Processo C‑402/03
Skov Æg
contra
Bilka Lavprisvarehus A/S
e
Bilka Lavprisvarehus A/S
contra
Jette Mikkelsen e Michael Due Nielsen
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vestre Landsret)
«Directiva 85/374/CEE – Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos – Responsabilidade do fornecedor de um produto defeituoso»
Conclusões do advogado‑geral L. A. Geelhoed apresentadas em 20 de Janeiro de 2005
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 10 de Janeiro de 2006
Sumário do acórdão
1. Aproximação das legislações – Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos – Directiva 85/374
(Directiva 85/374 do Conselho, artigos 1.° e 3.°)
2. Aproximação das legislações – Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos – Directiva 85/374
(Directiva 85/374 do Conselho, artigo 13.°)
3. Questões prejudiciais – Interpretação – Efeitos no tempo dos acórdãos interpretativos
(Artigo 234.° CE)
1. A Directiva 85/374, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, para além dos casos limitativamente enumerados no artigo 3.°, n.° 3, da directiva, a responsabilidade objectiva que esta directiva institui e imputa ao produtor.
Com efeito, dado que a referida directiva prossegue uma harmonização total dos aspectos que regula, a identificação do círculo de responsáveis feita pelos artigos 1.° e 3.° da mesma deve ser considerada exaustiva. Consequentemente, uma vez que o artigo 3.°, n.° 3, da directiva prevê a responsabilidade do fornecedor apenas na hipótese de o produtor não poder ser identificado, uma legislação nacional que preveja que o fornecedor responde directamente perante o lesado pelo produto defeituoso alarga o círculo dos responsáveis.
(cf. n.os 33, 34, 37, 45, disp.)
2. A Directiva 85/374, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem limitação, a responsabilidade por culpa do produtor, uma vez que, em conformidade com o artigo 13.° da mesma directiva, o regime instituído por esta última não afasta a aplicação de outros regimes de responsabilidade contratual ou extracontratual na medida em que assentem em fundamentos diferentes, como a garantia dos vícios ocultos ou a culpa.
(cf. n.os 47, 48, disp.)
3. Só a título excepcional é que o Tribunal de Justiça pode, por aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica comunitária, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição que haja sido por ele interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa fé. Para que se possa decidir por esta limitação, é necessário que se encontrem preenchidos dois critérios essenciais, ou seja, a boa fé dos meios interessados e o risco de graves perturbações.
Quando uma legislação nacional prevê, ao contrário do estabelecido pela Directiva 85/374, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, a transferência para o fornecedor da responsabilidade objectiva do produtor, a circunstância de a mesma ordem jurídica instituir um mecanismo de direito de regresso que permite que o fornecedor que indemnizou o lesado pelo dano causado por um produto defeituoso fique sub‑rogado nos seus direitos contra o produtor exclui que possa haver uma violação da segurança jurídica. Nestas condições, o órgão jurisdicional comunitário não pode deferir um pedido de limitação no tempo dos efeitos do seu acórdão prejudicial que interpretou a referida directiva.
(cf. n.os 51‑53)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)
10 de Janeiro de 2006 (*)
«Directiva 85/374/CEE – Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos – Responsabilidade do fornecedor de um produto defeituoso»
No processo C‑402/03,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Vestre Landsret (Dinamarca), por decisão de 26 de Setembro de 2003, entrado no Tribunal de Justiça em 29 de Setembro de 2003, no processo
Skov Æg
contra
Bilka Lavprisvarehus A/S
e
Bilka Lavprisvarehus A/S
contra
Jette Mikkelsen,
Michael Due Nielsen,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),
composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann (relator), C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Schiemann e J. Makarczyk, presidentes de secção, C. Gulmann, J. N. Cunha Rodrigues, R. Silva de Lapuerta, K. Lenaerts, P. Kūris, E. Juhász e G. Arestis, juízes,
advogado‑geral: L. A. Geelhoed,
secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,
vistos os autos e após a audiência de 17 de Novembro de 2004,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da Skov Æg, por G. Lett e U. Christrup, advokaterne,
– em representação da Bilka Lavprisvarehus A/S, por J. Rostock‑Jensen, advokat,
– em representação de J. Mikkelsen e M. Due Nielsen, por J. Andersen, advokat,
– em representação do Governo dinamarquês, por J. Molde, na qualidade de agente, assistido por P. Biering, advokat,
– em representação do Governo espanhol, por L. Fraguas Gadea e E. Braquehais Conesa, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por N. B. Rasmussen e G. Valero Jordana, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 20 de Janeiro de 2005,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação da Directiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (JO L 210, p. 29; EE 13 F19 p. 8, a seguir «directiva»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe, por um lado, J. Mikkelsen e M. Due Nielsen (a seguir «lesados») à Bilka Lavprisvarehus A/S (a seguir «Bilka») e, por outro, a Bilka à Skov Æg (a seguir «Skov») a respeito da indemnização do prejuízo sofrido pelos lesados em consequência do consumo de ovos postos à venda pela Bilka e produzidos pela Skov.
Quadro jurídico
Regulamentação comunitária
3 Como indica o primeiro considerando da directiva, a sua adopção responde à ideia de que «é necessária uma aproximação das legislações em matéria de responsabilidade do produtor pelos danos causados pela qualidade defeituosa dos seus produtos, por [a] sua disparidade ser susceptível de falsear a concorrência, de prejudicar a livre circulação das mercadorias no mercado comum e de originar diferenças relativamente ao grau de protecção do consumidor ».
4 Tal como resulta do segundo considerando da directiva, o sistema de responsabilidade estabelecido por esta última assenta na constatação de que «a responsabilidade não culposa do produtor é o único meio de resolver de modo adequado o problema, característico da nossa época de crescente tecnicidade, de uma justa atribuição dos riscos inerentes à produção técnica moderna».
5 O artigo 1.° da directiva prevê:
«O produtor é responsável pelo dano causado por um defeito do seu produto.»
6 O artigo 3.° da directiva dispõe:
«1. O termo ‘produtor’ designa o fabricante de um produto acabado, o produtor de uma matéria‑prima ou o fabricante de uma parte componente, e qualquer pessoa que se apresente como produtor pela aposição sobre o produto do seu nome, marca ou qualquer outro sinal distintivo.
2. Sem prejuízo da responsabilidade do produtor, qualquer pessoa que importe um produto na Comunidade tendo em vista uma venda, locação, locação financeira ou qualquer outra forma de distribuição no âmbito da sua actividade comercial, será considerada como produtor do mesmo, na acepção da presente directiva, e responsável nos mesmos termos que o produtor.
3. Quando não puder ser identificado o produtor do produto, cada fornecedor será considerado como produto[r], salvo se indicar ao lesado, num prazo razoável, a identidade do produtor ou daquele que lhe forneceu o produto. O mesmo se aplica no caso de um produto importado, se este produto não indicar o nome do importador referido no n.° 2, mesmo se for indicado o nome do produtor.»
7 Tratando‑se do estabelecimento da responsabilidade do produtor, o artigo 4.° da directiva indica que «[c]abe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e o dano». O artigo 7.° enumera os casos em que o produtor não é responsável. Entre esses casos figuram, designadamente, os casos em que o produtor não colocou o produto em circulação, em que o defeito que causou o dano não existia no momento em que o produto foi por ele colocado em circulação, em que o produto não foi fabricado para distribuição, em que o defeito é devido à conformidade do produto com normas imperativas estabelecidas pelas autoridades públicas e em que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação em circulação do produto não lhe permitiu detectar a existência do defeito.
8 No que diz respeito à relação entre o regime de responsabilidade instituído pela directiva, por um lado, e as legislações nacionais relativas à responsabilidade, por outro, o artigo 13.° da directiva prevê:
«A presente directiva não prejudica os direitos que o lesado pode invocar nos termos do direito da responsabilidade contratual ou extracontratual ou nos termos de um regime especial de responsabilidade que exista no momento da notificação da presente directiva.»
Legislação nacional
9 Resulta das explicações fornecidas pelo Governo dinamarquês que, antes da adopção da directiva, a responsabilidade por produtos defeituosos, tanto a do produtor como a do fornecedor, era regulada na Dinamarca pela jurisprudência. Segundo esta última, a responsabilidade decorrente de produtos defeituosos era apreciada à luz das regras gerais da responsabilidade civil, baseadas no conceito de culpa. A evolução da jurisprudência conduziu entretanto a que, em determinados casos, a responsabilidade do produtor fosse imputada mesmo em casos de inexistência de culpa. Quanto ao fornecedor, ele assume a responsabilidade dos operadores económicos que intervieram a montante da cadeia de produção e de distribuição.
10 A directiva foi transposta na Dinamarca pela Lei n.° 371, de 7 de Junho de 1989, relativa à responsabilidade por produtos defeituosos, alterada pela Lei n.° 1041, de 28 de Novembro de 2000 (a seguir «Lei n.° 371»). O Governo dinamarquês precisou que essa lei, por um lado, colocou a cargo do produtor o regime de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos previsto pela directiva e, por outro, consagrou a regra jurisprudencial existente segundo a qual o fornecedor responde pela responsabilidade dos operadores económicos sucessivamente intervenientes a montante. Quanto ao resto, continuavam a ser aplicadas as regras jurisprudenciais anteriores.
11 O § 4 da Lei n.° 371 define os conceitos de «produtor» e de «fornecedor» do seguinte modo:
«1. É considerado produtor quem fabrica um produto acabado, um produto intermédio ou produz uma matéria‑prima, quem produz ou colhe um produto natural, e ainda quem se apresente como produtor pela aposição sobre o produto do seu nome, marca ou qualquer outro sinal distintivo.
2. Também é considerado produtor quem importa um produto na Comunidade tendo em vista a venda, a locação, a locação financeira ou qualquer outra forma de negócio no âmbito da sua actividade comercial.
3. É considerado fornecedor quem coloca um produto em circulação no âmbito das suas actividades comerciais sem ser considerado o produtor.
[…]»
12 O § 6 da mesma lei estabelece o princípio da responsabilidade do produtor decorrente de produtos defeituosos. O § 10 dessa lei prevê:
«Um fornecedor é directamente responsável pelo produto defeituoso face ao lesado e aos fornecedores subsequentes do circuito comercial.»
13 Nos termos do § 11, n.° 3, da Lei n.° 371, o fornecedor que tenha indemnizado o lesado por um dano causado por um produto defeituoso fica subrogado no direito do lesado em relação a operadores a montante na cadeia de produção e de comercialização.
Processo principal e questões prejudiciais
14 Depois de terem consumido os ovos que tinham comprado numa loja pertencente à Bilka, que, por sua vez, os tinha obtido junto do produtor Skov, os lesados adoeceram com salmonelose.
15 Os lesados accionaram judicialmente a fornecedora Bilka, que requereu a intervenção do produtor Skov.
16 Por decisão de 22 de Janeiro de 2002, o Aalborg Byret declarou que os ovos eram defeituosos, que se verificava um nexo de causalidade entre o defeito e o dano e que não se demonstrava existir qualquer culpa por parte dos lesados. A Bilka foi condenada a pagar uma indemnização aos lesados e a Skov foi condenada a reembolsar a Bilka dessa indemnização.
17 Foi nestas condições que, em sede de recurso interposto pela Bilka e pela Skov, o Vestre Landsret decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) A directiva […] opõe‑se a um regime legal segundo o qual é imputada ao fornecedor, sem limitações, a responsabilidade que incumbe ao produtor nos termos da directiva?
2) A acima referida directiva […] opõe‑se a um regime segundo o qual, nos termos da jurisprudência, é imputada ao fornecedor, sem limitações, a responsabilidade por culpa do produtor, estabelecida na jurisprudência, por produtos defeituosos dos quais resultam danos na pessoa ou nas coisas do consumidor?
3) Tendo em conta:
– o protocolo [da 1025.ª reunião] do Conselho de Ministros [de 25 de Julho de 1985], em que se declara no ponto 2:
‘no que respeita à interpretação dos artigos 3.° e 1[3].°, o Conselho e a Comissão estão de acordo em que nada obsta a que cada Estado‑Membro introduza na sua legislação nacional regras respeitantes à responsabilidade dos fornecedores, uma vez que esta responsabilidade não está abrangida pela directiva. Também existe acordo em que, nos termos da directiva, os Estados‑Membros podem estabelecer regras sobre a partilha mútua final da responsabilidade entre os vários produtores responsáveis (v. artigo 3.°) e os fornecedores’,
– o artigo 13.° da directiva […],
pretende‑se que seja esclarecido se a directiva se opõe a que um Estado‑Membro regule na lei a responsabilidade do fornecedor por produtos defeituosos, no caso de o fornecedor, como sucede no § 4, n.° 3, primeira frase, da Lei [n.° 371], ser definido como quem, no âmbito da sua actividade comercial coloca um produto em circulação, sem ser considerado produtor nos termos da definição dada no artigo 3.° da directiva relativa à responsabilidade por produtos defeituosos.
4) A directiva […] opõe‑se à adopção por um Estado‑Membro de uma disposição legal sobre responsabilidade por produtos defeituosos, segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem ser ele próprio produtor ou considerado como tal nos termos do artigo 3.° da directiva:
– a responsabilidade do produtor nos termos da directiva?
– a responsabilidade por culpa do produtor, estabelecida na jurisprudência, por produtos defeituosos, pelos danos causados na pessoa e nas coisas do consumidor?
A disposição legal referida na questão pressupõe:
a) que o fornecedor seja definido como quem, no âmbito da sua actividade comercial, coloca um produto em circulação, não sendo considerado produtor (§ [4], n.° 3, primeira frase, da Lei [n.° 371]);
b) que o produtor possa ser responsabilizado e, portanto, o fornecedor não responde se não for esse o caso (§ 10 da Lei [n.° 371]);
c) que o fornecedor tenha direito de regresso contra o produtor (§ 11, n.° 3, da Lei [n.° 371]).
5) A directiva […] opõe‑se a que um Estado‑Membro mantenha uma regra existente anteriormente à directiva relativa à responsabilidade por produtos defeituosos, não baseada na lei mas sim na jurisprudência, segundo a qual é imputada ao fornecedor, não sendo ele próprio produtor nem considerado como tal nos termos do artigo 3.° da directiva:
– a responsabilidade que incumbe ao produtor pelos produtos defeituosos nos termos da directiva?
– a responsabilidade por culpa do produtor, estabelecida na jurisprudência, por produtos defeituosos, pelos danos causados na pessoa ou nas coisas do consumidor?
A regra baseada na jurisprudência referida na questão pressupõe:
a) que o fornecedor seja definido como quem, no âmbito da sua actividade comercial, coloca um produto em circulação, não sendo considerado produtor (§ [4], n.° 3, ponto 1, da Lei [n.° 371]);
b) que o produtor possa ser responsabilizado, e que, portanto, o fornecedor não é responsável se não for esse o caso (§ 10 da Lei [n.° 371]);
c) que fornecedor tenha direito de regresso contra o produtor (§ 11, n.° 3, da Lei [n.° 371]).»
Quanto às questões prejudiciais
18 Através das suas questões, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, essencialmente, se a directiva se opõe a que um Estado‑Membro regule a responsabilidade do fornecedor prevendo que este deve responder pela responsabilidade do produtor.
19 Neste contexto, convém recordar que a responsabilidade instituída pela directiva e atribuída, no seu artigo 1.°, ao produtor é uma responsabilidade objectiva. É isto que indica expressamente o segundo considerando da directiva. É igualmente o que decorre da enumeração, no artigo 4.° da mesma directiva, dos elementos de prova a cargo do lesado bem como dos casos, referidos no artigo 7.°, nos quais se exclui a responsabilidade do produtor.
20 O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a directiva se opõe, por um lado, a uma regra nacional que transfere para o fornecedor a responsabilidade objectiva que a directiva estabelece e atribui ao produtor e, por outro, a uma regra nacional que transfere a responsabilidade baseada na culpa do produtor para o fornecedor.
21 A fim de responder a essas questões, importa, a título preliminar, determinar o alcance da harmonização operada pela directiva.
Quanto ao alcance da harmonização operada pela directiva
22 Nos acórdãos de 25 de Abril de 2002, Comissão/França (C‑52/00, Colect., p. I‑3827, n.° 16), Comissão/Grécia (C‑154/00, Colect., p. I‑3879, n.° 12) e González Sánchez (C‑183/00, Colect., p. I‑3901, n.° 25), o Tribunal decidiu que a margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem para regular a responsabilidade decorrente de produtos defeituosos é inteiramente determinada pela própria directiva e deve ser deduzida da letra, do objectivo e da sistemática da mesma.
23 Depois de ter examinado estes critérios, o Tribunal de Justiça concluiu que a directiva prossegue, quanto aos aspectos que regula, uma harmonização total das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros (acórdãos, já referidos, Comissão/França, n.° 24, e Comissão/Grécia, n.° 20).
24 No âmbito do presente processo, os lesados e o Governo dinamarquês alegam que a directiva não opera uma harmonização total da responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, mas unicamente da responsabilidade do produtor por produtos defeituosos. Fundamentando‑se na redacção dos artigos 1.° e 3.° da directiva, sustentam que esta última não regula a responsabilidade do fornecedor e deixa aos Estados‑Membros uma margem de apreciação quanto à definição do círculo dos responsáveis.
25 O artigo 1.° da directiva prevê a responsabilidade pelo dano causado por um produto defeituoso e atribui essa responsabilidade ao produtor do produto em causa.
26 Os conceitos de «dano», de «defeito» e de «produto» são definidos, respectivamente, nos artigos 9.°, 6.° e 2.° da directiva. O conceito de «produtor» é definido no artigo 3.° da directiva. Segundo o n.° 1 desta última disposição, designa o fabricante do produto. O n.° 2 da mesma disposição inclui no termo «produtor» o importador do produto na Comunidade. Em aplicação do artigo 3.°, n.° 3, da directiva, quando não se puder identificar o produtor, o fornecedor será considerado como tal salvo se indicar ao lesado, num prazo razoável, a identidade do seu próprio fornecedor.
27 As razões pelas quais pareceu oportuno imputar a responsabilidade ao produtor estão expressas no artigo 1.°, alínea e), da exposição de motivos da proposta de directiva [documento COM (76) 372 final (JO C 241, p. 9)], à qual o Governo dinamarquês se referiu. Esses motivos, que se referem aos artigos 1.° e 2.° da referida proposta, actuais artigos 1.° e 3.° da directiva, sem modificação de fundo, podem ser resumidos como se segue.
28 Reconhecendo que a possibilidade de responsabilizar o fornecedor de um produto defeituoso de acordo com as modalidades previstas pela directiva facilitaria os procedimentos judiciais instaurados pelo lesado, considerou‑se que essa facilidade acabaria por se tornar cara, na medida em que, ao obrigar os fornecedores a assegurarem-se contra o risco decorrente de tal responsabilidade, conduziria a um encarecimento considerável dos produtos. Além disso, essa facilidade conduziria a uma multiplicação de acções, uma vez que o fornecedor demandaria o seu próprio fornecedor, chegando até ao produtor. Dado que, na grande maioria dos casos, o fornecedor se limita a revender o produto tal como o comprou e que apenas o produtor tem a possibilidade de influenciar a qualidade deste, considerou‑se oportuno concentrar a responsabilidade decorrente de produtos defeituosos no produtor.
29 Resulta destas considerações que foi após se terem ponderado os papéis respectivos dos diferentes operadores económicos que intervêm nos circuitos de fabricação e de comercialização que se optou por atribuir, em princípio, ao produtor, e unicamente em certos casos delimitados ao importador e ao fornecedor, a responsabilidade pelos danos causados pelos produtos defeituosos no regime jurídico instituído pela directiva.
30 Contrariamente à análise defendida pelos lesados e pelo Governo dinamarquês, os artigos 1.° e 3.° não se limitam, pois, a regular a responsabilidade do produtor por um produto defeituoso, mas determinam, entre os profissionais que participaram no processo de fabricação e de comercialização, aquele que deverá assumir a responsabilidade instituída pela directiva.
Quanto à transferência para o fornecedor da responsabilidade objectiva do produtor nos termos da directiva
31 Com o primeiro grupo de questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a directiva deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem limitações, a responsabilidade objectiva que a directiva institui e imputa ao produtor.
32 A este respeito, há que observar que o círculo dos responsáveis contra os quais o lesado tem o direito de intentar uma acção ao abrigo do regime de responsabilidade previsto pela directiva é definido nos artigos 1.° e 3.° da mesma (v. n.os 29 e 30 do presente acórdão).
33 Uma vez que a directiva prossegue, como é recordado no n.° 23 do presente acórdão, uma harmonização total dos aspectos que regula, a identificação do círculo de responsáveis feita pelos artigos 1.° e 3.° da mesma deve ser considerada exaustiva.
34 O artigo 3.°, n.° 3, da directiva prevê a responsabilidade do fornecedor apenas na hipótese de o produtor não poder ser identificado. Ao prever, no § 10 da Lei n.° 371, que o fornecedor responde directamente perante o lesado pelo produto defeituoso, o legislador dinamarquês alargou, pois, para além dos limites fixados pela directiva, o círculo dos responsáveis contra os quais o lesado tem direito de intentar uma acção ao abrigo do regime de responsabilidade previsto por esta última.
35 O Governo dinamarquês alega que a legislação nacional não responsabiliza individualmente o fornecedor, uma vez que este último só responde face aos lesados na medida em que o produtor, contra o qual dispõe de direito de regresso, possa ser responsável. A situação do fornecedor é, portanto, semelhante à de um fiador solidário.
36 Este elemento não é determinante. O sistema instituído pela referida legislação nacional não só faz pesar sobre o fornecedor um encargo que o legislador comunitário considerou injustificado (v. n.° 28 do presente acórdão) como implica uma multiplicação de intervenções que a acção directa de que o lesado dispõe contra o produtor, nas condições previstas pelo artigo 3.° da directiva, tem precisamente como objectivo evitar (v. acórdão Comissão/França, já referido, n.º 40, e n.° 28 do presente acórdão).
37 Daqui resulta que a directiva deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem limitações, a responsabilidade do produtor nos termos da directiva.
38 O Governo dinamarquês defende, todavia, que o artigo 13.° da directiva, segundo o qual esta não prejudica os direitos que o lesado pode invocar nos termos do direito da responsabilidade contratual ou extracontratual, pode servir de base legal à extensão ao fornecedor da responsabilidade imputável ao produtor no sistema da directiva.
39 A este respeito, cabe recordar que, nos acórdãos, já referidos, Comissão/França, n.° 21, Comissão/Grécia, n.° 17, e González Sánchez, n.° 30, o Tribunal de Justiça, após uma análise da letra, do objectivo e da sistemática da directiva, declarou que o artigo 13.° da mesma não pode ser interpretado no sentido de que permite a possibilidade de os Estados‑Membros manterem um regime geral de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos diferente do regime previsto pela referida directiva.
40 O Governo dinamarquês pretende que essa jurisprudência seja reexaminada à luz da declaração relativa aos artigos 3.° e 1[3].° que figura no n.° 2 do protocolo da reunião do Conselho de Ministros de 25 de Julho de 1985, segundo a qual esses artigos não se opõem a que cada Estado‑Membro introduza na sua legislação nacional regras relativas à responsabilidade dos fornecedores.
41 A fim de defender a manutenção da regra nacional, segundo a qual o fornecedor responde pela responsabilidade do produtor, que tinha sido desenvolvida pela jurisprudência antes da entrada em vigor da directiva e que a lei que transpôs esta última mais não fez do que confirmar, o Governo dinamarquês invoca igualmente a declaração que figura no n.° 16 do referido protocolo, na qual o Conselho exprimiu «a intenção dos Estados‑Membros, que actualmente aplicam disposições mais favoráveis no que respeita à protecção dos consumidores que aquelas que decorrem da directiva, de não recorrerem às possibilidades oferecidas pela directiva para reduzir esse nível de protecção».
42 A este respeito, deve recordar‑se, em primeiro lugar, que, no caso de uma declaração inscrita num protocolo do Conselho não encontrar expressão no texto de uma disposição de direito derivado, não pode ser considerada para a interpretação dessa disposição (v., designadamente, acórdãos de 26 de Fevereiro de 1991, Antonissen, C‑292/89, Colect., p. I‑745, n.° 18, e de 8 de Junho de 2000, Epson Europe, C‑375/98, Colect., p. I‑4243, n.° 26).
43 Em segundo lugar, as duas declarações a que o Governo dinamarquês fez referência não podem justificar, em contradição com a redacção e a sistemática do texto, uma alteração do círculo de responsáveis definido pela directiva. Em particular, não podem ser invocadas para permitir aos Estados‑Membros transferirem para o fornecedor, para além dos casos especificamente visados no artigo 3.°, n.° 3, a responsabilidade instituída e imputada pela directiva ao produtor.
44 No que diz respeito ao argumento do Governo dinamarquês segundo o qual esta interpretação da directiva leva a que na Dinamarca haja uma diminuição do nível de protecção do consumidor, há que assinalar que uma eventual extensão da responsabilidade instituída pela directiva aos fornecedores cabe no âmbito da competência do legislador comunitário, ao qual incumbe proceder, se necessário, a uma alteração das disposições em causa.
45 Nestas condições, cumpre responder ao primeiro grupo de questões formuladas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a directiva deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, para além dos casos taxativamente enumerados no seu artigo 3.°, n.° 3, a responsabilidade objectiva que essa directiva institui e imputa ao produtor.
Quanto à transferência para o fornecedor da responsabilidade por culpa do produtor
46 Através do segundo grupo de questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a directiva se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem limitações, a responsabilidade baseada na culpa do produtor, no caso de um dano causado por um produto defeituoso.
47 A este respeito, importa recordar que, nos acórdãos, já referidos, Comissão/França, n.° 22, Comissão/Grécia, n.° 18, e González Sánchez, n.° 31, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 13.° da directiva deve ser interpretado no sentido de que o regime instituído por esta última não afasta a aplicação de outros regimes de responsabilidade contratual ou extracontratual, desde que assentem em fundamentos diferentes, como a garantia dos vícios ocultos ou a culpa.
48 Nestas condições, há que responder ao segundo grupo de questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a directiva deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem limitações, a responsabilidade baseada na culpa do produtor.
Quanto à limitação dos efeitos do acórdão no tempo
49 No caso de o Tribunal de Justiça não adoptar a interpretação da directiva por eles defendida, os lesados e o Governo dinamarquês pediram ao Tribunal de Justiça que limitasse os efeitos do seu acórdão no tempo. Em apoio do respectivo pedido invocaram, designadamente, as consequências graves para a segurança jurídica e as implicações financeiras que o acórdão poderá comportar para os lesados num grande número de litígios relativos à responsabilidade decorrente de produtos defeituosos decididos depois da entrada em vigor da directiva.
50 Em conformidade com jurisprudência assente, a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito comunitário, no exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 234.° CE, esclarece e precisa, sempre que seja necessário, o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz mesmo às relações jurídicas nascidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que se pronuncie sobre o pedido de interpretação, se, desde logo, se encontrarem reunidas as condições que permitam submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma (v., designadamente, acórdãos de 2 de Fevereiro de 1988, Blaizot, 24/86, Colect., p. 379, n.° 27, e de 15 de Dezembro de 1995, Bosman, C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 141).
51 A este respeito, há que lembrar que só a título excepcional o Tribunal de Justiça pode, em aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica comunitária, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição interpretada pelo Tribunal para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa fé. Para que se possa decidir por esta limitação é necessário que se encontrem preenchidos dois critérios essenciais, ou seja, a boa fé dos meios interessados e o risco de perturbações graves (v., designadamente, acórdãos de 28 de Setembro de 1994, Vroege, C‑57/93, Colect., p. I‑4541, n.° 21, e de 12 de Outubro de 2000, Cooke, C‑372/98, Colect., p. I‑8683, n.° 42).
52 Há, todavia, que referir que, no § 11, n.° 3, da Lei n.° 371, o legislador dinamarquês recorreu ao mecanismo do direito de regresso, conhecido na maioria dos sistemas jurídicos, e previu que o fornecedor que indemnizou o lesado pelo dano causado por um produto defeituoso fique sub‑rogado nos seus direitos contra o produtor. Há, portanto, que assinalar que o fornecedor considerado responsável em relação ao lesado pode, regra geral, ser indemnizado pelo produtor em condições que garantam a segurança jurídica.
53 Nestas condições, sem que seja necessário analisar a questão de saber se um fornecedor poderá ou não dispor de uma acção contra um lesado previamente indemnizado, nem interrogar-se sobre a boa fé dos meios interessados, não há que deferir o pedido dos lesados e do Governo dinamarquês, que não forneceram nenhum outro elemento susceptível de sustentar a sua argumentação segundo a qual o presente acórdão poderia causar problemas graves se os seus efeitos não fossem limitados no tempo.
Quanto às despesas
54 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:
A Directiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, deve ser interpretada no sentido de que:
– se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, para além dos casos expressamente enumerados no artigo 3.°, n.° 3, da directiva, a responsabilidade objectiva que a directiva institui e imputa ao produtor;
– não se opõe a uma regra nacional segundo a qual é imputada ao fornecedor, sem limitações, a responsabilidade baseada na culpa do produtor.
Assinaturas
* Língua do processo: dinamarquês.