à eleição dos membros do Parlamento Europeu por sufrágio universal directo, anexo à Decisão 76/787/CECA, CEE, Euratom do Conselho, de 20 de Setembro de 1976 (JO L 278, p. 1), alterado pela Decisão 2002/772/CE, Euratom do Conselho, de 25 de Junho de 2002 e de 23 de Setembro de 2002 (JO L 283, p. 1, a seguir «acto de 1976»).

 Quadro jurídico

 Direito comunitário

2       O artigo 17.° CE tem a seguinte redacção:

«1.      É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui.

2.      Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos no presente Tratado.»

3       Para a aplicação do direito comunitário, o Reino Unido definiu o termo «nacionais» numa declaração anexada à Acta final do Tratado relativo à adesão às Comunidades Europeias do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO 1972, L 73, p. 196, a seguir «declaração de 1972»). Tendo em conta a entrada em vigor no Reino Unido de uma nova lei da nacionalidade, essa declaração foi substituída em 1982 por uma nova declaração (JO 1983, C 23, p. 1, a seguir «declaração de 1982»), que faz referência às seguintes categorias:

«a)      aos cidadãos britânicos;

b)      às pessoas que sejam súbditos britânicos em virtude da quarta parte da Lei de 1981 relativa à nacionalidade britânica e que possuam o direito de residência no Reino Unido e sejam, por esse facto, dispensados da fiscalização de imigração do Reino Unido;

c)      aos cidadãos dos territórios dependentes britânicos que tenham adquirido a cidadania pelo facto de manterem um laço com Gibraltar.»

4       O artigo 19.°, n.° 2, CE estipula:

«Sem prejuízo do disposto no n.° 4 do artigo 190.° e das disposições adoptadas em sua aplicação, qualquer cidadão da União residente num Estado‑Membro que não seja o da sua nacionalidade, goza do direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu no Estado‑Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado. Esse direito será exercido sem prejuízo das modalidades adoptadas pelo Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, e após consulta do Parlamento Europeu; essas regras podem prever disposições derrogatórias, sempre que problemas específicos de um Estado‑Membro o justifiquem.»

5       Em conformidade com esta disposição, o Conselho adoptou a Directiva 93/109/CE, de 6 de Dezembro de 1993, que estabelece o sistema de exercício do direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu dos cidadãos da União residentes num Estado‑Membro de que não tenham a nacionalidade (JO L 329, p. 34).

6       O artigo 189.°, primeiro parágrafo, CE tem a seguinte redacção:

«O Parlamento Europeu, composto por representantes dos povos dos Estados reunidos na Comunidade, exerce os poderes que lhe são atribuídos pelo presente Tratado.»

7       Nos termos do artigo 190.° CE:

«1.      Os representantes ao Parlamento Europeu, dos povos dos Estados reunidos na Comunidade, são eleitos por sufrágio universal directo.

[…]

4.      O Parlamento Europeu elaborará um projecto destinado a permitir a eleição por sufrágio universal directo, segundo um processo uniforme em todos os Estados‑Membros ou baseado em princípios comuns a todos os Estados‑Membros.

O Conselho, deliberando por unanimidade, após parecer favorável do Parlamento Europeu, que se pronuncia por maioria dos membros que o compõem, aprova as disposições cuja adopção recomendará aos Estados‑Membros, nos termos das respectivas normas constitucionais.

[…]»

8       O artigo 8.° do acto de 1976 dispõe:

«Salvo o disposto no presente acto, o processo eleitoral será regulado, em cada Estado‑Membro, pelas disposições nacionais.

Essas disposições nacionais, que podem eventualmente ter em conta as particularidades de cada Estado‑Membro, não devem prejudicar globalmente o carácter proporcional do sistema de escrutínio.»

9       O artigo 15.°, segundo parágrafo, desse acto tem a seguinte redacção:

«Os anexos II e III fazem parte integrante do presente acto.»

10     O anexo II do acto de 1976, que passou a anexo I por aplicação da nova numeração que figura em anexo à Decisão 2002/772 (a seguir «anexo I do acto de 1976»), tem a seguinte redacção:

«O Reino Unido só aplicará o disposto no presente acto no Reino Unido.»

11     No seu acórdão Matthews c. Reino Unido de 18 de Fevereiro de 1999 (Colectânea dos acórdãos e decisões 1999‑I), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que, ao não organizar, em Gibraltar, eleições para o Parlamento Europeu, o Reino Unido violou o artigo 3.° do Protocolo n.° 1 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «Protocolo n.° 1 da CEDH»), que prevê a obrigação de as partes contratantes organizarem, com intervalos razoáveis, eleições livres, por escrutínio secreto, em condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo na eleição do órgão legislativo. No n.° 64 do seu acórdão, o referido Tribunal observou que a recorrente, na sua qualidade de residente em Gibraltar, foi privada da possibilidade de expressar a sua opinião sobre a escolha dos membros do Parlamento Europeu. A pedido do Tribunal de Justiça, o Reino Unido precisou que, como decorria do relatório da Comissão dos Direitos do Homem, a Sr.a Matthews era cidadã britânica.

12     O acto de 1976, na sua versão inicial, foi alterado pela Decisão 2002/722, que entrou em vigor em 1 de Abril de 2004. Aquando dessa alteração, o Reino de Espanha opôs‑se à supressão, sugerida pelo Reino Unido, do anexo I do acto de 1976. Todavia, a declaração que a seguir se transcreve do Reino Unido, que reflecte um acordo bilateral celebrado entre este Estado‑Membro e o Reino de Espanha, foi inscrita na acta da reunião do Conselho de 18 de Fevereiro de 2002 (a seguir «declaração de 18 de Fevereiro de 2002»):

«Recordando que o n.° 2 do artigo 6.° do Tratado da União Europeia dispõe que ‘a União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário’, o Reino Unido velará para que sejam introduzidas as alterações necessárias para permitir aos eleitores de Gibraltar participar nas eleições para o Parlamento Europeu no quadro de um círculo eleitoral existente no Reino Unido e nas mesmas condições dos outros eleitores desse círculo, a fim de cumprir a obrigação que lhe incumbe de executar o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo Matthews c. Reino Unido, em conformidade com o direito da União Europeia.»

13     Do mesmo modo, foi inserida na referida acta a seguinte declaração do Conselho e da Comissão:

«O Conselho e a Comissão tomaram devida nota da declaração do Reino Unido segundo a qual, para cumprir a obrigação que lhe incumbe de aplicar a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo Matthews c. Reino Unido, o Reino Unido velará para que sejam feitas as alterações necessárias para permitir aos eleitores de Gibraltar participar nas eleições do Parlamento Europeu no quadro de um círculo eleitoral existente no Reino Unido e nas mesmas condições de outros eleitores desse círculo, em conformidade com o direito da União Europeia.»

 O estatuto de Gibraltar

14     Gibraltar foi cedido pelo Rei de Espanha à Coroa britânica pelo Tratado de Utrecht celebrado entre o primeiro e a Rainha da Grã‑Bretanha em 13 de Julho de 1713, no âmbito dos tratados que puseram fim à guerra de sucessão de Espanha. O artigo X, último período, do referido tratado precisa que embora a Coroa britânica nunca tivesse a intenção de doar, vender ou alienar por qualquer meio a propriedade da cidade de Gibraltar, seria obrigada a fazê‑lo preferencialmente à Coroa de Espanha, com prioridade em relação a qualquer outro interessado.

15     Gibraltar é actualmente uma colónia da Coroa britânica. Não faz parte do Reino Unido.

16     O poder executivo é exercido em Gibraltar por um governador nomeado pela Rainha e, em relação a determinadas competências internas, por um Chief minister e por ministros eleitos a nível local. Estes últimos são responsáveis perante a Assembleia Legislativa (House of Assembly), cuja eleição se realiza de cinco em cinco anos.

17     A Assembleia Legislativa tem o poder de votar leis relativas a determinadas matérias internas. O governador, todavia, tem o poder de recusar promulgar uma lei. O Parlamento do Reino Unido e a Rainha no âmbito do seu Conselho Privado (Queen in Council) têm, além disso, o poder de adoptar leis aplicáveis em Gibraltar.

18     Foram instituídos órgãos jurisdicionais próprios em Gibraltar. Todavia, há possibilidade de recurso das decisões dos tribunais superiores de Gibraltar para a Comissão Judicial do Conselho Privado (Judicial Committee of the Privy Council).

19     Nos termos do direito comunitário, Gibraltar é um território europeu cujas relações externas são asseguradas por um Estado‑Membro ao abrigo do artigo 299.°, n.° 4, CE e ao qual se aplicam as disposições do Tratado CE. O Acto relativo às condições de adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e às adaptações dos Tratados (JO 1972, L 73, p. 14) prevê, todavia, que determinadas partes do Tratado não se aplicam a Gibraltar.

 A EPRA 2003

20     Em 8 de Maio de 2003, o Reino Unido adoptou a EPRA 2003.

21     O artigo 9.° da EPRA 2003 prevê que Gibraltar será integrado num círculo eleitoral existente da Inglaterra ou do País de Gales a fim de formar um novo círculo. Em conformidade com esta disposição, as autoridades britânicas integraram Gibraltar no círculo Sudoeste da Inglaterra pelo Decreto de 2004 relativo às eleições para o Parlamento Europeu pelo círculo eleitoral combinado de Gibraltar, bem como às despesas da campanha eleitoral [European Parliamentary Elections (Combined Region and Campaign Expenditure) (United Kingdom and Gibraltar) Order 2004].

22     O artigo 14.° da EPRA 2003 prevê que serão elaborados, em Gibraltar, cadernos eleitorais para as eleições europeias (a seguir «cadernos eleitorais de Gibraltar») da responsabilidade de um secretário da Assembleia Legislativa de Gibraltar (clerk of the House of Assembly of Gibraltar).

23     O artigo 15.° da EPRA 2003 prevê que uma pessoa pode votar nas eleições para o Parlamento Europeu, em Gibraltar, desde que, no dia das eleições, esteja inscrita nos cadernos eleitorais de Gibraltar.

24     Em conformidade com o artigo 16.°, n.° 1, da EPRA 2003, pode ser inscrita nos referidos cadernos eleitorais a pessoa que cumprir os seguintes requisitos cumulativos:

–      ser residente em Gibraltar;

–      não sofrer de uma incapacidade que a iniba de votar em Gibraltar nas eleições para o Parlamento Europeu (com excepção do requisito ligado à idade);

–      ser cidadão da Commonwealth preenchendo certos critérios [qualifying Commonwealth citizen, a seguir «QCC»] ou cidadão da União Europeia (diferente do QCC), e

–      ter no mínimo 18 anos de idade.

25     O artigo 16.°, n.° 5, da EPRA 2003 define o QCC como a pessoa:

–      em relação à qual, em conformidade com a legislação de Gibraltar, não é exigido qualquer documento ou autorização para entrar ou permanecer em Gibraltar, ou

–      que, actualmente, seja titular de um documento ou de uma autorização que lhe permita entrar e permanecer em Gibraltar (ou que, em conformidade com uma qualquer disposição prevista pela regulamentação de Gibraltar, for considerada possuir esse documento ou autorização).

26     Os artigos 17.° e 18.° da EPRA 2003 prevêem que podem ser adoptadas diversas disposições relativas aos cadernos eleitorais de Gibraltar e ao direito de voto pelo Lord Chancellor ou pela lei. Essas disposições foram adoptadas pelo Secretário de Estado dos Assuntos Constitucionais (secretary of State for constitutional affairs), para o qual foram transferidas certas funções do Lord Chancellor, pelo Regulamento de 2004 relativo às eleições para o Parlamento Europeu (European Parliamentary Elections Regulations 2004) e pelo Despacho de 2004 relativo às eleições para o Parlamento Europeu (European Parliamentary Elections Ordinance 2004) adoptado pela Assembleia Legislativa de Gibraltar.

27     O artigo 27.° da EPRA 2003 alterou, para fazer referência a Gibraltar, o artigo 10.° da Lei de 2002 relativa às eleições para o Parlamento Europeu («European Parliamentary Elections Act 2002») do qual decorre que uma pessoa não é privada do direito de ser eleita membro do Parlamento Europeu devido ao facto de não ser cidadão britânico mas cidadão da Commonwealth,

28     O artigo 22.° da EPRA 2003 autoriza a adopção de regras específicas para os diferentes círculos eleitorais e, especificamente, para o círculo eleitoral combinado de Inglaterra e do País de Gales e para Gibraltar.

29     Nos termos do artigo 23.° da EPRA 2003, os órgãos jurisdicionais de Gibraltar são competentes para decidir os litígios em matéria eleitoral.

30     No artigo 28.°, n.° 2, a EPRA 2003 define o seu âmbito de aplicação territorial como sendo o Reino Unido e Gibraltar.

 Procedimento pré‑contencioso e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

31     Após uma troca de correspondência, o Reino de Espanha apresentou à Comissão, em 28 de Julho de 2003, com fundamento no artigo 227.° CE, uma queixa contra o Reino Unido, requerendo‑lhe que desse início a uma acção por incumprimento contra este Estado‑Membro no Tribunal de Justiça devido à alegada incompatibilidade da EPRA 2003 com o direito comunitário. Em 11 de Setembro de 2003, o Reino Unido apresentou à Comissão as suas observações em resposta a essa queixa. Em 1 de Outubro de 2003, a Comissão ouviu os representantes dos dois Estados‑Membros em causa. Na sequência dessa audiência, a Comissão autorizou esses Estados a apresentarem observações escritas complementares, o que estes fizeram em 3 de Outubro de 2003.

32     Em 29 de Outubro de 2003, a Comissão fez a seguinte declaração:

«Na sequência de um exame aprofundado da queixa da Espanha e do encontro que teve lugar em 1 de Outubro, a Comissão entende que o Reino Unido alargou o direito de voto aos residentes em Gibraltar no âmbito do poder de apreciação atribuído aos Estados‑Membros pelo direito comunitário. Todavia, dado o carácter sensível da questão bilateral subjacente, a Comissão abstém‑se, nesta fase, de formular um parecer fundamentado nos termos do artigo 227.° [CE] e convida as partes a encontrarem uma solução amigável.»

33     O comunicado de imprensa da Comissão refere nomeadamente:

«O Tratado CE prevê que a Comunidade Europeia é competente para definir um processo uniforme para as eleições para o Parlamento Europeu. Esse processo uniforme pode envolver regras que definam a categoria de pessoas autorizadas a votar. Apesar disso, o acto de 1976 não aborda a questão do direito de voto. Portanto, são as disposições nacionais que são aplicáveis.

Embora o direito de voto para as eleições do Parlamento Europeu seja regido pelos princípios gerais relativos às eleições (concretamente, que o escrutínio deve ser directo, universal, livre e secreto), nenhum princípio geral de direito comunitário prevê que, nas eleições para o Parlamento Europeu, o eleitorado deva ser limitado aos cidadãos da União Europeia.

No que diz respeito à questão dos círculos eleitorais, o acto de 1976 não contém nenhuma disposição relativa à criação de círculos eleitorais; portanto, compete aos Estados‑Membros prever essas disposições.

O anexo [I] do acto de 1976 deve ser interpretado à luz da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem [e das Liberdades Fundamentais], que garante a organização de eleições livres para a escolha dos corpos legislativos, a fim de respeitar os direitos fundamentais. Esta disposição é, portanto, suficientemente flexível para permitir ao Reino Unido integrar o eleitorado de Gibraltar no eleitorado britânico para as eleições para o Parlamento Europeu, segundo o seu sistema eleitoral nacional.»

34     Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2004, a Comissão foi autorizada a intervir no presente processo em apoio dos pedidos do Reino Unido.

 Quanto à acção

35     O Reino de Espanha sublinha que a sua acção tem unicamente por objecto as eleições tal como são organizadas em Gibraltar e não o facto de o Reino Unido reconhecer o direito de voto para o Parlamento Europeu aos QCC que se encontrem no território do Reino Unido.

36     O Reino de Espanha invoca dois fundamentos em apoio da sua acção. Através do primeiro destes fundamentos, alega que a extensão do direito de voto para as eleições para o Parlamento Europeu a pessoas que não são nacionais britânicos na acepção do direito comunitário, como prevê a EPRA 2003, viola os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE. Através do segundo fundamento, sustenta que a criação de um círculo eleitoral combinado infringe o acto de 1976, bem como os compromissos assumidos pelo Governo do Reino Unido na sua declaração de 18 de Fevereiro de 2002.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo à violação dos artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE

37     O Reino de Espanha sustenta que, ao conceder o direito de voto aos QCC, que não têm a qualidade de cidadãos comunitários, o Reino Unido violou os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE que, interpretados de modo histórico e sistemático, só reconhecem o direito de eleger e de ser eleito aos cidadãos da União Europeia.

38     Recorda que o Reino Unido definiu várias categorias de cidadãos britânicos aos quais reconheceu direitos diferentes em função da natureza dos vínculos que os uniam a esse país. Como o Tribunal de Justiça reconheceu no n.° 24 do seu acórdão de 20 de Fevereiro de 2001, Kaur (C‑192/99, Colect., p. I‑1237), as declarações do Governo do Reino Unido a este respeito devem ser tomadas em consideração com vista a determinar o campo de aplicação ratione personae do Tratado CE. Não é contestado que os QCC não fazem parte das categorias mencionadas na declaração de 1982. Dado que o artigo 17.°, n.° 1, CE liga a cidadania da União à posse da nacionalidade de um Estado‑Membro, os QCC não são cidadãos da União.

39     Ora, segundo o Reino de Espanha, só aos cidadãos da União pode ser atribuído o direito de voto nas eleições para o Parlamento Europeu devido ao vínculo manifesto existente entre a cidadania da União e a nacionalidade de um Estado‑Membro, por um lado, e o gozo dos direitos previstos pelo Tratado, por outro. Com efeito, há que interpretar de modo sistemático o artigo 19.° CE, que reconhece o direito de voto e de elegibilidade, e o artigo 17.°, n.° 2, CE, que prevê que os cidadãos da União gozam dos direitos previstos pelo Tratado. Qualquer extensão destes direitos a outras pessoas deve ser expressamente previsto pelo Tratado ou por disposições do direito derivado. Sendo portanto o reconhecimento do direito de voto e de elegibilidade uma competência da Comunidade, qualquer alteração do âmbito de aplicação ratione personae desses direitos só pode ser efectuada pelo direito comunitário.

40     A este respeito, o Reino de Espanha não contesta o facto de o acto de 1976 não ter previsto um processo eleitoral uniforme e de o processo eleitoral ser regido, nos Estados‑Membros, pelas disposições nacionais. No entanto, considera que a determinação das pessoas habilitadas a votar é regulamentada pelos artigos 189.° CE e 190.° CE, em conjugação com os artigos 17.° CE e 19.° CE, e que a mesma se impõe aos Estados‑Membros.

41     O artigo 19.°, n.° 2, CE, que reconhece aos cidadãos da União o direito de eleger e de ser eleito para o Parlamento Europeu no Estado‑Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado, e a Directiva 93/109, que fixa as modalidades de exercício desse direito, demonstram o vínculo existente entre a nacionalidade e o direito de voto. O Reino de Espanha observa a este respeito que um QCC na acepção da EPRA 2003, residente noutro Estado‑Membro, não pode exercer o seu direito de voto nesse Estado em conformidade com essas disposições.

42     O Reino de Espanha invoca também, em apoio da sua argumentação, a disposição similar constante do artigo 39.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice em 7 de Dezembro de 2000 (JO C 364, p. 1), que utiliza a expressão «[t]odos os cidadãos da União» e não a expressão «qualquer pessoa» ou uma expressão que remeta para o direito nacional. Precisa que, não podendo o direito de voto de um nacional de um país terceiro ser qualificado de «direito do Homem» ou de «liberdade fundamental», qualquer referência ao artigo 53.° da referida Carta, que prevê que esta não pode ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos pelo direito da União, seria destituída de fundamento.

43     Quanto à expressão «representantes dos povos» que figura no artigo 189.° CE, o Reino de Espanha sublinha em primeiro lugar que esta disposição não regulamenta o direito de voto nas eleições. Por outro lado, o facto de esta disposição existir no Tratado CE antes do conceito de cidadania aí ser introduzido pelo Tratado da União Europeia explica as razões pelas quais não faz referência a esse conceito, dado que o Tratado CE não foi objecto de uma revisão sistemática antes da última conferência intergovernamental. De qualquer modo, a expressão «representantes dos povos» é uma fórmula de estilo que visa as pessoas que partilham a mesma nacionalidade e não a população residente no seu território. A utilização do termo «povo» na acepção de «nação» por várias Constituições dos Estados‑Membros confirma esta interpretação.

44     O Reino de Espanha contesta a tese segundo a qual os direitos que decorrem da cidadania da União podem ter âmbitos de aplicação diferentes, porque isso implicaria um desmembramento dessa cidadania. Ora, segundo o Reino de Espanha, uma das características da cidadania é a unidade, no sentido de que todas as pessoas que beneficiam deste estatuto devem gozar dos direitos e serem sujeitas aos deveres que dela resultam na sua totalidade. Observa, a este respeito, que a extensão da protecção diplomática aos nacionais de países terceiros, dada como exemplo pelo Reino Unido, constitui uma questão alheia ao direito comunitário, porque diz respeito a uma protecção diplomática nacional.

45     Por último, o Reino de Espanha refere o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (JO 2004, C 310, p. 1), no qual, em sua opinião, o vínculo entre o direito de voto para as eleições para o Parlamento Europeu e a cidadania da União não é subentendido, mas explícito. Com efeito, o artigo I‑10.°, n.° 2, alínea b), desse Tratado estabelece que «[a]ssiste aos cidadãos da União […] o direito de eleger e ser eleitos nas eleições para o Parlamento Europeu», o artigo I‑20.°, n.° 2, do referido Tratado dispõe que «[o] Parlamento Europeu é composto por representantes dos cidadãos da União» e o artigo I‑46.°, n.° 2, primeiro parágrafo, desse mesmo Tratado prevê que «[o]s cidadãos são directamente representados ao nível da União no Parlamento Europeu».

46     O Reino Unido expõe as razões históricas que explicam que tenha decidido continuar a conceder o direito de voto aos cidadãos de outros países da Commonwealth que residem no seu território. Depois da Segunda Guerra Mundial, foi convencionado, numa conferência que reuniu, em 1947, o Reino Unido e os Estados a ele ligados por laços políticos especiais, que cada um reconhecia aos outros a liberdade de adoptarem as suas próprias leis em matéria de nacionalidade mas que todas as pessoas identificadas por essas leis como cidadãos deveriam continuar, além disso, a possuir o estatuto comum de «súbdito britânico». A Irlanda também participou nessa conferência e foi previsto um estatuto especial em benefício dos seus cidadãos. Decorre do relatório final da referida conferência, intitulado «Estatuto de um cidadão de um país da Commonwealth noutro país da Commonwealth de que não é cidadão», que, nomeadamente «para aplicar o estatuto comum de súbdito britânico, devem ser concedidos aos cidadãos de um país da Commonwealth que residam noutro país da Commonwealth, nos limites do novo regime da cidadania e na medida em que as condições locais o permitam, os mesmos direitos de que gozam os cidadãos do país em que residem». Assim, designadamente os QCC, quer dizer, os cidadãos da Commonwealth em relação aos quais não é exigido documento ou autorização para entrarem no Reino Unido ou para ali permanecerem ou que possuam um documento ou uma autorização permitindo‑lhes entrar no Reino Unido e aí permanecerem, têm, desde que preencham o requisito de residência, o direito de voto nas eleições parlamentares britânicas. A lei previu que, do mesmo modo, os QCC que residem no Reino Unido têm o direito de voto nas eleições para o Parlamento Europeu. Assim, mais de um milhão de QCC participaram em cada uma dessas eleições desde 1978. Considera‑se que esta atribuição do direito de voto aos QCC faz parte da tradição constitucional do Reino Unido.

47     Disposições semelhantes foram adoptadas para Gibraltar e os QCC residentes em Gibraltar, cujo número é calculado em 200. Reconhecer, no âmbito desta acção relativa a Gibraltar, o princípio segundo o qual os QCC não podem votar nas eleições para o Parlamento Europeu teria por consequência que o Reino Unido deveria privar um grande número de pessoas, tanto em Gibraltar como no Reino Unido, de um direito de voto que exerceram até agora.

48     Apoiado pela Comissão, o Reino Unido contesta a conclusão que o Reino de Espanha tira do n.° 24 do acórdão Kaur, já referido. Em sua opinião, as disposições do Tratado CE têm um âmbito de aplicação ratione personae diferente segundo a matéria em causa e o processo que deu origem ao referido acórdão Kaur apenas visava as disposições relativas à livre circulação de pessoas e os direitos que decorrem da cidadania a esse respeito. Sublinha a finalidade limitada da declaração de 1982 e o facto de essa declaração não ter por objecto definir as categorias de pessoas habilitadas a votar nas eleições para o Parlamento Europeu. Portanto, essa declaração não pode ser utilizada para determinar quais são os titulares do direito de voto para o Parlamento Europeu nem ser compreendida no sentido de que o Reino Unido exprimiu nessa declaração a intenção de retirar o direito de voto aos QCC residentes no Reino Unido que dispunham desse direito desde as primeiras eleições directas para o Parlamento Europeu. Por outro lado, o Reino Unido não foi contra a sua própria declaração ao estender o direito de voto para o Parlamento Europeu aos QCC residentes em Gibraltar.

49     O Reino Unido, apoiado neste aspecto pela Comissão, considera que tinha o direito de estender o direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu aos nacionais de países terceiros. Com efeito, não existe nenhuma disposição do direito comunitário que a isso se oponha.

50     Em primeiro lugar, o direito comunitário não regula toda a matéria relativa ao direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu. Com efeito, a Comunidade só exerceu a competência, que lhe é reconhecida pelo artigo 190.°, n.° 4, CE, de definir um «processo uniforme em todos os Estados‑Membros» pelo acto de 1976, cujo artigo 8.°, para todas as matérias não regulamentadas por esse acto, remete para as disposições nacionais. Há igualmente que ter em conta os princípios gerais do direito comunitário. Não definindo o acto de 1976 as categorias de pessoas habilitadas a votar nas eleições para o Parlamento Europeu, foi em conformidade com esse acto que tal questão podia ser regulada pela EPRA 2003.

51     O artigo 19.°, n.° 2, CE, que reconhece aos cidadãos da União o direito de voto num Estado‑Membro de que não são nacionais, e a Directiva 93/109, que fixa as modalidades do exercício desse direito, não se opõem à concessão do direito de voto a pessoas que não têm a qualidade de cidadão da União. O Reino Unido faz referência ao terceiro considerando da Directiva 93/109, que prevê que o direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu no Estado de residência «constitui uma aplicação do princípio da não discriminação entre nacionais e não nacionais e um corolário do direito de livre circulação e residência». Estas disposições têm essencialmente por objectivo suprimir o requisito da nacionalidade, mas não definir o direito de voto.

52     Por outro lado, os artigos 189.° CE e 190.° CE não mencionam a cidadania da União, mas utilizam a expressão «povos dos Estados reunidos na Comunidade», que não deve necessariamente ser entendida como sendo sinónimo de «nacionais dos Estados‑Membros» mas que pode também designar um conjunto de pessoas muito maior, como as pessoas residentes num dado território. O Reino Unido sublinha que, embora tenha sido possível modificar estas disposições, nomeadamente no momento da adopção do Tratado da União Europeia, os termos «nacionais» ou «cidadãos da União» não foram utilizados. Assim, a interpretação histórica não pode ser invocada e, a partir dessas disposições, não pode ser estabelecido um vínculo entre a cidadania da União e o direito de voto nas eleições para o Parlamento Europeu.

53     A Comissão alega que estes artigos não podem ser interpretados no sentido estrito, como sustenta o Reino de Espanha. Não existe, em todos os Estados‑Membros, um vínculo entre a legitimidade do poder público e a nacionalidade. Há que ter em consideração as abordagens diferentes, como a que resulta da tradição constitucional do Reino Unido.

54     Quanto ao artigo 17.°, n.° 2, CE, a Comissão alega que este não prevê que só os cidadãos da União dispõem dos direitos conferidos pelo Tratado. O Reino Unido, apoiado pela Comissão, observa a este respeito que o Tratado concede a pessoas que não têm a qualidade de cidadão da União certos direitos, como o direito de petição perante o Parlamento Europeu ou o direito de se dirigir ao Provedor Europeu. O Reino Unido alega também que os Estados‑Membros podem estender a essas pessoas os direitos conferidos pelo Tratado aos cidadãos da União, como o direito à protecção pelas autoridades diplomáticas e consulares. O mesmo se passa relativamente ao direito de participar na vida política que pode ser concedido por um Estado‑Membro aos nacionais de países terceiros. Daqui não redundará um «desmembramento da cidadania da União».

55     A Comissão sublinha e este respeito que a violação do conceito de cidadania da União só pode verificar‑se em caso de infracção aos direitos dos cidadãos, seja por negação pura e simples desses direitos, seja por entrave ao seu exercício. Ora, o facto de um Estado‑Membro, devido à sua história e à sua tradição constitucional, estender o direito de voto para as eleições para o Parlamento Europeu, em determinadas condições, a residentes de países terceiros com os quais mantém laços históricos especiais não infringe o direito de voto dos cidadãos da União. O Reino Unido precisa que a extensão do direito de voto aos QCC é irrelevante quanto às instituições da União ou quanto a outros Estados‑Membros e só afecta a identidade dos representantes oriundos de círculos eleitorais britânicos que sejam eleitos para o Parlamento Europeu.

56     O Reino Unido, apoiado pela Comissão, observa que o artigo 39.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no caso de o Tribunal de Justiça o considerar pertinente no caso em apreço, deve ser interpretado tendo em consideração o artigo 53.° da referida Carta. A Comissão alega também que a redacção do artigo 39.° da referida Carta não pode ser considerada a prova da limitação do direito de voto apenas aos cidadãos da União. Tanto o Reino Unido como a Comissão interpretam esta disposição no sentido de que não permite violar o direito de voto que é actualmente reconhecido por um Estado‑Membro aos nacionais de países terceiros.

57     Quanto ao Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, o Reino Unido sustenta que ainda não entrou em vigor e que, portanto, não é pertinente. Por outro lado, nem o artigo I‑20.° nem o artigo I‑46.° deste Tratado pretendem, à primeira vista, excluir os nacionais de países terceiros do direito de voto nem impor o modo como os Estados‑Membros fixam os requisitos para o voto. O artigo III‑330.° que, à semelhança do artigo 190.°, n.° 4, CE, dá competência ao Conselho para adoptar as medidas para a eleição para o Parlamento Europeu não tem por objectivo limitar a margem de apreciação do Conselho. De qualquer modo, resulta claramente das declarações unilaterais anexadas à referida Constituição, nomeadamente a declaração n.° 48 do Reino Unido relativa ao direito de voto para as eleições parlamentares europeias, que os Estados‑Membros estavam em desacordo sobre a questão do direito de voto dos nacionais de países terceiros.

58     Por último, a Comissão alega que, embora o conceito de cidadania seja fundamental para a União, o mesmo se pode dizer em relação ao compromisso de a União respeitar a identidade nacional dos seus membros. O artigo 8.° do acto de 1976 confirma este princípio, visto que prevê que as disposições nacionais que regem o processo eleitoral podem eventualmente ter em consideração as especificidades existentes nos Estados‑Membros.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

59     Através do seu primeiro fundamento, o Reino de Espanha sustenta que o Reino Unido violou os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE ao conceder aos QCC residentes em Gibraltar o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu. Este fundamento é baseado na premissa segundo a qual estas disposições do Tratado estabelecem um vínculo entre cidadania da União e o direito de voto, bem como de elegibilidade para o Parlamento Europeu, tendo a existência desse vínculo por consequência que apenas os cidadãos da União podem ser titulares desse direito.

60     A título preliminar, há que recordar que foi para se conformar com o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Matthews c. Reino Unido, já referido, que o Reino Unido adoptou a legislação contestada pelo Reino de Espanha.

61     Como resulta da sua declaração de 18 de Fevereiro de 2002, o Reino Unido comprometeu‑se a velar para que sejam «introduzidas as alterações necessárias para permitir aos eleitores de Gibraltar participar nas eleições para o Parlamento Europeu no quadro de um círculo eleitoral existente no Reino Unido e nas mesmas condições que os outros eleitores desse círculo».

62     Tendo em consideração esta declaração, que o Reino de Espanha não contesta que reflecte um acordo celebrado entre esses dois Estados‑Membros e cuja violação o Reino de Espanha invoca no seu segundo fundamento, o Reino Unido adoptou, para Gibraltar, uma legislação que prevê os mesmos requisitos relativos ao direito de voto e de elegibilidade que os previstos pela legislação aplicável no Reino Unido. A expressão «eleitores de Gibraltar» deve efectivamente ser interpretada por referência ao conceito de eleitores como é definido pela legislação do Reino Unido.

63     Por razões ligadas à sua tradição constitucional, o Reino Unido tomou a decisão, tanto para as eleições nacionais no Reino Unido como para as eleições para a Assembleia Legislativa de Gibraltar, de conceder o direito de voto e de elegibilidade aos QCC que reúnam os requisitos que exprimam um vínculo específico com o território em relação ao qual são organizadas as eleições.

64     A este respeito, importa sublinhar que, devido ao facto de a Sr.a Matthews, «na sua qualidade de residente em Gibraltar, ter sido privada da possibilidade de expressar a sua opinião quanto à escolha dos membros do Parlamento Europeu», o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que a não organização de eleições para o Parlamento Europeu em Gibraltar era contrária ao artigo 3.° do Protocolo n.° 1 da CEDH.

65     Segundo o Reino de Espanha, a extensão do direito de voto nas eleições para o Parlamento Europeu a pessoas que não têm a qualidade de cidadão da União infringe os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE. Ora, os artigos 189.° CE e 190.° CE não referem de modo explícito e preciso quais são os titulares do direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu.

66     Quanto aos artigos 17.° CE e 19.° CE, que fazem parte da parte II do Tratado, relativa à cidadania da União, só a última destas disposições trata especificamente, no seu n.° 2, do direito de voto para o Parlamento Europeu. Ora, este artigo limita‑se a aplicar o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade ao exercício desse direito, ao prever que qualquer cidadão da União que resida num Estado‑Membro de que não seja nacional tem o direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu no Estado‑Membro em que reside nas mesmas condições que os nacionais desse Estado.

67     O artigo 190.°, n.° 4, CE diz respeito ao processo relativo a essas eleições. Precisa que a eleição será feita através de sufrágio universal directo segundo um processo uniforme em todos os Estados‑Membros ou em conformidade com os princípios comuns a todos os Estados‑Membros.

68     O acto de 1976 prevê, no seu artigo 1.°, que os membros do Parlamento Europeu são eleitos através de escrutínio proporcional e que a eleição decorrerá através de sufrágio universal directo, livre e secreto. Nos termos do artigo 2.° desse acto, os Estados‑Membros podem prever, em função das suas especificidades nacionais, constituir círculos eleitorais para as eleições para o Parlamento Europeu ou definir outras formas de subdivisão do seu espaço eleitoral, sem prejuízo do carácter proporcional do sistema de escrutínio. Nos termos do artigo 3.° do referido acto, podem prever a fixação de um limite mínimo para a atribuição dos mandatos.

69     O artigo 8.° do acto de 1976 precisa que, sem prejuízo das disposições contidas neste acto, o processo eleitoral é regido, em cada Estado‑Membro, pelas disposições nacionais mas que estas, que podem eventualmente ter em conta especificidades existentes nos Estados‑Membros, não devem globalmente prejudicar o carácter proporcional do sistema de escrutínio,

70     Todavia, nem o artigo 190.° CE nem o acto de 1976 determinam de forma expressa e precisa quais são os titulares do direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu. Assim, enquanto tais, essas disposições não excluem que uma pessoa que não tenha a qualidade de cidadão da União, como um QCC residente em Gibraltar, beneficie do direito de voto e de elegibilidade. No entanto, há que verificar se, como sustenta o Reino de Espanha, existe um vínculo manifesto entre a cidadania da União e o direito de voto e de elegibilidade que impõe que este direito seja sempre reservado aos cidadãos da União.

71     Nenhuma conclusão clara a este respeito pode ser retirada dos artigos 189.° CE e 190.° CE, relativos ao Parlamento Europeu, que referem que este é composto por representantes dos povos dos Estados‑Membros, dado que o termo «povos», que não está definido, pode ter diferentes significados consoante os Estados‑Membros e as línguas da União.

72     Quanto aos artigos do Tratado relativos à cidadania da União, não se pode deles deduzir o princípio segundo o qual os cidadãos da União são os únicos beneficiários de todas as outras disposições do Tratado, o que implicaria que os artigos 189.° CE e 190.° CE só se aplicariam a estes cidadãos.

73     Com efeito, embora o artigo 17.°, n.° 2, CE preveja que os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos no Tratado, há que observar que este último reconhece direitos que não estão ligados à qualidade de cidadão da União, nem mesmo de nacional de um Estado‑Membro. Assim, por exemplo, os artigos 194.° CE e 195.° CE determinam que o direito de apresentar petições ao Parlamento Europeu ou de apresentar uma queixa ao Provedor de Justiça não são reservados aos cidadãos da União, mas podem ser exercidos por «qualquer pessoa singular ou colectiva com residência ou sede estatutária num Estado‑Membro».

74     Por outro lado, embora o estatuto de cidadão da União tenda a ser um estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros que permite aos que se encontrem na mesma situação obter, independentemente da sua nacionalidade e sem prejuízo das excepções expressamente previstas a este respeito, o mesmo tratamento jurídico (acórdão de 20 de Setembro de 2001, Grzelczyk, C‑184/99, Colect., p. I‑6193, n.° 31), esta afirmação não tem necessariamente por consequência que os direitos reconhecidos pelo Tratado são reservados aos cidadãos da União.

75     A este propósito, no acórdão Kaur, já referido, o Tribunal de Justiça, que recorda a importância da declaração do Governo do Reino Unido relativa à definição do termo «nacionais» para as outras partes contratantes no Tratado relativo à adesão às Comunidades Europeias do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte refere, no n.° 24 desse acórdão, que essa declaração permite determinar o âmbito de aplicação ratione personae das disposições comunitárias que são objecto do referido Tratado. Interpretada no seu contexto, particularmente em conjugação com o n.° 22 do mesmo acórdão, em que o Tribunal de Justiça precisa que, através da declaração de 1972, o Reino Unido indicou às outras partes contratantes quais eram as categorias de cidadãos que deviam ser consideradas seus nacionais na acepção do direito comunitário, essa frase visa o âmbito de aplicação das disposições do Tratado CE que fazem referência ao conceito de «nacional», como as disposições relativas à livre circulação de pessoas, em causa no processo principal na origem do referido acórdão, e não a todas as disposições do Tratado, como sustenta o Reino de Espanha.

76     Quanto ao artigo 19.°, n.° 2, CE, invocado também pelo Reino de Espanha em apoio da sua tese segundo a qual existe um vínculo entre a cidadania da União e o direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu, não se limita, como foi recordado no n.° 66 do presente acórdão, a enunciar uma regra de igualdade de tratamento entre cidadãos da União que residem num Estado‑Membro no que diz respeito ao direito de voto e de elegibilidade. Embora essa disposição, como o artigo 19.°, n.° 1, CE relativo ao direito de voto e de elegibilidade dos cidadãos da União nas eleições municipais, implique que os nacionais de um Estado‑Membro beneficiam do direito de voto e de elegibilidade no seu próprio país e imponha aos Estados‑Membros o reconhecimento desses direitos aos cidadãos da União que residem no seu território, não pode daí deduzir‑se que um Estado‑Membro que está numa situação como a do Reino Unido esteja impedido de conceder o direito de voto e de elegibilidade a determinadas pessoas que têm um vínculo estreito com esse Estado sem, no entanto, terem a qualidade de nacional desse Estado‑Membro ou de um outro Estado‑Membro.

77     Por outro lado, dado que o número de representantes eleitos em cada Estado‑Membro está fixado no artigo 190.°, n.° 2, CE e que, no estádio actual do direito comunitário, as eleições para o Parlamento Europeu são organizadas em cada Estado‑Membro para os representantes eleitos nesse Estado, uma extensão, por um Estado‑Membro, do direito de voto para essas eleições a outras pessoas que não os seus próprios nacionais ou a cidadãos da União que residem no seu território afecta apenas a escolha dos representantes eleitos nesse Estado‑Membro e não produz efeitos na escolha nem no número de representantes eleitos nos outros Estados‑Membros.

78     Decorre de todas estas considerações que, no estádio actual do direito comunitário, a determinação dos titulares do direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu faz parte da competência de cada Estado‑Membro no respeito do direito comunitário e que os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE não se opõem a que os Estados‑Membros concedam esse direito de voto e de elegibilidade a determinadas pessoas que têm vínculos estreitos com esses Estados, que não sejam os seus próprios nacionais ou cidadãos da União residentes no seu território.

79     Por razões ligadas à sua tradição constitucional, o Reino Unido optou por conceder o direito de voto e de elegibilidade aos QCC que preencham os requisitos que expressem um vínculo específico com o território em relação ao qual as eleições são organizadas. Não existindo, nos Tratados comunitários, disposições que refiram expressa e precisamente quais são os titulares do direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu, não se afigura que a escolha do Reino Unido de transpor para as eleições para esse Parlamento organizadas em Gibraltar as condições de voto e de elegibilidade previstas pela sua legislação nacional tanto para as eleições nacionais do Reino Unido como para as eleições para a Assembleia Legislativa de Gibraltar seja contrária ao direito comunitário.

80     Por todas estas razões, há que declarar que o Reino de Espanha não provou que o Reino Unido violou os artigos 189.° CE, 190.° CE, 17.° CE e 19.° CE ao adoptar a EPRA 2003 que prevê, no que diz respeito a Gibraltar, que os QCC residentes no território, que não têm a qualidade de cidadão comunitário, têm o direito de voto e de elegibilidade para o Parlamento Europeu. Por conseguinte, o primeiro fundamento não procede.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo à violação do acto de 1976 e dos compromissos assumidos pelo Governo do Reino Unido na sua declaração de 18 de Fevereiro de 2002

81     O Reino de Espanha sustenta que, ao não se limitar, pela EPRA 2003, a incorporar os eleitores residentes em Gibraltar num círculo eleitoral britânico na sua qualidade de pessoas que têm a nacionalidade britânica em conformidade com a declaração de 1982, mas ao prever a ligação do território de Gibraltar a um círculo eleitoral existente em Inglaterra ou no País de Gales, o Reino Unido violou o anexo I do acto de 1976 e a sua declaração de 18 de Fevereiro de 2002.

82     O Reino de Espanha recorda o estatuto de Gibraltar como está definido no artigo X do Tratado de Utrecht, nomeadamente o direito de preferência reconhecido ao Reino de Espanha pelo último período desse artigo. Precisa que, em 1830, o Reino Unido deu a Gibraltar a categoria de colónia da Coroa (Crown colony) e que, quando da criação das Nações Unidas em 1946, Gibraltar foi inscrito como «território não autónomo» na acepção do capítulo XI da Carta das Nações Unidas. Além disso, o Reino de Espanha recorda as negociações em curso entre ele e o Reino Unido a respeito da descolonização de Gibraltar.

83     Em conformidade com a Resolução 2625 (XXV) de 24 de Outubro de 1970, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, o território de uma colónia deve ter um estatuto separado e distinto do do território do Estado que o administra. O anexo I do acto de 1976 é uma aplicação deste princípio. Ora, segundo o Reino de Espanha, a EPRA 2003 viola o estatuto internacional de Gibraltar e o anexo I do acto de 1976, na medida em que contém uma regulamentação relativa ao território de Gibraltar. Como explicou o representante do Reino de Espanha na audiência, a situação de Gibraltar é uma situação colonial e o reconhecimento de um território eleitoral distinto seria um passo para a independência que iria contra as regras internacionais que regem essa colónia.

84     Segundo o Reino de Espanha, embora o artigo 9.° da EPRA 2003 não seja necessariamente contrário ao anexo I do acto de 1976, na medida em que prevê a ligação de Gibraltar a um círculo eleitoral de Inglaterra ou do País de Gales, tal não é o caso de outras disposições dessa legislação, que se referem unicamente a Gibraltar. Assim, o artigo 14.° prevê a elaboração de um caderno eleitoral em Gibraltar, sob a responsabilidade do secretário da Assembleia Legislativa de Gibraltar, e não sob a responsabilidade de um agente da Coroa britânica. Do mesmo modo, o direito de ser inscrito nos cadernos eleitorais de Gibraltar é definido em relação ao território de Gibraltar e o direito de voto está previsto em Gibraltar. Os órgãos jurisdicionais locais de Gibraltar são competentes para decidir os litígios em matéria eleitoral. Por último, o artigo 28.°, n.° 2, da EPRA 2003 define o seu âmbito de aplicação territorial como sendo o Reino Unido e Gibraltar. Portanto, é feita uma aplicação territorial das disposições relativas às eleições para o Parlamento Europeu, quando Gibraltar é excluído do acto de 1976.

85     Tendo em conta a contradição da EPRA 2003 com o anexo I do acto de 1976, o Reino de Espanha considera que o Reino Unido violou a sua própria declaração de 18 de Fevereiro de 2002, declaração unilateral que cria uma obrigação de direito internacional desse Estado‑Membro relativamente ao Reino de Espanha, na qual se comprometia, a fim de dar cumprimento ao acórdão Matthews c. Reino Unido, já referido, a fazer as modificações necessárias para permitir ao eleitorado de Gibraltar votar nas eleições para o Parlamento Europeu enquanto entidade pertencente a um círculo eleitoral no Reino Unido em conformidade com o direito comunitário. Segundo o Reino de Espanha, teria bastado que o Reino Unido incorporasse o eleitorado de Gibraltar num círculo eleitoral do Reino Unido, sem fazer referência ao território de Gibraltar.

86     O Reino Unido, apoiado pela Comissão, recorda a necessidade de interpretar o anexo I do acto de 1976 na medida do possível à luz e em conformidade com os direitos fundamentais, nomeadamente o direito de participar em eleições reconhecido no artigo 3.° do Protocolo n.° 1 da CEDH, como é interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no acórdão Matthews c. Reino Unido, já referido. A fim de executar a obrigação que lhe incumbia por força da CEDH, como foi interpretada nesse acórdão, e dada a recusa expressa pelo Reino de Espanha no sentido de ser suprimido o anexo I do acto de 1976, o Reino Unido comprometeu‑se, através da sua declaração de 18 de Fevereiro de 2002, a que fossem feitas as modificações necessárias a fim de permitir aos eleitores de Gibraltar votar nas eleições para o Parlamento Europeu nas mesma condições que os eleitores de um círculo eleitoral existente no Reino Unido.

87     O Reino Unido considera que não violou o seu compromisso. Gibraltar está ligado ao círculo eleitoral do Sudoeste de Inglaterra em conformidade com uma recomendação da comissão eleitoral na sequência de uma consulta pública. Os requisitos a preencher para ser eleitor são os mesmos que são previstos pela lei eleitoral do Reino Unido, concretamente os de cidadania, de residência e de inscrição nos cadernos eleitorais. Estes requisitos foram simplesmente adaptados, mutatis mutandis, aos eleitores de Gibraltar.

88     Segundo o Reino Unido, a técnica utilizada, na medida em que faz referência ao território de Gibraltar nomeadamente no que diz respeito ao local de residência do eleitor, é inerente ao sistema eleitoral britânico e não tem por efeito considerar Gibraltar como fazendo parte do Reino Unido. Quanto às operações eleitorais ou à elaboração dos cadernos eleitorais, o Reino Unido observa que a sua localização em Gibraltar tem por objectivo permitir aos eleitores de Gibraltar exercer os seus direitos nas mesmas condições que os outros eleitores do círculo do Sudoeste de Inglaterra, ou seja, na proximidade do seu local de residência.

89     Por último, a Comissão alega que a margem de apreciação deixada às autoridades de Gibraltar é reduzida e que a EPRA 2003 prevê garantias que asseguram um controlo suficiente por parte das autoridades britânicas.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

90     Como foi recordado no n.° 60 do presente acórdão, foi para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Matthews c. Reino Unido, já referido, que o Reino Unido adoptou a legislação posta em causa pelo Reino de Espanha. O Reino de Espanha não contesta que o Reino Unido era obrigado a respeitar essa obrigação, apesar da manutenção do anexo I do acto de 1976. Por outro lado, como foi referido no n.° 62 do presente acórdão, o Reino de Espanha não contesta que a declaração do Reino Unido de 18 de Fevereiro de 2002 reflecte um acordo entre estes dois Estados‑Membros a respeito das condições em que o Reino Unido devia dar cumprimento a esse acórdão. Do mesmo modo, como decorre do n.° 13 do presente acórdão, o Conselho e a Comissão tiveram em conta a referida declaração.

91     Nessa declaração, o Reino Unido comprometeu‑se a «velar […] para que sejam introduzidas as alterações necessárias para permitir aos eleitores de Gibraltar participar nas eleições para o Parlamento Europeu no quadro de um círculo eleitoral existente no Reino Unido e nas mesmas condições dos outros eleitores desse círculo».

92     Como alegaram justificadamente o Reino Unido e a Comissão, a expressão «nas mesmas condições» não pode ser interpretada no sentido de que a legislação do Reino Unido é aplicável, sem ter sido objecto de uma adaptação, aos eleitores de Gibraltar equiparando‑os aos eleitores do círculo eleitoral do Reino Unido no qual estão incorporados. Essa hipótese implicaria efectivamente que o direito de voto e de elegibilidade fosse definido em relação ao território do Reino Unido, que os eleitores se deslocassem ao Reino Unido para consultar os cadernos eleitorais, votassem no Reino Unido ou por correspondência e submetessem os litígios em matéria eleitoral nos órgãos jurisdicionais do Reino Unido.

93     Pelo contrário, foi para respeitar a exigência resultante dessas «mesmas condições» que o Reino Unido transpôs a sua legislação para Gibraltar e a adaptou, mutatis mutandis, a esse território. Assim, o eleitor de Gibraltar está numa situação análoga à de um eleitor do Reino Unido e não deve fazer face a dificuldades ligadas ao estatuto de Gibraltar, que não permitam exercer esse direito de voto ou o possam dissuadir de o fazer.

94     Neste contexto, há que recordar que, como resulta do n.° 63 do acórdão Matthews c. Reino Unido, já referido, os Estados contratantes gozam de um amplo poder de apreciação para impor condições ao direito de voto. No entanto, essas condições não podem reduzir os direitos em causa a ponto de os violar na sua essência e de os privar de serem efectivos. Devem prosseguir um objectivo legítimo e os meios utilizados não podem ser desproporcionados (v., igualmente, acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Mathieu‑Mohin e Clerfayt c. Bélgica de 2 de Março de 1987, série A, n.° 113, § 52, e Melnitchenko c. Ucrânia de 19 de Outubro de 2004, Colectânea dos acórdãos e decisões 2004‑X, § 54).

95     Tendo em consideração essa jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a circunstância de esse órgão jurisdicional ter declarado contrário ao artigo 3.° do Protocolo n.° 1 da CEDH a não realização de eleições para o Parlamento Europeu em Gibraltar, na medida em que privou «a recorrente, na sua qualidade de residente em Gibraltar» de qualquer possibilidade de expressar a sua opinião quanto à escolha dos membros do Parlamento Europeu, o Reino Unido não pode ser censurado por ter adoptado a legislação necessária para a organização dessas eleições em condições equivalentes, mutatis mutandis, às previstas pela legislação aplicável no Reino Unido.

96     A transposição para o território de Gibraltar, mutatis mutandis, da legislação do Reino Unido também não pode ser contestada, já que resulta do n.° 59 do acórdão Matthews c. Reino Unido, já referido, que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não detectou, no estatuto de Gibraltar, nenhum elemento que demonstre necessidades locais que haveria que ter em consideração, na acepção do artigo 56.°, n.° 3, da CEDH, para aplicação dessa convenção a um território em relação ao qual um Estado contratante assegura as relações internacionais.

97     Por todos os fundamentos expostos, há que declarar que o segundo fundamento do Reino de Espanha também não procede.

 Quanto às despesas

98     Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Reino Unido requerido a condenação do Reino de Espanha e tendo este sido vencido, há que condená‑lo nas despesas. Nos termos do n.° 4, primeiro parágrafo, desse mesmo artigo, a Comissão, que interveio no processo, suportará as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      A acção é julgada improcedente.

2)      O Reino de Espanha é condenado nas despesas.

3)      A Comissão das Comunidades Europeias suportará as suas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: inglês.