CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

F. G. JACOBS

apresentadas em 2 de Junho de 2005 1(1)

Processo C‑33/04

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Grão‑Ducado do Luxemburgo






1.     Neste processo, a Comissão visa obter a declaração de que o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33/CE (2) e 18.°, n.os  1 e 2 da Directiva 98/10/CE (3), relativos à verificação anual da conformidade dos sistemas de contabilização dos custos dos operadores de telecomunicações por um organismo competente e independente e à publicação anual das declarações de conformidade.

2.     A título preliminar, o Governo luxemburguês alega que a acção é inadmissível porque as directivas em causa foram substituídas por outra legislação comunitária antes de a acção ter sido introduzida. Consequentemente, a Comissão não tem interesse em agir e as suas referências, na petição, à legislação mais recente violam a fase pré‑contenciosa e o direito de defesa do Luxemburgo. Em qualquer caso, a acção deve ser julgada improcedente.

 Enquadramento jurídico

 A regulamentação comunitária relativa ao sector das telecomunicações

3.     Desde 1987 (4), a Comunidade tem vindo a adoptar normas relativas às infra‑estruturas e aos serviços em matéria de telecomunicações, com o objectivo de tornar o sector mais competitivo.

4.     Um aspecto fundamental é a separação entre a função reguladora e a função operacional, sendo aquela retirada aos operadores públicos de telecomunicações (no passado, quase sempre monopólios) e conferida a um organismo independente em cada Estado‑Membro (5) – agora designado «autoridade reguladora nacional» – para garantir uma concorrência leal entre os operadores públicos e privados.

5.     Como parte do processo, devia estar assegurada a liberalização total a partir de 1 de Janeiro de 1998, através do «quadro regulamentar de 1998», que comportava diversas directivas adoptadas sobretudo entre 1996 e 1998, incluindo as duas directivas cuja violação é alegada no presente processo.

6.     Posteriormente, no seguimento de uma revisão em 1999, e das conclusões do Conselho Europeu de Lisboa de 23 e 24 de Março de 2000, foi adoptado em 2002 «um novo quadro regulamentar» a implementar até 24 de Julho de 2003. Este quadro tinha o objectivo «de melhor harmonizar a legislação que regula o acesso ao mercado de serviços e redes de comunicações em toda a Comunidade e de baixar os seus custos» (6). Uma das suas principais características foi permitir que determinadas obrigações que anteriormente eram impostas no sentido de assegurar a liberdade de concorrência fossem suprimidas quando a concorrência no mercado estivesse garantida.

7.     A nova regulamentação substituiu e, em grande medida, revogou a regulamentação de 1998, estando, no entanto, sujeita a um determinado número de medidas transitórias que foram exaustivamente discutidas no caso em apreço.

 O quadro regulamentar de 1998

 Directiva 97/33

8.     A Directiva 97/33 foi adoptada tendo em vista a criação de um quadro geral para a interligação com as redes públicas de telecomunicações e os serviços de telecomunicações acessíveis ao público, em condições justas, proporcionadas e não discriminatórias para a interligação e a interoperabilidade (7). No caso de uma organização prestadora de serviços de telecomunicações gozar de um poder de mercado significativo ou ter direitos especiais ou exclusivos num domínio não relacionado com as telecomunicações, essas condições incluíam a separação das contas das actividades em causa, de modo a desencorajar subvenções cruzadas desleais e a identificar todos os factores de custo e de receita relacionados com essas actividades, garantindo a transparência das transferências de custos internas (8).

9.     Para tal, o artigo 7.°, n.° 5, previa:

«A Comissão elaborará [...] recomendações sobre os sistemas de contabilidade de custos e separação de contas relativos à interligação. As autoridades reguladoras nacionais assegurarão que os sistemas de contabilização dos custos usados pelas organizações em causa [(9)] sejam adequados à aplicação dos requisitos constantes do presente artigo e documentados de modo suficientemente pormenorizado [...]

As autoridades reguladoras nacionais assegurarão que, mediante pedido, seja apresentada ao requerente uma descrição do sistema de contabilização dos custos na qual sejam indicadas as principais categorias de custos e as regras aplicadas para a imputação destes últimos à interligação. A conformidade com o sistema de contabilização dos custos será verificada pela autoridade reguladora nacional ou outro organismo competente, independente da organização de telecomunicações e aprovado pela autoridade reguladora nacional. Será publicada anualmente uma declaração relativa à conformidade.»

10.   Em 8 de Abril de 1998, a Comissão adoptou as recomendações previstas no artigo 7.°, n.° 5 (10).

11.   O artigo 23.°, n.° 1, da Directiva 97/33 estabelece: «Os Estados‑Membros porão em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente directiva até 31 de Dezembro de 1997.»

 Directiva 98/10

12.   A Directiva 98/10 visa, em particular, a liberalização do sector da telefonia vocal. Um dos seus objectivos era o de oferecer aos utilizadores serviços a um preço acessível (11). Para tal, o preâmbulo prevê em especial que «a transparência de preços deveria garantir que os assinantes residenciais não subsidiem descontos a clientes comerciais» (12).

13.   Assim, no que diz respeito aos preços, segundo o artigo 17.°, n.° 1, as autoridades reguladoras nacionais deviam garantir que as organizações que oferecem serviços de telefonia vocal e que tenham um «poder de mercado significativo» respeitassem certos princípios tarifários previstos nos n.os  2 a 6 desse mesmo artigo.

14.   No que ao caso importa, o artigo 18.°, intitulado «Princípios de contabilização dos custos», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros garantirão que os sistemas de contabilização dos custos aplicados pelas organizações que, nos termos do artigo 17.°, tenham a obrigação de seguir o princípio da orientação em função dos custos no estabelecimento das suas tarifas sejam adequados à aplicação desse mesmo artigo e que a observância desses sistemas seja verificada por um organismo competente independente dessas organizações. As autoridades reguladoras nacionais garantirão que seja publicada anualmente uma declaração relativa àquela observância.

2.      As autoridades reguladoras nacionais assegurarão que seja posta à sua disposição, quando pedida, uma descrição dos sistemas de contabilização dos custos referidos no n.° 1 que evidencie as principais categorias de custos e as regras para a imputação de custos ao serviço de telefonia vocal. As autoridades reguladoras nacionais comunicarão à Comissão, a pedido desta, informações sobre os sistemas de contabilização dos custos aplicados pelas organizações em causa.

[...]»

15.   De acordo com o artigo 32.°, n.° 1, os Estados‑Membros deviam adoptar as disposições necessárias para dar cumprimento à directiva até 30 de Junho de 1998.

 O novo quadro regulamentar

 Directiva 2002/21/CE (13)

16.   O artigo 26.° da Directiva 2002/21 revogou, entre outras, as Directivas 97/33 e 98/10, com efeitos a partir de 25 de Julho de 2003.

17.   Contudo, nos termos do artigo 27.°, intitulado «Medidas transitórias», os Estados‑Membros estavam obrigados a «manter em vigor, nas suas legislações nacionais, todas as obrigações referidas no artigo 7.° da Directiva 2002/19/CE (directiva acesso) e no artigo 16.° da Directiva 2002/22/CE (directiva serviço universal), até ao momento em que a autoridade reguladora nacional se pronuncie a respeito dessas obrigações nos termos do artigo 16.° da presente directiva».

18.   O artigo 16.° estabelecia um procedimento de análise de mercado a realizar pelas autoridades reguladoras nacionais. No essencial, caso essas autoridades concluíssem que o mercado era efectivamente concorrencial, deviam suprimir as obrigações regulamentares referidas, inter alia, no artigo 7.° da Directiva 2002/19 e no artigo 16.° da Directiva 2002/22; nos restantes casos, deviam impor as obrigações regulamentares específicas adequadas.

 Directiva 2002/19/CE (14)

19.   O artigo 7.° da Directiva 2002/19, para a qual remetem os artigos 16.° e 27.° da Directiva 2002/21, prevê, inter alia, que: «Os Estados‑Membros manterão todas as obrigações relativas ao acesso e interligação, impostas a empresas que fornecem redes de comunicações públicas e/ou serviços que estejam em vigor antes da data da entrada em vigor da presente directiva ao abrigo [inter alia, do artigo 7.° da Directiva 97/33], até que essas obrigações sejam revistas e uma decisão seja tomada em conformidade [com o artigo 16.° da Directiva 2002/21].»

20.   Os Estados‑Membros deviam aprovar e publicar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para darem cumprimento à directiva, o mais tardar, até 24 de Julho de 2003.

 Directiva 2002/22/CE (15)

21.   O artigo 16.° da Directiva 2002/22, para a qual remetem os artigos 16.° e 27.° da Directiva 2002/21, impõe aos Estados‑Membros que mantenham todas as obrigações, designadamente, em matéria de tarifas de retalho para a oferta de acesso e a utilização da rede telefónica pública, nos termos do artigo 17.° da Directiva 98/10, até que essas obrigações sejam revistas e tenha sido tomada uma decisão em conformidade com o artigo 16.° da Directiva 2002/21.

22.   Os Estados‑Membros deviam aprovar e publicar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à directiva, o mais tardar, até 24 de Julho de 2003.

 Resumo

23.   Os Estados‑Membros estavam, assim, obrigados a assegurar, até 31 de Dezembro de 1997, a verificação do cumprimento das obrigações relativas aos sistemas de contabilização dos custos nos termos do artigo 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33 e a publicação anual da correspondente declaração de conformidade. O artigo 7.°, n.° 5, foi revogado com efeitos a partir de 25 de Julho de 2003 e substituído por um novo procedimento de avaliação, que devia entrar em vigor em 24 de Julho de 2003. Contudo, os Estados‑Membros deviam manter em vigor todas as obrigações relativas às empresas anteriormente em vigor por força do artigo 7.°, n.° 5, até que fosse proferida uma decisão relativa à necessidade de manutenção dessas obrigações, no âmbito do procedimento de avaliação.

24.   Além disso, os Estados‑Membros deviam garantir, até 30 de Junho de 1998, a verificação do cumprimento das obrigações relativas aos sistemas de contabilização dos custos previstas no artigo 18.° da Directiva 98/10, as quais deviam respeitar o princípio da orientação em função dos custos nos termos do artigo 17.° da mesma directiva, e a publicação anual da correspondente declaração de conformidade. Estas disposições também foram revogadas com efeitos a partir de 25 de Julho 2003 e substituídas pelo mesmo procedimento de avaliação. No entanto, os Estados‑Membros deviam manter em vigor todas as obrigações relativas às empresas anteriormente em vigor por força do artigo 17.° da Directiva 98/10, até que fosse tomada uma decisão sobre a necessidade de manter essas obrigações, no âmbito do procedimento de avaliação.

25.   Deve aqui recordar‑se que, em 10 de Março de 2005, no processo Comissão/Luxemburgo, C‑236/04, o Tribunal de Justiça declarou que, ao não adoptar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias ao cumprimento das Directivas 2002/19, 2002/20, 2002/21 e 2002/22, o Grão‑Ducado do Luxemburgo não havia cumprido as obrigações que lhe incumbiam por força dessas directivas. Nesse processo, o Luxemburgo reconheceu que não tinha transposto as directivas no prazo fixado.

 Fase pré‑contenciosa

26.   No Luxemburgo, consideravelmente mais de metade do mercado das telecomunicações, quer em geral quer no sector da telefonia vocal, é detido pelo operador público Entreprise des Postes et Télécommunications (a seguir «EPT»). Não está em causa o facto de a EPT deter «um poder de mercado significativo» na acepção dos artigos 7.°, n.° 1, da Directiva 97/33 e 17.°, n.° 1, da Directiva 98/10, o que a sujeita às obrigações do sistema de contabilização dos custos previstas no artigo 7.°, n.° 5, da primeira directiva e no artigo 18.°, n.os  1 e 2, da última.

27.   A autoridade reguladora nacional era inicialmente o Institut Luxemburgeois des Télécommunications (a seguir «ILT»), tendo passado a ser o Institut Luxemburgeois de Régulation (a seguir «ILR») (16).

28.   Em 1998, o Governo luxemburguês enviou à Comissão cópia de várias medidas legislativas que adoptara com vista à transposição, para o direito nacional, das disposições, inter alia, das Directivas 97/33 e 98/10.

29.   Em 9 de Março de 2000, a Comissão pediu ao Governo luxemburguês para lhe enviar, designadamente:

–       uma descrição dos sistemas de contabilização dos custos referidos nos artigos 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33 e 18.°, n.os  1 e 2, da Directiva 98/10, tal como são exigidos por estas disposições; e

–       cópias das declarações anuais de conformidade, nos termos dessas disposições, relativas aos anos de 1998 e 1999.

30.   Na sua resposta de 8 de Junho de 2000, o Governo luxemburguês forneceu a informação relativa aos sistemas de contabilização dos custos, mas não as declarações de conformidade. Com efeito, referiu que a legislação relevante não exigia nenhuma aprovação dos sistemas de contabilização dos custos pelo ILT ou por qualquer outro organismo e que, em qualquer caso, não podia ser emitida nenhuma declaração de conformidade porque a EPT não havia fornecido ao ILT toda a informação necessária.

31.   Por notificação de incumprimento de 30 de Abril de 2001, a Comissão informou o Governo luxemburguês de que considerava que as medidas nacionais de transposição não impunham claramente uma obrigação de publicação anual da declaração de conformidade e que tal declaração não havia sido publicada. Solicitou a este governo que apresentasse as suas observações no prazo de dois meses.

32.   Em 13 de Julho de 2001, o Governo luxemburguês respondeu enviando uma cópia do Regulamento Grão‑Ducal de 18 de Abril de 2001, que especificava que a conformidade dos sistemas de contabilização dos custos em causa devia ser verificada por um organismo competente independente e que a correspondente declaração de conformidade devia ser publicada anualmente. Todavia, uma vez que tais disposições só entraram em vigor em 6 de Maio de 2001, a primeira declaração de conformidade a ser publicada respeitaria apenas ao ano de 2000 ou 2001.

33.   Em 21 de Março de 2002, a Comissão enviou ao Governo luxemburguês um parecer fundamentado, nos termos do artigo 226.° CE (a seguir «primeiro parecer fundamentado»), relativo ao artigo 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33, acompanhado de uma outra notificação de incumprimento relativa a este artigo e ao artigo 18.°, n.° 1, da Directiva 98/10.

34.   No seu primeiro parecer fundamentado, a Comissão declarou que o ILT não tomara as medidas necessárias para verificar a conformidade dos sistemas de contabilização dos custos nem publicara as declarações de conformidade relativas aos anos de 1998 e 1999, tal como era exigido, nos dois casos, pelo artigo 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33. A Comissão instou o Luxemburgo a dar cumprimento ao referido parecer fundamentado no prazo de dois meses.

35.   Em resposta, o Governo luxemburguês reiterou que as disposições relevantes tinham sido adoptadas na regulamentação de 18 de Abril de 2001, que entrou em vigor em 6 de Maio de 2001, mas que não tinha efeito retroactivo.

36.   Na sua segunda notificação de incumprimento, de 21 de Março de 2002, a Comissão afirmou que, aparentemente, ainda não tinha sido efectuada uma verificação da conformidade dos sistemas de contabilização dos custos e que não tinha sido publicada qualquer declaração de conformidade relativa ao ano de 2000, contrariamente ao previsto nos artigos 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33 e 18.°, n.° 1, da Directiva 98/10. Fixou um prazo de dois meses para o Governo luxemburguês apresentar as suas observações.

37.   Em resposta de 28 de Maio de 2002, o Governo luxemburguês repetiu, no essencial, os argumentos anteriores, referindo, designadamente, que as medidas necessárias tinham sido adoptadas na regulamentação de 18 de Abril de 2001, que entrou em vigor em 6 de Maio de 2001, mas que não tinha efeito retroactivo.

38.   Em 11 de Julho de 2003, a Comissão enviou ao Governo luxemburguês um outro parecer fundamentado, nos termos do artigo 226.° CE (a seguir «segundo parecer fundamentado»), no qual afirmava que, de acordo com a informação na sua posse, não tinha sido efectuada até aquela data qualquer verificação ou declaração de conformidade, nos termos previstos no artigo 18.°, n.os  1 e 2, da Directiva 98/10. Concluiu que, ao não adoptar na prática as medidas necessárias para a transposição daquelas disposições, o Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força desta directiva, tendo‑lhe fixado o prazo de dois meses para dar cumprimento ao referido parecer fundamentado.

39.   O Governo luxemburguês respondeu em 1 de Outubro de 2003, argumentando, essencialmente, da mesma forma que na sua carta de 28 de Maio de 2002, tendo também anexado uma cópia das directrizes do ILR relativas à contabilização separada e afirmado que o ILR pretendia aplicar sanções administrativas à EPT no caso de esta não cumprir as suas obrigações.

 Pedido

40.   A Comissão conclui pedindo ao Tribunal de Justiça que se digne declarar que:

–       ao não cumprir a obrigação de verificar a conformidade dos sistemas de contabilização dos custos por um organismo independente competente e ao não publicar uma declaração de conformidade relativa aos anos de 1998 e 1999, o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33; e que

–       ao não aplicar correctamente, na prática, as medidas adoptadas para transpor o disposto no artigo 18.°, n.os  1 e 2, da Directiva 98/10, no que respeita à verificação da conformidade do sistema de contabilização dos custos pela autoridade reguladora nacional ou por outro organismo competente, independente da organização das telecomunicações e aprovado pela autoridade reguladora nacional, bem como no que respeita à publicação anual de uma declaração de conformidade, o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 18.° dessa directiva.

 Admissibilidade

41.   No essencial, o Luxemburgo argumenta que, em relação à alegada violação da Directiva 98/10, esta directiva foi revogada antes do termo do prazo fixado para dar cumprimento ao segundo parecer fundamentado; a acção da Comissão relativa a este ponto é portanto inadmissível. Além disso, mesmo admitindo que o mesmo não acontece, em termos formais, com a Directiva 97/33, a situação não deixa contudo de ser significativamente comparável, uma vez que a Comissão já tinha concluído as suas propostas para o novo quadro regulamentar, que previa a revogação daquela directiva, quando enviou o primeiro parecer fundamentado. Em qualquer caso, dado que as duas directivas alegadamente violadas foram revogadas antes da propositura da acção no Tribunal de Justiça, a Comissão não tem interesse em agir. As referências, na petição, às disposições transitórias, às quais não foi feita qualquer alusão na fase pré‑contenciosa, constituem uma tentativa inadmissível para alterar o fundamento jurídico do processo e uma violação do direito de defesa do Luxemburgo.

42.   A Comissão mantém a tese de que as disposições transitórias do novo quadro regulamentar mantêm em vigor as obrigações em causa, previstas no quadro regulamentar de 1998, até que seja tomada uma decisão em conformidade com o novo quadro regulamentar relativamente às medidas a tomar; salienta que o Luxemburgo ainda não transpôs o novo quadro regulamentar. A Comissão invoca a jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual «quando uma alteração do direito comunitário intervém no decurso da fase pré‑contenciosa é admissível que a Comissão procure obter a declaração de existência do incumprimento das obrigações que têm a sua origem na versão inicial de um acto comunitário, seguidamente alterado ou revogado, e que foram mantidas pelas novas disposições» (17). Esta jurisprudência demonstra não só que a acção é admissível mas também que a referência às disposições transitórias não amplia, de modo algum, o objecto do litígio nem viola o direito de defesa.

43.   As partes discutiram longamente a relevância desta jurisprudência face às circunstâncias do caso em apreço, uma tarefa que não foi facilitada pela subtil complexidade das disposições transitórias e das relações entre si e com as disposições cuja violação é alegada.

44.   Todavia, parece‑me que esta discussão, e sem dúvida o debate acerca da admissibilidade tal como foi conduzido, assentam num equívoco.

45.   Como correctamente salienta o Governo luxemburguês, o objecto de uma acção intentada nos termos do artigo 226.° CE é delimitado pelo procedimento pré‑contencioso, em particular, pelo parecer fundamentado (18).

46.   Resulta com clareza dos autos que a acusação da Comissão assenta no alegado incumprimento, por parte do Luxemburgo, da obrigação de assegurar que um organismo competente independente verifique o respeito, pela EPT, das exigências dos sistemas de contabilização dos custos previstas no artigo 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33, relativamente aos anos de 1998 e 1999, e das exigências equivalentes previstas no artigo 18.°, n.os  1 e 2, da Directiva 98/10, relativamente ao ano de 2000, bem como da obrigação de assegurar a publicação da declaração de conformidade para cada um dos anos em causa.

47.   Outros aspectos – como, por exemplo, o eventual incumprimento inicial da obrigação de definir os sistemas de contabilização dos custos relevantes ou de adoptar medidas suficientemente claras no que diz respeito à verificação obrigatória da conformidade – foram aflorados no decurso da fase pré‑contenciosa, mas não foram referidos nos dois pareceres fundamentados, o que permite presumir que a Comissão ficou satisfeita quanto a esta matéria. Os pareceres fundamentados estão circunscritos à falta de verificação, na prática, da conformidade e à falta de publicação da declaração de conformidade.

48.   O primeiro parecer fundamentado (Directiva 97/33) precisa que se refere aos anos de 1998 e de 1999. É certo que, no segundo parecer fundamentado (Directiva 98/10), o ano de 2000 já não é expressamente mencionado, ao contrário do que acontecera na prévia notificação de incumprimento; o segundo parecer afirma unicamente que, jusqu’ à présent, não teve lugar qualquer verificação ou publicação. Tal pode ser interpretado no sentido de que o alegado incumprimento se estende a todo o período desde 1998, ano em que a directiva entrou em vigor, até 2002, último ano anterior ao parecer fundamentado. No entanto, não existe qualquer referência explícita a esta intenção e, em princípio, o objecto da acção não deve ser alargado, a não ser quanto a pormenores, para além do estabelecido na notificação de incumprimento. Penso, assim, que é preferível considerar que apenas está em causa o ano de 2000. A segunda petição inicial deve igualmente ser entendida à luz destas considerações.

49.   Em qualquer caso, resulta claramente de toda a fase pré‑contenciosa que o processo diz apenas respeito, especificamente, ao incumprimento da obrigação de assegurar a verificação e a publicação, relativamente aos anos em que as directivas estiveram plenamente em vigor e que os Estados‑Membros estavam obrigados a cumpri‑las.

50.   Não se discute qualquer incumprimento de uma obrigação relativa ao período subsequente, durante o qual o novo quadro regulamentar e/ou as disposições transitórias estavam em vigor. Consequentemente, estas disposições são, em minha opinião, completamente irrelevantes para a decisão no caso em apreço.

51.   Igualmente irrelevante é revogação das Directivas 97/33 e 98/10, com efeito a partir de 25 de Julho de 2003. Uma vez que não foram revogadas com efeitos retroactivos, as obrigações que impuseram aos Estados‑Membros relativamente aos períodos anteriores à sua revogação não foram suprimidas. Deste modo, se o Luxemburgo não tinha adoptado, até àquela data, as medidas necessárias para assegurar a verificação e a publicação em causa, relativamente aos anos de 1998 a 2000, não ficou, a partir daí, isento dessa mesma obrigação.

52.   O argumento do Luxemburgo, segundo o qual a Directiva 98/10 «esgotou os seus efeitos» antes do termo do prazo fixado para dar cumprimento ao segundo parecer fundamentado, é, assim, irrelevante; a referida directiva não havia esgotado os seus efeitos relativamente aos períodos em causa. A este respeito, as referências à jurisprudência do Tribunal de Justiça que salienta a necessidade de avaliar a situação no termo do prazo fixado para dar cumprimento ao parecer fundamentado e de que o incumprimento ainda se mantenha naquela data, são irrelevantes.

53.   Deste modo, sem que seja necessário analisar o efeito das disposições transitórias, o facto é que, no fim do prazo fixado para o efeito, o Luxemburgo não tinha cumprido a obrigação de verificação e de publicação das declarações de conformidade, relativamente aos períodos para os quais essa obrigação ainda não tinha sido revogada. Trata‑se de uma situação completamente diferente daquela em que, por exemplo, não é transposta uma directiva que foi revogada antes do termo do prazo fixado para a sua transposição. O mesmo se aplica a fortiori em relação à Directiva 97/33, que ainda estava em vigor no termo do prazo fixado no primeiro parecer fundamentado. Pode acrescentar‑se que o interesse em obter uma decisão de incumprimento se justifica face à possibilidade de as partes se basearem nessa decisão para efeitos de uma eventual acção de indemnização.

54.   Entendo, por isso, que a questão prévia de admissibilidade é infundada.

 Quanto ao mérito

55.   O Luxemburgo invoca dois fundamentos para sustentar que a acção é improcedente.

56.   Em primeiro lugar, refere o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Inter‑Environnement Wallonie (19), segundo o qual, durante o prazo previsto para a transposição de uma directiva, os Estados‑Membros se devem abster de adoptar disposições susceptíveis de comprometer seriamente o resultado prescrito por essa directiva. Consequentemente, desde o momento da publicação, em 24 de Abril de 2002, das directivas que deram origem ao novo quadro regulamentar, a subsequente transposição de obrigações ao abrigo do quadro regulamentar de 1998 só podia ser realizada se fosse compatível com o novo quadro regulamentar. As obrigações que decorriam automaticamente das Directivas 97/33 e 98/10 não eram compatíveis com o sistema de avaliação da necessidade das obrigações nos termos do novo quadro regulamentar.

57.   Uma vez mais, parece‑me que este argumento se baseia numa interpretação errada do objecto da acção. A Comissão não alega o incumprimento de qualquer obrigação por parte do Luxemburgo relativamente ao período posterior a 24 de Abril de 2002, mas sim que o mesmo não cumpriu a obrigação de assegurar a verificação e a publicação quanto aos anos de 1998 e 1999 (Directiva 97/33) e de 2000 (Directiva 98/10). Não vejo como é que o cumprimento destas obrigações podia ter o mais pequeno efeito na transposição das novas directivas no que toca, necessariamente, aos anos subsequentes.

58.   Em segundo lugar, o Luxemburgo alega que as disposições transitórias do novo quadro regulamentar não são aplicáveis nas circunstâncias do caso em apreço. Na minha opinião esta tese é, como acima referi, bastante correcta ratione temporis, independentemente da sua aplicação ratione materiae. Não sendo aplicáveis, as referidas disposições são pura e simplesmente irrelevantes para a apreciação da acção da Comissão.

59.   Por último, o Luxemburgo invoca, a título «supletivo» (à titre surabondant), um terceiro argumento. Salienta que, para cada um dos anos desde 1998, o ILT e o seu sucessor, o ILR, examinaram e aprovaram as ofertas de interligação de referência da EPT e que estas ofertas foram publicadas. Este procedimento envolve a verificação do cumprimento do princípio do sistema de contabilização dos custos, por parte da EPT, o que necessariamente pressupõe a verificação de que foi aplicado o mecanismo de contabilização dos custos adequado. Consequentemente, as autoridades luxemburguesas cumpriram de facto as suas obrigações de verificação e de publicação das declarações de conformidade.

60.   A ser válido, este argumento deve ter seguramente uma importância maior do que o Luxemburgo lhe parece atribuir. Contudo, na minha opinião, não exige uma análise muito aprofundada.

61.   As ofertas de interligação de referência estão previstas no artigo 7.°, n.os  2 e 3, da Directiva 97/33 e devem ser aplicadas, tal como o artigo 7.°, n.° 5, aos operadores de redes públicas de telecomunicações que tenham um poder de mercado significativo. Na medida em que são relevantes para o caso em apreço, estas disposições têm a seguinte redacção:

«2.      Os encargos de interligação seguirão os princípios da transparência e da orientação em função dos custos. A prova de que os encargos decorrem dos custos reais, incluindo uma taxa de compensação do investimento razoável, incumbe à organização que oferece a interligação às suas funcionalidades. As autoridades reguladoras nacionais podem pedir a uma organização que justifique plenamente os seus encargos de interligação e, quando adequado, exigir o ajustamento desses encargos [...]

3.      As autoridades reguladoras nacionais assegurarão a publicação [...] de uma oferta de interligação de referência. A oferta de interligação de referência incluirá a descrição das interligações oferecidas, discriminadas segundo componentes de acordo com as necessidades do mercado, bem como as respectivas condições de oferta, incluindo tarifas.

Poderão ser estabelecidas diferentes tarifas, termos e condições de interligação para diferentes categorias de organizações autorizadas a fornecer redes e serviços sempre que tais diferenças possam ser objectivamente justificadas com base no tipo de interligação fornecida e/ou nas condições nacionais de licenciamento relevantes. As autoridades reguladoras nacionais deverão assegurar que tais diferenças não dêem origem a distorções de concorrência e, em especial, que a organização aplique tarifas, termos e condições de interligação adequadas ao facultar a interligação com os seus próprios serviços ou aos das suas empresas filiais ou associadas [...]

A autoridade reguladora nacional terá a possibilidade de impor alterações à oferta de interligação de referência sempre que tais alterações se justifiquem.

[…]»

62.   Considero que a correcta verificação da conformidade com os adequados sistemas de contabilização dos custos é, de facto, um pré‑requisito para uma eficaz avaliação das ofertas de interligação de referência. Contudo, a conclusão a que chego não é que a realização desta ultima avaliação determina a conformidade com as exigências relativas à contabilização dos custos. Pelo contrário, só quando estas exigências tiverem sido satisfeitas é que a validade da avaliação das ofertas de interligação de referência pode estar garantida.

63.   Consequentemente, o último argumento do Governo luxemburguês não parece relevante para a sua defesa no caso em apreço. Além do mais, tal como a Comissão salientou, esse mesmo argumento colide com o reconhecimento explícito do governo, na fase pré‑contenciosa, de que não teve lugar qualquer verificação ou publicação do tipo das previstas nos artigos 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33 ou 18.°, n.os  1 e 2, da Directiva 98/10, relativamente aos anos em causa, porque, inter alia, a EPT não forneceu toda a informação necessária.

 Despesas

64.   Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

65.   No caso em apreço, a Comissão não pediu a condenação da parte vencida nas despesas, pelo que cada uma das partes deve suportar as próprias despesas.

 Conclusão

66.   Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça:

«1)      declare que:

–       ao não cumprir a obrigação de verificar a conformidade dos sistemas de contabilização dos custos por um organismo independente competente e ao não publicar uma declaração de conformidade relativa aos anos de 1998 e de 1999, o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 7.°, n.° 5, da Directiva 97/33/CE; e que

–       ao não aplicar correctamente, na prática, no tocante ao ano de 2000, as medidas adoptadas para transpor o artigo 18.°, n.os  1 e 2, da Directiva 98/10/CE, no que respeita à verificação da conformidade do sistema de contabilização dos custos pela autoridade reguladora nacional ou por outro organismo competente, independente da organização das telecomunicações e aprovado pela autoridade reguladora nacional, bem como no que respeita à publicação anual de uma declaração de conformidade, o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 18.° dessa directiva;

2)      condene cada uma das partes a suportar as suas próprias despesas.»


1 – Língua original: inglês.


2 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Junho de 1997, relativa à interligação no sector das telecomunicações com o objectivo de assegurar o serviço universal e a interoperabilidade através da aplicação dos princípios da oferta de rede aberta (ORA) (JO L 199, p. 32).


3 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Fevereiro de 1998, relativa à aplicação da oferta de rede aberta (ORA) à telefonia vocal e ao serviço universal de telecomunicações (JO L 101, p. 24) .


4 – V. «Rumo a uma economia dinâmica – Livro Verde relativo ao desenvolvimento do mercado comum dos serviços e equipamentos de telecomunicações», COM(87)290 final.


5 – V., por exemplo, artigo 6.° da Directiva 88/301/CEE da Comissão, de 16 de Maio de 1988, relativa à concorrência nos mercados de terminais de telecomunicações (JO L 131, p. 73), e artigo 7.° da Directiva 90/388/CEE da Comissão, de 28 de Junho de 1990, relativa à concorrência nos mercados de serviços de telecomunicações (JO L 192, p. 10).


6 – V. primeiro considerando da Directiva 2002/20/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Março de 2002, relativa à autorização de redes e serviços de comunicações electrónicas (directiva autorização) (JO L 108, p. 21).


7 – Segundo considerando.


8 – Décimo primeiro considerando.


9 –      Ou seja, essencialmente, operadores de redes públicas de telecomunicações com «um poder de mercado significativo» (artigo 7.°, n.° 1).


10 – Recomendação 98/322/CE da Comissão, de 8 de Abril de 1998, relativa à interligação num mercado das telecomunicações liberalizado (Parte 2 – Separação de contas e contabilização de custos) (JO L 141, p. 6).


11 – Quarto considerando.


12 – Décimo quarto considerando.


13 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações electrónicas (directiva‑quadro) (JO L 108, p. 33).


14 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Março de 2002, relativa ao acesso e interligação de redes de comunicações electrónicas e recursos conexos (directiva acesso) (JO L 108, p. 7).


15 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Março de 2002, relativa ao serviço universal e aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações electrónicas (directiva serviço universal) (JO L 108, p. 51).


16 – Lei de 24 de Julho de 2000, relativa à organização do mercado da electricidade.


17 – V. acórdão de 12 de Junho de 2003, Comissão/Itália (C‑363/00, Colect., p. I‑5767, n.° 22).


18 – V., no âmbito de uma recente decisão acerca destes princípios, acórdão de 24 de Junho de 2004, Comissão/Países Baixos (C‑350/02, Colect., p. I‑0000, n.os  18 a 21).


19 – Acórdão de 18 de Dezembro de 1997, C‑129/96, Colect., p. I‑7411, n.° 45.