CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

ANTONIO TIZZANO

apresentadas em 7 de Abril de 2005 (1)

Processo C-453/03

ABNA Ltd e o.

contra

Secretary of State for Health

e

Food Standards Agency

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court of Justice, Queen’s Bench (Reino Unido)]

e

Processos apensos C-11/04 e C-12/04

Fratelli Martini & C. spa

e

Cargill srl

contra

Ministero delle Politiche Agricole e Forestali

Ministero delle Attività Produttive

Ministero della salute

e

Ferrari Mangimi srl

e

Assalzoo – Associazione nazionale tra i produttori di alimenti zootencici

contra

Ministero delle Politiche Agricole e Forestali

Ministero delle Attivittà Produttive

Ministero della salute

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Consiglio di Stato (Itália)]

e

Processo C-194/04

Nederlandse Verenigin Diervoedrindustrie Nevedi

contra

Productschap Dierveoder

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Rechtbank te’ s-Gravenhage (Países Baixos)]

«Directiva 2002/2 – Alimentos compostos para animais – Matérias-primas – Obrigação de indicação quantitativa pormenorizada no rótulo e ao cliente – Validade – Lista de matérias-primas utilizáveis – Inexistência – Medidas nacionais de execução – Suspensão cautelar – Competência das autoridades administrativas»






1.     Com despachos diferentes (2), três órgãos jurisdicionais de outros tantos Estados‑Membros (a High Court of Justice, Queen’s Bench Division, do Reino Unido, o Consiglio di Stato italiano e o Rechtbank te ‘s‑Gravenhage dos Países Baixos) pediram ao Tribunal de Justiça que se pronuncie, ao abrigo do artigo 234.° CE, sobre a validade da Directiva 2002/2/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que altera a Directiva 79/373/CEE do Conselho relativa à circulação de alimentos compostos para animais e que revoga a Directiva 91/357/CEE da Comissão (a seguir «Directiva 2002/2» ou simplesmente «directiva») (3).

2.     Em especial, todos os órgãos jurisdicionais referidos querem saber se, ao impor aos produtores de alimentos compostos para animais a obrigação de indicar – no rótulo e ao cliente a pedido deste – as quantidades de matérias‑primas utilizadas nos seus produtos, a directiva referida é inválida por ter uma base jurídica incorrecta ou, de qualquer modo, contrária ao princípio da proporcionalidade e ao direito fundamental de propriedade. O órgão jurisdicional italiano colocou ao Tribunal de Justiça a questão da validade da directiva à luz dos princípios da precaução e da não discriminação, enquanto o órgão jurisdicional neerlandês invocou a esse respeito igualmente o princípio da liberdade de empresa.

3.     Por último, o Consiglio di Stato e o Rechtbank te ‘s‑Gravenhage colocaram também algumas questões de interpretação. O primeiro, sempre com referência específica à directiva, perguntou se esta era aplicável na falta de uma lista apropriada que enumere as matérias‑primas utilizáveis nos alimentos compostos; o segundo perguntou, em geral, se as autoridades administrativas nacionais podem, tal como as autoridades jurisdicionais, suspender a título cautelar a execução das medidas nacionais que transpõem disposições comunitárias de validade questionável.

I –    Regulamentação comunitária

O artigo 152.° CE

4.     Até ao Tratado de Amesterdão, as medidas em matéria de política agrícola comum, que prosseguiam igualmente finalidades de protecção da saúde pública, deviam ser adoptadas, segundo o processo de consulta, com base no artigo 37.° CE.

5.     Desde a entrada em vigor desse Tratado, algumas dessas medidas podem basear‑se no artigo 152.° CE que, na sequência das alterações introduzidas dispõe o seguinte:

«1. Na definição e execução de todas as políticas e acções da Comunidade será assegurado um elevado nível de protecção da saúde.

A acção da Comunidade, que será complementar das políticas nacionais, incidirá na melhoria da saúde pública e na prevenção das doenças e afecções humanas e na redução das causas de perigo para a saúde humana. Esta acção abrangerá a luta contra os grandes flagelos, fomentando a investigação sobre as respectivas causas, formas de transmissão e prevenção, bem como a informação e a educação sanitária.

[...]

4. O Conselho, deliberando nos termos do artigo 251.° e após consulta ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões, contribuirá para a realização dos objectivos a que se refere o presente artigo, adoptando:

[...]

b)      Em derrogação do artigo 37.°, medidas nos domínios veterinário e fitossanitário que tenham directamente por objectivo a protecção da saúde pública;

[...]».

A regulamentação comunitária sobre a rotulagem dos alimentos compostos para animais e a Directiva 2002/2/CE

6.     A produção e a comercialização dos alimentos compostos para animais são reguladas pela Directiva 79/373/CEE do Conselho, de 2 de Abril de 1979 (a seguir «Directiva 79/373») (4).

7.     Esta foi várias vezes alterada por diversas directivas, em especial, na parte que aqui mais interessa, a relativa à rotulagem dos alimentos compostos destinados a animais de produção.

8.     A Directiva 90/44/CE (a seguir «Directiva 90/44») (5) procedeu a uma primeira alteração a esse respeito. A Directiva 90/44 harmonizava as regras de rotulagem segundo o sistema da «fórmula flexível de declaração» (oitavo considerando), com base no qual o responsável pelo rótulo devia enumerar as matérias‑primas utilizadas por ordem decrescente da respectiva importância ponderal, sem todavia precisar as respectivas quantidades. Além disso, podia escolher se designava as referidas matérias‑primas sob o seu nome específico ou sob a denominação genérica da categoria a que pertencem (artigo 1.°, n.° 5).

9.     As crises da encefalopatia espongiforme bovina (a seguir «BSE») e das dioxinas levaram o legislador a abandonar o sistema acima descrito para acolher, na Directiva 2002/2, adoptada com base no artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE, a fórmula mais rígida da «declaração aberta».

10.   Segundo o legislador, com efeito, as referidas crises demonstraram a inadequação da regulamentação existente, revelando «a necessidade de informações mais pormenorizadas, qualitativa e quantitativamente, sobre a composição dos alimentos compostos» (quarto considerando). Com efeito, essas indicações, em especial as quantitativas, além de constituírem «um elemento de informação importante para os criadores» (oitavo considerando), podem ‑ segundo o legislador ‑ «ser úteis na orientação da rastreabilidade das matérias potencialmente contaminadas para lotes específicos, o que será vantajoso em termos de saúde pública e evitará que se desperdicem produtos que não constituem um risco significativo para a saúde pública» (quinto considerando).

11.   Assim, nos termos do artigo 1.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2002/2, que altera o artigo 5.°, n.° 1, alínea j), da Directiva 79/373, a rotulagem deve agora incluir igualmente:

«O número de referência do lote».

12.   Além disso, nos termos do artigo 1.°, n.° 1, alínea b), que altera o artigo 5.°, n.° 1, alínea l), da Directiva 79/373, o rótulo deve igualmente conter:

«[n]o caso dos alimentos compostos não destinados a animais de companhia, a menção ‘a percentagem ponderal exacta das matérias‑primas utilizadas na composição deste alimento, pode ser obtida junto de: [...]’ (indicação do nome ou denominação social, da morada ou sede social e do número de telefone do responsável pelas indicações a que se refere o presente número). Esta informação será fornecida a pedido do cliente.»

13.   O artigo 1.°, n.° 4, que altera o artigo 5.°‑C da Directiva 79/373 dispõe, em seguida, que:

«1.      Todas as matérias‑primas que entrem na composição do alimento composto para animais devem ser enumeradas sob a sua denominação específica.

2.      A enumeração das matérias‑primas para alimentação animal fica sujeita às seguintes regras:

a)      Alimentos compostos não destinados a animais de companhia:

i)      enumeração das matérias‑primas para alimentação animal, com indicação, por ordem de importância decrescente, das percentagens ponderais presentes no alimento composto, ou

ii)      no que se refere às percentagens acima indicadas, é permitida uma tolerância de +/‑ 15% do valor declarado;

[...]».

14.   O artigo 1.°, n.° 5, que acrescenta um segundo parágrafo ao artigo 12.° da Directiva 79/373, prevê finalmente que:

«Os Estados‑Membros devem determinar que os produtores de alimentos compostos sejam obrigados a colocar à disposição das autoridades encarregadas dos controlos oficiais, a pedido destas, qualquer documento relativo à composição dos alimentos destinados a serem colocados em circulação que permita verificar a lealdade das informações dadas na rotulagem».

15.   Para os efeitos do presente processo, recorda‑se por último que, fora do articulado, no seu décimo considerando, a Directiva 2002/2 pedia à Comissão para apresentar ao Parlamento Europeu e ao Conselho «[c]om base no estudo de viabilidade e o mais tardar até 31 de Dezembro de 2002, [...] um relatório [...], acompanhado por uma proposta adequada, que tenha em conta as conclusões do dito relatório, no sentido da elaboração de uma lista positiva».

16.   Nesse sentido, em 24 de Abril de 2003, a Comissão apresentou um relatório (COM 2003 178), no qual declarou que a redacção de uma «lista positiva», ou seja de «uma lista positiva de matérias‑primas que, mediante prévia apreciação, são consideradas inofensivas para a saúde humana e animal e podem portanto ser utilizadas na alimentação dos animais» não é «decisiva para garantir a segurança dos alimentos para animais». Na sequência dessa consideração, a Comissão decidiu não apresentar nenhuma proposta quanto ao fundo (6).

O Regulamento (CE) n.° 178/2002

17.   Apesar de não ser directamente relevante para a solução do presente processo, refere‑se aqui igualmente o Regulamento (CE) n.° 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que determina os princípios e as normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios (7).

18.   Nos termos do artigo 3.°, n.° 15, desse regulamento entende‑se por «rastreabilidade»:

«a capacidade de detectar a origem e de seguir o rasto de um género alimentício, de um alimento para animais, de um animal produtor de géneros alimentícios ou de uma substância, destinados a ser incorporados em géneros alimentícios ou em alimentos para animais, ou com probabilidades de o ser, ao longo de todas as fases da produção, transformação e distribuição».

19.   O artigo 7.°, n.° 1, dedicado ao princípio da precaução, dispõe além disso que:

«Nos casos específicos em que, na sequência de uma avaliação das informações disponíveis, se identifique uma possibilidade de efeitos nocivos para a saúde, mas persistam incertezas a nível científico, podem ser adoptadas as medidas provisórias de gestão dos riscos necessárias para assegurar o elevado nível de protecção da saúde por que se optou na Comunidade, enquanto se aguardam outras informações científicas que permitam uma avaliação mais exaustiva dos riscos».

II – Regulamentações nacionais

20.   A Directiva 2002/2 foi transposta:

–       no Reino Unido, pelas Feeding Stuffs (Sampling and Analysis) e Feeding Stuffs (Enforcement) (Amendment) (England) Regulations 2003 (respectivamente, o regulamento para o controlo de amostras e a análise dos compostos para animais e o regulamento de execução para Inglaterra; a seguir «regulamentos ingleses») (8) que alteram as Feeding Stuffs Regulations 2000 (9);

–       em Itália, pelo decreto do Ministro das Políticas Agrícolas e Florestais de 25 de Junho de 2003, relativo à integração e alteração dos anexos à Lei n.° 281, de 15 de Fevereiro de 1963, relativa à regulamentação da preparação e do comércio de alimentos compostos para animais, em cumprimento da Directiva 2002/2/CE de 28 de Janeiro de 2002 (a seguir «decreto italiano») (10);

–       nos Países Baixos, pelo Regulamento n.° PDV‑25 de 11 de Abril de 2003 (a seguir «regulamento neerlandês») (11) que altera o Verordening PDV diervoeders 2003 (regulamento do Productschap Diervoeder sobre os alimentos para animais de 2003).

III – Matéria de facto e tramitação processual

No processo C‑453/03

21.   Por recurso de 8 de Setembro de 2003, a ABNA Ltd, a Denis Brinicombe (a partnership), a Bocm Pauls Ltd, a Devenish Nutrition Ltd, a Nutrition Services (International) Ltd, e a Primary Diets Ltd (a seguir designadas colectivamente «ABNA»), todas sociedades que se dedicam ao fabrico de alimentos compostos para animais, impugnaram os regulamentos ingleses que transpõem a Directiva 2002/2 perante a High Court of Justice.

22.   A High Court of Justice, tendo sérias dúvidas quanto à validade do artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4 dessa directiva, e entendendo que da aplicação das disposições nacionais de execução correspondentes podiam decorrer prejuízos graves e irreparáveis para a ABNA, decidiu suspender essas disposições a título cautelar e, nesse contexto, submeter a seguinte questão ao Tribunal de Justiça:

«O artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e/ou n.° 4, da Directiva 2002/2, na parte em que altera o artigo 5.°‑C, n.° 2, alínea a), da Directiva 79/373, ao exigir a enumeração obrigatória das percentagens, é inválido por:

a)      inexistência de base legal do artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE;

b)      violação do direito fundamental de propriedade;

c)      violação do princípio da proporcionalidade?»

23.   Apresentaram observações escritas neste processo a ABNA, os Governos do Reino Unido, França, Grécia, Espanha e dos Países Baixos, bem como o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão.

Nos processos apensos C‑11/04 e C‑12/04

Processo C‑11/04

24.   Por recurso notificado em 17 de Setembro de 2003, a Fratelli Martini & C. spa e a Cargill srl (a seguir designadas colectivamente «F.lli Martini»), também sociedades que operam no sector da produção de compostos para animais, impugnaram no Tribunale Amministrativo del Lazio (a seguir «TAR») o decreto italiano que transpõe a Directiva 2002/2, pedindo a sua anulação, com suspensão prévia da sua execução provisória, por violação do direito comunitário e nacional.

25.   O TAR indeferiu o pedido de medida cautelar. Foi interposto recurso do despacho de indeferimento no Consiglio di Stato.

26.   Este, tendo – tal como os órgãos jurisdicionais ingleses – sérias dúvidas sobre a validade da Directiva 2002/2, em especial pelo facto de esta impor informações quantitativas pormenorizadas igualmente para os alimentos compostos de base vegetal considerados inócuos para a saúde pública, suspendeu, por despacho de 11 de Novembro de 2003, as disposições nacionais impugnadas. Por isso, por despacho separado, submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      O artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE deve ser interpretado no sentido de que pode constituir o fundamento jurídico correcto para a adopção de disposições em matéria de rotulagem contidas na Directiva 2002/2/CE, quando se refere à rotulagem de alimentos de origem vegetal para animais?

2.      A Directiva 2002/2/CE, na parte em que impõe a obrigação de indicação exacta das matérias‑primas contidas nos alimentos compostos para animais, considerada igualmente aplicável aos alimentos de origem vegetal, é justificada com base no princípio da precaução, na falta de uma análise dos riscos assente em estudos científicos que imponha essa medida de precaução devido a uma possível correlação entre a quantidade das matérias‑primas utilizadas e o risco das patologias a prevenir, e é, em todo o caso, justificada à luz do princípio da proporcionalidade, dado que não considera suficientes, para o prosseguimento dos objectivos de saúde pública que constituem a finalidade da medida, as obrigações, impostas à indústria de alimentos para animais, de informação às autoridades públicas, obrigadas a segredo e competentes para efectuarem os controlos com vista à protecção da saúde, impondo a directiva, em vez disso, uma regulamentação generalizada relativa à obrigação de indicar, nos rótulos dos alimentos de origem vegetal para animais, as percentagens quantitativas das matérias‑primas utilizadas?

3.      A Directiva 2002/2/CE, ao não respeitar o princípio da proporcionalidade, é contrária ao direito fundamental de propriedade reconhecido aos cidadãos dos Estados‑Membros?»

Processo C‑12/04

27.   Por recurso separado, a sociedade Ferrari Mangimi srl e a Associazione nazionale produttori alimenti zootecnici – ASSALZOO (a seguir designadas colectivamente «Ferrari Mangimi») impugnaram no TAR o decreto italiano, pedindo a sua anulação, com suspensão prévia da execução provisória.

28.   Tal como no caso das primeiras recorrentes, o TAR negou provimento ao pedido cautelar. Também nesse processo, foi interposto recurso do despacho de indeferimento no Consiglio di Stato, o qual, após ter suspendido a título cautelar o decreto impugnado, submeteu ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 234.° CE, questões análogas sobre a validade da Directiva 2002/2, e uma questão de interpretação, formuladas do seguinte modo:

«O artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE deve ser interpretado no sentido de que pode constituir o fundamento jurídico correcto para a adopção de disposições em matéria de rotulagem contidas na Directiva 2002/2/CE, quando se refere à rotulagem de alimentos de origem vegetal para animais?

2.      A Directiva 2002/2/CE, na parte em que impõe a obrigação de indicação exacta das matérias‑primas contidas nos alimentos compostos para animais, considerada igualmente aplicável aos alimentos de origem vegetal, é justificada com base no princípio da precaução, na falta de uma análise dos riscos assente em estudos científicos que imponha essa medida de precaução devido a uma possível correlação entre a quantidade das matérias‑primas utilizadas e o risco das patologias a prevenir, e é, em todo o caso, justificada à luz do princípio da proporcionalidade, dado que não considera suficientes, para o prosseguimento dos objectivos de saúde pública que constituem a finalidade da medida, as obrigações, impostas à indústria de alimentos para animais, de informação às autoridades públicas, obrigadas a segredo e competentes para efectuarem os controlos com vista à protecção da saúde, impondo a directiva, em vez disso, uma regulamentação generalizada relativa à obrigação de indicar, nos rótulos dos alimentos de origem vegetal para animais, as percentagens quantitativas das matérias‑primas utilizadas?

3.      A Directiva 2002/2/CE deve ser interpretada no sentido de que a sua aplicação e, portanto, a sua eficácia estão subordinadas à adopção de uma lista positiva de matérias‑primas indicadas com os seus nomes específicos, tal como precisado no décimo considerando e no relatório da Comissão [COM (2003) 178 final], datado de 24 de Abril de 2003, ou deve a aplicação da directiva nos Estados‑Membros ser feita antes da adopção da lista positiva das matérias‑primas prevista na directiva, recorrendo a uma lista das matérias‑primas contidas nos alimentos compostos para animais, com as denominações e as definições genéricas das suas categorias comerciais?

4.      A Directiva 2002/2/CE deve ser considerada ilegal por violação do princípio da igualdade de tratamento e da não discriminação, em prejuízo dos produtores de alimentos para animais relativamente aos produtores de alimentos para consumo humano, na medida em que estão sujeitos a uma disciplina que impõe a indicação quantitativa das matérias‑primas que entram na composição dos alimentos compostos para animais?»

Tramitação processual no Tribunal de Justiça

29.   Por despacho do Presidente do Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2004, os processos C‑11 e C‑12/04 foram apensos para efeitos da fase escrita, da fase oral e do acórdão.

30.   Na fase escrita intervieram a F.lli Martini, a Ferrari Mangimi, os Governos da Grécia e de Espanha, bem como o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão.

No processo C‑194/04

31.   O processo neerlandês opõe o Productschap Diervoeder (a seguir «Productschap») e a Nederlandse Vereniging Diervoederindustrie Nevedi (a seguir «Nevedi»).

32.   O Productschap é um organismo público neerlandês com competência para adoptar os regulamentos relativos aos alimentos para animais os quais, no entanto, para produzirem efeitos devem ser aprovados pelo Ministro da Agricultura, Natureza e da Qualidade Alimentar (a seguir «Ministro»).

33.   Após a transposição dentro do prazo da Directiva 2002/2, através de regulamento próprio devidamente aprovado pelo Ministro, o Productschap ficou persuadido da invalidade da própria directiva. Por esse motivo, adoptou um novo regulamento visando a não aplicação do regulamento já em vigor.

34.   No entanto esse novo regulamento não obteve a necessária aprovação do Ministro, o qual entendeu que a suspensão puramente administrativa das disposições de execução da directiva violava o direito comunitário, que reserva esse poder exclusivamente aos órgãos jurisdicionais nacionais.

35.   Não tendo o governo tomado directamente medidas, a Nevedi pediu ao Rechtbank te ‘s‑Gravenhage que suspendesse a título cautelar o regulamento do Productschap.

36.   O órgão jurisdicional neerlandês entendeu que a obrigação prevista pela directiva de indicar as percentagens ponderais das matérias‑primas utilizadas nos alimentos compostos para animais não tinha – como exige o artigo 152.° CE – nenhuma ligação directa com a protecção da saúde pública e obrigava os produtores a revelar aos concorrentes informações secretas, essenciais para os seus negócios.

37.   Por esse motivo, tendo em consideração igualmente a questão da validade já colocada pelo órgão jurisdicional inglês, deu provimento ao pedido de medida cautelar apresentado e, nesse contexto, submeteu ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 234.° CE, as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e/ou n.° 4, da Directiva 2002/2, na parte em que altera o artigo 5.°‑C, n.° 2, alínea a), da Directiva 79/373, ao exigir a indicação obrigatória das percentagens, é inválido por:

a)      inexistência de base legal no artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE;

b)      violação de direitos fundamentais, como o direito de propriedade e o direito de livre exercício de uma profissão;

c)      violação do princípio da proporcionalidade?

2)      Quando estejam reunidas as condições em que um juiz nacional de um Estado‑Membro pode suspender a aplicação de um acto das instituições europeias que é objecto de impugnação, em especial quando a questão da validade deste acto controvertido foi submetida ao Tribunal de Justiça por um órgão jurisdicional desse mesmo Estado‑Membro, podem as autoridades nacionais competentes dos outros Estados‑Membros, também elas, sem intervenção judicial, suspender a aplicação deste acto até que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a sua validade?»

38.   No presente processo apresentaram observações escritas a Nevedi, os Governos dos Países Baixos, Grécia e Itália, bem como o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão.

39.   Relativamente a este processo e para os processos C‑453/03 e C‑11/04 e C‑12/04, teve lugar uma audiência comum, em 30 de Novembro de 2004, na qual participaram a ABNA, a F.lli Martini, a Ferrari Mangimi, a Nevedi (a seguir designadas também colectivamente «recorrentes nos processos principais»), os Governos de Itália, Dinamarca, França, Grécia, Espanha e dos Países Baixos, bem como o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão.

IV – Análise jurídica

40.   Como vimos, nos processos acima referidos colocam‑se essencialmente três questões.

41.   A questão principal diz respeito à validade do artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4, da Directiva 2002/2, que obriga os produtores de alimentos compostos para animais de produção a:

–       mencionar no rótulo as matérias‑primas utilizadas, indicando a percentagem de cada uma relativamente ao peso total do alimento composto, com tolerância de mais ou menos 15% (artigo 1.°, n.° 4);

–       comunicar aos clientes que o solicitem a percentagem exacta de cada uma das matérias‑primas relativamente ao peso do alimento composto (artigo 1.°, n.° 1, alínea b)).

42.   Com efeito, segundo os órgãos jurisdicionais nacionais essas previsões podem: ter sido adoptadas com uma base jurídica incorrecta (artigo 152.°, n.° 4, alínea b), bem como o artigo 37.° CE) e violar os direitos fundamentais de propriedade e de liberdade de iniciativa e ainda os princípios da proporcionalidade, da precaução e da não discriminação.

43.   Como já referi, no processo C‑12/04 o órgão jurisdicional italiano colocou, além dessa questão principal, igualmente uma questão de interpretação, que diz respeito à possibilidade de aplicar a Directiva 2002/2 por não existir uma lista positiva de matérias‑primas utilizáveis nos alimentos compostos para animais.

44.   A terceira questão também é de carácter interpretativo. Com essa questão, o órgão jurisdicional neerlandês pergunta, em geral, se as autoridades administrativas de um Estado‑Membro podem suspender a título cautelar a aplicação de disposições de execução de um acto comunitário de validade duvidosa, quando um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro já colocou a esse respeito uma questão prejudicial sobre a sua validade.

45.   Uma vez que a questão principal é em larga medida comum, procederei à sua análise conjunta em relação aos três processos, analisando em seguida os outros problemas neles suscitados pela ordem referida acima.

46.   No entanto, apreciarei antes de mais a admissibilidade das questões submetidas ao Tribunal de Justiça no processo C‑194/04, admissibilidade essa que foi contestada nas observações escritas do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão.

A –    Quanto à admissibilidade das questões submetidas no processo C-194/04

47.   Com efeito, as instituições intervenientes contestaram a título preliminar a admissibilidade das questões submetidas pelo órgão jurisdicional neerlandês, que, no entender delas, não descreveu suficientemente o quadro factual e legal do processo principal, nem esclareceu de forma suficiente os motivos pelos quais tem dúvidas acerca da validade da directiva.

48.   Em minha opinião, no entanto, esse fundamento peca por excessivo formalismo.

49.   Recordo a esse respeito que para estabelecer se um despacho de reenvio define suficientemente «o quadro factual e legal em que se inscrevem as questões que coloca» (12), e é, por conseguinte, admissível, deve proceder‑se a uma apreciação puramente funcional, ou seja, uma apreciação que incida sobretudo nas finalidades e na estrutura do mecanismo prejudicial, mais do que em considerações de ordem quantitativa ou formal.

50.   O que importa, noutros termos, não é apreciar a quantidade de indicações contidas no despacho ou o modo como são apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, mas sim verificar se essas indicações permitem, por um lado, ao Tribunal de Justiça «dar respostas úteis» ao órgão jurisdicional nacional e, por outro, «aos governos dos Estados‑Membros e às outras partes interessadas a possibilidade de apresentarem observações em conformidade com o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça» (13).

51.   Ora, o órgão jurisdicional neerlandês, depois de descrever o quadro legal pertinente, no seu despacho precisou que a Nevedi impugnou o regulamento do Productschap que transpõe a Directiva 2002/2 e que tem sérias dúvidas sobre a validade de algumas das suas disposições.

52.   O referido órgão jurisdicional explicou ainda as razões de ser dessas dúvidas. Explicou‑as em parte directamente, esclarecendo que – em sua opinião – as disposições controvertidas não têm, como exige o artigo 152.° CE, uma ligação directa com a saúde pública e que obrigam, violando o direito de propriedade e a liberdade de iniciativa, os produtores de alimentos compostos a divulgar aos concorrentes informações secretas essenciais. E explicou‑as em parte indirectamente, remetendo, em especial no que respeita à questão da proporcionalidade, para o despacho mais fundamentado do órgão jurisdicional inglês.

53.   Parece‑me que, desse modo, o órgão jurisdicional neerlandês descreveu suficientemente o quadro legal e factual da questão suscitada e esclareceu, tanto quanto necessário, as razões do reenvio para o Tribunal de Justiça. Esses elementos colocaram todas as partes interessadas, incluindo as instituições que intervieram justamente neste como nos outros processos conexos, em condições de apresentarem as suas observações sobre as questões colocadas, que podem em minha opinião ser resolvidas utilmente pelo Tribunal de Justiça.

54.   Por esse motivo, entendo que o despacho do Rechtbank te ‘s‑Gravenhage é admissível e merece, tal como o inglês e o italiano, uma resposta do Tribunal de Justiça.

B –    Quanto à validade da directiva

55.   Como disse, os processos em apreciação exigem antes de mais a análise da validade do artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4, da Directiva 2002/2, que o Parlamento Europeu e o Conselho adoptaram com base no artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE, na sequência das crises da BSE e das dioxinas.

Introdução

56.   Antes de iniciar essa análise, parece‑me desde logo necessário indicar alguns pontos assentes dos quais, em minha opinião, se deve partir quando, como no caso vertente, o Tribunal de Justiça é chamado a apreciar a legalidade de medidas de política agrícola comum que, nas intenções das instituições, se destinam à protecção da saúde pública.

57.   O primeiro aspecto é constituído pela verificação de que numa matéria, como a da política agrícola comum, que exige complexas apreciações políticas, económicas e sociais, o legislador comunitário dispõe de um «amplo poder de apreciação» (14). Por conseguinte, nessa matéria, a fiscalização jurisdicional do Tribunal de Justiça deve ter por objectivo a verificação de que o acto controvertido não tem vícios manifestos; mais precisamente, o Tribunal de Justiça deve limitar‑se a apreciar se a instituição competente «não ultrapassou manifestamente os limites do seu poder de apreciação» ou se o acto adoptado «não está viciado por um erro manifesto ou um desvio de poder» (15).

58.   O segundo aspecto é, em seguida, representado pela importância reconhecida à saúde pública no ordenamento comunitário. Dar «uma contribuição para a realização de um elevado nível de protecção da saúde» representa, com efeito, um objectivo da Comunidade (artigo 3.°, alínea p), CE), que deve ser prosseguido «[n]a definição e execução de todas as políticas e acções» da própria Comunidade (artigo 152.°, n.° 1, CE). Trata‑se, portanto, de uma exigência «inderrogável» «de interesse geral» que as instituições devem sempre «ter em conta quando exercem os seus poderes» (16). Na ponderação dos interesses que esse exercício implica, as instituições devem reconhecer à exigência referida uma «importância preponderante relativamente às considerações económicas» (17), chegando mesmo a impor «consequências negativas, mesmo consideráveis, para alguns operadores» (18).

59.   Nesta óptica, o Tribunal de Justiça no passado considerou válidas, ou melhor, não manifestamente inválidas, medidas de política agrícola bastante onerosas para os operadores económicos, legitimando uma diminuição «até manifesta» dos seus interesses.

60.   Assim, por exemplo, no caso – seguramente emblemático – Affish, o Tribunal de Justiça considerou válida, justamente porque destinada a prosseguir a exigência «inderrogável» da protecção da saúde pública, uma decisão com a qual, após ter visitado sete instalações japonesas especializadas na criação de determinados peixes e crustáceos e concluído que algumas delas apresentavam sérios riscos para a saúde, a Comissão decidiu suspender as importações de todos os produtos da pesca provenientes do Japão (19).

61.   Colocar‑me‑ei, portanto, também nesta óptica, por assim dizer de self‑restreint na análise de cada um dos fundamentos de invalidade da Directiva 2002/2 que passo agora a fazer.

1.      Quanto à base jurídica

62.   O primeiro fundamento pelo qual os órgãos jurisdicionais nacionais duvidam da validade da directiva, designadamente do seu artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4, diz respeito à adequação da base jurídica do acto. Em especial, perguntam se essas disposições podem ser legitimamente fundadas no artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE, que permite ao Parlamento Europeu e ao Conselho adoptar «[e]m derrogação do artigo 37.°, medidas nos domínios veterinário e fitossanitário que tenham directamente por objectivo a protecção da saúde pública».

63.   A esse respeito, recordo que, segundo a jurisprudência assente, «no quadro do sistema de competências da Comunidade, a escolha da base jurídica de um acto deve assentar em elementos objectivos susceptíveis de fiscalização jurisdicional». Entre esses elementos figura, em especial, a «finalidade e o conteúdo do acto» (20).

64.   Ora, quanto à finalidade, como observaram com razão as instituições intervenientes, apoiadas quanto a esse ponto pelos Governos de França, da Grécia, Itália e dos Países Baixos, resulta dos considerandos da directiva que, após as graves crises sanitárias da BSE e das dioxinas, o legislador comunitário considerou inadequadas as disposições da Directiva 79/373 que limitavam as obrigações dos produtores de alimentos à simples menção no rótulo das matérias‑primas utilizadas (quarto considerando).

65.   Portanto, o legislador comunitário decidiu ampliar essas obrigações, impondo a indicação obrigatória de informações «qualitativas» e «quantitativas» pormenorizadas. Na sua intenção, com efeito, estas serão «vantajos[as] em termos de saúde pública», uma vez que «podem ser úteis na orientação da rastreabilidade das matérias potencialmente contaminadas para lotes específicos». Além disso, elas «evitar[ão] que se desperdicem produtos que não constituem um risco significativo para a saúde pública» (quinto considerando).

66.   Os objectivos enunciados pelo legislador nos considerandos encontram, em seguida, correspondência no conteúdo da directiva.

67.   Esta, com efeito, além de impor a indicação do «número de referência do lote» das matérias‑primas (artigo 1.°, n.° 1, alínea a)), obriga justamente os produtores de alimentos compostos a precisarem a respectiva percentagem ponderal com uma tolerância de mais ou menos 15% (artigo 1.°, n.° 4), bem como a comunicar a sua percentagem, desta vez exacta, aos clientes que a solicitem (artigo 1.°, n.° 1, alínea b)). A isso acresce, em seguida, a obrigação de comunicar às autoridades de fiscalização «qualquer documento relativo à composição dos alimentos destinados a serem colocados em circulação que permita verificar a lealdade das informações dadas na rotulagem» (artigo 1.°, n.° 5).

68.   Dessa análise do objectivo e do conteúdo da directiva resulta em minha opinião que as disposições controvertidas, juntamente com as outras disposições já referidas, tinham como objectivo directo aumentar o nível de protecção da saúde pública através de um acréscimo das informações sobre a composição dos alimentos compostos a fornecer aos criadores e às autoridades públicas.

69.   Todavia, concordo com as recorrentes nos processos principais e com o Governo neerlandês, quando sustentam que isso não basta para considerar correcta a base jurídica escolhida.

70.   Como o Tribunal de Justiça esclareceu no seu conhecido acórdão Alemanha/Parlamento Europeu e Conselho de 5 de Outubro de 2000, se se quer evitar que «a fiscalização jurisdicional do respeito da base jurídica [fique] privada de eficácia», é preciso verificar ainda se, para além das declarações e previsões abstractas do legislador, «o acto cuja validade é posta em causa prossegue efectivamente os objectivos invocados pelo legislador comunitário» (21).

71.   Por outras palavras, se interpretei bem as considerações desenvolvidas pelo Tribunal de Justiça naquele acórdão, para apreciar a adequação da base jurídica há que verificar não só se o acto controvertido prossegue o objectivo ao qual o Tratado reconhece uma competência legislativa às instituições, mas igualmente se é «efectivamente» destinado a esse objectivo e, sobretudo, se é capaz de o atingir.

72.   Se esta minha interpretação estiver correcta, então, como salientou igualmente o Governo dinamarquês na audiência, em sede de fiscalização da base jurídica torna‑se necessária uma apreciação sobre a aptidão do acto para atingir o objectivo prosseguido muito semelhante à apreciação relativa ao princípio da proporcionalidade, o qual, como se sabe, exige que os instrumentos previstos por uma disposição comunitária sejam justamente «aptos a realizar o objectivo visado» e «não vão além do que seja necessário para o atingir» (22).

73.   Por outro lado, uma vez que, nos processos em análise também foi justamente contestado o carácter desproporcionado do artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4 da directiva, passo à respectiva apreciação.

2.      Quanto à proporcionalidade e aos direitos fundamentais de propriedade e de liberdade de iniciativa

74.   O fundamento de invalidade central no presente processo é, com efeito, sem dúvida, o fundamento relativo à proporcionalidade. E isso tanto mais que a respectiva apreciação não só, como vimos, abrange em parte a apreciação relativa à base jurídica, mas vendo bem no caso vertente sobrepõe‑se igualmente, tornando supérflua a sua análise específica, à fiscalização do respeito dos direitos fundamentais de propriedade e de liberdade de empresa.

75.   Com efeito, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, «em relação à função por eles desenvolvida na sociedade», estes dois direitos fundamentais podem sofrer «restrições», mas estas não devem, todavia, consubstanciar‑se numa «intervenção desproporcionada» relativamente ao objectivo de interesse geral que prosseguem (23). As eventuais medidas restritivas devem, por outras palavras, respeitar precisamente o princípio da proporcionalidade.

76.   Portanto, como observou com razão a Comissão, para responder às questões colocadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais, nos processos em análise não é necessário resolver o problema – muito debatido entre as partes, mas definitivamente irrelevante – da patenteabilidade das fórmulas dos alimentos compostos e da possível inclusão dos segredos comerciais entre os direitos de propriedade intelectual protegidos pelo direito comunitário.

77.   Basta, ao invés, como concretamente admite também a ABNA, verificar se as disposições da Directiva 2002/2, que obrigam os produtores de alimentos compostos a revelar essas fórmulas, são aptas e necessárias para atingir o objectivo de protecção da saúde pública que querem prosseguir. Em caso afirmativo, essas disposições respeitam o princípio da proporcionalidade, quer seja considerado autonomamente ou como limite a potenciais restrições aos referidos direitos fundamentais. Caso contrário, isso basta para as declarar ilegais, sem que sejam portanto necessárias mais apreciações.

78.   Posto isto, passo finalmente a verificar se as obrigações previstas pelo artigo 1.°, n.° 1, alínea b) e n.° 4, da directiva: a) são aptas para prosseguir o objectivo de protecção da saúde pública; b) e não ultrapassam o necessário para atingir tal objectivo.

a)      Quanto à aptidão das indicações quantitativas para atingir o objectivo de protecção da saúde pública prosseguida

79.   As recorrentes nos processos principais, apoiadas quanto a este aspecto pelos Governos de Espanha e do Reino Unido, entendem que as indicações quantitativas pormenorizadas impostas pela directiva não são adequadas para proteger a saúde pública.

80.   Segundo as recorrentes, com efeito, ao contrário do que é afirmado no quinto considerando da directiva, essas indicações não dão qualquer contribuição efectiva para a rastreabilidade das matérias‑primas contaminadas. Em sua opinião, a menção das quantidades das matérias‑primas utilizadas, sem qualquer referência ao fornecedor ou ao lote a que pertencem, não fornece aos criadores nenhuma informação sobre a origem dessas matérias‑primas e, portanto, não lhes permite verificar a sua presença nos alimentos compostos adquiridos.

81.   Mesmo que essas indicações contribuíssem para a rastreabilidade, as disposições controvertidas não seriam aptas para proteger a saúde pública, porque se aplicam apenas aos produtores de alimentos compostos destinados à comercialização e não igualmente aos produtores de alimentos compostos para consumo próprio, ou seja, às empresas que produzem nas suas próprias terras os alimentos compostos destinados aos seus próprios animais. Na opinião das recorrentes, desse modo, 65% do volume global desses produtos escapa às obrigações de rotulagem previstas na directiva.

82.   Quanto a esta última censura, afirmo desde já que, em minha opinião, deve ser rejeitada.

83.   Com efeito, a comunicação, ao cliente ou no rótulo, das informações quantitativas tem sentido apenas quando quem produz e quem adquire sejam pessoas diferentes. Quando a pessoa que ministra o alimento também o produziu, é evidente que sabe bem que matérias‑primas utilizou e em que quantidades e, portanto, também sabe como deve actuar em caso de contaminação. A extensão aos produtores para consumo próprio das obrigações de rotulagem em questão é, portanto, perfeitamente inútil, e, é desproporcionada (porque absolutamente desnecessária) relativamente ao objectivo da protecção da saúde prosseguida pela directiva.

84.   Quanto à rastreabilidade, recordo antes de mais que, segundo a definição do Regulamento n.° 178/2002, que determina os princípios e as normas gerais da legislação comunitária em matéria de alimentos e alimentos compostos (artigo 1.°, n.° 2), entende‑se por esse termo «a capacidade de detectar a origem e de seguir o rasto de um género alimentício, de um alimento para animais, de um animal produtor de géneros alimentícios ou de uma substância, destinados a ser incorporados em géneros alimentícios ou em alimentos para animais, ou com probabilidades de o ser, ao longo de todas as fases da produção, transformação e distribuição» (artigo 3.°, n.° 15).

85.   Segundo esse regulamento, a rastreabilidade dos produtos visa «informar os consumidores ou os funcionários responsáveis pelos controlos», «de modo a possibilitar retiradas do mercado de forma orientada e precisa», «evitando‑se assim a eventualidade de perturbações desnecessárias mais importantes» (vigésimo oitavo considerando).

86.   Posto isto, observo – juntamente com a própria Comissão – que a rastreabilidade das matérias‑primas utilizadas nos alimentos compostos é assegurada principalmente pela indicação do número de lote das referidas matérias‑primas, número esse que, nos termos do artigo 1.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2002/02, deve aparecer no rótulo junto com as indicações quantitativas controvertidas. Em caso de contaminação, com efeito, é através desse número que se pode determinar a confecção de um alimento composto que contenha a substância perigosa e chegar também ao seu produtor.

87.   Todavia, como observaram a Comissão e os Governos dos Países Baixos e da Dinamarca, as próprias indicações quantitativas podem «contribuir para a rastreabilidade» (quinto considerando) (24), tornando efectivamente mais rápida a determinação dos ingredientes contaminados tendo em vista a destruição dos alimentos compostos que os contêm.

88.   Como observou com razão o Governo neerlandês, com efeito, quando num animal ou num alimento dele derivado se verifica existir uma substância perigosa, as indicações quantitativas permitem ao criador e às autoridades determinar rapidamente, e com uma margem razoável de apreciação, o ingrediente do alimento composto que contém essa substância e acelerar, portanto, a reconstrução do percurso seguido por essa mesma substância nas fases de produção, transformação e distribuição.

89.   Com efeito, se a percentagem da substância verificada no animal for alta, pode razoavelmente presumir‑se que esteja contida no ingrediente ou num dos ingredientes presentes no alimento em maior quantidade. Se, pelo contrário, a percentagem for muito baixa, pode razoavelmente entender‑se que a referida substância está presente num ingrediente em menor quantidade. Tudo isto sem ter de esperar pelos resultados de análises de laboratório, mas simplesmente baseando‑se nas indicações contidas no rótulo ou solicitadas ao produtor.

90.   Na audiência, o Governo dinamarquês deu um exemplo concreto que esclarece muito bem este tipo de contribuição.

91.   Em Agosto de 2004, recordou esse governo, verificou‑se no âmbito dos controlos de rotina que o leite produzido por um agricultor dinamarquês apresentava um nível muito elevado de aflatoxina, uma substância cancerígena gerada por alguns tipos de fungos que se desenvolvem em especial nos cereais. O rótulo dos alimentos dados ao gado desse agricultor indicava a presença de uma elevada percentagem de milho biológico italiano da campanha de 2003. Pela simples leitura desse rótulo, as autoridades dinamarquesas puderam verificar que a matéria contaminada era, com toda a probabilidade, precisamente o milho italiano. Com base nessa primeira e simples indicação quantitativa, puderam tomar medidas adequadas de controlo em relação a todos os lotes de alimentos compostos provenientes do mesmo produtor, que tinham um teor igualmente elevado do referido cereal. Se, pelo contrário, não dispusessem das informações quantitativas, as autoridades teriam que esperar pelos resultados das análises de laboratório e teriam sido obrigadas a atrasar os procedimentos necessários de política sanitária ou, com toda a probabilidade, adoptar medidas de precaução generalizadas.

92.   Com efeito, como observaram vários intervenientes, as indicações quantitativas contribuem também para a realização de outro objectivo típico da rastreabilidade, ou seja, o de evitar, em caso de contaminação, perturbações injustificadas e mais importantes do que o necessário para a protecção da saúde pública.

93.   Quando efectivamente um produtor descubra que uma matéria‑prima que utiliza está contaminada por uma substância perigosa, através da indicação do número de lote pode alertar os criadores que adquiriram os alimentos compostos que a contêm. Nesse momento, no entanto, através das indicações quantitativas os próprios criadores e as autoridades estão em condições de perceber qual a quantidade dessa substância que foi consumida pelos animais e de ponderar, por conseguinte, os procedimentos a adoptar excluindo, sempre que possível, o abate de gado e retiradas de alimentos injustificados.

94.   Sendo assim, parece‑me poder concluir que existe uma contribuição efectiva para a rastreabilidade, embora limitada.

95.   Por conseguinte, entendo que, julgando as indicações quantitativas pormenorizadas aptas para proteger a saúde pública e baseando, por conseguinte, a Directiva 2002/2, em especial o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4, no artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE, o legislador comunitário não exerceu de modo manifestamente erróneo o seu poder discricionário em matéria de política agrícola e sanitária.

96.   As recorrentes nos processos principais objectam ainda, no entanto, que, ao contrário das informações exactas a comunicar aos clientes nos termos do artigo 1.°, n.° 1, alínea b), as informações quantitativas a indicar no rótulo nos termos do artigo 1.°, n.° 4, não são pormenorizadas, porque permitem uma margem de tolerância de 15%. Pelo menos estas – continuam as recorrentes – não são, portanto, adequadas para atingir o objectivo visado.

97.   A esse respeito, o Governo dinamarquês sustentou na audiência que, segundo a sua experiência, as indicações a fornecer no rótulo, se bem que prevejam uma margem de tolerância, são adequadas para determinar com rapidez e segundo as formas já descritas os ingredientes contaminados de um alimento composto.

98.   Parece‑me poder partilhar dessa posição, sobretudo tendo em consideração que a apreciação que os criadores e as autoridades são chamadas a efectuar é de carácter aproximado e não exige uma indicação exacta ao grama. Com efeito, segundo resulta do debate na audiência, no âmbito dessa apreciação basta saber se um ingrediente está presente no alimento composto em elevada ou baixa percentagem, de modo a poder perceber rapidamente se é a esse ingrediente que pode ser imputada a contaminação elevada ou baixa.

99.   Mas sendo assim – como disse – se é suficiente a indicação quantitativa flexível para obter a contribuição limitada para a rastreabilidade pretendida pela directiva, deve‑se então colocar a questão de saber se a outra indicação exacta a comunicar aos clientes é realmente indispensável para esse mesmo fim ou se, pelo contrário, ultrapassa efectivamente o que é necessário.

100. Essa apreciação enquadra‑se, no entanto, no aspecto da necessidade das disposições controvertidas e está, portanto, relacionada com esse aspecto que passo agora a analisar.

b)      Quanto à necessidade das indicações quantitativas

101. As recorrentes nos processos principais, apoiadas quanto a este ponto pelo Governos de Espanha e do Reino Unido, observam antes de mais que a obrigação de fornecer aos criadores indicações quantitativas pormenorizadas sobre a composição dos alimentos compostos lhes causa graves prejuízos. Tal obrigação, com efeito, força‑as a revelarem aos seus próprios clientes as fórmulas dos alimentos compostos que elaboraram investindo recursos consideráveis na investigação científica e que, por esse motivo, mantiveram secretas até hoje. Só graças a essa investigação, em seu entender frustrada pelas disposições em análise, estão em condições de fornecer alimentos compostos cada vez mais eficientes e de adequar periodicamente a respectiva composição consoante as matérias‑primas disponíveis no mercado e as exigências especiais dos criadores.

102. Dito isto, as recorrentes, com argumentos avançados também pelos órgãos jurisdicionais nacionais, afirmam que as medidas em questão ultrapassam o que é necessário à protecção da saúde pública, porque:

i)      se aplicam igualmente aos alimentos compostos de base vegetal que, como sustenta designadamente o órgão jurisdicional italiano, são notoriamente inócuos para a saúde humana;

ii)      o objectivo prosseguido de afastar a repetição de crises alimentares, tais como a da BSE e a das dioxinas, já é assegurado pelas disposições que proíbem a introdução nos alimentos compostos de matérias‑primas contaminadas ou, de qualquer modo, consideradas inadequadas para a alimentação animal, como as farinhas animais (potenciais transmissoras da BSE) ou os produtos com percentagens elevadas de dioxinas (25);

iii)      em geral, o objectivo da protecção da saúde pública poderia ser atingido com medidas menos restritivas, tais como: a simples lista das matérias‑primas por ordem decrescente de importância ponderal; a comunicação confidencial dos dados quantitativos apenas às autoridades de controlo; ou a comunicação dos referidos dados igualmente aos criadores mas por «fasquias», ou seja, dentro de um limite mínimo e um limite máximo (26).

103. Fazendo a apreciação desses argumentos, observo o seguinte.

104. i) Quanto à alegada inocuidade dos alimentos compostos vegetais, concordo com o Conselho quando sustenta que essa afirmação é factualmente errada. Muitas das substâncias indesejáveis nos alimentos para animais (27) têm efectivamente origem vegetal e encontram‑se ou desenvolvem‑se exactamente nos alimentos de origem vegetal.

105. A esse respeito, sem ser contrariado pelos outros intervenientes no processo, o Conselho recordou que um dos factores de perigo mais conhecidos para a alimentação animal é constituído pelas aflatoxinas, toxinas altamente cancerígenas geradas por alguns tipos de fungos que se desenvolvem precisamente nos vegetais, em especial nos cereais e frutos com casca. Aliás, foram precisamente essas toxinas que estiveram na origem da contaminação do milho biológico ocorrida no Verão de 2004 na Dinamarca (v. supra n.° 91).

106. À luz desses elementos, não se pode afirmar que os alimentos compostos de base vegetal sejam necessariamente seguros e que uma extensão aos mesmos das obrigações de rotulagem previstas pela Directiva 2002/2 seja por isso mesmo desproporcionada.

107. ii) Quanto às disposições que proíbem a utilização de substâncias potencialmente perigosas nos alimentos compostos, observo que não podem concretamente impedir que, ainda que só acidentalmente, as substâncias indesejáveis acabem nos alimentos destinados aos animais. Se isso acontecer, essas disposições nada dizem, ao contrário das regras sobre rotulagem, sobre o modo como se deve enfrentar uma crise alimentar. Em especial, não contribuem em nada para a rastreabilidade da matéria contaminada, como faz, pelo contrário, o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4, da directiva. Mesmo em presença de limitações ao uso de determinadas substâncias nos alimentos compostos, as disposições citadas não se tornam portanto supérfluas, mantendo, pelo contrário, uma utilidade específica.

108. iii) Por último, quanto às possíveis medidas menos restritivas referidas há pouco (v. supra n.° 102), recordo antes de mais que o legislador é obrigado a recorrer a elas apenas quando se encontre perante uma escolha entre «várias medidas» igualmente «adequadas» (28).

109. Não é assim, antes de mais, no que se refere à simples enumeração dos ingredientes por ordem ponderal decrescente. Com efeito, tal enumeração, já prevista pela Directiva 90/44 e considerada inadequada pelo próprio legislador (v. quarto considerando da Directiva 2002/2; v. supra n.os 8 a 10), porque exclui qualquer indicação de tipo quantitativo, não pode contribuir para a rastreabilidade permitida pelas disposições controvertidas e não é, portanto, adequada para proteger a saúde pública na mesma medida que aquelas.

110. Nem sequer a comunicação confidencial dos dados quantitativos apenas às autoridades públicas de controlo permite, em minha opinião, um nível de protecção da saúde semelhante ao de uma informação destinada igualmente aos criadores. Com efeito, em caso de contaminação são justamente estes que podem controlar e retirar os produtos contaminados o mais rapidamente possível, tendo eles na sua disponibilidade directa o gado; e são sempre os criadores que podem alertar imediatamente as autoridades de controlo.

111. Seria portanto ilógico, em minha opinião, e incoerente com o objectivo de assegurar um elevado nível de protecção da saúde, excluir das informações relativas à alimentação animal quem cria e comercializa os animais e é, portanto, o primeiro interessado e responsável pela sua segurança, bem como pela dos consumidores finais.

112. Por último, no que respeita à possibilidade de recorrer a uma declaração por «fasquias», ou seja, uma declaração das percentagens dos ingredientes dentro de uma fasquia mínima e máxima, concordo com o Conselho quando observa que o sistema adoptado pela directiva no seu artigo 1.°, n.° 4, é justamente um sistema deste tipo e não pode, portanto, ser considerado desproporcionado.

113. Nos termos da disposição referida, com efeito, os produtores de alimentos compostos devem indicar no rótulo a percentagem ponderal das matérias‑primas utilizadas com uma margem de tolerância de mais ou menos 15%. Em concreto, isso significa que se um alimento composto contém 80% de trigo, a respectiva indicação deve situar‑se numa franquia compreendida entre os 68% e os 92%.

114. O que, em minha opinião, tendo em consideração a prática acima recordada dos produtores de alterar levemente mas continuamente a composição dos alimentos compostos, exclui a possibilidade de se produzir aquele prejuízo grave que na opinião deles decorre da obrigação de revelar a fórmula exacta dos seus produtos.

115. Outra coisa é revelar, no que se refere à obrigação prevista pelo artigo 1.°, n.° 1, alínea b), que impõe aos produtores a comunicação aos clientes que a solicitem da composição quantitativa exacta dos seus alimentos compostos, precisamente a fórmula que os órgãos jurisdicionais nacionais definiram como «essencial» para a própria existência das empresas em questão.

116. Em minha opinião, esta segunda obrigação ultrapassa manifestamente o necessário para a protecção da saúde pública.

117. Antes de mais, está prevista de um modo generalizado. Com base num simples pedido dos clientes, e portanto também no caso de não existir qualquer perigo de contaminação, os produtores de alimentos compostos são forçados a revelar as suas receitas secretas. Acresce que devem fazê‑lo aos seus próprios clientes que, possuindo com frequência estruturas agrícolas modernas, podem, aproveitando‑se das informações recebidas, tornar‑se potenciais concorrentes produzindo para consumo próprio ou até para comercialização externa.

118. Mas não se trata só disso. Como já salientei (v. n.os 97 a 99), a referida obrigação acresce inutilmente à obrigação mais flexível, prevista pelo artigo 1.°, n.° 4, que já pode assegurar uma contribuição limitada para a rastreabilidade prosseguida pelo legislador. Como vimos, com efeito, mesmo prevendo uma margem de tolerância de 15%, essa disposição permite por si só a determinação rápida e aproximada dos ingredientes contaminados e uma eliminação mais ponderada dos alimentos compostos que os contêm.

119. Não se vê então o que é que pretende e pode acrescentar, relativamente àquele objectivo, a previsão mais rígida do artigo 1.°, n.° 1, alínea b). Pelo contrário, a pouca novidade e utilidade que traz à protecção da saúde pública, presta‑se a provocar outras desvantagens aos produtores de alimentos compostos.

120. Creio, portanto, que essa previsão deve ser considerada manifestamente desproporcionada.

121. Tendo em consideração a análise desenvolvida até aqui sobre os fundamentos relativos à base jurídica e à proporcionalidade, entendo que posso agora chegar à seguinte conclusão.

122. Ao considerar as indicações quantitativas pormenorizadas aptas para proteger a saúde pública e ao basear, por conseguinte, a Directiva 2002/2, em especial o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e 1.°, n.° 4, no artigo 152.°, n.° 4, alínea b), CE, o legislador comunitário não exerceu de modo manifestamente erróneo o seu poder discricionário em matéria de política agrícola e sanitária. Por outro lado, uma vez que o objectivo de protecção da saúde pública pode ser prosseguido com a simples previsão da obrigação de enumerar no rótulo as matérias‑primas utilizadas, precisando, com uma tolerância de mais ou menos 15%, a sua percentagem ponderal (artigo 1.°, n.° 4), a previsão acrescida da obrigação de comunicar aos clientes que o solicitem igualmente a percentagem ponderal exacta das referidas matérias‑primas [artigo 1.°, n.° 1, alínea b)] é manifestamente desproporcionada e, portanto, inválida.

3.      Quanto ao princípio da precaução

123. Com a primeira parte da sua segunda questão nos processos C‑11/04 e C‑12/04, o órgão jurisdicional italiano pergunta essencialmente se a Directiva 2002/2, na parte em que impõe a obrigação de indicação exacta das matérias‑primas contidas nos alimentos compostos, viola o princípio da precaução.

124. Acabei de concluir que, na parte em que impõe uma indicação quantitativa exacta, a Directiva 2002/2 deve ser declarada inválida por violação do princípio da proporcionalidade. Parece‑me portanto supérfluo, em princípio, apreciar se, nessa parte, viola igualmente o princípio da precaução. Todavia, para ser exaustivo, analisarei igualmente este fundamento de invalidade.

125. Segundo o órgão jurisdicional italiano, o princípio referido foi violado porque o legislador comunitário não procedeu, antes da adopção da directiva, a um estudo que demonstre cientificamente a utilidade das indicações quantitativas exactas na prevenção das crises alimentares.

126. A esse respeito, recordo a título preliminar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, «quando subsistam incertezas quanto à existência ou alcance de riscos para a saúde das pessoas», o princípio da precaução permite que as instituições possam «adoptar medidas de protecção sem terem de esperar que a realidade e a gravidade de tais riscos sejam plenamente demonstradas» (29).

127. Recordo igualmente que esse princípio se encontra agora codificado e mais bem especificado no artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 178/2002, que prevê que «[n]os casos específicos em que, na sequência de uma avaliação das informações disponíveis, se identifique uma possibilidade de efeitos nocivos para a saúde, mas persistam incertezas a nível científico, podem ser adoptadas as medidas provisórias de gestão dos riscos necessárias para assegurar o elevado nível de protecção da saúde por que se optou na Comunidade, enquanto se aguardam outras informações científicas que permitam uma avaliação mais exaustiva dos riscos» (30).

128. Como observou com razão o Conselho e a F.lli Martini reconheceu igualmente, o princípio da precaução não é aplicável no caso vertente.

129. Com efeito, a Directiva 2002/2 não é uma medida específica provisória de gestão dos riscos que proíba determinados produtos ou práticas sobre cuja perigosidade existam dúvidas científicas. Trata‑se, ao invés, de um acto normativo de alcance geral que, com o fim de melhorar o nível de protecção da saúde pública (v. quarto e quinto considerandos), harmoniza os requisitos de rotulagem dos alimentos compostos de modo mais restritivo do que anteriormente.

130. Relativamente a essa directiva é aplicável o princípio geral, já afirmado pelo Tribunal de Justiça, segundo o qual «a acção legislativa da Comunidade [...] não pode ser limitada unicamente às hipóteses em que existem justificações suficientemente demonstradas» (31). A evolução dos «conhecimentos científicos» não é, com efeito, «o único motivo pelo qual o legislador comunitário pode decidir adaptar a legislação comunitária». No exercício do poder discricionário de que dispõe, em especial em matéria de política agrícola e sanitária, pode portanto «ter em conta também outras considerações» (32), tais como a importância acrescida dada no plano político e social à segurança dos alimentos, o alarme social causado pelas crises alimentares e a consequente desconfiança dos consumidores relativamente a determinados operadores económicos e às autoridades que os deveriam controlar.

131. À luz do exposto, entendo portanto que o princípio da precaução não é aplicável no caso vertente.

4.      Quanto ao princípio da igualdade

132. Com a sua quarta questão no processo C‑12/04, o órgão jurisdicional italiano pergunta se, ao impor aos produtores de alimentos compostos obrigações de rotulagem mais severas do que as previstas para os produtores de alimentos, o disposto no artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4, da directiva viola o princípio da igualdade.

133. A Ferrari Mangimi, apoiada pelo Governo espanhol, entende que a directiva introduz uma discriminação injustificada entre os referidos operadores, porque obriga as empresas do sector dos alimentos compostos a fornecer informações quantitativas relativas às matérias‑primas utilizadas, ao passo que não está prevista uma obrigação análoga para os produtores de alimentos, que devem apenas enumerar nos rótulos por ordem ponderal decrescente os ingredientes utilizados, mencionando o seu nome ou, nalguns casos, a sua categoria, mas sem nenhuma indicação quantitativa (artigo 6.°, n.os 5 e 6, da Directiva 2000/13) (33).

134. Ora, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio geral da igualdade impõe que «situações idênticas não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de igual maneira, salvo se esse tratamento se justificar por razões objectivas» (34). Portanto, para apurar se uma eventual disparidade de tratamento origina discriminação proibida, há que verificar se as duas situações em confronto são análogas e, em caso afirmativo, se o seu tratamento diferenciado se funda numa justificação objectiva.

135. Quanto ao primeiro aspecto, parece‑me poder partilhar a posição da Ferrari Mangimi, quando sustenta que a situação dos alimentos compostos para animais de produção e a dos géneros alimentícios são situações comparáveis, porque em ambos os casos se trata de produtos destinados directa ou indirectamente ao consumo humano e, portanto, potencialmente com riscos para a saúde humana.

136. Essa posição parece‑me de resto coerente com o Regulamento n.° 178/2000, várias vezes referido, que, tendo em consideração que os animais de produção nutridos com alimentos compostos de qualquer modo «se destin[am] à produção de géneros alimentícios» (sétimo considerando), estabelece os princípios e as regras gerais da legislação alimentar que se aplicam justamente quer aos alimentos compostos quer aos alimentos simples.

137. Não creio, no entanto, que possa concordar com a Ferrari Mangimi quando afirma que a disparidade de tratamento em análise não é justificada.

138. Com efeito, como observaram com razão o Parlamento Europeu e a Comissão, apoiados quanto a esse ponto pelo Governo grego, foi precisamente o sector dos alimentos compostos que esteve na origem das mais recentes crises sanitárias da BSE e das dioxinas e que exige, portanto, maiores obrigações e cautelas.

139. Além disso, ao contrário dos alimentos simples, os alimentos compostos estão no início da cadeia alimentar. Portanto, enquanto a contaminação dos alimentos produzidos ou comercializados por uma empresa pode comprometer a saúde do círculo restrito dos seus clientes, uma crise no sector dos alimentos compostos pode propagar‑se exponencialmente a todos os animais que os consumam e, em seguida, a todos os produtos que deles derivam, com efeitos potencialmente prejudiciais para um grande número de consumidores finais.

140. Isso leva‑me justamente a entender que uma regulamentação mais restritiva para os alimentos compostos é objectivamente justificada e que, portanto, nesse caso, não se pode falar de discriminação.

141. Por esse motivo, entendo que o disposto no artigo 1.°, n.° 1, alínea b), e n.° 4, da directiva não viola o princípio da igualdade.

142. Em conclusão da análise sobre a validade da directiva, proponho portanto que se declare que.

–       o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 2002/2 é inválido;

–       quanto ao resto, da análise da questão não resultam elementos susceptíveis de infirmar a validade dessa directiva.

C –    Quanto à aplicabilidade da directiva por não existir uma lista positiva de matérias‑primas utilizáveis nos alimentos compostos

143. Com a sua terceira questão no processo C‑12/04, o órgão jurisdicional italiano pergunta essencialmente se a aplicação da Directiva 2002/2 está subordinada à elaboração de uma lista positiva que enumere com os seus nomes específicos as matérias‑primas utilizáveis na alimentação animal e se, não existindo essa lista, os Estados‑Membros podem transpor a directiva recorrendo a uma lista das referidas matérias‑primas com as denominações genéricas da sua categoria comercial.

144. Ao suscitar a questão, o órgão jurisdicional italiano parece entender que o décimo considerando da Directiva 2002/2 subordina efectivamente a sua aplicação à adopção da referida lista positiva, cuja inexistência torna objectivamente inaplicável a nova regulamentação. Essa posição é partilhada pela Ferrari Mangimi e pelo Governo espanhol.

145. O referido órgão jurisdicional indica, além disso, que ao transpor a obrigação prevista pela directiva de enumerar sob os seus nomes específicos as matérias‑primas referidas no rótulo, as autoridades italianas permitiram aos produtores o recurso às denominações contidas no anexo VII, parte A, da Lei 281/63 e, para as denominações que não estão aí incluídas, as referidas na parte B do mesmo anexo, que correspondem às categorias genéricas de matérias‑primas fixadas pela Directiva 91/357, agora revogada pela Directiva 2002/2. A Ferrari Mangimi exemplificou igualmente estas modalidades de transposição da directiva para a ordem jurídica italiana, considerando‑as incorrectas.

146. A esse respeito, recordam‑se a título preliminar alguns elementos já referidos no enquadramento legal das conclusões (v. supra n.os 8 a 16).

147. Nessa sede, vimos que os requisitos de rotulagem dos alimentos compostos destinados a animais de produção foram inicialmente harmonizados pela Directiva 90/44 segundo o sistema da «fórmula flexível de declaração», com base no qual o responsável pelo rótulo podia, nomeadamente, escolher se designava as matérias‑primas utilizadas sob o seu nome específico ou sob a denominação genérica da categoria comercial a que pertence (artigo 1.°, n.° 5).

148. Na sequência das crises da BSE e das dioxinas, com a Directiva 2002/2 o legislador adoptou uma regulamentação mais restritiva que impõe, além das informações quantitativas já analisadas, a indicação necessária das referidas matérias sob os seus nomes específicos (artigo 1.°, n.° 4, que altera o artigo 5.°‑C da Directiva 79/373).

149. Em conformidade com essa previsão, a Directiva 2002/2 revogou a Directiva 91/357 da Comissão, que estabelecia as categorias de matérias‑primas que podiam ser utilizadas para indicar a composição dos alimentos compostos (v. décimo segundo considerando e artigo 2.°) (35).

150. Recorda‑se igualmente que no seu décimo considerando a Directiva 2002/2 pedia à Comissão que apresentasse ao Parlamento Europeu e ao Conselho «[c]om base no estudo de viabilidade e o mais tardar até 31 de Dezembro de 2002, [...] um relatório [...] acompanhado por uma proposta adequada, que tenha em conta as conclusões do dito relatório, no sentido da elaboração de uma lista positiva».

151. Nesse sentido, em 24 de Abril de 2003, a Comissão apresentou um relatório, no qual declarou no entanto que a redacção de uma «lista positiva», ou seja, de «uma lista positiva de matérias‑primas que, mediante prévia apreciação, são consideradas inofensivas para a saúde humana e animal e podem portanto ser utilizadas na alimentação dos animais» não é «decisiva para garantir a segurança dos alimentos para animais». Na sequência dessa consideração, a Comissão decidiu não apresentar nenhuma proposta quanto ao fundo.

152. Assim, afirmo desde já que, em minha opinião, a transposição e a aplicação da obrigação, prevista pela directiva, de mencionar as matérias‑primas utilizadas sob os seus nomes específicos não está subordinada à elaboração da referida «lista positiva» e que os Estados‑Membros não podem cumprir a referida obrigação permitindo que a indicação em questão seja efectuada mediante denominações genéricas de categoria.

153. Antes de mais, ao contrário do que parece entender o órgão jurisdicional italiano e como observou com razão a Comissão, não resulta das disposições da directiva nem, muito menos, dos seus considerandos nem do relatório da Comissão que a transposição ou a aplicação da própria directiva esteja subordinada à adopção de semelhante lista.

154. Como salientou igualmente o Parlamento Europeu, este dado literal é, em seguida, confirmado por uma análise cronológica da observância das exigências da directiva.

155. Como vimos, com efeito, o décimo considerando, que enquanto tal é destituído de valor vinculativo, convidava a Comissão a apresentar, com base num estudo de viabilidade, um relatório acompanhado de uma proposta adequada sobre o problema da «lista» até 31 de Dezembro de 2002. O artigo 3.°, n.° 1, fixava, em seguida, o prazo de transposição da directiva em 6 de Março de 2003. Por último, as disposições nacionais de execução deviam ser aplicadas a partir de 6 de Novembro de 2003.

156. Ora, parece‑me que seria ilógico entender que o legislador impôs a execução da directiva até 6 de Março de 2003, subordinando no entanto a sua aplicação à adopção de um procedimento posterior que, a ser exequível, teria iniciado o seu processo legislativo apenas dois meses antes e que se teria prolongado com toda a probabilidade muito para além daquela data. Por outras palavras, seria ilógico entender que o próprio legislador tenha querido impor a um acto seu uma condição que na prática teria frustrado a sua transposição e implicado a sua inaplicabilidade quase automática.

157. Na realidade, não se deve esquecer que, sendo pormenorizada, a Directiva 2002/2 limita‑se, enquanto tal, a fixar uma obrigação de resultado, que compete aos Estados‑Membros atingir com os meios e segundo as formas adequadas.

158. Nesta óptica, a directiva fixou uma obrigação de enumerar sob os seus nomes específicos as matérias‑primas utilizadas nos alimentos compostos. Compete, em seguida, aos Estados‑Membros estabelecer de que modo isso deve ser efectuado nas respectivas ordens jurídicas nacionais.

159. É certo que essa tarefa seria mais fácil se existisse uma normalização comunitária dos nomes específicos a que os Estados‑Membros pudessem fazer referência. Como reconheceu a própria Comissão, tal normalização, não devendo resumir‑se necessariamente a uma lista taxativa de matérias‑primas utilizáveis, é desejável para assegurar uma protecção mais alargada dos clientes. A Comissão poderia, portanto, reconsiderar a sua utilidade já no âmbito do novo relatório sobre a execução da directiva a apresentar até 6 de Novembro de 2006 (v. artigo 1.°, n.° 6).

160. Não existindo a referida normalização, de qualquer modo, são os próprios Estados‑Membros que devem determinar os meios de transposição mais apropriados, recorrendo eventualmente aos meios sugeridos pela Comissão nas suas observações escritas e na audiência (redacção de listas nacionais não taxativas ou uso das denominações específicas correntes das matérias‑primas).

161. Em qualquer caso, não compete ao Tribunal de Justiça indicar qual desses meios é melhor ou mais facilmente realizável. O que, pelo contrário, o Tribunal de Justiça pode sem dúvida excluir é que a transposição da obrigação de denominação específica possa ser efectuada recorrendo (como parece ter feito o legislador italiano) a uma listagem das referidas matérias‑primas respeitante às denominações genéricas das suas categorias comerciais, ou seja, através de um sistema que, com a revogação da Directiva 91/357, o legislador comunitário excluiu expressamente.

162. À luz das considerações expostas, entendo que a transposição e a aplicação da Directiva 2002/2, em especial da obrigação de enumerar sob os seus nomes específicos as matérias‑primas dos alimentos compostos, prevista no artigo 1.°, n.° 4, da mesma directiva, não estão subordinadas à elaboração de uma lista de matérias‑primas utilizáveis na alimentação dos animais.

163. Essa obrigação não pode ser transposta pelos Estados‑Membros recorrendo a uma listagem das referidas matérias‑primas respeitante às denominações genéricas da sua categoria comercial.

D –    Quanto à extensão às autoridades administrativas nacionais do poder de suspender a título cautelar procedimentos internos de execução de actos comunitários de validade duvidosa

164. Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional neerlandês pergunta se as autoridades administrativas de um Estado‑Membro, que portanto certamente não podem ser consideradas órgãos jurisdicionais na acepção do artigo 234.° CE, têm o poder de suspender a título cautelar a execução de procedimentos nacionais que dão cumprimento a disposições comunitárias, cuja validade é contestada, quando o órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro já tenha pedido ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a validade daquelas disposições.

165. Segundo a Nevedi, a questão merece uma resposta positiva. A Nevedi recorda, com efeito, que no acórdão F.lli Costanzo (36), o Tribunal de Justiça já reconheceu que as administrações nacionais devem, tal como as autoridades jurisdicionais, deixar de aplicar as disposições nacionais contrárias a directivas com efeito directo, sem portanto obrigar os particulares a recorrer inutilmente à via judicial. Tal solução, continua a Nevedi, poderia ser transposta igualmente para o caso vertente: estando reunidas as condições, as administrações nacionais devem poder suspender a título cautelar os procedimentos de execução de disposições comunitárias de validade duvidosa, de modo a evitar aos particulares um recurso inútil à justiça e todas as despesas gravosas que daí decorrem.

166. Em minha opinião, no entanto, tal solução não pode ser aceite.

167. Observo em primeiro lugar que a razão de ser da obrigação de não aplicação das administrações nacionais não reside em exigências de economia processual, mas no facto de que «os deveres que [das disposições comunitárias com efeito directo] decorrem se impõem a todas as autoridades dos Estados‑Membros» (37), quer jurisdicionais quer administrativas.

168. Mas, à parte isto, entendo que o acórdão F.lli Costanzo não é, de facto, pertinente para a solução da questão em análise. Naquele caso, com efeito, discutia‑se se as administrações nacionais podiam não aplicar disposições internas contrárias a disposições comunitárias seguramente válidas. Aqui, ao invés, pergunta‑se se as administrações nacionais podem suspender a título cautelar disposições internas de execução de disposições comunitárias suspeitas de invalidade.

169. É claro, portanto, que não subsistem no caso em apreço as exigências de protecção da aplicação plena e uniforme do direito comunitário que subjazem ao acórdão F.lli Costanzo.

170. Não é, portanto, desse acórdão que se deve partir para responder ao órgão jurisdicional neerlandês, mas antes da jurisprudência – que passo a analisar – em que o Tribunal de Justiça reconheceu às autoridades jurisdicionais nacionais o poder cautelar que se pretende agora estender igualmente às autoridades administrativas (38).

171. Como observaram com razão o Governo neerlandês e a Comissão, desses acórdãos decorre antes de mais que o reconhecimento do referido poder aos órgãos jurisdicionais nacionais tem por objectivo «mitigar» o monopólio do Tribunal de Justiça sobre a fiscalização da legalidade dos actos das instituições comunitárias, bem como o princípio da aplicação uniforme do direito comunitário (39).

172. Esse «mitigar», como salientaram o Governo grego e a Comissão, é no entanto justificado por duas exigências, ambas fundamentais.

173. A primeira é a plena «protecção jurisdicional» dos particulares, que exige que «aos particulares [seja] permitido, na ocorrência de determinados pressupostos, obter uma medida de suspensão que permita paralisar no que lhes diz respeito os efeitos [do acto comunitário]» cuja validade contestam (40).

174. A segunda é a «coerência» do sistema jurisdicional comunitário, em especial do «sistema de protecção provisória», que exige que «a protecção provisória assegurada aos particulares pelo direito comunitário» não varie consoante estes impugnem directamente um acto comunitário no Tribunal de Justiça (caso em que a referida protecção está expressamente prevista pelo artigo 242.° CE) ou contestem a sua validade nos órgãos jurisdicionais nacionais; e, neste caso, consoante «eles contestem a compatibilidade das disposições do direito nacional com o direito comunitário ou a validade de actos comunitários de direito derivado» (41).

175. Se bem que justificada por essas exigências, a suspensão da execução de um procedimento nacional adoptado em aplicação de um acto comunitário, precisamente porque diz respeito aos princípios fundamentais acima recordados, pode ser concedida por um órgão jurisdicional nacional apenas em condições precisas. Designadamente, é necessário:

–      que o mesmo órgão jurisdicional tenha sérias dúvidas quanto à validade do acto comunitário e proceda imediatamente ao reenvio prejudicial, no caso de ainda não ter sido submetida ao Tribunal de Justiça a questão da validade do acto impugnado;

–      que estejam reunidas as condições de urgência e que o requerente corra o risco de sofrer um prejuízo grave e irreparável;

–      e, por último, que o referido órgão jurisdicional tenha inteiramente em conta o interesse da Comunidade, impondo, quando seja necessário, a quem requer a medida provisória a prestação de garantias adequadas, tais como a constituição de uma caução ou depósito à ordem do tribunal para efeitos de manutenção (42).

176. Ora, parece‑me que as exigências e as condições fixadas pela jurisprudência acima recordada não estão reunidas quando se trata de uma autoridade administrativa.

177. Em especial, não existe a exigência de garantir a coerência do sistema jurisdicional comunitário que justifique o reconhecimento de poderes cautelares também aos órgãos jurisdicionais nacionais. Ao contrário destes, com efeito, as autoridades administrativas não tomam decisões, com plena imparcialidade e independência, destinadas a garantir o respeito dos direitos de origem comunitária e na vigência das quais pode ser submetida uma questão ao Tribunal de Justiça. Portanto, as autoridades administrativas não fazem parte do sistema do Tratado que se baseia na existência paralela das vias de recurso directo e do reenvio prejudicial e cuja coerência o Tribunal de Justiça quis salvaguardar estendendo ao segundo o poder de adoptar medidas previstas textualmente apenas para os primeiros.

178. Além disso, como observaram com razão os Governos neerlandês e italiano e a Comissão, as condições indicadas para a suspensão de disposições nacionais de execução de um acto comunitário conciliam‑se mal com a posição e os poderes das referidas autoridades.

179. Em especial, parece‑me que a condição relativa à existência de um prejuízo grave e irreparável para o particular exige uma apreciação por parte de um terceiro, independente e imparcial, e não pode ser efectuada pela mesma autoridade que, como no caso vertente, adoptou o procedimento a suspender e poderia, portanto, estar igualmente interessada na manutenção da sua aplicação.

180. Do mesmo modo, os procedimentos a adoptar para proteger os interesses da Comunidade, em especial a apreensão de bens, são procedimentos tipicamente jurisdicionais que, incidindo sobre os direitos subjectivos dos particulares, estão reservados à competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais. Não existindo procedimentos deste tipo, os referidos interesses não podem ser devidamente salvaguardados e a Comunidade seria exposta a riscos, até de carácter financeiro, inaceitáveis.

181. Pelos fundamentos expostos, entendo, portanto, que as autoridades administrativas de um Estado‑Membro não têm o poder de suspender a título cautelar a execução de procedimentos nacionais que dão execução a disposições comunitárias, cuja validade seja contestada, nem sequer quando o órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro já tenha pedido ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a validade dessas disposições.

V –    Conclusões

182. À luz das considerações precedentes proponho ao Tribunal de Justiça que declare que:

–      Nos processos C‑453/03, C‑11/94 (primeira, segunda e terceira questões) e C‑12/04 (primeira, segunda e quarta questões), e C‑194/04 (primeira questão):

«1)      O artigo 1.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 2002/2 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que altera a Directiva 79/373/CEE do Conselho relativa à circulação de alimentos compostos para animais e que revoga a Directiva 91/357/CEE da Comissão, é inválido;

2)      Quanto ao resto, da análise da questão não resultaram elementos susceptíveis de infirmar a validade da Directiva 2002/2 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que altera a Directiva 79/373/CEE do Conselho relativa à circulação de alimentos compostos para animais e que revoga a Directiva 91/357/CEE da Comissão.»

–      No processo C‑12/04 (terceira questão):

«A transposição e a aplicação da Directiva 2002/2, em especial a obrigação de mencionar sob os seus nomes específicos as matérias‑primas dos alimentos compostos, prevista pelo artigo 1.°, n.° 4, da mesma directiva, não estão subordinadas à elaboração de uma lista de matérias‑primas utilizáveis na alimentação dos animais.

Tal obrigação não pode ser transposta pelos Estados‑Membros recorrendo a uma listagem das referidas matérias‑primas relativa às denominações genéricas da sua categoria comercial.»

–      No processo C‑194/04 (segunda questão):

«As autoridades administrativas de um Estado‑Membro não têm o poder de suspender a título cautelar a execução de procedimentos internos que dão execução a disposições comunitárias cuja validade seja contestada, nem sequer quando o órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro já tenha pedido ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a validade daquelas disposições».


1 – Língua original: italiano.


2 – Despachos de 6 de Outubro de 2003 da High Court of Justice, Queen’s Bench Division, do Reino Unido; de 4 de Dezembro de 2003 do Consiglio di Stato italiano; e de 26 de Abril de 2004 do Rechtbank te ‘s‑Gravenhage dos Países Baixos.


3 – JO L 643, p. 2.


4 – Directiva relativa à comercialização dos alimentos compostos para animais (JO L 86, p. 30; EE 03 F16 p. 75).


5 – Directiva do Conselho, de 22 de Janeiro de 1990, que altera a Directiva 79/373/CEE relativa à comercialização dos alimentos compostos para animais (JO L 27, p. 35).


6 – Rapport de la Commission sur la faisabilité d’une liste positive des matières premières pour aliments des animaux, de 24 de Abril de 2003.


7 – JO L 31, p. 1.


8 – SI 2003/1503.


9 – SI 2000/2481.


10 – GURI de 6 de Agosto de 2003, n.° 181.


11 – PDO‑blad n.° 42, de 27 de Junho de 2003.


12 – Acórdãos de 26 de Janeiro de 1993, Telemarsicabruzzo e o. (C‑320/90 a C‑322/90, Colect., p. I‑393, n.° 6); de 14 de Julho de 1998, Safety Hi‑Tech (C‑284/95, Colect., p. I‑4301, n.° 69); de 14 de Julho de 1998, Bettati (C‑341/95, Colect., p. I‑4355, n.° 67); de 21 de Setembro de 1999, Brentjens’ (C‑115/97 a C‑117/97, Colect., p. I‑6025, n.° 38).


13 – Acórdão de 11 de Setembro de 2003, Altair Chimica (C‑207/01, Colect., p. I‑8875, n.° 25). V. igualmente despachos de 30 de Abril de 1998, Testa e Modesti (C‑128/97 e C‑137/97, Colect., p. I‑2181, n.° 6); de 11 de Maio de 1999, Anssens (C‑325/98, Colect., p. I‑2969, n.° 8); e de 28 de Junho de 2000, Laguillaumie (C‑116/00, Colect., p. I‑4979, n.° 15).


14 – V. acórdão de 5 de Outubro de 1994, Alemanha/Conselho (C‑280/93, Colect., p. I‑4973, n.° 47). V. igualmente acórdãos de 9 de Julho de 1985, Bozzetti (179/84, Recueil, p. 2301, n.° 30); de 11 de Julho de 1989, Schräder (265/87, Colect., p. 2237, n.° 22); de 21 de Fevereiro de 1990, Wuidart e o. (C‑267/88 a C‑285/88, Colect., p. I‑435, n.° 14); e de 19 de Março de 1992, Hierl (C‑311/90, Colect., p. I‑2061, n.° 13).


15 – Acórdãos de 13 de Novembro de 1990, Fedesa e o. (C‑331/88, Colect., p. I‑4057, n.os 8 e 14) e de 12 de Novembro de 1996, Reino Unido/Conselho (C‑84/94, Colect., p. I‑5755, n.° 58). Sublinhado meu.


16 – Acórdão de 23 de Fevereiro de 1998, Reino Unido/Conselho (68/86, Colect., p. 855, n.° 12); e despacho do Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 1996, Reino Unido/Comissão (Colect., p. I‑3903, n.° 63).


17 – Acórdão de 17 de Julho de 1997, Affish (C‑183/95, Colect., p. I‑4315, n.os 43 e 57).


18 – Acórdãos Fedesa e o., n.° 17, e Affish, n.° 42.


19 – Acórdão Affisch, já referido.


20 – Acórdãos de 4 de Abril de 2000, Comissão/Conselho (C‑269/97, Colect., p. I‑2257, n.° 43); de 30 de Janeiro de 2001, Espanha/Conselho (C‑36/98, Colect., p. I‑ 779, n.° 58); e de 10 de Dezembro de 2002, British American Tabacco Investments e Imperial Tobacco (C‑491/01, Colect., p. I‑11453, n.° 93).


21 – V. acórdão C‑376/98, Colect., p. I‑8419, n.os 84 e 85. Sublinhado meu.


22 – Acórdão British American Tobacco, já referido, n.° 122. V. igualmente acórdãos de 18 de Novembro de 1987, Maizena (137/85, Colect., p. 4587, n.° 15); de 7 de Dezembro de 1993, ADM Ölmühlen (C‑339/92, Colect., p. I‑6473, n.° 15); de 9 de Novembro de 1995, Alemanha/Conselho (C‑426/93, Colect., p. I‑3723, n.° 42); de 12 de Novembro de 1996, Reino Unido/Conselho, já referido, n.° 57; de 11 de Julho de 2002, Käserei Champignon Hofmeister (C‑210/00, Colect., p. I‑6453, n.° 59).


23 – Acórdãos Schräder, já referido, n.° 15; de 13 de Julho de 1989, Wachauf (5/88, Colect., p. 2609, n.° 18); de 10 de Janeiro de 1992, Kuehn (C‑177/90, Colect., p. I‑35, n.° 16); e acórdão de 5 de Outubro de 1994, Alemanha/Conselho, já referido, n.° 78. Com referência específica ao direito de propriedade, v. igualmente acórdãos de 13 de Dezembro de 1979, Hauer (44/79, Recueil, p. 3727, n.° 23); de 29 de Abril de 1999, Standley e o. (C‑293/97, Colect., p. I‑2603, n.° 54). Relativamente à liberdade de empresa v. acórdãos Affish, já referido, n.° 42.


24 – Sublinhado meu.


25 –      A esse respeito, a Nevedi cita: a Decisão 2000/766/CEE do Conselho, de 4 de Dezembro de 2000, relativa a determinadas medidas de protecção relativas às encefalopatias espongiformes transmissíveis e à utilização de proteínas animais na alimentação animal (JO L 306, p. 32); o Regulamento (CE) n.° 1234/2003 da Comissão, de 10 de Julho de 2003, que altera os anexos I, IV, e XI do Regulamento (CE) n.° 999/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho e o Regulamento (CE) n.° 1326/2001 no que respeita às encefalopatias espongiformes transmissíveis e à alimentação dos animais (JO L 173, p. 6); a Directiva 2001/102/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2001, que altera a Directiva 1999/29/CE do Conselho relativa às substâncias e produtos indesejáveis nos alimentos para animais (JO L 6, p. 45); a Directiva 2002/32/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Maio de 2002, relativa às substâncias indesejáveis nos alimentos para animais (JO L 140, p. 10); e a Directiva 2003/57/CE da Comissão, de 17 de Junho de 2003, que altera a Directiva 2000/32/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às substâncias e produtos indesejáveis nos alimentos para animais (JO L 151, p. 38).


26 –      Durante o processo legislativo, o Conselho propôs um sistema deste tipo que obrigava o responsável pelo rótulo a declarar as matérias‑primas contidas nos alimentos compostos com base na sua percentagem ponderal, por ordem decrescente, dentro de cinco «fasquias» (primeira fasquia: >30%; segunda fasquia: >15‑30%; terceira fasquia: >5‑15%; quarta fasquia: 2‑5%; quinta fasquia: <2%). V. posição comum definida pelo Conselho em 19 de Dezembro de 2000 (JO C 36, p. 35).


27 – A esse respeito, v. a Directiva 2003/100/CE da Comissão, de 31 de Outubro de 2003, que altera o anexo I da Directiva 2002/32/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às substâncias indesejáveis nos alimentos para animais (JO L 285, p. 33).


28 – Acórdão Schräder, já referido, n.° 21. V. igualmente acórdão de 12 de Setembro de 1996, Fattoria autonoma tabacchi e o. (C‑254/94 e C‑255/94 e C‑269/94, Colect., p. I‑4235, n.° 55).


29 – Acórdão de 5 de Maio de 1998, National Farmers’ Union e o. (C‑157/96, Colect., p. I‑2211, n.° 63).


30 – Sublinhado meu.


31 – Acórdão de 12 de Novembro de 1996, Reino Unido/Conselho (C‑84/94, Colect., p. I‑5755, n.° 39).


32 – Acórdão British American Tobacco, n.° 80.


33 – Directiva 2000/13/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Março de 2000, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à rotulagem, apresentação e publicidade dos géneros alimentícios (JO L 109, p. 29).


34 – Entre muitos, v. acórdãos de 29 de Junho de 1995, SCAC (C‑56/94, Colect., p. I‑1769, n.° 27); de 17 de Abril de 1997, EARL de Kerlast (C‑15/95, Colect., p. I‑1961, n.° 35); de 17 de Julho de 1997, National Farmers’ Union e o. (C‑354/95, Colect., p. I‑4559, n.° 61); e de 13 de Abril de 2000, Karlsson e o. (C‑292/97, Colect., p. I‑2737, n.° 39).


35 – Directiva 91/357/CEE da Comissão, de 13 de Julho de 1991, que fixa as categorias de ingredientes que podem ser utilizados na rotulagem dos alimentos compostos destinados a animais com excepção dos animais de companhia (JO L 193, p. 34).


36 – Acórdão de 22 de Junho de 1989, Fratelli Costanzo (103/88, Colect., p. 1839).


37 – Idem, já referido, n.° 30.


38 – V., em especial, acórdãos de 21 de Fevereiro de 1991, Zuckerfabrik (C‑143/88 e C‑92/89, Colect., p. I‑415); e de 9 de Novembro de 1995, Atlanta e o. (C‑465/93, Colect. p. I‑3761).


39 – Acórdão Zuckerfabrik, já referido, n.° 17 e acórdão de 22 de Outubro de 1987, Foto‑Frost (314/85, Colect., p. 4199, n.° 19).


40 – Acórdão Zuckerfabrik, já referido, n.os 16 e 17.


41 – Idem, n.os 18 a 20.


42 –      Idem, n.os 22 a 33.