CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

DÁMASO RUIZ‑JARABO COLOMER

apresentadas em 30 de Junho de 2005 1(1)

Processo C‑461/03

Gaston Schul Douane‑Expediteur BV

contra

Minister van Landbouw, Natuur en Voedselkwaliteit

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo College van Beroep voor het bedrijfsleven (Países Baixos)]

«Artigo 234.° CE – Validade de uma disposição comunitária – Obrigação de submeter uma questão prejudicial – Condições»





I –    Introdução

1.     Na sequência do acórdão Foto‑Frost (2), todos os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros da União Europeia devem apresentar uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça antes de declarar a invalidade de um acto comunitário. Surge agora a dúvida quanto a saber se essa obrigação de estrita origem jurisprudencial, já que não está acolhida no texto dos Tratados, tem carácter absoluto ou admite alguma derrogação.

2.     Na mitologia grega, Sísifo foi condenado ao duro trabalho de levar um rochedo até ao cume de uma montanha para, uma vez no cimo, a deixar cair, voltar a buscá‑la e reiniciar a subida indefinidamente, sem nenhuma concessão à sua evidente fadiga (3).

3.     As razões do terrível castigo permanecem na penumbra do mistério, mas apontam para certos comportamentos ousados do herói, que os deuses entenderam como um desafio à sua superioridade (4).

4.     Como Sísifo, fundador e rei de Corinto, o juiz nacional está obrigado a um constante reenvio prejudicial relativo à invalidade dos actos comunitários.

5.     O presente reenvio prejudicial tem a interessante característica de relacionar dois dos elementos que configuram os limites da faculdade de os órgãos jurisdicionais se dirigirem ao Tribunal de Justiça, no âmbito do artigo 234.° CE.

6.     As circunstâncias do processo principal permitem duvidar da necessidade material de interrogar o Tribunal de Justiça, já que a resposta se impõe com toda a evidência à luz de uma decisão anterior sem qualquer ambiguidade.

II – Factos do processo principal e questões prejudiciais

7.     Os factos têm pouca importância no momento de responder à questão prejudicial, pelo que não há inconveniente em resumi‑los ao máximo.

8.     A recorrente no processo principal, Gaston Schul Douane – Expediteur BV (a seguir «Gaston Schul»), empresa dedicada à gerência de alfândegas, declarou em 6 de Maio de 1998 a importação de uma remessa de açúcar de cana bruto proveniente do Brasil a um preço CIF (5) superior ao de activação (6).

9.     Na falta do correspondente pedido, o controlador aduaneiro competente calculou os direitos adicionais, devidos com base no valor representativo vigente naquele momento no mercado mundial.

10.   A Gaston Schul impugnou a validade da liquidação, primeiro administrativamente e depois nos tribunais.

11.   O College van Beroep voor het Bedrijfsleven (a seguir «College van Beroep»), onde foi interposto recurso e cuja decisão é irrecorrível no ordenamento interno, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um órgão jurisdicional, na acepção do artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE, está obrigado nos termos desta disposição a submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial, como aquela que é a seguir colocada e referente à validade das disposições de um regulamento, quando a invalidade de disposições coincidentes de outro regulamento análogo já foi declarada pelo Tribunal de Justiça, ou podem as disposições anteriormente referidas ser deixadas sem aplicação tendo em conta a extraordinária coincidência com as disposições anteriormente declaradas inválidas?

2)      O artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento (CE) n.° 1423/95 da Comissão, de 23 de Junho de 1995, que estabelece as regras de aplicação relativas à importação dos produtos do sector do açúcar, excluindo o melaço, é inválido na medida em que estabelece que o direito adicional é, em princípio, estabelecido com base no preço representativo previsto no artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 1423/95 e que esse direito só é estabelecido com base no preço de importação CIF da remessa em causa se o importador fizer um pedido nesse sentido?»

III – Quadro jurídico

A –    Quanto à obrigação de pedir a aplicação do preço de importação CIF

12.   O artigo 15.°, n.° 3, do Regulamento (CEE) n.° 1785/81 do Conselho, de 30 de Junho de 1981, que estabelece a organização comum de mercado no sector do açúcar (7), na redacção dada pelo Regulamento (CE) n.° 3290/94 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativo às adaptações e medidas transitórias necessárias no sector da agricultura para a execução dos acordos concluídos no âmbito das negociações comerciais multilaterais do Uruguay Round (8) (a seguir «regulamento de base»), determina que os preços de importação a ponderar para a imposição de um direito adicional se baseiam no valor CIF da remessa.

13.   Para esse fim, os preços são verificados a partir da avaliação representativa para o produto concreto no mercado mundial ou no mercado comunitário de importação.

14.   Importa assinalar que o texto actual do artigo 15.°, n.° 3, do regulamento de base se enquadra no esforço de adequação da regulamentação comunitária ao disposto no acordo sobre a agricultura, com origem nas negociações multilaterais do Uruguay Round e adoptado pela Comunidade em virtude do anterior artigo 228.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 300.° CE).

15.   Nas disposições de salvaguarda especial, o artigo 5.°, n.° 1, alínea b), do acordo sobre a agricultura, concede a qualquer membro da Organização Mundial do Comércio a possibilidade de tributar com direitos adicionais a importação de alguns produtos se o preço a que entram no seu território aduaneiro, «determinado segundo o preço de importação CIF, expresso em moeda nacional», for inferior ao de activação («preço de desencadeamento», na terminologia da regulamentação comunitária).

16.   A Comissão desenvolveu o texto de base através do Regulamento (CE) n.° 1423/95, de 23 de Junho de 1995, que estabelece as regras de aplicação relativas à importação dos produtos do sector do açúcar, excluindo o melaço (9).

17.   De acordo com o artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1423/95, o preço CIF na importação da expedição em causa a tomar em consideração para a aplicação de um direito adicional é o preço representativo. No entanto, a pedido do interessado, utiliza‑se o valor CIF de importação quando for superior ao preço representativo aplicável.

18.   Nesse caso, o pedido deve ser acompanhado de certos documentos (contratos de compra, de seguro e de transporte ou conhecimento, factura, certificado de origem), para demonstrar a veracidade do valor declarado, constituindo‑se uma garantia num valor igual ao dos direitos adicionais que teriam sido pagos se tivessem sido calculados com base no preço representativo do produto. O importador recupera esta soma se demonstrar ter comercializado a expedição em condições que confirmem a veracidade dos preços.

19.   Do n.° 1 se conclui, pois, que na ausência de um pedido nesses termos, o montante de importação considerado para a fixação de um direito adicional é o representativo.

B –    Quanto à possibilidade de sanar a falta inicial de pedido

20.   A regulamentação aplicável em caso de rectificação de declarações de conteúdo aduaneiro está contida no Código Aduaneiro Comunitário (10). Segundo o artigo 65.°, segundo parágrafo, alínea c), não pode ser autorizada qualquer rectificação depois de as autoridades aduaneiras terem autorizado a saída das mercadorias.

21.   O artigo 220.° do mesmo código prevê que se possa contrair uma dívida aduaneira a posteriori, o mais tardar no prazo de dois dias a contar da data em que as autoridades aduaneiras se tenham apercebido de que, na devida altura, não foi liquidada ou, tendo‑o sido, o foi por um montante de nível inferior ao legalmente devido. Não há possibilidade de a dívida ser contraída a posteriori quando o seu montante legal não tenha sido determinado em consequência de um erro das próprias autoridades aduaneiras, que não podia ser razoavelmente detectado pelo devedor, tendo este, por seu lado, agido de boa fé e observado todas as disposições previstas pela regulamentação em vigor, no que se refere à declaração aduaneira [n.° 2, alínea b)].

IV – Processo no Tribunal de Justiça

22.   O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 4 de Novembro de 2003.

23.   Compareceram, na qualidade de intervenientes, o Governo dos Países Baixos e a Comissão.

24.   O processo foi confiado à Grande Secção. No entanto, apesar da importância manifesta da questão analisada, não foi realizada audiência.

V –    Análise das questões submetidas

25.   A primeira das perguntas formuladas pelo College van Beroep pretende averiguar se a acepção específica, no âmbito do artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE, da chamada «teoria do acto claro», como exposta pelo acórdão CILFIT (11), tem cabimento em relação à validade de um acto comunitário.

26.   A segunda pergunta refere‑se, especificamente, à conformidade do artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1423/95 com as normas superiores do ordenamento jurídico comunitário.

27.   Parece preferível inverter a ordem na análise das questões propostas, começando pela segunda, já que da sua solução depende, com carácter imediato, a solução do litígio principal.

A –    Quanto à segunda questão prejudicial

28.   O Governo neerlandês, a Comissão e o próprio tribunal de reenvio coincidem quanto à invalidade do artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1423/95; não detectam diferenças materiais relevantes entre estas disposições e as do artigo 3.°, n.os 1 e 3, do Regulamento (CE) n.° 1484/95 da Comissão, de 28 de Junho de 1995, que estabelece as normas de execução do regime relativo à aplicação dos direitos adicionais de importação, que fixa os direitos adicionais de importação nos sectores da carne de aves de capoeira e dos ovos, bem como para a ovalbumina, e que regova o Regulamento n.° 163/67/CEE (12). A anulação desta regulamentação foi decidida no acórdão de 13 de Dezembro de 2001, Kloosterboer Rotterdam BV (13).

29.   Segundo o artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1423/95, no âmbito do mercado do açúcar, o valor de importação da expedição a tomar em consideração para a aplicação eventual de um direito adicional é o preço representativo. A aplicação do valor CIF de entrada no território aduaneiro, quando superar o montante representativo, só é feita mediante pedido prévio do interessado.

30.   O artigo 3.°, n.os 1 e 3, do Regulamento n.° 1484/95, artigo anulado, também sujeita o recurso ao preço CIF à condição de que o importador realize um pedido formal neste sentido, acompanhado de provas justificativas, exigindo nos restantes casos a ponderação do preço representativo, que constituía assim a norma geral (14).

31.   Como em dado momento referi (15), a obrigação de apresentar um pedido expresso de aplicação do preço CIF para determinar o montante de direitos adicionais de importação é inválida por uma dupla razão:

–       porque não tem apoio suficiente no Regulamento (CEE) n.° 2777/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece uma organização comum de mercado no sector da carne de aves de capoeira (16), alterado; e

–       porque viola o artigo 5.°, n.° 1, do acordo sobre a agricultura do Uruguay Round (17).

32.   Idêntica dupla incompatibilidade (18) afecta o artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1423/95, uma vez que:

–       por um lado, viola o artigo 15.°, n.° 3, do seu regulamento de base, ou seja, o Regulamento n.° 1785/81, alterado, segundo o qual os preços de importação considerados para a aplicação de um direito adicional derivam das quantias CIF da expedição em causa;

–       por outro lado, viola os n.os 1, alínea b), e 5 do artigo 5.° do acordo sobre a agricultura, que permitem aplicar um direito adicional, sempre que o preço a que as importações desse produto possam entrar no território aduaneiro, avaliado segundo o preço de importação CIF da expedição expresso na sua moeda nacional, seja inferior a um determinado preço de activação (19).

33.   Quanto ao restante, a Comissão reconheceu no Tribunal de Justiça que iniciou os trâmites oportunos para alterar a disposição em causa.

34.   Do exposto conclui‑se, sem qualquer dúvida, que o artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1423/95, incorre na mesma causa de nulidade que a norma objecto do acórdão Kloosterboer Rotterdam. Procede, pois, igual sanção de invalidade.

B –    Quanto à primeira questão prejudicial

35.   Atingida a convicção de que a invalidade controvertida no procedimento principal se verifica, não haveria que responder a esta primeira questão, pois, claramente, careceria de qualquer utilidade. Ao abordá‑la, corre‑se o risco de desvirtuar a função do Tribunal de Justiça, orientada para a cooperação com os juízes nacionais para favorecer uma aplicação uniforme do direito comunitário nos Estados‑Membros, não para a emissão de opiniões consultivas sobre aspectos gerais ou hipotéticos (20).

36.   Mas essa abordagem parece demasiado formalista e não se coaduna com a atitude pedagógica do Tribunal de Justiça, que a levou a precisar, num êxtase de jurisprudência criadora, os contornos da sua competência prejudicial. Mesmo entendendo que o juiz de reenvio não precisa conhecer o alcance da obrigação de suscitar a via prejudicial de validade quando não haja uma dúvida razoável, por existirem precedentes jurisprudenciais relevantes, o dilema que apresenta não reveste carácter hipotético no processo principal. Não parece despropositado supor que o College van Beroep formulou a segunda das suas perguntas para evitar ser chamado a um novo processo prejudicial se o Tribunal de Justiça confirmasse convictamente a reiterada obrigação de o consultar sempre, antes de pronunciar a invalidade de um acto comunitário. Uma flexibilização dessa obrigação conduziria a uma importante economia processual e a uma reafirmação da responsabilidade comunitária do juiz nacional, revelando‑se, portanto, inteiramente coerente com a boa administração da justiça na União Europeia.

37.   Em suma, creio que o Tribunal de Justiça deveria pronunciar‑se sobre a questão que o órgão jurisdicional de reenvio, num exercício louvável de coragem e de responsabilidade (21), colocou em primeiro lugar.

38.   Tanto o Governo neerlandês como a Comissão consideram que a competência exclusiva para declarar a invalidade de um acto das instituições da Comunidade corresponde ao Tribunal de Justiça. Receiam que a excepção admitida pela jurisprudência CILFIT se estenda ao âmbito das questões de validade, o que implicaria mais inconvenientes do que vantagens.

39.   O Governo neerlandês salienta o risco de determinados órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros defenderem posturas muito diferentes, comprometendo a unidade do ordenamento jurídico comunitário e a segurança jurídica que requer. De resto, recorda que o juiz nacional tem a faculdade, sob certas condições, de adoptar medidas provisórias destinadas à suspensão dos efeitos de um acto comunitário que considere inválido.

40.   A Comissão avalia os argumentos que militam a favor e contra a alteração da jurisprudência Foto‑Frost (22), acrescentado que estes últimos são mais convincentes.

41.   A importância da pergunta resulta evidente pois, em caso de resposta afirmativa, provocar‑se‑ia um sobressalto jurisprudencial de grande envergadura. Aceitar que, em situações como as do litígio principal, os juízes nacionais neguem a validade de determinados actos comunitários quebraria a competência exclusiva a esse respeito que o Tribunal de Justiça se atribuiu no referido acórdão Foto‑Frost.

42.   Pelo que, para procurar uma solução adequada, há que examinar se os factos e o quadro jurídico do processo no College van Beroep justificam uma modulação dos postulados jurisprudenciais actualmente vigentes, que datam dos anos oitenta, quando a situação geopolítica da União Europeia era muito diferente e ainda não se tinham alcançado grande parte dos êxitos com que se configurou a estrutura da cooperação prejudicial.

43.   Como passo prévio, convém realizar uma análise sumária da jurisprudência, antes de estudar em que medida o quadro factual e jurídico dos autos permitiria outra excepção ao referido princípio de competência exclusiva do Tribunal de Justiça.

1.      Exame e crítica da jurisprudência CILFIT

44.   O artigo 234.° CE regula o mecanismo de colaboração entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, de tal modo que, nos termos do seu parágrafo segundo, estes últimos possuem a faculdade de remeter questões prejudiciais, enquanto, de acordo com o parágrafo terceiro, quando as suas decisões não sejam susceptíveis de ulterior recurso judicial de direito interno, estão obrigados a submeter tais questões ao Tribunal de Justiça.

45.   Ao longo dos litígios que decidiu, o Tribunal de Justiça revelou o alcance da disposição: por um lado, precisou as características dessa função aparentemente incondicional dos tribunais nacionais de última instância; por outro, estabeleceu uma distinção no regime jurídico do objecto da questão, consoante incida na interpretação ou na validade de um acto comunitário.

46.   No que se refere ao dever de os tribunais nacionais de última instância, a jurisprudência temperou a sua rigidez em vários sentidos, introduzindo algumas excepções que a seguir se referem para melhor compreensão do significado do presente reenvio prejudicial.

47.   Em primeiro lugar, no acórdão Da Costa (23), o Tribunal de Justiça estabeleceu um limite a esse imperativo, liberando os órgãos jurisdicionais nacionais do referido compromisso quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a uma questão que foi já objecto de uma decisão a título prejudicial num processo análogo (24). O fundamento desta doutrina encontra‑se na consideração de que, uma vez interpretada uma disposição comunitária pelo Tribunal de Justiça, a obrigação de lhe dirigir novas questões de interpretação relativas à mesma disposição ficaria destituída de conteúdo (25).

48.   Nesta ordem de ideias, ou seja, com a finalidade de limitar a obrigação dos tribunais nacionais de última instância de submeterem questões prejudiciais, merece uma atenção particular o acórdão CILFIT, que ampliou o elenco de situações em que são dispensados de pedir o auxílio do Tribunal de Justiça, estendendo‑o às hipóteses em que este último tenha decidido a controvérsia jurídica objecto do correspondente litígio no quadro de processos de outra natureza, inclusivamente, «na falta de uma estrita identidade entre as questões controvertidas» (26). Compreende, além disso, os casos em que os tribunais supremos nacionais considerem que a questão de interpretação não é pertinente (27) e em que a correcta aplicação do direito comunitário se revele com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável sobre a solução da questão suscitada. Por último, exige que, antes de declarar essa evidência, o órgão jurisdicional esteja certo de que a mesma se imporia também aos órgãos jurisdicionais nacionais dos outros Estados‑Membros, assim como ao Tribunal de Justiça (28).

49.   Aprofundando os aspectos práticos do acórdão CILFIT, verifica‑se que um entendimento estrito dos seus postulados levaria o juiz nacional a empreender um estudo empírico dos ordenamentos jurídicos dos outros vinte e quatro Estados‑Membros para chegar à convicção psicológica de que todos e cada um dos seus homólogos confirmariam a correcta aplicação da regulamentação europeia.

50.   Além disso, o acórdão fez notar as exigências interpretativas inerentes à natureza própria do direito comunitário, já que: por um lado, utiliza termos e conceitos autónomos, que nem sempre coincidem com os equivalentes nos sistemas nacionais (29); por outro lado, cada disposição deve ser integrada no seu contexto e interpretada à luz do conjunto normativo em que se insere, da sua finalidade e do seu grau de evolução (30).

51.   O acórdão CILFIT chamou também a atenção para o carácter plurilinguístico do direito comunitário, redigido em diferentes idiomas, actualmente em vinte, com o expresso reconhecimento de autenticidade de todas as versões (31).

52.   Em suma, o teste proposto era inviável no momento da sua formulação, e disparatado na realidade do ano 2005, pois não responde à preocupação histórica com que foi adoptado, ou seja, a de eliminar os excessos da teoria do acto claro em que tinham incorrido alguns tribunais de última instância dos Estados‑Membros.

53.   Esta verdadeira impossibilidade de utilizar o método CILFIT ajuda a compreender o facto de, nas raras ocasiões em que o invocou posteriormente, o Tribunal de Justiça se ter limitado a recordar ao juiz de reenvio a referida jurisprudência, referindo‑se à fórmula de que a correcta aplicação do direito comunitário se revele tão evidente que «não dê lugar a qualquer dúvida razoável sobre a solução da questão suscitada» (32). Curiosamente, omite‑se qualquer referência à condição prévia de que o órgão jurisdicional nacional alcance a convicção de que os seus homólogos noutros Estados‑Membros e o próprio Tribunal de Justiça entendam a disposição controvertida exactamente do mesmo modo.

54.   Igual omissão, que não obedece a um descuido, acontece na «Nota informativa relativa à apresentação de pedidos de decisão prejudicial pelos órgãos jurisdicionais nacionais», tanto na versão anterior como na mais recente (33). Assim, nem a primeira mencionava o referido requisito nem as novas directrizes, nos pontos 11 a 14, relativos ao reenvio prejudicial de interpretação, contêm qualquer referência a este respeito.

55.   Embora estas instruções cumpram uma finalidade meramente informativa e não tenham valor normativo, parece estranho que o Tribunal de Justiça continue a considerar com idêntico rigor esse requisito, quando nem sequer faz uma simples alusão aos seus postulados ao assessorar os órgão jurisdicionais nacionais no aperfeiçoamento do mecanismo de cooperação prejudicial. Se na realidade lhe fosse dada tanta importância, nos termos do acórdão CILFIT, seria lógico insistir na sua análise, sobretudo em documentos desta índole.

56.   Apraz‑me observar que outros advogados‑gerais partilham da minha posição. Em concreto, o advogado‑geral F. G. Jacobs, nas suas conclusões no processo Wiener (34), indicou que o acórdão CILFIT não pode cabalmente exigir dos órgãos jurisdicionais nacionais o exame de qualquer medida comunitária em cada um dos idiomas oficiais da União Europeia, método que o próprio Tribunal de Justiça, apesar de contar com uma infra‑estrutura mais desenvolvida para o efeito, raramente utiliza. Pelo contrário, a existência de numerosas versões linguísticas é uma razão suplementar para não se adoptar uma abordagem excessivamente literal em matéria de interpretação das normas comunitárias e para se dar mais peso ao contexto e à economia geral do Tratado, bem como ao seu objecto e à sua finalidade (35).

57.   Do mesmo modo, o advogado‑geral A. Tizzano, nas conclusões do processo Lyckeskog (36), interpretou‑o como aconselhando especial prudência ao tribunal nacional antes de excluir a existência de qualquer dúvida razoável.

58.   Perante todos estes argumentos, o Tribunal de Justiça tem de assumir as suas responsabilidades e rectificar a jurisprudência CILFIT ou, pelo menos, suavizar o seu conteúdo, para a adaptar às necessidades dos tempos, já que só uma exegese menos austera do acórdão responderia aos postulados da cooperação judicial, tendo em conta que o grau de conhecimento do direito comunitário pelos órgãos jurisdicionais nacionais aumentou de maneira significativa desde 1983. Depois de vinte e dois anos de vigência, chegou o momento de reformular uma jurisprudência que desempenhou a sua função numas circunstâncias históricas da Comunidade bem determinadas, mas que foi superada pelo estado de evolução do ordenamento jurídico europeu.

59.   Também o previsível aumento dos processos entrados no Tribunal de Justiça, ao ritmo das novas adesões, e a saturação que provocaria uma aplicação estrita do acórdão CILFIT militam a favor de fórmulas devolutivas de competências aos órgãos jurisdicionais nacionais. Efectivamente, a reordenação do diálogo jurisdicional através da adequada interpretação do artigo 234.° CE contribuiria, muito provavelmente, para centrar a actividade do alto tribunal comunitário em questões de maior importância geral, o que repercutiria em benefício da sua própria jurisprudência (37).

2.      A doutrina Foto‑Frost

60.   O Tribunal de Justiça matizou a possibilidade de colocar questões prejudiciais dos órgãos jurisdicionais referidos no segundo parágrafo do artigo 234.° CE, atribuindo‑lhe o carácter de obrigação semelhante à que incide sobre os tribunais de última instância. Neste sentido, o acórdão Foto‑Frost, a que me referi anteriormente, despojou os órgãos jurisdicionais cujas decisões sejam susceptíveis de recurso judicial no que respeita ao ordenamento nacional do «poder para declarar inválidos os actos das instituições comunitárias» (38).

61.   Os fundamentos desse acórdão, de tão conhecidos, não precisam ser repetidos, bastando recordá‑los através de uma breve resenha.

62.   Para começar, o risco de que as divergências entre os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros quanto à validade dos actos comunitários comprometam a unidade desta ordem jurídica, prejudicando a exigência fundamental da segurança jurídica (39); além disso, a coerência do sistema de protecção jurisdicional instituído pelo Tratado, que confiou ao Tribunal de Justiça o controlo da legalidade na União Europeia (40); por último, o artigo 20.° do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça considera que este órgão é o que está em melhor posição para se pronunciar sobre a validade desses actos, ao conferir às instituições o direito de a defenderem (41) nos processos tramitados no Luxemburgo.

63.   Há que indicar também que o acórdão Hoffmann‑La Roche (42), predecessor do acórdão Foto‑Frost, tinha dispensado o juiz nacional da obrigação de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão interpretativa ou de validade surgida num processo sobre medidas provisórias, sempre que as partes pudessem iniciar outro processo quanto ao mérito, em que se examinassem de novo as questões resolvidas provisoriamente, que foram objecto do reenvio prejudicial (43). Observe‑se que o acórdão Foto‑Frost também aceita esta hipótese como única excepção à obrigação de suscitar questões de validade (n.° 19), mas, diferentemente das conclusões do advogado‑geral G. F. Mancini (44), nunca se refere ao acórdão Hoffmann‑La Roche.

64.   Por sua vez, o acórdão Zuckerfabrik (45) reconheceu aos juízes nacionais a faculdade de ordenarem a suspensão da execução de um acto administrativo nacional baseado num regulamento comunitário. Sem qualquer hesitação, os requisitos a que se sujeita o adiamento do acto que se suspeita ser ineficaz acolhem de forma rigorosa tal eventualidade, pois consistem no facto de o juiz nacional ter sérias dúvidas acerca da validade do referido acto, na urgência e no risco de que o requerente sofra um prejuízo grave e irreparável e em tomar‑se devidamente em consideração o interesse da Comunidade (46).

65.   A jurisprudência posterior ampliou, além disso, a panóplia de ocasiões que permitem medidas provisórias ao mesmo tempo que se submete o incidente prejudicial. Assim, segundo o acórdão Atlanta Fruchthandelsgesellschaft e o. (I) (47), o artigo 249.° CE não exclui que os tribunais dos Estados‑Membros utilizem a tutela cautelar para configurar ou regular as situações ou as relações jurídicas afectadas por uma medida de direito interno baseada num regulamento comunitário cuja validade está em causa.

3.      Matéria do processo principal no contexto dos acórdãos CILFIT e Foto‑Frost

66.   Assentes estas premissas, procede verificar se o College van Beroep, perante a patente nulidade do acto comunitário controvertido, tem legitimidade para declarar a sua invalidade por força da teoria do acto claro sustentada no acórdão CILFIT, mesmo quando obrigado pelo acórdão Foto‑Frost a submeter a questão de validade ao Tribunal de Justiça. Para admitir essa possibilidade, defendida por um sector da doutrina (48), é necessário reunir as condições da jurisprudência CILFIT, sem minar os fundamentos do acórdão Foto‑Frost.

67.   De início demonstrou‑se que o órgão jurisdicional de reenvio se encontra perante uma norma de idêntico conteúdo, inserida num contexto temporal e material muito semelhante ao de outra disposição cuja ineficácia foi declarada no acórdão Kloosterboer Rotterdam (49), pelo que, parafraseando o acórdão CILFIT, a correcta aplicação do direito comunitário se impõe com tal evidência que não deixa lugar a qualquer dúvida razoável sobre a solução da questão suscitada. À parte o facto de se tratar de um acto comunitário formalmente diferente, haveria que recorrer à jurisprudência Da Costa, já que o acórdão Kloosterboer Rotterdam também foi proferido num processo baseado no artigo 234.° CE.

68.   Não parece, portanto, descabido defender que entre a questão de validade do artigo 3.°, n.os 1 e 3 do Regulamento n.° 1484/95, discutida no processo Kloosterboer Rotterdam, e a do artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1423/95, objecto da presente questão prejudicial, existe uma «identidade material» no sentido da jurisprudência Da Costa (50), segundo a qual o juiz neerlandês não estaria obrigado a submeter a questão.

69.   Além disso, este acumular de coincidências em ambos processos reforça a convicção de que, em tais circunstâncias, nenhum órgão jurisdicional nacional albergaria dúvidas acerca da aplicação correcta do direito comunitário, sobretudo quando a causa que origina a nulidade das disposições nos dois processos, ou seja, o facto de a Comissão ter ultrapassado os limites do seu poder de execução (51), é a mesma.

70.   Deste modo, verificar‑se‑ia a última das situações previstas no acórdão CILFIT, por haver uma decisão anterior do próprio Tribunal de Justiça determinando a ilegalidade de uma disposição idêntica à impugnada no processo principal, o que preencheria as exigências das interpretações mais rigorosas da teoria do acto claro, que excluem qualquer outra interpretação (52).

71.   No litígio dos autos, a invalidade da norma comunitária corresponde aos parâmetros indicados no acórdão CILFIT.

72.   Mas, essa circunstância não basta para autorizar o órgão jurisdicional neerlandês a afirmar a inadequação da referida norma sem o oportuno reenvio prejudicial, devendo atender‑se também ao legado Foto‑Frost.

73.   Em primeiro lugar, tratando‑se de garantir a aplicação uniforme do direito comunitário, a invalidade decretada por um juiz nacional num caso como o dos autos, em que há uma decisão semelhante do Tribunal de Justiça, dificilmente implicaria um risco de divergência que comprometesse a unidade do ordenamento jurídico comunitário.

74.   Considero que, dadas as particularidades do processo, sem dúvida pouco frequentes, a ilegalidade se afigura tão manifesta que nenhum tribunal de um Estado‑Membro se afastaria desse critério. Além disso, as circunstâncias do caso reduzem ao mínimo o perigo de decisões jurisdicionais inconciliáveis dos juízes nacionais, até ao ponto de o fazer desaparecer.

75.   Em segundo lugar, no que se refere à coerência do sistema de protecção jurisdicional criado pelo Tratado, os n.os 16 e 17 do acórdão Foto‑Frost deixam transparecer que o Tribunal de Justiça se auto‑atribuiu, com exclusividade, a competência para anular os actos das instituições comunitárias, pelo que as faculdades que o artigo 230.° CE lhe concede devem ser completadas com a de declarar a sua invalidade quando a questão seja suscitada num órgão jurisdicional nacional. Parece, pois, indiscutível que naquele momento histórico de 1987 o Tribunal de Justiça não queria partilhar tal prerrogativa com os tribunais nacionais, apesar do cariz do artigo 234.° CE, que expressamente os implicava na tarefa, reservando a obrigação de utilizar a questão prejudicial aos tribunais de última instância, onde se concentra o verdadeiro risco de divergências na aplicação do direito da União.

76.   A jurisprudência anterior à Foto‑Frost tinha consagrado, por outro lado, a presunção de legitimidade de todo o acto comunitário enquanto o Tribunal de Justiça não o declarar nulo (53), pelo que a patente ilegalidade de um acto pressupõe uma decisão prévia e nesse sentido por parte do Tribunal de Justiça (54).

77.   Em terceiro lugar, a ideia de que o Tribunal de Justiça está numa posição privilegiada para julgar a legalidade dos actos comunitários, dado que o artigo 20.° do seu Estatuto permite às instituições europeias cujos actos sejam postos em causa intervir no processo para defender a sua validade (55), merece uma crítica, já que não se vislumbra qualquer impedimento nas disposições processuais nacionais para que a instituição afectada se constitua em juízo quando for debatida a validade de um dos seus actos ou para que seja oficiosamente intimada a comparecer.

78.   De resto, se o Tribunal de Justiça admitisse a possibilidade de o juiz nacional declarar a nulidade de um acto comunitário, seria acertado sujeitá‑la à condição de que o órgão de que emane tenha tido ocasião de participar no processo (56).

79.   Paira no ar o pressentimento de que o Tribunal de Justiça se arrogou o monopólio da anulação dos actos comunitários mais por medo de abrir a caixa de Pandora das questões de validade do que pelo perigo intrínseco que representam processos como o discutido no College van Beroep, pelo que há que aprofundar o sistema de cooperação judicial instaurado pelo Tratado, para focar a análise da possibilidade de reconhecimento dessa faculdade aos juízes nacionais.

4.      Reflexões sobre o acórdão Foto‑Frost relativamente ao mecanismo de cooperação judicial do artigo 234.° CE

80.   A reconsideração da jurisprudência Foto‑Frost acarretou a atribuição deste processo à Grande Secção; a importância da solução que se venha a adoptar mereceria que o processo fosse completado com a celebração de uma audiência para tratar mais a fundo o dilema reenviado, com uma maior participação dos Estados‑Membros e das instituições comunitárias, o que enriqueceria o debate, orientando‑o numa dimensão discursiva (57), imprescindível ao abordar‑se a partilha de competências judiciais no seio da União entre o Tribunal de Justiça e os órgãos nacionais (58). Alterando assim o desenho processual projectado, avançar‑se‑ia a fim de melhorar a análise proposta, na busca de uma solução matizada, atingida com o diálogo múltiplo e plural inerente à realidade europeia, que geraria um clima de confiança na cooperação judicial instaurada pelo artigo 234.° CE. Além disso, perante o menor vislumbre de rebelião, o Tribunal de Justiça sempre poderia recuperar a responsabilidade cedida ao juiz nacional, como ocorreu com Sísifo que, uma vez devolvido à vida, regressou ao Hades pela mão de Hermes (59). Não o entendeu assim o Tribunal de Justiça e talvez faltem elementos para fundamentar a alteração da sua doutrina, mas, de qualquer forma, poderia ter sido admitida a abertura da fase oral.

81.   Antes de mais, procede repetir que, no acórdão Foto‑Frost, o Tribunal de Justiça se apropriou de uma atribuição sem qualquer fundamento na letra do artigo 234.°CE (60), ao instaurar a obrigação de utilizar o incidente prejudicial em situações em que os autores do Tratado somente tinham previsto uma faculdade (61), reconhecendo‑se a si próprio a competência exclusiva para controlar a eficácia dos actos comunitários à custa dos órgãos jurisdicionais nacionais (62). Algum dia as águas voltarão ao seu leito natural e o juiz nacional recuperará o protagonismo que lhe cabe partilhar com o Tribunal de Justiça na peça da cooperação prejudicial, abandonando o papel de actor secundário a que foi relegado pelo afã tutelar do órgão jurisdicional do Luxemburgo.

82.   O presente processo pode contribuir para a reordenação das respectivas responsabilidades, sempre que o Tribunal de Justiça demonstre maturidade suficiente para estender à questão de validade a teoria do acto claro que o acórdão CILFIT acolheu em relação à questão prejudicial de interpretação.

83.   Por outro lado, um sector doutrinal pretendeu ler nas entrelinhas do referido acórdão, dele retirando um sentido diferente do que cabe deduzir de uma primeira aproximação ao seu texto (63).

84.   Na realidade, embora o acórdão CILFIT tenha acolhido a referida teoria no âmbito da questão de interpretação, apelou aos mais altos tribunais nacionais para que se mostrassem circunspectos ao abordarem um problema derivado da interpretação ou da aplicação do direito comunitário (64). De qualquer maneira, a tese do acto claro, pelas estritas condições a que se sujeita, move‑se nuns parâmetros de abstracção que a confinam ao mundo do simbolismo teórico (65).

85.   Também não há motivos para descartar à partida a ideia, lançada antes dos acórdãos CILFIT e Foto‑Frost, da existência de actos manifestamente ilegais (66), que, por essa razão, seriam considerados nulos ou inaplicados pelo juiz nacional sem o pertinente reenvio, em especial em circunstâncias como as deste caso.

86.   A devolução das competências aos órgãos jurisdicionais nacionais, de acordo com o teor literal e o espírito do Tratado, ainda que limitada a essas hipóteses, ou seja, o reconhecimento de uma teoria do acto manifestamente nulo no âmbito da questão da validade, favoreceria o diálogo judicial baseado no respeito mútuo das respectivas prerrogativas (67).

87.   Além disso, o acórdão Foto‑Frost, para justificar a atribuição exclusiva ao Tribunal de Justiça da competência para declarar a invalidade dos actos comunitários, utiliza, no seu n.° 17, o argumento de que o artigo 230.° CE também lha concede para os recursos de anulação. No entanto, o monopólio do Tribunal de Justiça para conhecer estes recursos foi criticado, acertadamente, por não resultar da letra dessa disposição (68). Em boa lógica, se se interpretasse no sentido de que o artigo 234.° CE permite aos juízes nacionais negar a vigência de tais actos, não seria necessária qualquer referência no artigo 230.° CE à exclusividade de tal competência do Tribunal comunitário.

88.   Por outro lado, a manutenção a qualquer custo da obrigação de suscitar a questão prejudicial na conjuntura do litígio da empresa Gaston Schul, quando a norma é manifestamente nula, denota um excessivo rigor formalista que não é compatível com o princípio da boa administração da justiça. Neste contexto ganham relevância as observações do College van Beroep relativas à economia processual.

89.   Não se pode sujeitar o juiz nacional a um tormento tão estéril quanto o de Sísifo. Albert Camus escreveu, talvez, a reflexão mais lúcida sobre esta personagem, afirmando que «é o herói absurdo» (69), pois não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança; mas no final da sua obra, Camus chega à convicção de que «Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo» (70) e salva‑o pela sua consciência (71). «A clarividência que devia fazer o seu tormento consuma ao mesmo tempo a sua vitória» (72).

90.   Para terminar, procede observar que, diferentemente do que aconteceu com outras iniciativas jurisprudenciais, que se foram incorporando paulatinamente no texto dos Tratados, o acórdão Foto‑Frost não calou no legislador comunitário, já que deixou passar várias ocasiões, em particular, o Tratado de Maastricht, o de Amesterdão, o de Nice e o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, sem introduzir essa contribuição do Tribunal de Justiça no conteúdo da supra‑legalidade da União. Este silêncio resulta muito eloquente e leva à reflexão sobre a falta de aceitação desse monopólio tão artificialmente criado.

91.   Perante o exposto, considero que a resposta à primeira questão reenviada pelo tribunal neerlandês tem de reconhecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, nas circunstâncias do caso em apreço, a possibilidade de não aplicação do acto comunitário cuja validade se debate. A minha convicção de que a solução propugnada não implica qualquer risco para a unidade do direito europeu baseia‑se, em última instância, no facto de os juízes nacionais, se subsistir alguma dúvida, fazerem uso da sua «arte da prudência» (73), optando sempre por recorrer ao reenvio prejudicial.

VI – Conclusão

92.   Perante o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo College van Beroep do seguinte modo:

«1)      Um órgão jurisdicional, na acepção do artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE, não está obrigado por esta disposição a submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial referente à validade de um acto das instituições, podendo não o aplicar quando o Tribunal de Justiça já tenha declarado a invalidade de outro acto equivalente e o referido acto padeça da mesma causa de nulidade.

2)      O artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Regulamento (CE) n.° 1423/95 da Comissão, de 23 de Junho de 1995, que estabelece as regras de aplicação relativas à importação dos produtos do sector do açúcar, excluindo o melaço, é inválido na parte em que estabelece que o direito adicional é, em princípio, determinado com base no preço representativo.»


1 – Língua original: espanhol.


2 – Acórdão de 22 de Outubro de 1987 (314/85, Colect., p. 4199).


3 – Na Ilíada de Homero, já se encontravam algumas referências a Sísifo, filho de Eolo, deus dos ventos, qualificando‑o de «o mais astuto dos homens» (Homero, Ilíada, tradução livre). Mas a primeira descrição do seu suplício aparece nos versos 593 a 600 do canto XI da Odisseia, durante a visita de Ulisses ao Hades:


«Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,


tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa.


Esforçando‑se para empurrar com as mãos e os pés,


conseguia levá‑la até ao cume do monte; mas quando ia


a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia‑a regredir,


e rolava para a planície a pedra sem vergonha.


Ele esforçava‑se de novo para a empurrar: dos seus membros escorria o suor; e poeira da sua cabeça se elevava.»


(Homero, Odisseia, tradução de Frederico Lourenço, Livros Cotovia, 3.a ed., Lisboa 2003, p. 197).


4 – A causa remota da desgraça de Sísifo radica na sua indiscrição, pois contou a Asopas que Zeus tinha raptado a sua filha, a ninfa Egina, com quem manteve um apaixonado romance numa ilha do Egeu. Brunel, P. e Bastian, A. – Sisyphe et son rocher, ed. Du Rocher, Mónaco, 2004, pp. 34 e segs.


5 – Esta expressão inclui o valor dos bens, os custos do seguro e os de transporte (c ost, i nsurance, f reight,). Do ponto de vista aduaneiro, equivale ao preço FOB (f ree o n b oard), que cobre o valor dos bens no país de origem mais o custo real do transporte e dos seguros até ao lugar de entrada no território aduaneiro da Comunidade.


6 – Preço limiar abaixo do qual se pode aplicar o mecanismo de salvaguarda comercial.


7 – JO L 177, p. 4; EE 03 F22 p. 80.


8 – JO L 349, p. 105.


9 – JO L 141, p. 16.


10 – Aprovado pelo Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992 (JO L 302, p. 1).


11 – Acórdão de 6 de Outubro de 1982 (283/81, Recueil, p. 3415).


12 – JO L 145, p. 47.


13 – C‑317/99, Colect., p. I‑9863.


14 – Acórdão Kloosterboer Rotterdam, já referido, n.° 31.


15 – Conclusões de 2 de Maio de 2001 no processo Kloosterboer Rotterdam, já referido.


16 – JO L 282, p. 77; EE 03 F9 p. 151.


17 – Como figura no anexo 1 A do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio, aprovado em nome da Comunidade pelo artigo 1.°, n.° 1, primeiro travessão, da Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) (JO L 336, p. 1).


18 – Que, na realidade, não é mais do que o reflexo de uma única inconsistência, relativamente ao acordo internacional cujo teor diz respeito ao regulamento de base.


19 – Igual ao preço de referência médio do produto em questão.


20 – Acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 60), e de 21 de Março de 2002, Cura Anlagen (C‑451/99, Colect., p. I‑3193, n.° 26).


21 – Neste ponto, não posso deixar de referir os versos com que Baudelaire começa o poema XI, Le Guignon, de As flores do mal:


«Pour soulever un poids si lourd,


Sisyphe, il faudrait ton courage».


(Ch. Baudelaire, Les fleurs du mal, XI, Gallimard. La Pléiade, Paris 1975, p. 17).


22 – Acórdão já referido.


23 – Acórdão de 27 de Março de 1963 (28/62 a 30/62, Colect. 1962‑1964, p. 233).


24 – Acórdão Da Costa, já referido, p. 237.


25 – Acórdão Da Costa, já referido, p. 237.


26 – Acórdão CILFIT, já referido, n.° 14.


27 – Acórdão CILFIT, já referido, n.° 10.


28 – Acórdão CILFIT, já referido, n.° 16.


29 – Ibidem, n.° 19.


30 – Ibidem, n.° 20.


31 – Ibidem, n.° 18.


32 – Acórdãos de 17 de Maio de 2001, TNT Traco (C‑340/99, Colect., p. I‑4109, n.° 35), e de 30 de Setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, Colect., p. I‑10239, n.° 118).


33 – Notas do Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 1996 e de 8 de Março de 2005 (JO C 143, p. 1), respectivamente.


34 – Que deu origem ao acórdão de 20 de Novembro de 1997 (C‑338/95, Colect., p. I‑6495).


35 – N.° 65 das conclusões relativas ao processo a que se refere a nota anterior.


36 – Acórdão de 4 de Junho de 2002 (C‑99/00, Colect., p. I‑4839), em especial, n.° 75 das conclusões.


37 – As conclusões do processo Wiener, já referidas, n.° 62, seguem este critério.


38 – Acórdão Foto‑Frost, já referido, n.° 15.


39 – Ibidem.


40 – Acórdão Foto‑Frost, n.° 16.


41 – Acórdão Foto‑Frost, n.° 18.


42 – Acórdão de 24 de Maio de 1977 (107/76, Colect., p. 333).


43 – Acórdão Hoffmann‑La Roche, já referido, n.° 6.


44 – Conclusões relativas ao processo Foto‑Frost (Colect., p. 4211), em especial, n.° 6, segundo parágrafo.


45 – Acórdão de 21 de Fevereiro de 1991 (C‑143/88 e C‑92/89, Colect., p. I‑415).


46 – Ibidem, n.° 33.


47 – Acórdão de 9 de Novembro de 1995 (C‑465/93, Colect., p. I‑3761).


48 – V., por exemplo, Couzinet, J.‑F. – «Le renvoi en appréciation de validité devant la Cour de Justice des Communautés européennes», in Revue trimestrielle de droit européen, 1976, pp. 660 e segs., em especial p. 662.


49 – Já referido.


50 – Referida no n.° 47 destas conclusões.


51 – Acórdão Kloosterboer Rotterdam, já referido, n.° 29.


52 – Sobre as diferentes exegeses e seu grau de rigor relativamente a este requisito do acórdão CILFIT, Lenaerts, K. – «L’arrêt CILFIT», in Cahiers de droit européen, 1983, pp. 471 e segs., em especial, p. 497.


53 – Acórdão de 13 de Fevereiro de 1979, Granaria (101/78, Colect., p. 311).


54 – É o que se deduz, pelo menos, do acórdão de 13 de Maio de 1981, International Chemical Corporation (66/80, Recueil, p. 1191).


55 – Acórdão Foto‑Frost, n.° 18.


56 – Dyrberg, P., «La aplicación uniforme del derecho comunitario y las sentencias CILFIT y Foto‑Frost», in Ordenamiento jurídico comunitario y mecanismos de tutela judicial efectiva, Vitoria, 1995, pp. 247 e segs., em especial, p. 255.


57 – Sarmiento, D., Poder judicial e integración europea, Garrigues e Thomson Civitas, Madrid, 2004, p. 334, defende esta ideia quando os processos assumam um carácter constitucional e defende que «numa CE/UE cada vez mais constitucionalizada, a configuração de um poder judicial alinhado com o modelo discursivo passou a ser uma exigência».


58 – Isaac, G., «La modulation par la Cour de justice des Communautés européennes des effets dans le temps de ses arrêts d’invalidité», in Cahiers de droit européen, 1987, pp. 444 e segs., escreveu que não há missão mais necessária, mas também mais perigosa que a que o Tribunal de Justiça assume ao precisar o conteúdo da sua própria competência.


59 – Camus, A. – OMito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo, Livros do Brasil, Lisboa, relata que Sísifo, quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor da sua mulher. Ordenou‑lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou‑se nos infernos e aí, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Hades licença para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, e não quis regressar à sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Foi necessário uma ordem dos deuses. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando‑o às alegrias, levou‑o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto. P. Brunel e A. Bastian, op. cit., p. 51, assinalam a latinização operada neste ponto por Camus e atribuem‑na às suas fontes de informação, fundamentalmente a Mythologie de Commelin e o Grand Larousse; por essa razão, refere‑se a Plutão, em vez de a Hades, e a Mercúrio, em lugar de a Hermes. Estes autores, op. cit., pp. 45 e 46, defendem que a história do corpo sem sepultura de Sísifo foi criada por ele próprio já que, pouco antes de morrer, pediu à sua mulher que não o honrasse com exéquias, para assim ter um pretexto para provocar o seu retorno ao mundo dos vivos.


60 – Glaesner, A. – «Die Vorlagepflicht unterinstanzlicher Gerichte im Vorabentscheidungsverfahren», in Europarecht, n.° 2/1990, pp. 143 e segs.; Barav, A., «Le renvoi préjudiciel communautaire», in Justices, n.° 6, Abril/Junho 1997, pp. 1 e segs.; e Pertek, J., La pratique du renvoi préjudiciel en droit communautaire, Paris 2001, p. 78, embora este último não o afirme de maneira tão peremptória.


61 – Barav, A., op. cit., p. 5.


62 – Barav, A., op. cit., p. 6.


63 – Rasmussen, H. – «The European Court’s Acte Clair Strategy in CILFIT (Or: Acte Clair, of Course! But What does it Mean?)», in European Law Review, n.° 10/1984, pp. 242 e segs.


64 – Rasmussen, H., op. cit., p. 259.


65 – Lenaerts, K., op. cit., p. 500, e Boulouis, J. e Darmon, M. – in «Contentieux communautaire», Paris, 1997, p. 27.


66 – Como destacou a dada altura Couzinet, J.‑F., op. cit., p. 659.


67 – Barav, A., op. cit., p. 1.


68 – Dyrberg, P., op. cit., p. 254.


69 – Camus, A., op. cit., p. 156.


70 – Camus, A., op. cit., p. 157.


71 – Nas representações artísticas de Sísifo vislumbra‑se este aspecto. No magnífico quadro de Tiziano, exibido no Museo del Prado de Madrid, destaca‑se o tamanho imenso da pedra e o esforço do herói para a suportar, cuja cabeça se confunde com as rugosidades minerais em que enterra todo o seu empenho. Há que recorrer a Camus (op. cit., p. 157) uma vez mais: «Um rosto que sofre tão perto das pedras é já, ele próprio, pedra!». Mas no fundo da tela há uma luz que ilumina a cena e sugere um certo ar de triunfo. Na escultura do artista alemão Schmidt‑Hofer, o corpo de Sísifo aparece talhado em bronze, atlético, combinando o esforço extremo do levantamento com a glória de quem consegue um feito valioso, num equilíbrio de formas e de ideias que transmite imediatamente todo o significado do herói mitológico.


72 – Camus, A., op. cit., p. 158, acrescentando que «não há destino que não se transcenda pelo desprezo».


73 – Permito‑me tomar emprestada a parte mais conhecida do título da obra clássica do escritor espanhol Baltasar Gracián (1601‑1658) «Oráculo manual y el Arte de la Prudencia», cuja primeira edição, aparecida na cidade de Huesca, data de 1647. O livro completo consta de 300 aforismos comentados, destinados a proporcionar uma sabedoria prática que contenha a prudência e a cautela necessárias para se enfrentar com êxito os desafios quotidianos, pelo que se diferencia claramente das «Maximes» de François, Duc de La Rochefoucault (1613‑1680) e dos ditames de Francisco de Quevedo (1580‑1645), de carácter satírico e sarcástico, ainda que não menos amenos e instrutivos.